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antologia

poética
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RUY BELO
(1933-1978)

E TUDO ERA POSSÍVEL

Na minha juventude antes de ter saído


da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido


o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida


e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder duma criança


entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer
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ANTÓNIO GEDEÃO
( 1906-1997)

Poeta, professor e historiador da ciência portuguesa. António Gedeão, pseudónimo de


Rómulo de Carvalho, concluiu, no Porto, o curso de Ciências Físico-Químicas,
exercendo depois a actividade de docente. Teve um papel importante na divulgação de
temas científicos, colaborando em revistas da especialidade e organizando obras no
campo da história das ciências e das instituições, como A Actividade Pedagógica da
Academia das Ciências de Lisboa nos Séculos XVIII e XIX. Publicou ainda outros
estudos, como História da Fundação do Colégio Real dos Nobres de Lisboa (1959), O
Sentido Científico em Bocage (1965) e Relações entre Portugal e a Rússia no Século XVIII (1979).
Revelou-se como poeta apenas em 1956, com a obra Movimento Perpétuo. A esta viriam juntar-se outras
obras, como Teatro do Mundo (1958), Máquina de Fogo (1961), Poema para Galileu (1964), Linhas de
Força (1967) e ainda Poemas Póstumos (1983) e Novos Poemas Póstumos (1990). Na sua poesia, reunida
também em Poesias Completas (1964), as fontes de inspiração são heterogéneas e equilibradas de modo
original pelo homem que, com um rigor científico, nos comunica o sofrimento alheio, ou a constatação da
solidão humana, muitas vezes com surpreendente ironia. Alguns dos seus textos poéticos foram
aproveitados para músicas de intervenção.
Em 1963 publicou a peça de teatro RTX 78/24 (1963) e dez anos depois a sua primeira obra de ficção, A
Poltrona e Outras Novelas (1973). Na data do seu nonagésimo aniversário, António Gedeão foi alvo de
uma homenagem nacional, tendo sido condecorado com a Grã-Cruz da Ordem de Sant'iago de Espada.

Lição sobre a água

Este líquido é água.


Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.

É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, ácidos, base e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.

Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,


sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.
4

Eles não sabem que o sonho


é tela, é cor, é pincel,
Pedra Filosofal
base, fuste, capitel,
Eles não sabem que o sonho arco em ogiva, vitral,
é uma constante da vida pináculo de catedral,
tão concreta e definida contraponto, sinfonia,
como outra coisa qualquer, máscara grega, magia,
como esta pedra cinzenta que é retorta de alquimista,
em que me sento e descanso, mapa do mundo distante,
como este ribeiro manso rosa-dos-ventos, Infante,
em serenos sobressaltos, caravela quinhentista,
como estes pinheiros altos que é Cabo da Boa Esperança,
que em verde e oiro se agitam, ouro, canela, marfim,
como estas aves que gritam florete de espadachim,
em bebedeiras de azul. bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
Eles não sabem que o sonho passarola voadora,
é vinho, é espuma, é fermento, pára-raios, locomotiva,
bichinho álacre e sedento, barco de proa festiva,
de focinho pontiagudo, alto-forno, geradora,
que fossa através de tudo cisão do átomo, radar,
num perpétuo movimento. ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,


que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
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DAVID MOURÃO-FERREIRA
(1927-1996)

Professor da Faculdade de Letras de Lisboa, deixou uma obra


importante no domínio da crítica e da teoria literária (Hospital
das Letras, 1966, Lâmpadas no Escuro, 1979) e demonstrou
domínio notável na arte do conto (Os Amantes e Outros
Contos, 1968), escrevendo um romance de êxito assinalável
(Um Amor Feliz, 1986).Mas é na poesia que o seu talento se
desenvolve com incomparável mestria composicional (A
Secreta Viagem, 1950), aliando a experiência do sentimento
(do tempo, do amor, da escrita, da cidade, da paisagem) ao virtuosismo da sua
expressão poética, em obras como Os Ramos os Remos, 1985, ou Música de Cama,
1994.

SONETO DO CATIVO
Se é sem dúvida Amor esta explosão
de tantas sensações contraditárias,
a sórdida mistura das memórias,
tão longe da verdade e da invenção;

o espelho deformante; a profusão


de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que os outros dirão ou não dirão;

se é sem dúvida Amor a cobardia


de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encantamento e de desprezo;

não há dúvida Amor, que te não fujo


e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso.
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MIGUEL TORGA
(1907-1995)

Livro de Horas

Aqui diante de mim,


eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.
Me confesso de ser charco
Me confesso e luar de charco, à mistura.
possesso De ser a corda do arco
das virtudes teologais, que atira setas acima
que são três, e abaixo da minha altura.

e dos pecados mortais, Me confesso de ser tudo


que são sete, que possa nascer em mim.
quando a terra não repete De ter raízes no chão
que são mais. desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso
o dono das minhas horas Me confesso de ser Homem.
O dos facadas cegas e raivosas, De ser um anjo caído
e o das ternuras lúcidas e mansas. do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído
E de ser de qualquer modo do buraco mais fundo da caverna.
andanças
do mesmo todo. Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!
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Quase um poema de amor

Há muito tempo já que não escrevo um poema


De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.

Mas ou seja que vou envelhecendo


E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
--- Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
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FLORBELA ESPANCA
(1894-1930)

Árvores do Alentejo Amar!

Horas mortas... Curvada aos pés do Monte Eu quero amar, amar perdidamente!
A planície é um brasido e, torturadas, Amar só por amar: Aqui... além...
As árvores sangrentas, revoltadas, Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Gritam a Deus a benção duma fonte! Amar! Amar! E não amar ninguém!

