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A Dimensão Social das Desigualdades
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Ebook491 pages6 hours

A Dimensão Social das Desigualdades

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O livro A Dimensão Social das Desigualdades dedica-se ao estudo das desigualdades de oportunidades e do processo de estratificação e mobilidade social. Partindo de um esquema analítico, cujo propósito é evidenciar a articulação causal entre as diversas dimensões das desigualdades observáveis no decurso das etapas do ciclo de vida individual, o autor investiga a relação entre a mobilidade social intergeracional e os seguintes temas: desigualdades raciais, formação da classe média, as desigualdades de renda, estratificação educacional e voto. Além disso, o livro também aborda o tema das consequências da estratificação social para a felicidade e a saúde dos brasileiros.
LanguagePortuguês
Release dateNov 21, 2019
ISBN9788547336271
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    A Dimensão Social das Desigualdades - Carlos Costa Ribeiro

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    Agradecimentos

    Este livro reúne trabalhos que escrevi ao longo de um período em que obtive financiamentos para minhas pesquisas das seguintes instituições: UERJ (programa Prociência), FAPERJ (bolsa Ciêntistas de Nosso Estado, CNE) e CNPq (bolsa de produtividade em pesquisa). O CNPq contribuiu de forma ainda mais decisiva na medida em que financiou a coleta dos dados da pesquisa Dimensões Sociais das Desigualdades (PDSD-2008), que é uma pesquisa por amostragem coletada em 8048 domicílios brasileiros no ano de 2008. A coleta dos dados da PDSD foi financiada a partir do projeto: A Dimensão Social das Desigualdades: Sistema de Indicadores de Estratificação e Mobilidade Social (programa Institutos do Milênio – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – Ministério de Ciência e Tecnologia).

    A amostra da PDSD foi desenhada pelo professor Wilson Bussab (ver o anexo 1 para detalhes sobre a amostra) e coletada pelo Ibope-Inteligência com recursos desse projeto, que foi coordenado por Nelson do Valle Silva. Nelson contribuiu de forma decisiva não só no que diz respeito às exigências necessárias para garantir a qualidade dos dados obtidos e ao alto nível das discussões teóricas e metodológicas avançadas durante a pesquisa, como também por sua capacidade de juntar um grupo excepcional de colegas para compor a equipe do projeto. Além disso, partes do texto da introdução foram retirados do projeto inicial que apresentamos. Agradeço a todos os colegas e amigos que participaram do projeto: Adalberto Cardoso, Alberto Najar, Alicia Bonamino, Ana Maria F. Almeida, Angela Figueiredo, Celi Scalon, Claudia Travassos, Creso Franco, Daniele Cireno Fernandes, Eduardo Garuti Noronha, Jocob Lima, Jorge Alexandre Neves, Lívio Sansone, Manoel Malheiros Tourinho, Maria Ligia Barbosa, Marcelo Medeiros, Miguel Murat Vasconcellos, Mônica de Souza Campos, Nadya Araújo Guimarães, Nigel Brooks, Pedro Paulo de Oliveira e Roberto Grun. Sem a colaboração desses colegas não teria sido possível a obtenção dos dados que formam a base empírica de todos os capítulos deste livro.

    No IESP-UERJ também encontrei um clima altamente propício à atividade científica. Assim, agradeço à todos os colegas, antigos e novos, bem como aos funcionários do IESP. Também me beneficiei das trocas intelectuais com meus alunos que ao longo desses últimos anos vêm se tornando colegas e colaboradores de alto nível. Dois capítulos deste livro foram escritos por ou com alunos meus. O capítulo 6 foi escrito por Flávio Carvalhaes, meu ex-aluno e atual colaborador em diversas empreitadas acadêmicas. O capítulo 6 tem origem na tese de doutorado de Flávio e contou com a coautoria de Dora Chor. O capítulo 7 foi escrito por mim e por Vinícius Israel, que está fazendo seu segundo doutorado sob minha orientação e que me ensinou um pouco sobre estatística baysiana, embora ele tenha sido o principal responsável pelas análises que compõem o capítulo.

