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The Dark is Rising Copyright © 1973 by Susan Cooper Copyright
renewed © 2001 by Susan Cooper Published by arragement with Margareth
K. McElderry Books, an imprint of Simon & Schuster Children's Books
Publishing Division Copyright © 2007 by Novo Século Editora Ltda.
Direção Geral: Nilda Campos Vasconcelos Supervisão Editorial: Silvia
Segóvia Imagem da capa: Fox Entertainment Group, Inc.
Composição da capa: Reínaldo Feurhuber Tradução: Lilian
Palhares Preparação de texto: Rodrigo Petronio Editoração Eletrônica: Fama
Editora Revisão: Salete Milanesi Brentan Dados Internacionais de
Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP,
Brasil)
Cooper, Susan, 1935- .
Os seis signos da luz : rebelião das trevas / Susan Cooper ; [tradução
Lilian Palhares]. — Osasco, SP : Novo Século Editora, 2007.
Titulo original: The dark is rising.
1. Ficção (Literatura norte-americana) 2. Literatura juvenil I. Título.
07-9557
CDD-028.5
índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura juvenil
028.5 2007
Para Jonathan

INDÍCE
PARTE 1:
A Descoberta
Véspera do solstício de inverno
Solstício de inverno
O descobridor dos signos
O Andarilho na Velha Estrada.......
PARTE 2:
O Aprendizado
Véspera de Natal
O livro da magia
Traição
Dia de Natal
PARTE 3:
A Provação
A chegada do frio
O falcão nas Trevas
O rei do fogo e da água
A caçada arrasadora
Unindo os Signos

VÉSPERA DO SOLSTÍCIO DE
INVERNO

— Demais! — gritou James batendo a porta atrás de


si.
— O quê? — perguntou Will.
— Tem garotas demais nesta família, é isso. Demais
mesmo. — James ficou parado furioso no alto da escada
como uma pequena locomotiva enlouquecida, depois foi
batendo os pés até o banco da janela e se demorou olhando
atentamente o jardim. Will deixou seu livro de lado e puxou
as pernas para dar-lhe espaço.
— Eu consegui ouvir todos os gritos — disse ele, com
o queixo nos joelhos.
— Não foi nada — disse James. — Só a idiota da
Bárbara de novo. Mandando. Pegue isso, não toque naquilo.
E Mary se juntando a ela, tagarelando, tagarelando,
tagarelando. Você pode até pensar que essa casa é grande
o bastante, mas sempre tem gente.
Ambos olharam pela janela. A neve se estendia fina e
apologética sobre o mundo. Aquela área ampla e cinzenta
costumava ser o gramado, com as árvores espalhadas do
pomar adiante ainda verdejantes; os quadrados brancos
eram os telhados da garagem, do antigo celeiro, do viveiro
dos coelhos e do galinheiro. Mais atrás, havia apenas os
campos planos da fazenda dos Dawson, vagamente
listrados de branco. O vasto céu estava escuro, cheio de
neve que se recusava a cair. Não havia outra cor em lugar
nenhum.
— Quatro dias para o Natal — disse Will. — Eu queria
que nevasse direito.
— E seu aniversário é amanhã.
— Hum. — Ele também ia dizer isso, mas soaria muito
mais como um lembrete. E o presente que mais desejava
em seu aniversário era uma coisa que ninguém poderia lhe
dar: a neve, linda, profunda, como um cobertor, e isso
nunca acontecia. Pelo menos, neste ano, caía aquele
chuvisco acinzentado; melhor do que nada.
Lembrando-se de uma obrigação, perguntou:
— Eu ainda não alimentei os coelhos. Quer me
acompanhar?
Com botas e bem agasalhados, caminharam
ruidosamente pela cozinha espaçosa. Uma orquestra
sinfônica completa avolumava-se do rádio; Gwen, a irmã
mais velha dos garotos, cortava cebolas e cantava, e a
mãe, debruçada sobre o forno, com o rosto avermelhado,
estava bastante sorridente.
— Os coelhos! — gritou ela, quando os avistou. — E
mais alguns fenos da fazenda.
— Estamos indo! — gritou Will. Repentinamente, o
rádio emitiu um chiado horrível de estática, logo que o
menino passou pela mesa. Isso o fez pular.
A sra. Stanton gritou: — Abaixe essa coisa!
Do lado de fora, tudo se encontrava subitamente
muito quieto. Will despejou um balde de grânulos do
depósito no celeiro cheirando a fazenda. Na realidade não
era um celeiro propriamente dito, mas uma construção
enorme e baixa, coberta de telhas, que já tinha sido um
estábulo. Andaram pela fina camada de neve até a fileira
de gaiolas pesadas de madeira, deixando pegadas escuras
no solo muito gelado.
Ao abrir as portinholas para encher as caixas de
ração, Will parou, franzindo a testa. Normalmente, os
coelhos estariam amontoados calmamente nos cantos;
somente os mais famintos se aproximariam mexendo o
nariz para comer. Hoje, pareciam agitados e inquietos,
ronronando de um lado para o outro, batendo-se contra as
paredes de madeira; um ou dois até saltaram para trás
quando as portinholas foram abertas. O menino se
aproximou de Chelsea, seu coelho favorito, e o pegou como
de costume para afagá-lo carinhosamente atrás das
orelhas, mas o animal lutou para escapar e se encolheu
num dos cantos, os olhos rosados direcionados fixamente
para o alto, inexpressivos, mas aterrorizados.
— Ei! — disse Will, incomodado. — Ei, James, olhe
isto. O que há com ele? Com todos eles?
— Pra mim, estão todos bem.
— Bem, mas não para mim. Eles estão todos
saltitantes. Mesmo Chelsea. Ei, venha cã coelhinho. — Mas
não adiantou.
— Engraçado — disse James com pouco interesse,
observando. — Ouso dizer que suas mãos cheiram mal.
Você deve ter tocado em alguma coisa de que eles não
gostam. Igual aos cachorros e sementes de anis, mas ao
contrário.
— Não toquei em nada. Na verdade, tinha acabado de
lavar as mãos quando vi você.
— Aí está então — disse James imediatamente. —
Esse é o problema. Eles nunca cheiraram você limpo antes.
Provavelmente todos estão morrendo de susto.
— Ha! Ha! Ha! Que engraçado! — Will atacou, e eles
se engalfinharam sorrindo, enquanto o balde vazio caía
chacoalhando-se no chão duro. Mas quando Will voltou a
olhar atentamente para as gaiolas, os animais continuavam
a se mover distraidamente e também sem comer, olhando
fixamente para ele com aquele estranho olhar, arregalado e
assustado.
— Acho que pode ser a presença de alguma raposa
por aí de novo — disse James. — Lembre-me de contar à
mamãe.
Nenhuma raposa poderia se aproximar dos coelhos
em seu sólido viveiro, mas as galinhas eram mais
vulneráveis; uns poucos dias antes do período de venda, no
inverno passado, uma matilha de raposas invadiu um dos
galinheiros e conseguiu levar seis aves boas e gordas. A
sra. Stanton, que dependia do dinheiro das galinhas todo
ano para ajudar a pagar os onze presentes de Natal, ficou
tão furiosa que permaneceu de guarda depois disso, no
celeiro frio, por duas noites seguidas, mas os vilões não
voltaram. Will pensava que se fosse uma raposa, ele
tentaria esclarecer o fato também; sua mãe podia até ser
casada com um joalheiro, mas com a geração de
fazendeiros de Buckinghamshire em seus antepassados, ela
não brincava em serviço quando seus velhos instintos eram
despertados.
