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Caius Brandão
caiusbrandao@globo.com
25/06/09
Admitimos facilmente que um urso devore uma truta viva sem que
possamos atribuir a essa ação nenhuma maldade, posto que o pobre animal é
incapaz de refletir. Seu comportamento é sempre instintivo e obedece ao que
chamamos de “leis naturais”. Admitimos também com tranqüilidade que não
existe escolha ou deliberação na natureza. Suas leis são necessárias, assim
como é necessário que a goiabeira dê frutos. O conceito de maldade, como o
de bondade, não tem nenhuma aplicação no mundo natural, e sim
exclusivamente na cultura, ou seja, nas ações e pensamentos do homem.
Desta forma, para que uma ação seja considerada moral, é antes necessário
que o seu agente (o indivíduo) tenha conhecimento sobre a situação dada,
discernimento a cerca das contingências e capacidade de deliberação. Só
assim poderíamos atribuir um juízo de valor às ações de alguém. Logo, pelo
menos neste planeta, apenas os homens são capazes de agir moralmente, e
isto os diferencia daqueles outros seres que se rendem vencidos pelos seus
próprios instintos e, assim, permanecem dominados pela natureza.
Esta moral provisória cartesiana tem como eixo três máximas que devem
regular a vontade:
- Ser firme e resoluto, sempre buscando o caminho reto. Caso não possa
discernir as opiniões verdadeiras, siga as mais prováveis;
Mais uma vez, a virtude moral é alcançada através da vontade que controla
a si mesma para querer agir sempre bem.
Uma ação para ser moralmente boa não pode ser influenciada pelas
inclinações, em detrimento do componente racional da vontade. Assim como
Agostinho, Kant encontra a raiz do mal na própria natureza do homem, na sua
própria vontade em eterno conflito consigo mesma, ou seja, no livre-arbítrio.
Kant acredita que o egoísmo faz parte da constituição humana, mas que
também temos a força necessária para vencer esta natureza. Para tanto, basta
que estabeleçamos o princípio racional (a lei moral) como fator determinante
das máximas morais que regulam nossas ações.
Agora, por um breve momento, vamos imaginar que Deus tenha morrido.
Ainda assim haveria razão para agirmos moralmente? Seria possível
fundamentar a moral dos homens em outro lugar que não fosse o além-
mundo? Por aquele breve momento, poderíamos – sem Deus e sem a
metafísica (depois de Kant, a metafísica sofre descrédito no meio intelectual) –
nos dar a oportunidade de voltar nossa atenção à realidade concreta, para logo
descobrirmos que negar o mundo, o corpo e as paixões, é negar a própria
vida? Então, com esta vida, com este corpo e mundo, eu me perguntaria
novamente se tenho algum motivo para agir moralmente.
Os homens que viviam assim criam para si um ideal moral que não
compreendia o bem e o mal, mas o bom e o ruim. Ainda com a metáfora do
nosso pescador, é natural que as trutas não gostem do que o urso faz com
elas, mas isso não lhes dá o direito de condená-lo moralmente, pois ele age
sem refletir, assim como também agem os homens de uma moral dos
senhores, pois que esta é a vontade guerreira. O que resta às trutas, se não
sucumbir diante se sua própria impotência?
Voltemos agora nossa atenção à questão sobre se o mal pode ser cometido
sem maldade. Por exemplo, seria possível que não fosse um “monstro”, um
colaborador direto de uma das mais cruéis atrocidades cometidas contra
milhões de pessoas inocentes, como o extermínio de judeus pelo regime
nazista?
Num texto produzido para uma revista americana, Arendt fala sobre a
“banalidade do mal” para retratar como que, longe de ser um monstro maligno
que agiu com o objetivo de fazer o mal pelo mal, Eichmman se revelava um
homem superficial e medíocre. Mas o que mais despertou a atenção da
pensadora fora a quase total incapacidade de pensar deste personagem
comum. As atrocidades que ele promovera contra os judeus não haviam sido
motivadas por um suposto princípio maligno, mas sim pela obediência
“cadavérica” ou ”dever”. Arendt sublinha que um traço característico de regimes
autoritários é a produção de uma massa burocrática e acrítica, condicionada a
não pensar e a seguir ordens de forma irrefletida. Pensar, de acordo com
Arendt, é ser capaz de ser um “outro” para si mesmo, ou seja, de dialogar
consigo próprio, ou ainda, de fazer o exercício reflexivo da consciência.