para teu rosto se mirar. Mas só a sombra dos meus olhos ficou por cima, a procurar... Os pássaros da madrugada não têm coragem de cantar, vendo o meu sonho interminável e a esperança do meu olhar. Procurei-te em vão pela terra, perto do céu, por sobre o mar. Se não chegas nem pelo sonho, por que insisto em te imaginar? Quando vierem fechar meus olhos, talvez não se deixem fechar. Talvez pensem que o tempo volta, e que vens, se o tempo voltar.
Motivo (Cecília Meireles)
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa. Não sou alegre nem triste: sou poeta. Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento. Se desmorono ou edifico, se permaneço ou me desfaço, - não sei, não sei. Não sei se fico ou passo. Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno e asa ritmada. E sei que um dia estarei mudo: - mais nada
Traze-me (Cecília Meireles)
Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia! Um pouco de sombra, apenas, - vê que nem te peço alegria. Traze-me um pouco da alvura dos luares que a noite sustenta no teu coração! A alvura, apenas, dos ares: - vê que nem te peço ilusão. Traze-me um pouco da tua lembrança, aroma perdido, saudade da flor! -Vê que nem te digo - esperança! -Vê que nem sequer sonho - amor!
Timidez (Cecília Meireles)
Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve, para que venhas comigo e eu para sempre te leve... - mas só esse eu não farei. Uma palavra caída das montanhas dos instantes desmancha todos os mares e une as terras mais distantes... - palavra que não direi. Para que tu me adivinhes, entre os ventos taciturnos, apago meus pensamentos, ponho vestidos noturnos, - que amargamente inventei. E, enquanto não me descobres, os mundos vão navegando nos ares certos do tempo, até não se sabe quando... e um dia me acabarei.
Canção (Cecília Meireles)
Não te fies do tempo nem da eternidade,
que as nuvens me puxam pelos vestidos que os ventos me arrastam contra o meu desejo! Apressa-te, amor, que amanhã eu morro, que amanhã morro e não te vejo! Não demores tão longe, em lugar tão secreto, nácar de silêncio que o mar comprime, o lábio, limite do instante absoluto! Apressa-te, amor, que amanhã eu morro, que amanhã eu morro e não te escuto! Aparece-me agora, que ainda reconheço a anêmona aberta na tua face e em redor dos muros o vento inimigo... Apressa-te, amor, que amanhã eu morro, que amanhã eu morro e não te digo...
Serenata (Cecília Meireles)
" ... Permita que eu feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde! Pensei que era apenas demora, e cantando pus-me a esperar-te. Permite que agora emudeça: que me conforme em ser sozinha. Há uma doce luz no silencio, e a dor é de origem divina. Permite que eu volte o meu rosto para um céu maior que este mundo, e aprenda a ser dócil no sonho como as estrelas no seu rumo ... "
Cecília Meireles
O meu amor não tem
importância nenhuma. Não tem o peso nem de uma rosa de espuma! Desfolha-se por quem? Para quem se perfuma? O meu amor não tem importância nenhuma.
Canteiros (Música do Fagner baseada na obra de Cecília Meireles)
Quando penso em você fecho os olhos de saudade
Tenho tido muita coisa, menos a felicidade Correm os meus dedos longos em versos tristes que invento Nem aquilo a que me entrego já me traz contentamento Pode ser até manhã, cedo claro feito dia mas nada do que me dizem me faz sentir alegria Eu só queria ter no mato um gosto de framboesa Para correr entre os canteiros e esconder minha tristeza Que eu ainda sou bem moço para tanta tristeza E deixemos de coisa, cuidemos da vida, Pois se não chega a morte ou coisa parecida E nos arrasta moço, sem ter visto a vida.
Ou Isto Ou Aquilo (Cecília Meireles)
Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva! Ou se calça a luva e não se põe o anel, ou se põe o anel e não se calça a luva! Quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares. É uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo nos dois lugares! Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, ou compro o doce e gasto o dinheiro. Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo... e vivo escolhendo o dia inteiro! Não sei se brinco, não sei se estudo, se saio correndo ou fico tranqüilo. Mas não consegui entender ainda qual é melhor: se é isto ou aquilo.
4º Motivo Da Rosa (Cecília Meireles)
Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim. Rosas verá, só de cinzas franzidas, mortas, intactas pelo teu jardim. Eu deixo aroma até nos meus espinhos ao longe, o vento vai falando de mim. E por perder-me é que vão me lembrando, por desfolhar-me é que não tenho fim.
Mapa de anatomia: o olho
O Olho é uma espécio de globo,
é um pequeno planeta com pinturas do lado de fora. Muitas pinturas: azuis, verdes, amarelas. É um globo brilhante: parece cristal, é como um aquário com plantas finamente desenhadas: algas, sargaços, miniaturas marinhas, areias, rochas, naufrágios e peixes de ouro.
Mas por dentro há outras pinturas,
que não se vêem: umas são imagens do mundo, outras são inventadas.
O Olho é um teatro por dentro.
E às vezes, sejam atores, sejam cenas, e às vezes, sejam imagens, sejam ausências, formam, no Olho, lágrimas.