Puxando o carrinho de mão, uma geringonça feita em
casa com uma barra unindo as hastes, ele e James
retomaram a caminhada descendo a curva coberta de mato
ao longo da rua, em direção à fazenda dos Dawson.
Rapidamente deixaram para trás o cemitério da igreja, com
seus teixos, grandes e escuros, inclinados sobre o muro
desmantelado; vagarosamente passaram pelo Bosque das
Gralhas, na esquina da Church Lane. O alto matagal de
castanheira-da-índia, rouco com o grito das gralhas e cheio
de telhados sujos pela desordem de seus ninhos
esparramados, era um de seus lugares conhecidos.
— Ouça as gralhas! Alguma coisa as perturbou. — O
coro irregular e áspero era ensurdecedor, e quando Will
olhou para o topo das árvores, viu o céu escurecido com o
vôo em círculo dos pássaros. Eles batiam as asas e moviam-
se lentamente de um lado para o outro; não havia alvoroço
de movimentos repentinos, somente aquele amontoado
barulhento de gralhas em ziguezague.
— Uma coruja?
— Elas não estão caçando nada. Venha, Will, logo já
vai anoitecer.
— É por isso que é tão estranho ver as gralhas em tão
grande alvoroço. Todas elas deveriam estar empoleiradas
agora. — Will virou a cabeça relutantemente para baixo,
mas em seguida saltou e agarrou o braço de seu irmão;
tinha percebido um movimento numa travessa escura que
conduzia para longe da rua onde se encontravam, Church
Lane: corria entre o Bosque das Gralhas e o cemitério até a
pequenina igreja local, e continuava pelo rio Tâmisa.
— Ei! O que foi?
— Tem alguém ali. Ou tinha. Olhando para nós. James
suspirou.
— E daí? Era apenas alguém fazendo uma
caminhada.
— Não, não estava. — Will forçou a vista
nervosamente, espiando a pequena rua lateral. — Era um
homem com olhar estranho, todo encurvado, e quando viu
que eu observava escondeu-se atrás de uma árvore.
Ligeiro, como um besouro.
James empurrou o carrinho e seguiu rápido pela rua,
obrigando Will a se apressar para acompanhá-lo.
— Era apenas um andarilho, então. Não sei, parece
que todos estão ficando doidos, hoje. Barb, os coelhos, as
gralhas e agora você como um nervosinho tagarela. Qual é?
Vamos pegar logo esse feno. Eu quero meu chã.
O carrinho sacudia pelos buracos congelados do
quintal dos Dawson, o melhor pedaço de chão cercado por
construções dos três lados que cheiravam ao conhecido
aroma de fazenda. O estrume do estábulo deve ter sido
removido naquele dia; o velho George, o pecuário sem
dentes, estava empilhando estéreo pelo quintal. Ele ergueu
a mão para cumprimentá-los. Nada escapava ao Velho
George; podia ver um falcão cair a quase dois quilômetros
de distância. Em seguida, o sr. Dawson surgiu de um
celeiro.
— Ah! — disse o fazendeiro. — Feno para a fazenda
dos Stanton? — Ele costumava brincar com a mãe dos
meninos, por causa dos coelhos e das galinhas.
James respondeu: — Sim, por favor.
— Já está vindo — informou o sr. Dawson. O velho
George desapareceu dentro do celeiro. — Passem bem.
Diga à mãe de vocês que eu buscarei dez aves amanhã. E
quatro coelhos... Não olhe assim, jovem Will. Se não for um
Natal feliz para eles, será para o pessoal, tão logo que eu
tenha os animais em mãos. — Olhou para céu, e Will
percebeu algo de estranho na expressão de seu rosto
moreno e enrugado. Em direção ao alto, nas nuvens
carregadas que pairavam nas regiões mais baixas, duas
gralhas pretas batiam suas asas lentamente em um círculo
amplo sobre a fazenda.
— As gralhas estão fazendo uma barulheira terrível
hoje — disse James. — Will viu um andarilho no bosque.
O sr. Dawson fitou Will com atenção. — Qual era a
aparência dele?
— A de um homenzinho velho. Ele se escondeu
rápido.
— Então o Andarilho está por aí — disse o fazendeiro
baixinho para si mesmo. — Ah! Ele só podia estar.
— Tempo bastante desagradável para ficar zanzando
por aí — acrescentou James alegremente. E balançou a
cabeça rumo ao céu setentrional sobre o telhado da casa da
fazenda; as nuvens pareciam cada vez mais escuras,
amontoando-se chuvosas e sinistras com um tom
amarelado. O vento soprava mais forte também, agitando
seus cabelos; e ouvia-se um farfalhar distante do topo das
árvores.
— Mais neve chegando — disse o sr. Dawson.
— Que dia horrível — falou Will de repente, surpreso
com sua própria veemência; além do mais, ele desejava a
neve. Mas de alguma maneira, algo perturbador estava
sendo engendrado dentro dele. — É muito sinistro, de certa
forma.
— Será uma noite ruim — acrescentou o sr. Dawson.
— Lá está Velho George com o feno — falou James. —
Vamos lá, Will.
— Vá você — disse o fazendeiro. — Eu quero que Will
pegue algo para sua mãe lá na casa. — Disse isso mas
permaneceu imóvel, enquanto James se afastava com o
carrinho em direção ao celeiro; o sr. Dawson ficou ali com
as mãos enfiadas dentro dos bolsos de sua jaqueta velha,
olhando para o céu escurecido.
— O Andarilho está por aí — disse novamente. — Esta
será uma noite ruim, e amanhã será além de nossa
imaginação. — Fitava Will, e o menino fixava-se cada vez
mais alarmado naquele rosto envelhecido; os olhos negros
e brilhantes estavam cercados de rugas por terem décadas
a fio observado o sol, a chuva e o vento. Ele nunca tinha
percebido como os olhos do fazendeiro Dawson eram
estranhos, em sua cor azulada.
— Seu aniversário está chegando — acrescentou o
fazendeiro.
— Hum, hum — confirmou Will.
— Eu tenho algo pra você — disse, olhando
rapidamente ao redor do quintal e retirando uma mão do
bolso; nela, Will viu o que parecia ser um tipo de
ornamento, feito de metal negro, um círculo achatado
dividido por duas linhas cruzadas. Curiosamente tocou o
objeto com os dedos. Tinha quase o tamanho da palma da
mão, e era bem pesado; forjado rusticamente em ferro,
imaginava ele, embora sem qualquer ponta ou borda
afiada. O ferro era frio ao contato da mão.
— O que é isto? — perguntou.
— Por enquanto — começou o sr. Dawson —, chame-o
apenas de algo para se guardar. Para manter com você
sempre, o tempo todo. Coloque-o no bolso, agora. E mais
tarde, passe o seu cinto nele e use-o como uma fivela extra.