    Finalmente, gostaria de lembrar meus filhos, Joaquim e Clara, que sempre me trazem muitas alegrias e orgulho. Minha companheira, Maria Clara Brito da Gama, ajudou-me de diversas formas ao longo dos últimos anos.

    Sumário

    Introdução 11

    1 Desigualdades de condições e de oportunidades no Brasil 14

    2 O Esquema Analítico: Desigualdades ao Longo dos Ciclos de Vida 22

    2.1 Origem Social 25

    2.1.1 Capital econômico 26

    2.1.2 Capital Social 29

    2.1.3 Capital cultural 31

    2.2 Internalização dos recursos 32

    2.2.1 Saúde, sobrevivência e acesso à pré-escola 33

    2.2.2 Socialização de valores (personalidade) 33

    2.3 Formalização de recursos 34

    2.4 Autonomização de status 35

    2.4.1 Acesso ao mercado de trabalho 35

    2.4.2 Escolha marital 36

    2.5 Vida adulta (Realização de status) 37

    2.5.1 Posicionamento na estrutura sócio-ocupacional, renda e mobilidade social total 37

    2.5.2 Distribuição da renda pessoal e da riqueza familiar 38

    2.6 Efeitos das desigualdades e da estratificação social na felicidade, na saúde percebida, e nas intenções de voto 40

    3 Organização do livro 41

    4 A Pesquisa Dimensões Sociais das Desigualdades (PDSD) 45

    Capítulo 1

    Mobilidade e Estrutura de Classes 47

    1 Introdução 47

    2 Estrutura de Classes no Brasil 49

    3 Mobilidade Social 58

    4 Educação e Mobilidade Social 69

    5 Conclusões 73

    Anexo 76

    Capítulo 2

    Desigualdade de oportunidades e de resultados educacionais 79

    1 Introdução 79

    2 O sistema educacional brasileiro 83

    3 Dados, variáveis e métodos 88

    3.1 Dados 88

    3.2 Variáveis 89

    3.4 Métodos 94

    4 Desigualdade de oportunidades educacionais 95

    5 Análise de sensibilidade 109

    6 Desigualdade de resultados educacionais 113

    7 Conclusões 121

    Anexo 123

    Capítulo 3

    Mobilidade intergeracional ocupacional e de renda no Brasil entre as décadas de 1990 e 2000 125