E quando, manhã alta, o sol posponte Recordar? Esquecer? Indiferente!...


A oiro a giesta, a arder, pelas estradas, Prender ou desprender? É mal? É bem?
Esfíngicas, recortam desgrenhadas Quem disser que se pode amar alguém
Os trágicos perfis no horizonte! Durante a vida inteira é porque mente!

Árvores! Corações, almas que choram, Há uma Primavera em cada vida:


Almas iguais à minha, almas que imploram É preciso cantá-la assim florida,
Em vão remédio para tanta mágoa! Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede: E se um dia hei-se ser pó, cinza e nada
--- Também ando a gritar, morta de sede, Que seja a minha noite uma alvorada,
Pedindo a Deus a minha gota de água! Que me saiba perder... pra me encontrar...
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EUGÉNIO DE ANDRADE
(1923-2005)

POEMA À MÃE

No mais fundo de ti,


eu sei que traí, mãe!

Tudo porque já não sou


o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos!

Tudo porque tu ignoras


que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais!

Por isso, às vezes, as palavras que te digo


são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas


que apertava junto ao coração
no retrato da moldura!

Se soubesses como ainda amo as rosas,


talvez não enchesses as horas de pesadelos...

Mas tu esqueceste muita coisa!


Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -,


às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração


rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:


"Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal..."

Mas – tu sabes! - a noite é enorme


e todo o meu corpo cresceu...
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Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.


Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas...

Boa noite. Eu vou com as aves!

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,


ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,


multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz


impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
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JOSÉ RÉGIO
(1901-1969)

Cântico Negro

"Vem por aqui" – dizem-me alguns com os olhos doces


Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "Vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:


Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde


Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde


Por que me repetis: "Vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,


Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
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Se vim ao mundo, foi


Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós


Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,


Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.


Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!


Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "Vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!
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ANTONIO RAMOS ROSA


(n. 1923)

Poema dum Funcionário Cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos


dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só
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Para um amigo tenho sempre um relógio

esquecido em qualquer fundo da algibeira.


Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra,quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.
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JOSÉ GOMES FERREIRA


(1900-1985)

Entrei no café com um rio na algibeira


e pu-lo no chão,
a vê-lo correr
da imaginação...

A seguir, tirei do bolso do colete


nuvens e estrelas
e estendi um tapete
de flores
a concebê-las.

Depois, encostado à mesa,


tirei da boca um pássaro a cantar
e enfeitei com ele a Natureza
das árvores em torno
a cheirarem ao luar
que eu imagino.

E agora aqui estou a ouvir


A melodia sem contorno
Deste acaso de existir
-onde só procuro a Beleza
para me iludir
dum destino.
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O general

("Depois de fortemente bombardeada, a cidade X foi ocupada pelas nossas tropas.")

O general entrou na cidade


ao som de cornetas e tambores ...

Mas por que não há "vivas"


nem flores?

Onde está a multidão


para o aplaudir, em filas na rua?

E este silêncio
Caiu de alguma cidade da Lua?

Só mortos por toda a parte.

Mortos nas árvores e nas telhas,


nas pedras e nas grades,
nos muros e nos canos ...

Mortos a enfeitarem as varandas


de colchas sangrentas
com franjas de mãos ...

Mortos nas goteiras.


Mortos nas nuvens.
Mortos no Sol.

E prédios cobertos de mortos.


E o céu forrado de pele de mortos.
E o universo todo a desabar cadáveres.
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Mortos, mortos, mortos, mortos ...

Eh! levantai-vos das sarjetas


e vinde aplaudir o general
que entrou agora mesmo na cidade,
ao som de tambores e de cornetas!

Levantai-vos!

É preciso continuar a fingir vida,


E, para multidão, para dar palmas,
até os mortos servem,
sem o peso das almas.
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SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


(1919-2006)

Porque os outros se mascaram mas tu não


Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados


Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem


E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos


E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
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CRAVEIRINHA

Quero Ser Tambor

Tambor está velho de gritar


Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

Nem flor nascida no mato do desespero


Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra


Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.

Eu
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Oh velho Deus dos homens


eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.
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Só tambor ecoando como a canção da força e da vida


Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor!
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VINICIUS DE MORAES

A Porta

Eu sou feita de madeira


Madeira, matéria morta A Rosa de Hiroxima
Mas não há coisa no mundo
Mais viva do que uma porta. Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Eu abro devagarinho Pensem nas meninas
Pra passar o menininho Cegas inexatas
Eu abro bem com cuidado Pensem nas mulheres
Pra passar o namorado Rotas alteradas
Eu abro bem prazenteira Pensem nas feridas
Pra passar a cozinheira Como rosas cálidas
Eu abro de sopetão Mas oh não se esqueçam
Pra passar o capitão. Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
Só não abro pra essa gente A rosa hereditária
Que diz (a mim bem me importa . . .) A rosa radioativa
Que se uma pessoa é burra Estúpida e inválida
É burra como uma porta. A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Eu sou muito inteligente! Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.
Eu fecho a frente da casa
Fecho a frente do quartel
Fecho tudo nesse mundo
Só vivo aberta no céu!
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MÁRIO CESARINY
(1923-2006)

Pastelaria

Afinal o que importa não é a literatura nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que
importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que
importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante
Afinal o que
importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício

e cair verticalmente no vício


Não
é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal
o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal
o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal
o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora!
– rir de tudo
No riso admirável
de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra
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AL BERTO
(1948- )
Há-de flutuar uma cidade

há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida


pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano


esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas
estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade

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