Will enfiou o círculo de ferro no bolso.
— Muito obrigado — agradeceu bastante trêmulo. O
sr. Dawson normalmente era um homem animador, mas
não estava ajudando especialmente a melhorar em nada
aquele dia.
O fazendeiro olhou para o menino com a mesma
atenção, de forma enervante, e Will chegou a sentir os
cabelos se arrepiarem atrás de seu pescoço; depois,
esboçou um meio sorriso, não divertido, mas revelando
certa ansiedade.
— Guarde-o em segurança, Will. E quanto menos falar
sobre isso, melhor. Você precisará dele logo que a neve
chegar. — E começou a se apressar. — Venha agora, a sra.
Dawson tem um pote de frutas secas e cristalizadas que ela
preparou para sua mãe.
Dirigiram-se para a casa da fazenda. A mulher do
fazendeiro não estava lá, mas Maggie Barnes os aguardava
na porta de entrada. A leiteira da fazenda, de face rosada e
redonda, sempre fazia Will lembrar-se de uma maçã. Sorria
para ambos, segurando um pote branco de louça amarrado
com uma fita vermelha.
— Obrigado, Maggie — disse o fazendeiro Dawson.
— A patroa disse que o senhor ia querer isto pronto
para o jovem Will levar — disse Maggie. — Ela desceu ao
vilarejo para ver o vigário por alguma razão. Então, como
anda o seu irmão já crescido, Will?
Ela sempre perguntava isso, toda vez que o via; era
sobre seu irmão mais velho, Max. Uma brincadeira
constante da família Stanton dizia que Maggie Barnes dos
Dawson, sentia alguma coisa por Max.
— Bem, obrigado — respondeu Will de maneira
cortês. — Ele deixou o cabelo crescer, tá parecendo uma
garota.
Maggie deu um gritinho de alegria.
— Pare com isso! — disse contendo o riso e acenando
em despedida. Somente no último instante, Will percebeu o
olhar da moça elevar-se acima de sua cabeça. Enquanto se
virava, longe de sua vista, pensou ter visto um breve
movimento no portão do pátio da fazenda, como se alguém
estivesse se esquivando rapidamente da visão de outra
pessoa. Mas quando olhou, ninguém estava lá.
Com o grande pote de frutas secas espremido entre
dois fardos de feno, Will e James empurraram o carrinho
para fora do pátio. O fazendeiro permaneceu na entrada
logo atrás deles; Will podia sentir os seus olhos,
observando, lutou ansiosamente as crescentes e
ameaçadoras nuvens, e quase indesejavelmente deslizou
uma mão para dentro de seu bolso a fim de tocar o
estranho círculo de ferro com os dedos. — Depois que a
neve chegar. —Tinha-se a impressão de que o céu estava
prestes a cair sobre eles. Ele pensava: O que estaria
acontecendo?
Um dos cachorros da fazenda surgiu ainda amarrado,
abanando o rabo; em seguida, parou abruptamente alguns
metros ao longe, olhando-os.
— Ei, Corredor! — chamou Will.
O rabo do cachorro parou, e ele começou a rosnar,
mostrando os dentes.
— James! — disse Will.
— Ele não vai machucar você. Qual é o problema? —
Em seguida, continuaram em direção a rua.
— Não se trata disso. Alguma coisa está errada, só
isso. Alguma coisa terrível. O Corredor, Chelsea, os animais,
estão todos com medo de mim. — Até ele começava a ficar
realmente assustado naquele momento.
O barulho das gralhas estava cada vez mais alto,
mesmo com a luz do dia começando a se extinguir. Era
possível avistar os pássaros negros amontoando-se sobre o
topo das árvores, mais agitados do que antes, batendo as
asas e virando-se de um lado para o outro. E Will estava
certo; havia um estranho no caminho, de pé ao lado do
cemitério.
Era um maltrapilho, caminhando sem firmeza, mais
parecido com uma trouxa de roupas velhas do que com um
homem; e ao avistá-lo, os garotos diminuíram o passo e
ambos se aproximaram instintivamente do carrinho. O
homem virou o rosto com os cabelos desgrenhados para
olhá-los.
Então, de repente, em um borrão terrível,
inimaginável, um ruído rouco e agudo surgiu
apressadamente vindo do céu, e duas gralhas enormes
mergulharam sobre o homem fazendo-o cambalear para
trás aos gritos. Ele levantava as mãos para proteger o
rosto, mas os pássaros batiam suas grandes asas em um
rodopio negro e brutal, e partiram logo em seguida, subindo
velozmente para o céu, depois de passar pelos garotos.
Will e James estavam imóveis, atônitos, pressionados
contra os fardos de feno.
O estranho se agachou contra o portão.
— Caaaaaaak... Caaaaaak... — soava o barulho agudo
do bando frenético sobre o bosque; então, três outras
formas escuras em um rodopio recomeçaram a atacar
depois das duas primeiras, investindo incontrolavelmente
contra o homem e depois partindo. Naquele momento, o
estranho gritou de terror e saiu aos tropeções em direção à
rua, erguendo ainda os braços para proteger a cabeça e o
rosto. Os garotos ouviam a respiração ofegante causada
pelo medo enquanto o homem passava por eles correndo e
subia a estrada depois do portão da fazenda dos Dawson,
rumo ao vilarejo. Os meninos ainda avistaram nele cabelos
grisalhos, cheios e oleosos, embaixo de um velho chapéu
sujo, um casaco marrom rasgado, amarrado com uma
corda, e alguma outra peça de roupa que se agitava por
debaixo do traje; as botas eram velhas; uma, sem solado,
obrigava o homem a puxar estranhamente a perna para o
lado, fazendo-o quase saltitar enquanto corria. Mas não
conseguiram ver o seu rosto.
O redemoinho de aves bem acima de suas cabeças
estava diminuindo, formando círculos de pequenos vôos, e
as gralhas começaram a pousar uma por uma no topo das
árvores. Ainda se comunicavam ruidosamente entre si em
um longo e embaralhado crocito, mas a loucura e a
violência já haviam sido abrandadas. Atordoado, movendo a
cabeça pela primeira vez, Will sentiu sua face roçar em
alguma coisa, e ao colocar a mão no ombro encontrou uma
pena longa e escura. Enfiou-a dentro do bolso da jaqueta,
num movimento lento, como alguém semi-acordado.
Juntos, voltaram a empurrar o carrinho abastecido
estrada abaixo em direção a casa, e os crocitos atrás deles
esmoreceram em um sinistro murmúrio, como o Tâmisa
cheio na primavera.
Finalmente, James disse:
— Gralhas não fazem esse tipo de coisa. Elas não
atacam pessoas. E não descem tão baixo quando não há
muito espaço. Simplesmente não fazem isso.
— Não — aquiesceu Will. Ainda se movia como se
estivesse em um devaneio, parcialmente consciente de
alguma coisa, exceto pela vaga curiosidade despertada em
sua mente. Em meio a toda barulheira e alvoroço,
repentinamente o garoto teve um estranho pressentimento,
mais forte do que todos os que já tivera: sabia que alguém
estava tentando lhe dizer alguma coisa, algo que não
compreendia, pois não conseguia entender a linguagem.