    1 Introdução 125

    2 Mobilidade social: renda, ocupação e educação 128

    3 Dados e mensurações 133

    4 Análises 138

    5 Educação do pai e educação do filho 138

    6 Renda dos pais e educação dos filhos, e ocupação dos pais e educação dos filhos 139

    7 Renda dos pais e renda dos filhos, e ocupação dos pais e ocupação dos filhos 140

    8 Combinando mobilidade educacional com mobilidade de renda e com mobilidade ocupacional. 143

    9 Conclusões e Discussão 149

    Anexo 151

    Capítulo 4

    Contínuo Racial, Mobilidade Social e Embranquecimento. 153

    1 Introdução 153

    2 Estratificação Racial no Brasil: 157

    3 Dados, Variáveis e Métodos 164

    3.1 Dados 164

    3.2 Variáveis 165

    3.3 Métodos 166

    4 Uma nova classificação para o contínuo racial 166

    5 Resultados 172

    6 O efeito do embranquecimento 182

    7 Conclusão 186

    Apêndice A 190

    Capítulo 5

    Renda, Relações Sociais e Felicidade 191

    1 Introdução 191

    2 Condições materiais, relações sociais e felicidade 194

    3 O Brasil no contexto internacional 199

    4 Dados, variáveis e métodos 202

    4.1 Variáveis 202

    4.2 Métodos e Modelos 211

    5 Determinantes da felicidade na população brasileira 213

    6 Conclusões 223

    Anexo 1 227

    Capítulo 6

    Posição socioeconômica, idade e condição de saúde no Brasil 229

    1 Saúde e posição socioeconômica 230

    2 Idade e posição socioeconômica: hipótese da acumulação da desigualdade ao longo do ciclo de vida 234

    3 Dados e metodologia 240

    3.1 Variáveis dependentes 240

    3.2 Variáveis independentes 242

    4 Resultados 245

    5 Conclusão 254

    ANEXOS 257

    Capítulo 7

    Voto assimétrico, classes e mobilidade social no Brasil 263

    1 Introdução 263

    2 Teorias e hipóteses 266

    3 Dados e variáveis 270

    3.1 Dados 270

    3.2 Variáveis e análises descritivas 271

    4 Metodologia 278

    5 Resultados 280

    6 Discussão e conclusões 287

    Anexo 1

    Plano Amostral da Pesquisa Dimensão Social das Desigualdades (PDSD) 291

    Anexo 2

    O questionário da PDSD 319

    Referências 321

    Introdução

    Qual é a dimensão social das desigualdades? Para responder a essa pergunta, é necessário: primeiro, definir quais são as desigualdades em questão e, segundo, o que se entende por dimensão social. Desigualdade é simplesmente o acesso diferencial a bens socialmente valorizados. O exemplo mais óbvio e imediato é o das disparidades de renda e de riqueza. Alguns indivíduos e famílias têm renda e riqueza altíssima, enquanto outros vivem com muito pouco ou então se encontram em situações intermediárias. Há, no entanto, diversos outros bens valorizados, tais como educação, moradia, saúde, conhecimento, posições de poder, etc. A distribuição desses bens entre as pessoas pode ser muito ou pouco desigual e essa situação pode variar ao longo do tempo e entre sociedades. Embora todos esses bens possam ser pensados como meios para alcançar fins em sociedades capitalistas modernas, as pessoas geralmente pensam a desigualdade em termos de renda e de riqueza. Neste livro, estudo a desigualdade de condições em termos de renda, riqueza, status ocupacional, categorias de classe, bens de consumo, educação, saúde e felicidade. Mas o que é a dimensão social?

    Essa dimensão é composta pelas relações sociais, dentro e fora das famílias, que determinam as desigualdades em termos dos bens socialmente valorizados. As diversas relações sociais que os indivíduos estabelecem ao longo de suas vidas, desde o seu nascimento até a sua vida adulta, contribuem para que as desigualdades de condições entre indivíduos e entre famílias sejam transmitidas ao longo das gerações e das biografias. De acordo com a sociologia, os indivíduos não são seres isolados competindo livremente uns com os outros para alcançar melhores posições no sistema de estratificação social. Pelo contrário, pertencem a grupos, a organizações e vivem em contextos que contribuem para moldar as oportunidades e chances que encontram para alcançar diversos bens e posições sociais ao longo da vida. O grupo mais elementar é o da família, mas há outros igualmente importantes, como a escola, a classe social, a região de residência, a raça ou cor, o gênero, a coorte de nascimento, etc. O processo de estratificação social se dá por meio da participação em diversos grupos que moldam as oportunidades que as pessoas encontram ao longo da vida, e culmina, por assim dizer, com a facilidade ou dificuldade de acesso a diversos bens e posições sociais. O objetivo deste livro é analisar esse processo de estratificação entre gerações e ao longo dos ciclos de vida dos brasileiros. Em outras palavras, o objetivo é descrever a dimensão social das desigualdades.

