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Aruanda

Para Júlio Bressane

Ouvi de Glauber, certa feita, que todo cineasta em sua vida realiza apenas um único
filme.
Não estou seguro se ele quis dizer que alcançada a realização desse filme todos os outros
que venha a fazer são apenas variações em torno de algo que já foi atingido em um determinado
momento, ou se, com esta frase, quis dizer que esse único filme está contido em todo o conjunto de
filmes que chegou a realizar. Como se, por toda a vida, esse imaginário cineasta perseguisse a
realização de um único e inalcançável filme, e todos os que chega a fazer não passariam de
tentativas mais ou menos frustradas que não o satisfazem e, por isso, sai na busca ilusória de
realizá-lo no próximo. E assim, de alguma maneira, esse único filme a que se referia Glauber
somente o encontraríamos fragmentado, disperso no conjunto da obra realizada.
Sente-se em Linduarte a nostalgia dos filmes que não fez. O golpe de 64 e o
provincianismo político e cultural de sua Paraíba natal, com sua carga de ciúmes e invejas, ao tirar-
lhe a câmera cinematográfica soviética que adquiriu pelo órgão universitário que dirigia, arrebatou-
lhe a própria fonte de criação na qual havia sido ungido pelo mestre Humberto Mauro, ao
emprestar-lhe a câmera com que realizou Aruanda. Mauro ao dar-lhe a câmera deu-lhe a faculdade
de exprimir-se, o poder de criar imagens.
O tema de Aruanda é a história da formação de um quilombo, o de Talhado, em Santa
Luzia do Sabugi, Paraíba, “que surgiu em meados do século passado (século XIX) quando o ex-
escravo e madeireiro Zé Bento partiu com a família à procura da terra de ninguém”.
Zé Bento “fugia da servidão, da antiga escravatura”, com a mulher, dois filhos e o
jumento carregado curiosa, ou significativamente, com dois potes de barro iguais aos que veremos
serem fabricados na segunda metade do filme e um banco de sentar. Parte à procura de um lugar no
sertão com água e condições que lhe permitam instalar a família e viver do trabalho na terra. Faz
casa de taipa, lavra a terra ressequida e pedregosa, semeia algodão... E cria-se uma comunidade
que, com o passar dos anos, fará do fabrico artesanal de cerâmica utilitária e de sua venda na feira
da cidade mais próxima o seu principal meio de subsistência. Isto é o que os planos nos mostram e
a narração confirma.
Aruanda é um documentário. A maior parte de seus planos resulta seguramente de um
registro documental da câmera: a paisagem, as pessoas e as coisas estão lá e o realizador com o
fotógrafo não têm mais que situar a câmera, com a lente escolhida, no ângulo desejado, com tal
incidência de luz, para captar o plano documental desejado. Assim ocorre, por exemplo, quando as
mulheres de Talhado cavam e apanham a terra apropriada, tiram água do poço, preparam o barro,
confeccionam a cerâmica, que será cozida nos fornos e vendida na feira. Provavelmente o mesmo
se dá na preparação da terra para a semeadura de algodão, na própria semeadura, que Zé Bento e a
mulher realizam na primeira metade do filme, e mesmo na preparação do barro e na construção da
casa de taipa.
Mas Aruanda começa com narração que identifica Zé Bento: “Naquele dia, em meados
do século passado, Zé Bento resolveu partir com a família à procura da terra onde pudesse viver.
Fugia da servidão, da antiga escravatura”.
Portanto, logo de início, a rigor no sexto plano do filme, somos informados que Zé Bento
não é propriamente o nome daquela pessoa que estamos vendo na tela. Ela está ali representando
um personagem: um negro escravo de nome Zé Bento que, em meados do século XIX, fugindo da
escravidão com sua família, vai em busca de uma terra longínqua, no fundo do sertão e longe da
civilização, onde, encontrando água, pudesse fundar um quilombo, um novo tipo de vida com
trabalho e liberdade. Trata-se de uma ficção portanto. Narra provavelmente uma história guardada
na memória das gerações que o sucederam e repassada em narrativas orais.