Não eram propriamente palavras; era antes um tipo de
grito silencioso. E ele era incapaz de assimilar a mensagem,
não sabia como fazê-lo.
— É como um rádio que não está sintonizado na
estação certa — disse ele alto.
— O quê? — perguntou James, que de fato não o
estava ouvindo. — Que coisa — continuou. — Acho que o
mendigo estava tentado pegar uma gralha. E elas ficaram
enlouquecidas. Aposto com você que ele irá xeretar as
galinhas e os coelhos. Mas o fato de ele não ter uma arma é
estranho. É melhor falar pra nossa mãe deixar os cachorros
no celeiro esta noite.
Aos poucos, Will percebeu, com espanto, que todo o
choque em relação ao ataque selvagem e enlouquecedor já
estava se dissipando na mente de James como água, e que
em questão de minutos até mesmo o ocorrido já teria sido
esquecido.
Alguma coisa apagou perfeitamente todo o
acontecido da memória de James; algo que não queria que
isso fosse relatado. Alguma coisa que sabia que isso
impediria Will também de relatar o fato.
— Aqui, pegue as frutas secas da mamãe — disse
James. — Vamos logo antes de congelarmos. O vento está
mesmo aumentando, ainda bem que nos apressamos para
voltar.
— Sim — concordou Will. Ele sentia frio, mas não era
por causa da ventania que aumentava. Seus dedos se
fecharam em torno do círculo de ferro guardado no bolso e
ele o segurou apertado. Naquele momento, o ferro parecia
quente.
***
O mundo acinzentado foi tomado pela escuridão até o
momento em que chegaram à cozinha. Do lado de fora da
janela, a pequena e desgastada caminhonete do pai dos
meninos situava-se sob uma luz rupestre amarelada. A
cozinha estava ainda mais barulhenta e quente do que
antes. Gwen colocava a mesa, quando passou
pacientemente por um trio encurvado onde a sra. Stanton
olhava para algumas peças mecânicas, pequenas e
desconhecidas, juntamente com os gêmeos, Robin e Paul; e
com a forma rechonchuda de Mary vigiando o rádio naquele
momento, só se ouvia música pop em alto volume. Quando
Will se aproximou, o aparelho emitiu novamente um som
agudo, de modo que todos começaram a fazer caretas e
retrucar.
— Desligue essa coisa! — gritou a sra. Stanton
desesperadamente da pia. Mas embora Mary, emburrada,
tivesse desligado a interferência e a música, o volume do
barulho havia diminuído muito pouco. De certa maneira,
nunca di-havia diminuído quando mais da metade da
família estava em casa. Vozes e risos enchiam a enorme
cozinha pavimentada de pedra enquanto todos se
sentavam em volta da mesa simples de madeira; os dois
collies escoceses, Raq e Ci, cochilavam na outra
extremidade perto do fogo. Will ficou longe deles; não
poderia suportar se seus próprios cães rosnassem para ele.
Por isso, sentou-se calmamente à mesa do chá — mesa do
chá se a sra. Stanton a preparasse antes das cinco; do
jantar se ficasse pronta mais tarde, mas sempre com a
mesma abundância de iguarias — e manteve sua boca e
prato cheios de salsicha para evitar falar. Não que alguém
fosse provavelmente sentir falta de sua conversa no
alvoroço alegre da família Stanton, especialmente quando
se era o membro mais novo.
Acenando para ele da outra extremidade da mesa,
sua mãe chamou.
— O que poderíamos ter para o chá de amanhã, Will?
Ele respondeu indistintamente.
— Fígado e bacon, por favor. James resmungou em
voz alta.
— Fique calado — retrucou Bárbara, a irmã mais
velha de dezesseis anos. — É aniversário dele, ele pode
escolher.
— Mas fígado — disse James.
— Bem feito pra você — disse Robin. — Em seu último
aniversário, se me lembro bem, todos nós tivemos que
comer aquela revoltante couve-flor gratinada.
— Fui eu quem fez — falou Gwen, — e não estava
revoltante.
— Sem querer ofender — acrescentou Robin
rapidamente. — Eu não suporto couve-flor. De qualquer
maneira, você me entendeu.
— Entendi sim. Eu só não sei se James também.
Robin, com sua voz ampla e profunda, era o mais
musculoso dos gêmeos e não era alguém para se
menosprezar.
James disse apressadamente: — Tudo bem, tudo bem.
— Uma dobradinha amanhã, Will — disse o sr.
Stanton da cabeceira da mesa. — Nós deveríamos realizar
algum tipo especial de cerimônia. Um ritual tribal. — E
sorriu para o filho mais novo; seu rosto redondo e
enrugado, bastante rechonchudo, revelava imenso carinho.
Mary resmungou: — Em meu aniversário de onze
anos, levei uma surra e ainda me mandaram pra cama.
— Deus do céu — respondeu a mãe da menina. — Vê
se pode você se lembrar disso. E que maneira de descrever
a data. Para deixar claro, você ganhou uma boa palmada
nas nádegas e bem merecida também, até onde me
lembro.
— Era meu aniversário — replicou Mary, sacudindo
seu rabo de cavalo. — E eu nunca me esqueci.
— Dê tempo ao tempo — acrescentou Robin
animadamente. — Três anos é muito pouco.
— E você era muito imatura aos onze anos — disse a
sra. Stanton, pensando sobre o assunto.
— Hah! — resmungou Mary. — E imagino que Will não
seja?
Por um momento, todos olharam para Will. Ele piscou
alarmado sob o olhar das faces contemplativas, e virou-se
de cara feia para o prato de modo que não deixasse visível
nada de si mesmo, exceto uma fina mexa de cabelos
castanhos. Era muito perturbador ser observado por tantas
pessoas de uma só vez. Sentia como se estivesse sendo
atacado. E ficou repentinamente convencido de que
poderia, de algum modo, ser perigoso ter tantas pessoas
pensando a seu respeito, todas ao mesmo tempo. Como se
alguém nada amigável pudesse ouvir...
― Will — disse Gwen, lentamente — é mesmo um
velho de onze anos.
― Eterno, quase — acrescentou Robin. Ambos soaram
solenes e distantes, como se estivessem discutindo algo
demasiado estranho.
― Sosseguem, agora — disse Paul inesperadamente.
Ele era o irmão mais tranqüilo dos gêmeos, e o gênio da
família, talvez o único: ele tocava flauta e zelava pelos
irmãos menores. — Alguém virá para o chá amanhã, Will?
― Não. Angus Macdonald foi passar o Natal na
Escócia, e Mike está passando uns dias com sua avó em
Southall. Mas não me importo.
De repente, percebeu-se uma agitação na porta dos
fundos e uma rajada de ar frio; era o som de batidas de pés
e o ruído alto de causar calafrios. Max enfiou a cabeça no
vão da passagem; seus cabelos longos estavam molhados e
brilhantes.
— Desculpe o atraso, mãe. Tive que andar desde a
Câmara dos Comuns. Uau, vocês deveriam ver lá fora; é
como uma nevasca. — Contemplou a fileira de rostos
inexpressivos, e sorriu. — Vocês não sabiam que está
nevando?