    As relações sociais que as pessoas estabelecem são fundamentais desde o início da infância. Nascer em uma família com recursos influencia enormemente as chances de vida das pessoas. Esses recursos são de diversas naturezas. Os mais evidentes são os econômicos, o que chamo de capital econômico ou classe social. Nascer em famílias cujos pais têm riqueza, renda e posições ocupacionais socioeconomicamente altas aumenta muito as chances de as pessoas terem acesso não só à herança de alguns recursos, o que se dá para um número bem reduzido e em geral privilegiado da população, como também a diversas outras oportunidades que se espalham ao longo da vida. Mas há outros tipos de recurso, também disponíveis nas famílias de origem, que vão desde o acesso a bens e comportamentos culturalmente mais sofisticados, como por exemplo, vocabulário ampliado e conhecimento de práticas culturais socialmente valorizadas – o que chamo de capital cultural –, até o acesso a redes de relações sociais, como por exemplo, pessoas conhecidas, amigos e parentes – o que chamo de capital social. Em suma, os capitais econômico, cultural e social (interno e externo às famílias) não são igualmente distribuídos entre todas as famílias, o que faz com que os indivíduos partam de condições iniciais muitos distintas e sejam expostos a oportunidades e chances também muito desiguais.

    As condições educacionais disponíveis para as pessoas são centrais no processo de estratificação. Embora as características das famílias de origem das pessoas tenham influência nas suas chances de acesso e progressão no sistema educacional, as relações sociais que se estabelecem nas escolas – por exemplo, aprendizado, estímulos cognitivos e atenção por parte de professores e colegas – podem contribuem para diminuir os efeitos das desigualdades iniciais. Para a grande maioria da população, escolas boas e de qualidade são fundamentais para compensar as desvantagens que encontram nas famílias de origem. Por isso, a qualidade do ensino oferecido é de extrema importância no processo de superação das desigualdades. Embora a educação seja central e fundamental, há outros fatores e momentos importantes no ciclo de vida dos indivíduos. Na esfera produtiva da vida, o momento da entrada no mercado de trabalho e a escolha das carreiras são fundamentais. Na esfera familiar, a escolha do cônjuge, o momento do casamento e o nascimento dos primeiros filhos são todos eventos de grande impacto. Essas escolhas nas esferas da educação, do trabalho e da formação de novas famílias contribuem para determinar as condições e posições sociais que os indivíduos alcançam em suas vidas adultas.

    Todos esses aspectos também são influenciados por condições institucionais mais amplas. Por exemplo, dependendo do desenvolvimento econômico vigente, os indivíduos encontram um mercado de trabalho mais ou menos aquecido, o que contribui para que tenham mais ou menos chances de encontrar bons empregos ou empreender novos negócios. Os indivíduos têm mais oportunidades e chances de vida quando o Estado disponibiliza um bom sistema educacional, creches, um sistema de proteção para os trabalhadores, proteção social para as famílias e para mulheres com filhos, um sistema de coleta de impostos progressivo (aumentando a incidência conforme aumentam os recursos das pessoas) e outras formas de organização e regras que favoreçam o bem-estar social. Em outras palavras, a presença tanto de um mercado dinâmico e livre quanto de um Estado atuante e forte são fatores importantes, promovendo a criação de oportunidades para as pessoas. Em suma, ao longo de todo o seu ciclo de vida, os indivíduos passam por transições, vivem relações sociais, participam de grupos e organizações, e encontram contextos que influenciam suas chances de vida.

    Assim, quando observamos a desigualdade de condições entre indivíduos ou famílias em um determinado momento – por exemplo, em um ano ou mês –, estamos vislumbrando apenas a ponta do iceberg, ou seja, apenas o resultado final do processo de estratificação que se desenrola ao longo da vida das pessoas. Mesmo quando comparamos diversos anos subsequentes, estamos apenas comparando a situação final desse processo em datas diferentes, tendo em vista que os dados disponíveis são obtidos a partir de amostras da população em algum momento do tempo, mas não do acompanhamento das mesmas pessoas e famílias em diferentes momentos de suas vidas. Embora seja importante comparar a desigualdade de condições em diversas datas, este livro tem um objetivo mais ambicioso: descrever e analisar algumas etapas do processo de estratificação, que vai desde a família de origem até a constituição de uma nova família. Neste sentido, os quatro primeiros capítulos deste livro analisam diferentes aspectos do processo de mobilidade social, que é descrita em termos da estrutura de classes sociais, do status ocupacional e da renda alcançada pelos indivíduos. Também investigo o acesso e progressão no sistema educacional de acordo com as condições socioeconômicas e educacionais das famílias de origem, por um lado, e o efeito da educação alcançada nas chances de mobilidade ascendente, por outro lado. As desigualdades nas chances de mobilidade em termos de raça e sexo também são estudadas, bem como as tendências históricas da fluidez social. Em contraste, os três últimos capítulos analisam os efeitos do processo de estratificação e de mobilidade social nas percepções dos indivíduos sobre seu bem-estar subjetivo (ou felicidade), sua própria saúde, e seu comportamento político (voto). Em outras palavras, o objetivo do livro é estudar a dimensão social das desigualdades no Brasil tanto no que diz respeito ao processo de estratificação e mobilidade social quanto no que se refere às consequências deste processo para felicidade, saúde e o voto dos brasileiros.