Aruanda na verdade narra um mito: o mito de fundação de um quilombo, longe da
civilização litorânea e da escravidão, longe do “Nordeste canavieiro”; de um quilombo como tantos
outros que ainda resistem espalhados pelo território do país. No filme essas são as cenas iniciais:
Zé Bento, mulher e filhos arrumam os pertences no jumento, partem para a longa jornada sertão a
dentro, encontram a terra com água que buscam, constroem a casa de barro batido, plantam algodão
e se estabelecem. Aí, como personagens que são, as figuras que vemos na tela atuam, representam
o mito, a história. O posicionamento da câmera, os enquadramentos, a movimentação dos “atores”
são seguramente estudados e ensaiados - e repetidos até que o realizador se dê por satisfeito de
acordo com um resultado por ele desejado. Em tudo e por tudo, uma ficção. Uma ficção que busca
reconstituir fatos que a memória coletiva guarda numa fronteira ambígua entre história e mito.
Tudo isto aliás na boa tradição dos fundadores do cinema documentário - como Flaherty, que
reconstituiu práticas já abandonadas pelos pescadores de Aran [Man of Aran, 1934] e encenou, com
Nanook [Nanook, of the North, 1922] fatos e atos de seu viver cotidiano.
A música em Aruanda marca a ruptura/amarração entre reconstituição ficcional e registro
documental.
Oh mana deixa eu ir é o canto da ficção, do mito. Marca a procura de Zé Bento sertão a
dentro. Sua fuga/deslocamento da servidão/escravidão para a terra de trabalho e liberdade. Quando
retorna, na segunda metade do filme, no transporte por jumentos da cerâmica para a feira ou no
retorno da feira para o Talhado, que encerra o filme, não mais ouviremos o canto, mas apenas o
solo de violão. De alguma maneira essas cenas de deslocamento semanal dos moradores, entre o
quilombo e a cidade e a cidade e o quilombo, embora sejam registros documentais atuais,
reproduzem a caminhada/deslocamento de Zé Bento, do Nordeste canavieiro para o sertão, da terra
da escravidão para a do trabalho com liberdade. E são idênticos jumentos que carregam idênticos
potes. O solo de violão de Oh mana deixa eu ir nos diz que o mito está presente no cotidiano de
Talhado, representa uma reafirmação poética do mito na realidade atual. A montagem do solo de
violão sobre as cenas de deslocamento Talhado/cidade e cidade/Talhado, que os moradores
realizam a cada semana e que replicam o caminhar do herói fundador no mito, amarra a ficção ao
documental, o mito à realidade.
A orquestra de pífanos cobre todo o registro documental: especialmente o trabalho das
mulheres na cerâmica, como também o trabalho de Zé Bento quando constrói a casa e, com a
mulher, planta algodão. Mas aqui as ações que Zé Bento desenvolve se situam numa fronteira em
que mito e realidade atual se confundem: de terra batida e pau a pique deve ter construído sua casa
o herói mítico assim como a sua própria construiu o “ator”, que é morador de Talhado, talvez
descendente do herói fundador como todos de sua “família”, e continuam outros tantos moradores a
construir; da mesma maneira o plantio do algodão provavelmente é feito hoje como de maneira
semelhante se fazia à época do mito.
A banda de pífanos marca a ambigüidade dessas cenas. A sua presença em cenas que a
rigor pertencem à ficção nos diz que são registros documentais, ou que devemos tomá-las como tal.
São cenas que pertencem aos dois universos: a imagem narra o mito, o som indica que se trata de
um registro documental atual. E assim, pela montagem de imagem e som que pertencem a
universos opostos, o filme mais uma vez nos diz da realidade do mito, reafirma sua presença no
cotidiano da comunidade hoje.