Esquecendo-se de tudo por um momento, Will deu
um alegre grito e correu com James até a porta.
— Neve de verdade? Muita?
— Eu diria — começou Max, respingando-lhes gotas
de água enquanto desenrolava seu cachecol. Era o irmão
mais velho, sem contar Stephen que servia a Marinha há
anos e raramente vinha para casa. — Veja. — Abriu a porta
com um estalo, e o vento assoviou pelo vão novamente;
Will viu um nevoeiro branco cintilante do lado de fora, com
espessos flocos de neve; nenhuma árvore ou arbusto
estava visível, nada além do rodamoinho de neve. Um coro
de protestos veio da cozinha: — Feche essa porta!
— Lá está a sua cerimônia, Will — disse seu pai. —
Bem a tempo.
***
Bem mais tarde, quando foi se deitar, Will abriu as
cortinas do quarto e pressionou o nariz contra a vidraça
gelada; ficou ali observando a neve cair ainda mais espessa
do que antes. Cinco ou dez centímetros já cobriam o
parapeito da janela, e ele quase podia perceber o nível
subindo enquanto o vento investia contra a casa. Era
possível ouvir o vento, também, ganindo ao redor do
telhado sobre o quarto e em todas as chaminés. Will dormia
em um sótão de telhado inclinado no topo da velha casa;
passara a ocupar o lugar há alguns meses, quando
Stephen, que sempre dormira ali, voltou para o navio
depois de uma licença. Antes disso, Will costumava dividir
outro quarto com James — assim como todos da família
faziam.
— Mas meu sótão deve ser ocupado — dissera o
irmão mais velho, sabendo como Will amava o lugar.
Agora, em uma estante instalada em um dos cantos
do quarto, havia um retrato do tenente Stephen Stanton, da
Marinha Real, parecendo, sobretudo, desconfortável no
uniforme, e ao lado uma caixa talhada de madeira com um
dragão esculpido na tampa, repleta de cartas que ele
enviara para Will, de algum lugar distante e inimaginável de
qualquer parte do mundo. Ambos tinham criado um tipo de
santuário particular.
A neve surrava a janela, emitindo um som
semelhante ao de dedos arranhando a vidraça. Outra vez,
Will ouviu o vento gemendo no telhado, mais alto do que
antes; aquilo estava se tornando uma verdadeira
tempestade. Pensou então no mendigo, e perguntou-se
onde o homem conseguira abrigo. — O Andarilho está por
aí... esta noite será num... — Ele segurou sua jaqueta e
pegou o estranho objeto de ferro, passando os dedos pelo
círculo, para cima e para baixo da cruz interna que o
quartejava. A superfície de ferro era irregular, mas embora
não mostrasse qualquer sinal de ter sido polida, era
completamente lisa; lisa de uma maneira que o fazia se
lembrar de certo lugar no áspero piso de pedra da cozinha,
onde toda a aspereza havia sido desgastada por gerações
de pés passando pelo canto da porta. Era um tipo estranho
de ferro: escuro, absolutamente negro, sem nenhum brilho
e sem qualquer mancha causada por descoloração ou
ferrugem. E mais uma vez agora se tornava frio ao toque;
tão frio nesse momento que Will se assustou ao perceber os
dedos dormentes. Às pressas, soltou o objeto. Em seguida,
puxou o cinto de suas calças, penduradas desajeitadamente
Sobre o espaldar de uma cadeira, e como o sr. Dawson lhe
dissera para fazer, pegou o círculo e o enfiou no cinto como
uma fivela extra. Recolocou-o na calça e a jogou sobre a
cadeira. O vento continuava cantando na armação da
janela.
Foi então que, sem avisar, o medo surgiu.
A primeira onda de medo o atingiu enquanto cruzava
o aposento para chegar à cama, fazendo-o parar quieto no
meio do quarto; o uivo do vento lá fora tampava seus
ouvidos. A neve açoitava a janela. Will ficou
repentinamente frio como um cadáver, porém com o corpo
todo formigando. Estava tão assustado que não conseguia
mover um dedo sequer. Num lampejo da memória,
relembrou novamente o céu cada vez mais baixo sobre o
matagal, escuro como as gralhas, os enormes pássaros
negros voando em círculo acima de sua cabeça. Depois
dessa lembrança, viu apenas o rosto aterrorizado do
mendigo e ouviu o grito do homem enquanto fugia. Por um
momento houve apenas uma escuridão terrível em sua
mente, uma sensação de estar olhando para dentro de um
enorme fosso negro. Em seguida, o uivo mais alto do vento
desvaneceu, e ele se sentiu liberto.
O menino continuou tremendo, olhando
incontrolavelmente pelo quarto. Nada estava errado. Tudo
estava igual. A perturbação, dizia para si mesmo, surgiu por
causa da lembrança. Estaria tudo certo se pudesse ao
menos parar de pensar e fosse dormir. Ele puxou seu
pijama, subiu na cama, e deitou-se olhando para a
clarabóia instalada no telhado inclinado, que estava coberta
de neve.
Apagou o pequeno abajur ao lado da cama, e a noite
envolveu todo o quarto. Não havia qualquer indício de luz,
mesmo quando seus olhos se acostumaram à escuridão.
Era hora de dormir. Vamos lá, durma. Mas embora se
virasse para o lado, puxasse os cobertores até o queixo e
ficasse numa posição relaxada, contemplando o
estimulante fato de que seria seu aniversário logo que
acordasse, nada acontecia. E isso não era bom. Algo estava
errado.
Will rolou na cama ansiosamente. Nunca havia
sentido algo daquele tipo. E ficava muito pior a cada
minuto. Era como se um peso enorme estivesse
comprimindo sua mente, ameaçando, tentando assumir o
controle, transformando-o em algo que não queria ser. É
isso, pensava: fazendo-me ser outra pessoa. Mas isso era
uma estupidez. Quem desejaria isso? E transformar-me em
quê? Naquele momento, alguma coisa rangeu do lado de
fora da porta entreaberta, fazendo-o saltar. Então, voltou a
ranger novamente, e ele sabia o que era: certa tábua que
freqüentemente rangia sozinha durante a noite, com um
som tão familiar que normalmente ele nunca percebia.
Contra a própria vontade, continuou deitado, ouvindo. Um
tipo diferente de rangido surgiu de um local mais distante,
no outro sótão, e ele estremeceu novamente, quase num
solavanco, de modo que o cobertor roçou o seu queixo.
Você está apenas assustado, dizia para si mesmo, fica aí
recordando o que ocorreu nessa tarde, mas na realidade
não há muito do que se lembrar. Tentava pensar no
andarilho como uma pessoa insignificante, um homem
comum vestido com um casaco sujo e botas surradas; mas
contrária a tudo o que ele podia visualizar, mais uma vez
surgiu em sua mente a imagem do brutal mergulho das
gralhas no ar. "O Andarilho está por aí..." Então, ouviu-se
outro barulho estranho de rangido, que naquele momento
vinha do teto, logo acima de sua cabeça, e o vento uivou
repentinamente alto, a ponto de obrigar Will a se sentar em
disparada na cama e, em pânico, tentar alcançar o abajur.