    1 Desigualdades de condições e de oportunidades no Brasil

    A relação entre desigualdade de condições e de oportunidades é circular, ou seja, a desigualdade de condições na geração dos pais influencia as desigualdades de oportunidades enfrentadas pelos filhos e, consequentemente, a desigualdade de condições entre os filhos. E assim por diante, ao longo das gerações. Isso implica em dizer que o estudo das desigualdades deve sempre levar em conta uma perspectiva temporal de média e longa duração. Assim sendo, o escopo temporal deste livro não se limita ao momento em que os dados que uso foram obtidos.

    Todos os capítulos do livro usam a Pesquisa Dimensões Sociais das Desigualdades (PDSD-2008), coletada em 2008. Nos capítulos 1 e 3, eu também uso dados das Pesquisas Nacionais por Amostragem Domiciliar (PNADs) de 1973, 1982, 1988 e 1996. Portanto, as mudanças que ocorreram desde a década de 1970 em termos de mobilidade intergeracional e estrutura de classes são diretamente analisadas no primeiro capítulo, e as mudanças entre as décadas de 1990 e 2000 no capítulo três. Além disso, as informações sobre origem socioeconômica e características dos pais dos respondentes são usadas em todos os capítulos, com exceção dos capítulos 5 e 6. Isso significa que as análises do livro são relevantes para um longo período da história brasileira. Imaginando que os pais dos respondentes tiveram seus filhos em torno dos 20 anos de idade e que os entrevistados mais velhos da PDSD tinham 64 anos em 2008, as análises que desenvolvo revelam aspectos da mobilidade social dos brasileiros relacionados a toda a segunda metade do século XX. Como todos sabem, esse foi um período de grandes mudanças estruturais na sociedade brasileira que podem ser resumidas pela enorme expansão industrial e urbanização que ocorreram, mas também por uma série de outras mudanças, como por exemplo: diminuição da pobreza, expansão do sistema educacional, crescimento da participação feminina no mercado de trabalho, aumento da expectativa de vida, expansão de diversos direitos sociais, e etc. Na maioria dos capítulos do livro, descrevo aspectos específicos do contexto histórico relacionado aos temas analisados. Aproveito esta introdução para tecer alguns comentários mais gerais sobre as tendências das desigualdades de condições e de oportunidades nesse período no Brasil.

    Embora este livro analise a desigualdade em termos de diversas condições e recursos, podemos tomar o exemplo da desigualdade de renda para caracterizar a situação brasileira. Afinal de contas, a extensão dessa desigualdade é fato amplamente conhecido e discutido nos meios acadêmicos e de comunicação. Os índices usualmente empregados mostram que o Brasil é uma das sociedades mais desiguais do mundo. Por exemplo, examinando os valores do conhecido índice de Gini, o indicador mais utilizado de desigualdade de renda¹, para diversas regiões do mundo e ao longo dos cinco últimos decênios (Tabela 1), é fácil verificar que a América Latina é a região mais desigual do mundo, e está nessa posição pelo menos desde a década de 60. Quando incluímos nessa comparação os dados para o Brasil, fica evidente que esses valores são ainda mais elevados do que os da América Latina, em todos os decênios. Ou seja, o Brasil é um país com uma desigualdade de renda elevada mesmo para um continente em que essa desigualdade já é, em qualquer comparação internacional, também elevada. E o Brasil está nessa pouco gloriosa posição pelo menos desde os anos 60.