À feira na cidade vizinha - território do mercado, da troca dos produtos de cerâmica por
dinheiro, único contato da comunidade com o resto do país e a civilização, portanto território fora
da comunidade e do mito - não caberá nenhum dos dois tratamentos sonoros. O tratamento sonoro
da feira é com ruído ambiente.
A amarração entre a primeira parte do filme, a história mítica de Zé Bento, e a segunda, a
vida atual da comunidade que ele criou, também se dá pela presença dos dois improváveis potes
como carga principal e quase única do jumento de Zé Bento. Os potes são utensílios que o homem
do sertão tem em casa para guardar água. Por sua fragilidade nunca são utilizados para transportá-
la. Além do mais estão quase emborcados e abertos, portanto vazios. Junto aos potes um banco
típico que encontramos em qualquer casa do sertão. Outro improvável objeto a estar presente numa
representação realista de quem se prepara para uma longa e desconhecida viagem, que aliás é uma
fuga. Eles estão ali, nas primeiras imagens do filme, como elementos simbólicos e representam os
objetivos do deslocamento de Zé Bento: encontrar no sertão a fonte de água, a terra que tenha água
indispensável à construção de sua casa e dar início ao quilombo que irá sobreviver do fabrico de
cerâmicas idênticas às que estamos vendo.
Ainda mais, os seis primeiros planos que abrem o filme
(Zé Bento montado no jumento deslocando-se da esquerda para a direita na caatinga; Zé
Bento puxando o jumento pelo cabresto vai em direção a casa cujo teto se vê por trás de
uma lombada e menino corre em sua direção; Zé Bento amarra jumento na parede de
taipa e com mulher e filhos entram porta a dentro; parede de taipa à direita do quadro, Zé
Bento amarra primeiro pote na cangalha do jumento enquanto menina traz o banco do
interior da casa; menino afaga testa do jumento enquanto Zé Bento amarra segundo pote
ajudado pela mulher; câmera no interior da casa e pela porta vê-se Zé Bento que parte
com a família e jumento carregado e, ao fundo, na linha do horizonte, uma outra casa)
também têm um caráter simbólico na estrutura do filme. O que vemos nesses planos é a caatinga, o
mesmo sertão para o qual ele está se dirigindo, e não o que provavelmente deveriam ser as terras
úmidas litorâneas do canavial, de onde Zé Bento estaria fugindo “da servidão, da antiga
escravatura”.
Assim pois, fugindo do sertão para o sertão, como as imagens nos mostram, e carregando
apenas objetos de valor exclusivamente simbólicos, Aruanda nos impede de fazermos uma leitura
estrita e exclusivamente realista. Essas imagens aparentemente vão de encontro à narração e ao
texto de abertura. Estes nos indicam que o percurso de Zé Bento se faz em linha reta, ele “partiu
com a família à procura da terra de ninguém”, uma fuga da servidão e da escravidão para “a terra
onde pudesse viver”. As imagens, ao contrário, nos indicam que ele não saiu do lugar de onde
partiu, ao término de sua viagem ele chegou onde já se encontrava, pois o filme se desenrola e
termina numa paisagem idêntica àquela de onde Zé Bento iniciou sua caminhada. A viagem de Zé
Bento levou-o ao mesmo lugar de onde partiu. Trata-se pois de uma viagem simbólica, que se dá
inteiramente no plano do mito.
Aruanda é um cine-poema. Épico. Da reconstituição ficcional ao registro documental, da
história mítica de Zé Bento e sua família aos planos documentais da constituição de Talhado e do
trabalho das mulheres na cerâmica, o filme passa da memória ao fato, do passado ao presente, do
mito ao propriamente histórico, da ficção ao propriamente documental.
Um desses raros filmes que geram filmes e cineastas, como dizia Dziga Vertov dos seus,
com Aruanda Linduarte Noronha realizou aquele único e definitivo filme que é a ambição profunda
de todo realizador, a que Glauber Rocha se referia.

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