O quarto foi agradavelmente iluminado, e o menino
se deitou novamente envergonhado, sentindo-se um idiota.
Assustar-se com o escuro, pensava: que horror. Como um
bebezinho. Stephen nunca teria medo do escuro, aqui em
cima. Olhe bem, há a estante, a mesa, as duas cadeiras e o
assento da janela; olhe, há as seis caravelas pequenas do
móbile pendurado no teto e suas sombras passeando pela
parede. Tudo está normal. Vá dormir.
Apagou a luz novamente, e instantaneamente tudo
ficou pior do que antes. O medo saltou sobre ele pela
terceira vez como um grande animal que estivera
aguardando para atacar de repente. Will permaneceu
aterrorizado, tremendo, sentindo o próprio tremor, embora
continuasse incapaz de se mover. Para ele, só podia estar
ficando louco. Do lado de fora, o vento gemia, parava,
erguia-se em um repentino uivo; e de novo o barulho, um
baque ou rangido abafado contra a clarabóia no teto de seu
quarto. Em seguida, em um momento terrível de fúria, o
horror o envolveu como um pesadelo que se tornara real;
ouviu-se um estrondo deplorável, com o uivo do vento de
repente ainda mais alto e próximo, e uma grande rajada de
frio; a sensação de pavor irrompeu contra ele com tanta
força que o fez se jogar na cama curvando-se de medo.
Will gritou de susto. E só percebeu que gritara depois,
pois estava tão profundamente amedrontado que fora
incapaz de ouvir a própria voz. Por um momento horrível,
negro como o breu, permaneceu quase consciente, perdido
em algum lugar do mundo, em um espaço escuro. E então,
passos rápidos vindos da escada foram ouvidos do outro
lado da porta, depois uma voz o chamou demonstrando
preocupação, e uma luz reconfortante inundou o quarto
trazendo-o de volta à vida mais uma vez. Era a voz de Paul.
— Will? O que foi? Está tudo bem com você?
Lentamente, Will abriu os olhos. Percebeu que
estava encurvado no formato de uma bola, com os joelhos
apertados contra o queixo. Depois, viu Paul de pé ao seu
lado, piscando ansiosamente por trás de seus óculos de
aros escuros. O menino aquiesceu, sem encontrar voz para
falar. Paul virou a cabeça, e Will seguiu o olhar do rapaz
para ver que a clarabóia no telhado estava aberta, ainda
balançando com a força de sua queda; havia um quadrado
negro de noite vazia no telhado, e através dele podia-se
perceber o vento trazendo o frio glacial do solstício de
inverno. Sobre o carpete, a clarabóia havia depositado uma
pilha de neve. Paul espiou a borda da estrutura da
clarabóia.
— O fecho está quebrado; imagino que a neve
estivesse pesada demais para que pudesse suportar. E já
devia estar muito velha de qualquer maneira, o metal
estava todo enferrujado. Eu pegarei algum arame e o
consertarei amanhã.. Isto acordou você? Senhor! Que susto
terrível. Se eu tivesse sido acordado desse jeito, você teria
me encontrado em algum lugar debaixo da cama.
Will olhou para o irmão em gratidão calada, e tentou
dar um sorriso sem graça. Cada palavra na voz profunda e
tranqüilizadora de Paul o trazia de volta à realidade. Ele se
sentou na cama e puxou as cobertas de volta.
― Nosso pai deve ter algum arame que sirva no outro
sótão — disse Paul. — Mas vamos tirar essa neve daqui
antes que derreta. Olhe, tem mais neve caindo. Aposto que
não há muitas casas onde se pode observar a neve caindo
sobre o carpete.
Ele estava certo; flocos de neve caíam rodopiando
através do espaço negro no teto, espalhando-se para todo
lado. Juntos, os irmãos reuniram o que podiam numa revista
antiga, fazendo o formato de uma bola de neve. Enquanto
Will corria até o andar de baixo para jogá-la na banheira,
Paul passava o arame na clarabóia prendendo-a em seu
fecho.
— Prontinho — disse rapidamente e, embora não
olhasse para Will, por um momento ambos se
compreenderam muito bem. — Digo uma coisa pra você,
está um gelo aqui em cima... Por que não desce para o
nosso quarto e dorme em minha cama? Eu acordarei você
quando me levantar mais tarde... ou eu posso dormir aqui
se você puder sobreviver aos roncos do Robin. Tudo bem?
— Tudo bem — respondeu Will rapidamente. —
Obrigado.
Pegou suas roupas, com o cinto e seu novo
ornamento, depositando-os sobre o braço; depois parou na
porta enquanto saíam, olhando para trás. Não havia nada
para se ver agora, exceto a escura mancha úmida sobre o
carpete onde estivera a pilha de neve. Mas o menino sentia
mais frio do que o ar podia lhe fazer sentir, e enjôo, o
sentimento vazio de medo ainda permanecia em seu peito.
Se não houvesse nada errado além do medo do escuro, por
nada no mundo teria ido se refugiar no quarto de Paul. Mas
da maneira como estavam as coisas, sabia que não poderia
ficar sozinho no quarto onde deveria ficar. Pois enquanto
limpavam aquela pilha de neve, Will havia visto algo que
passara despercebido para Paul. Era impossível, em uma
ruidosa tempestade de neve, que alguma coisa Vivente
tivesse causado aquele baque surdo inconfundível no vidro,
que havia ouvido logo antes da clarabóia despencar. Mas
enterrado na pilha de neve, encontrou uma pena da asa
negra de uma gralha.
Ouviu a voz do fazendeiro mais uma vez: — Esta será
uma noite ruim, e amanhã será além de nossa imaginação.

SOLSTÍCIO DE INVERNO

Ele foi acordado com uma música que o chamava,


alegre e insistente; era uma música delicada, tocada por
instrumentos igualmente delicados que não podia
identificar, acompanhada por uma frase semelhante à
reverberação de um sino que repicasse através dela em um
reluzente fio de prazer. Nessa música havia um
encantamento profundo, comparado a todos os sonhos e
imaginações que o fazem acordar sorrindo em pura
felicidade ao seu ressoar. No momento em que despertava,
o som começou a desvanecer, chamando-lhe a atenção
enquanto desaparecia, e quando abriu os olhos, a música já
se fora. O menino tinha apenas a lembrança daquela frase
reverberante que ainda ecoava em sua cabeça, mas
desapareceu tão rápido que ele se sentou abruptamente na
cama esticando os braços no ar, como se pudesse trazê-la
de volta.
O quarto estava muito calmo, e não se ouvia mais o
som de música; mesmo assim Will sabia que não havia sido
apenas um sonho.
Ainda estava no quarto dos gêmeos e podia ouvir a
respiração de Robin, lenta e profunda, da outra cama. A luz
fria brilhava pela extremidade das cortinas, mas não se
ouvia o barulho de ninguém se mexendo em outro lugar;
era muito cedo ainda. Will vestiu suas roupas amarrotadas
do dia anterior e saiu logo do quarto. Cruzou o patamar da
escada até a janela central para olhar lá embaixo.