    Tabela 1 – Coeficientes de Gini Medianos por Região e Decênio

    Fonte: Morley, S. (2000). La distribución del Ingresso en America Latina y el Caribe, Santiago: Fondo de Cultura Econômica; Barros, R. P., Henriques, R., & Mendonça, R. (2000). A Estabilidade Inaceitável: Desigualdade e Pobreza no Brasil. In Henriques, R. (Org.). Desigualdade e Pobreza no Brasil, Rio de Janeiro: Ipea; De Ferranti, D., Perry, G. E., Ferreira, F. H. G., & Walton, M. (2004). Inequality in Latin America: breaking with history?. World Bank Latin American and Caribbean Studies. Washington, DC: World Bank.

    De fato, estudos recentes documentam os altos níveis de desigualdade econômica no Brasil nos últimos 50 anos (Henriques, 2000; Barros, Fogel, & Ulyssea, 2007). As pesquisas comprovam, por exemplo, que, entre todas as famílias, as 10% mais ricas desfrutam de um nível de renda em torno de 25 vezes maior do que o das 40% mais pobres. Assim como ocorre em vários países da América Latina, no Brasil, há uma tendência de diminuição desde 1994 e, mais acentuadamente, a partir de 2002, a despeito de o país ainda estar entre os dez mais desiguais do mundo. Além disso, o trabalho recente de Souza (2018) mostra que no Brasil há uma concentração de mais de 20% da riqueza entre os ricos pelo menos desde 1926, concentração maior do que a observada em todos os outros países para os quais há dados relevantes. Embora descrições e análises sobre esses temas tenham sido abundantes nos últimos 20 anos e contribuído para modificar o foco da discussão pública sobre questões sociais, é importante enfatizar que praticamente todas as evidências e os indicadores divulgados de forma sistemática (permitindo a construção de séries históricas) dizem respeito basicamente à desigualdade de resultados, ou seja, a distribuição de algum bem socialmente valorizado (por exemplo, educação, renda ou bens e serviços básicos) entre indivíduos ou entre famílias.

    Mas essas desigualdades na distribuição da renda, bem como de demais aspectos das condições de vida das pessoas, configuram apenas uma dimensão das chamadas desigualdades de resultados. Um problema que se coloca é que parte dessas desigualdades reflete mecanismos sociais saudáveis, certamente importantes para o funcionamento eficiente das sociedades, como são, por exemplo, algumas desigualdades salariais associadas às carreiras (isto é, aos sistemas de promoções, supostamente meritocráticos, em hierarquias de postos no interior de empresas ou de burocracias) ou à quantidade de experiência no trabalho acumulada pelo indivíduo. Além disso, concentra sua atenção sobre as diferenças entre indivíduos, sendo que essas diferenças podem refletir não só outras diferenças socialmente determinadas em certas dotações individuais (como, por exemplo, seu nível educacional), como refletem também fatores de diferenciação irredutivelmente individuais e de natureza fortemente aleatória, como sua capacidade cognitiva, ou mesmo apenas sua maior ou menor sorte em estar no lugar certo no momento certo para aproveitar uma chance que se oferece. Por isso, muitas vezes se torna preferível analisar as diferenças entre grupos socialmente significativos, como aqueles estabelecidos nas relações de classe, gênero ou raça. Desigualdades associadas ao fato de os indivíduos pertencerem a grupos diferentes tendem a ser mais estáveis, dado que mecanismos institucionalizados (como, por exemplo, a discriminação e os custos de transação) cumprem o papel de mantê-las. Adicionalmente, mais importante que indagar se, numa dada sociedade, os resultados são melhor ou pior distribuídos do que em outra, é tentar responder a perguntas do tipo: como são distribuídas as oportunidades sociais para indivíduos que são oriundos de famílias socialmente diferenciadas? Por exemplo, serão as chances de um filho de trabalhador rural equivalentes às de um filho de um comerciante no que diz respeito a atingirem o nível superior de ensino? Ou ainda, serão as chances de um negro pobre iguais às de um branco igualmente pobre no que tange a se tornarem médicos ou advogados? As respostas a essas perguntas requerem o estudo das desigualdades de oportunidade. E, aqui, as análises sobre mobilidade social ajudam a caracterizar a situação brasileira.