No primeiro momento de claridade, pôde ver todo um
mundo estranhamente familiar, brilhando de tão branco; os
telhados das construções externas amontoavam-se em
torres quadradas de neve, além delas, todos os campos e
cercas vivas estavam enterrados e submersos em uma
enorme e plana extensão, absolutamente brancos até o fim
do horizonte. Will respirou de forma longa e feliz,
regozijando-se silenciosamente. Então, bem vagamente,
voltou a ouvir a música, a mesma frase. Moveu-se em vão
procurando pelo som no ar, como se pudesse avistá-lo em
algum lugar, como se fosse uma luz bruxuleante.
— Onde está você?
A música se foi novamente. E quando tornou a olhar
pela janela, percebeu que seu próprio mundo havia partido
junto com ela. Aquela perspectiva fazia tudo mudar. A neve
estava ali como estivera alguns momentos antes, mas não
amontoada, agora encontrava-se sobre os telhados,
seguindo plana sobre campos e gramados. Não havia mais
telhados, não havia mais campos. Havia apenas árvores.
Will estava olhando uma grande floresta branca: uma
floresta de árvores enormes, resistentes como torres e
antigas como as rochas. Elas estavam descobertas de
folhas, revestidas apenas pela profunda quantidade de
neve que se depositava intocável por todos os ramos,
desde os menores gravetos. Estavam em todos os lugares.
E começaram a cair perto da casa; ele observava os ramos
mais altos da árvore mais próxima, e poderia esticar o
braço e sacudi-los se ousasse abrir a janela. Todas as
árvores ao redor se alongavam até o plano horizonte do
vale. A única discrepância naquele mundo branco de galhos
encontrava-se logo ao sul, onde o Tâmisa corria; ele podia
ver a curva do rio marcada como uma única onda silenciosa
naquele oceano branco de florestas, e tinha-se a impressão
de que o rio era mais largo do que deveria ser.
Will olhava e olhava atentamente, e quando por fim
se mexeu, percebeu que estava apertando o círculo liso de
ferro em seu cinto. O ferro estava quente sob seu toque.
Voltou para o quarto.
— Robin! — disse ele alto. — Acorde! — Mas Robin
respirava lenta e ritmicamente como antes, e nem se
mexeu.
Ele correu para o próximo quarto, o pequeno e
familiar aposento que costumava dividir com James.
Balançou o irmão bruscamente pelo ombro. Mas quando
parou, James continuou imóvel, profundamente
adormecido.
Will saiu novamente para a escada, tomou bastante
fôlego, e gritou com todas as suas forças: — Acordem
todos! Acordem todos, pessoal!
Não esperava receber alguma resposta, e ela
realmente não veio.
Tudo permaneceu em completo silêncio, tão profundo
e eterno como o cobertor de neve; a casa e todos nela
mantinham-se num sono que não podia ser interrompido.
Will foi para o andar de baixo para vestir suas botas e
a velha jaqueta de couro de cabra que já pertencera, antes
dele, a dois ou três de seus irmãos. Depois, saiu pela porta
dos fundos, fechando-a atrás de si sem fazer barulho, e
ficou ali contemplando através do vapor branco de sua
respiração.
O estranho mundo branco permanecia tomado pelo
silêncio. Nem os pássaros cantavam. O jardim já não
existia, nessa terra arborizada. Nem se via mais as
construções externas nem as antigas paredes
desmoronadas. Havia apenas uma estreita clareira ao redor
da casa agora, elevada com infindáveis montes de neve
causados pelo vento, antes que as árvores começassem a
surgir em um estreito caminho conduzindo adiante.
Vagarosamente, Will partiu descendo pelo túnel branco da
trilha, pisando alto para manter a neve longe de suas botas.
Tão logo ele se afastou da casa, sentiu-se muito sozinho,
mas obrigou-se a continuar sem olhar para trás, pois sabia
que quando olhasse, descobriria que a casa não estava
mais ali.
O menino aceitava tudo o que vinha à sua mente,
sem pensar ou questionar, como se estivesse sendo
conduzido através de um sonho. Mas bem lá no fundo,
sabia que não estava sonhando. Tinha convicção de estar
acordado, no dia do solstício de inverno que o estava
aguardando acordar desde o dia de seu nascimento e, de
alguma forma, ele sabia disto há séculos. Amanhã será
além de nossa imaginação... Will saiu da trilha na estrada
em arco branco, pavimentada lisamente com neve e
ladeada em todos os lugares por grandes árvores. E
olhando acima entre os galhos, viu uma única gralha negra
bater as asas, voando alto no céu da manhã.
Virando à direita, subiu a estrada estreita que no seu
tempo chamava-se Trilha do Vale do Caçador. Era o
caminho que ele e James tinham tomado para chegar à
fazenda dos Dawson, a mesma estrada que havia pisado
quase todos os dias de sua vida, mas que estava diferente
agora. Nesse momento, nada mais era do que uma
passagem através da floresta, com grandes árvores
cobertas de neve cercando-a por todos os lados. Will movia-
se com os olhos brilhantes e atentos através do silêncio, até
que repentinamente ouviu um ruído indistinto à sua frente.
Preferiu ficar quieto. O som foi ouvido novamente,
abafado através das árvores: uma leve batida rítmica,
dissonante, como um martelo golpeando um metal. O ruído
surgia em estalos curtos e irregulares, como se alguém
estivesse martelando pregos. Enquanto continuava
ouvindo, o mundo à sua volta parecia brilhar um pouco
mais; os bosques pareciam menos densos, a neve cintilava,
e quando olhou para cima, a faixa de céu sobre a Trilha do
Vale do Caçador tinha uma cor azul clara. Percebeu que o
Sol havia se levantado finalmente fora do sinistro
aglomerado de nuvens escuras.
O menino caminhou com dificuldade em direção ao
som do martelo, e logo chegou a uma clareira. Não havia
mais o vilarejo do Vale do Caçador, apenas isto. Todos os
seus sentidos se abriam para a vida, sob uma chuva de
sons, vistas e odores inesperados. Ele avistou duas ou três
construções baixas de pedra cobertas espessamente com
neve, uma fumaça azulada de madeira subindo e sentiu o
cheiro disto ainda e, ao mesmo tempo, o aroma voluptuoso
de pães recentemente assados que lhe dava água na boca.
Viu que a construção mais próxima das três tinha três
muros, e estava aberta para a trilha, com um fogo
amarelado queimando em seu interior como um sol cativo.
Enormes chuvas de faísca eram espalhadas de uma bigorna
onde se encontrava um homem martelando. Ao lado da
bigorna podia-se avistar um cavalo preto bem alto, um
animal bonito e reluzente; Will nunca havia visto um cavalo
tão esplendidamente escuro em sua cor, sem qualquer
mancha branca em nenhum lugar.
O cavalo ergueu a cabeça e olhou-o diretamente e,
passando a pata no chão, relinchou baixo. A voz do ferreiro
retumbou em protesto e outra figura surgiu das sombras
atrás do cavalo. A respiração de Will ficou cada vez mais
rápida ao avistá-lo, e sentiu um aperto em sua garganta.
Mas não sabia o motivo.
O homem era alto, e trajava um manto preto que caía
como uma veste; seu cabelo, que se estendia abaixo do
pescoço, brilhava num tom curiosamente avermelhado.