    Em um livro anterior (Ribeiro, 2007), tratei da relação entre estrutura de classes, condições de vida e oportunidades de mobilidade social da população brasileira. Nele, mostro como a estrutura de classes e de oportunidades de mobilidade social é (ainda) marcada pela transição da sociedade agrária para a sociedade industrial. Aponto, por exemplo, para o fato de que, até a década de 2000, pelo menos a metade dos homens entre 25 e 64 anos tinham origem em famílias na classe de trabalhadores rurais (ver também capítulo 1). Por outro lado, mostro a extensão em que as diferenças nas condições de vida (as desigualdades de resultado ou condições) estão associadas a diferentes posições de classe ou ocupacionais. Nesse sentido, indico que, ao mesmo tempo em que há uma melhora histórica no agregado das condições básicas de vida e uma consequente diminuição da desigualdade de classes em termos dessas condições – o que Marta Arretche (2015) chamou de diminuição das desigualdades por inclusão dos excluídos – há também uma continuidade tanto na proporção de pessoas com renda elevada e educação superior quanto na desigualdade de classes em termos de educação de terceiro grau e de renda familiar.

    Além disso, é fato conhecido que a grande maioria dos trabalhadores brasileiros ainda está em posições de classe caracterizadas por ocupações de baixíssima qualificação. No início da década de 1970, cerca de 68% dos homens estavam nesse tipo de ocupação, e apesar da diminuição, cerca de 56% dos trabalhadores ainda estava nesse tipo de posição ocupacional no final da década de 2000. O número de adultos, maiores de 20 anos de idade, com menos do que ensino elementar completo (menos de oito anos de escolaridade), também permanece extremamente elevado: 82% no início da década de 1970 e 44% no final da década de 2000.

    Ao analisar as oportunidades de mobilidade social, concluí que o agregado dessa mobilidade revela uma sociedade extremamente dinâmica, com muita mobilidade social, particularmente aquela induzida pelas mudanças estruturais (como a industrialização e a urbanização), mas ao mesmo tempo com uma estrutura de classes subjacente a esse regime de mobilidade que é extremamente rígida e resistente a mudanças. Numa nota um pouco mais positiva, no que diz respeito às desigualdades de oportunidades de mobilidade social, observei uma diminuição entre 1973 e 2014 (Ribeiro, 2017). Tanto em termos ocupacionais quanto de renda, a correlação entre as posições dos pais e a dos filhos diminuiu significativamente. Por exemplo, a correlação estatística entre a renda dos pais e a dos filhos diminuiu de 0,73 para 0,43 entre as décadas de 1990 e 2000, em uma escala que varia de 1, associação completa, a 0, nenhuma associação (ver capítulo 3).

    Apesar dessa diminuição, o estudo dos padrões de mobilidade no Brasil revela claramente que a estrutura de classes contemporânea continua sendo marcada pela herança rural e que, apesar dos dados mostrarem que há uma grande movimentação de pessoas, também mostram uma enorme continuidade nos contrastes entre classes mais ou menos privilegiadas. Assim, os níveis de desigualdade nas condições de vida e de oportunidades de mobilidade social permanecem muito elevados. De fato, a combinação, por um lado, da permanência das desigualdades em níveis absurdamente elevados, tanto nas desigualdades de resultados quanto nas de oportunidades, com, por outro lado, um dinamismo social que rompe os diques estabelecidos nas fronteiras de classe, constitui a característica mais forte e definidora da sociedade brasileira ao longo do século XX e no início do século XXI.

    Assim, o estudo da desigualdade no Brasil deve privilegiar a procura dos mecanismos sociológicos que fazem com que indivíduos de origens sociais diferentes alcancem resultados desiguais. Ao estudarmos as desigualdades desse ponto de vista, percebemos que são fortemente determinadas e constituídas por processos sociais de média e longa duração que ocorrem ao longo dos ciclos de vida dos indivíduos e entre gerações. É muito difícil atribuir as mudanças a períodos curtos, como, por exemplo, um único governo ou política social. Os estudos nessa área deveriam, na verdade, focalizar a acumulação histórica de fatos e acontecimentos que influenciam a vida das pessoas ao longo das gerações. Apesar de algumas poucas contribuições importantes (Hasenbalg, 2003; Ribeiro, 2007; Ribeiro, 2009), ainda há muito que se descobrir no que diz respeito ao modo como pais asseguram vantagens e transmitem desvantagens para seus filhos e filhas, bem como no que tange ao efeito dessa transmissão intergeracional sobre a pobreza, a riqueza e as desigualdades de resultado observadas contemporaneamente.

    Ora, é fato que esses temas são amplamente discutidos, dentro e fora da academia, gerando constantes especulações sobre a reprodução das desigualdades, da pobreza e da riqueza. Contudo é comum o uso de dados e indicadores sobre desigualdade de resultados para sustentar argumentos que na verdade se referem à desigualdade de oportunidades. Em outras palavras, esses debates se baseiam em larga medida em meras especulações sobre a transmissão intergeracional de vantagens e desvantagens e a consequente reprodução ou superação das desigualdades herdadas. Isso significa que, no debate público, dados e informações sobre a desigualdade do presente, que é a desigualdade de resultados, são utilizados para corroborar argumentos sobre desigualdade de oportunidades. Por exemplo, é com frequência que encontramos argumentos no sentido de que eventuais diferenças de rendimentos entre dois grupos sociais necessariamente indicariam a presença de mecanismos discriminatórios no mercado de trabalho. Na realidade, o que deveríamos investigar é se há ou não mecanismos criando oportunidades desiguais entre esses grupos. Obviamente, há sérios problemas na utilização de dados sobre desigualdade de resultados para debater problemas relacionados às oportunidades desiguais supostamente enfrentadas pela população.

    Neste livro, proponho desenvolver conhecimento sistemático e empírico sobre o tema da dimensão social e da reprodução das desigualdades, o que implica estudar as desigualdades de oportunidades e o processo de estratificação e mobilidade social. Para tanto, proponho um esquema analítico cujo propósito é evidenciar a articulação causal entre as diversas dimensões das desigualdades observáveis no decurso das etapas do ciclo de vida individual. Tal esquema pretende capturar a multiplicidade de meandros a partir dos quais ocorre a transmissão intergeracional da desigualdade social, desde sua origem no contexto familiar de nascimento até a situação atual das famílias em que uma nova geração é produzida. Em outras palavras, meu foco analítico leva em conta explicitamente que a estrutura desigual de recursos e de oportunidades sociais manifesta numa dada etapa do ciclo de vida tende a produzir um impacto causal nas etapas seguintes, chegando a ter, em algumas situações, uma feição de acumulação de desvantagens, o que pode potencializar a transmissão da desigualdade.

    Mais especificamente, analiso, utilizando dados agregados e modelos estatísticos, diferentes aspectos do processo de mobilidade social, bem como as consequências deste processo para o bem estar (felicidade e saúde) e o comportamento político (voto) dos brasileiros. Para tanto, uso dados de uma amostra representativa da população brasileira coletada junto a 8048 domicílios, onde moravam 26146 indivíduos (adultos e crianças). Os dados foram

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