Bateu levemente no pescoço do cavalo, murmurando em
seu ouvido; depois deu a impressão de ter percebido a
causa da inquietação do animal e, virando, ao avistar Will,
deixou os braços caírem abruptamente ao longo do corpo.
Deu um passo à frente, permaneceu ali, aguardando.
A claridade fugiu da neve e do céu, e a manhã se
escureceu um pouco, como se uma camada de nuvens
longínquas cobrisse o sol.
Will atravessou a estrada pela neve, suas mãos
estavam enfiadas no fundo dos bolsos. Não olhava para a
figura alta de casaco que o encarava. Era vez disto, fixou
firmemente outro homem curvado sobre a bigorna,
percebendo que o conhecia; era um dos homens da fazenda
dos Dawson. John Smith, o filho do Velho George.
— Bom dia, John — cumprimentou.
O homem de ombros largos, portando um avental de
couro, o olhou de relance. Franziu a testa brevemente, mas
depois cumprimentou com a cabeça em boas-vindas.
— Ei, Will. Você levantou cedo.
— É meu aniversário — respondeu o menino.
— Um aniversário de solstício de inverno —
acrescentou o estranho de casaco. — Venturoso, de fato. E
você fará onze anos completos. — Era uma afirmação e não
uma pergunta. Agora, Will precisava olhar. Os olhos azuis
brilhantes passaram pelos cabelos castanho-avermelhados,
e o homem falava com uma curiosa pronúncia que não era
a do sudeste.
— Isso mesmo — confirmou Will.
Uma mulher apareceu de um dos chalés mais
próximos dali, carregando uma cesta com pequenos pães
em seu interior, e com eles o aroma de recém-saídos do
forno que havia inebriado o menino antes. Ele sentiu o
cheiro, seu estômago o fez se lembrar de que ainda não
havia tomado o café-da-manhã. O homem de cabelos
vermelhos pegou um pão, dividindo-o em duas partes e
entregou uma metade para o menino.
— Aqui. Você está com fome. Quebre o jejum matinal
de seu aniversário comigo, jovem Will. — E mordeu a outra
metade, no que Will pôde ouvir o som das cascas do pão se
esfarelando de forma convidativa. Estendeu a mão, mas,
enquanto isso, o ferreiro tirou uma ferradura do fogo e
bateu rapidamente no objeto sobre o casco do cavalo
colocado firmemente entre seus joelhos. Sentiu-se um
cheiro de queimado, destruindo o aroma do pão assado; em
seguida, a ferradura já voltava ao fogo e o ferreiro olhava
minuciosamente o casco do animal. O cavalo negro
permaneceu imóvel e paciente, mas Will deu um passo
atrás, deixando os braços caírem.
— Não, obrigado — disse ele.
O homem deu de ombros, mordendo vorazmente o
pão; a mulher, com a face oculta pela borda do xale, saiu
novamente com sua cesta. John Smith retirou a ferradura
do fogo mais uma vez e a levou até um balde de água
fazendo-a chiar e cobrir-se de fumaça.
— Vamos lá, vamos lá — disse o cavaleiro
irritadamente, erguendo a cabeça. — O dia está passando.
Quanto tempo mais vai demorar?
— Não apresse seu ferro — disse o ferreiro.
Entretanto, naquele momento ele já estava martelando a
ferradura com batidas certeiras e rápidas. — Terminei! —
informou, finalmente, aparando o casco do animal com uma
faca.
O homem de cabelos avermelhados fez o cavalo
marchar ao redor, numa circunferência apertada, e depois
montou em sua sela, rápido como um gato veloz. Erguendo-
se acima de todos, com as vestes negras flutuando pelos
flancos de seu cavalo negro; parecia uma estátua esculpida
da noite. Mas os olhos azuis olhavam atenta e
imperiosamente para Will.
— Suba, garoto. Eu levarei você aonde deseja ir.
Cavalgar é a única maneira, em neve tão densa quanto
esta.
— Não, obrigado — respondeu Will. — Eu saí para
procurar o Andarilho. — Ele ouvia suas próprias palavras
com assombro. Então é assim, pensava ele.
— Mas agora é o Cavaleiro que está por aí — disse o
homem; e em um movimento ligeiro, virou a cabeça de seu
cavalo, curvou-se na sela e agarrou fortemente o menino.
Will puxou bruscamente o braço para o lado, mas teria
continuado preso se o ferreiro, de pé no muro aberto da
ferraria, não tivesse saltado adiante e o arrastado para fora
de alcance. Para um homem tão largo, ele se moveu com
impressionante rapidez.
O garanhão escuro empinou, e o cavaleiro em sua
capa foi quase arremessado da sela. Gritou furioso,
restabelecendo-se em seguida; ao sentar-se, olhava para
baixo em uma gélida contemplação, algo que parecia ser
mais terrível do que ódio. — Isto foi uma tolice, meu caro
ferreiro — disse calmamente. — Nós não esqueceremos. —
Em seguida, girou o garanhão e cavalgou na mesma
direção de onde Will havia chegado; os cascos de seu
enorme cavalo faziam apenas um abafado sussurro na
neve.
John Smith cuspiu, ironicamente, e começou a
guardar suas ferramentas.
— Obrigado — disse Will. — Eu espero que... — fez
uma pausa.
— Eles não podem me fazer mal — disse o ferreiro. —
Eu descendo de outra raça. E neste tempo, eu pertenço à
estrada, assim como meu oficio pertence a todos os que
usam a estrada. O poder deles não pode causar mal algum
na estrada através do Vale do Caçador. Lembre-se disso,
para si mesmo.
O estado de sonho oscilou, e o menino sentiu que
seus pensamentos começavam a vacilar.
— John — ele chamou. — Sei que preciso encontrar o
Andarilho, mas não sei a razão. Você poderia me dizer?
O ferreiro se virou e pela primeira vez olhou-o
diretamente, com uma espécie de compaixão em seu rosto
envelhecido.
— Ah, não, jovem Will. Você simplesmente acabou de
acordar? Você deve aprender por si mesmo. E, além disso,
este é seu primeiro dia.
― Primeiro dia? — perguntou Will.
― Coma — disse o ferreiro. — Não há perigo nisso,
agora que não compartilhará do pão com o Cavaleiro. Viu
como você percebeu rápido o perigo disso? Assim como
sabia que haveria grande perigo em cavalgar cora ele. Siga
seus instintos durante o dia, garoto, siga apenas os seus
instintos,, Ele gritou em direção à casa — Martha!
A mulher saiu novamente com a cesta. Naquele
momento, retirou seu xale e sorriu para o menino que
vislumbrou olhos azuis como os do Cavaleiro, mas de uma
luz mais suave. Agradecido, ele mastigou o pão quente e
crocante, partido naquela mesma hora e com recheio de
mel. Em seguida, além da clareira, ouviu-se um novo som
de passos abafados na estrada, e ele se virou
temerosamente ao redor.
Uma égua branca, sem cavaleiro ou arreio, trotava
para dentro da clareira na direção deles: uma imagem
inversa do garanhão negro do Cavaleiro, alto e esplêndido e
sem quaisquer marcas. Uma fraca luz dourada, contra a
neve ofuscante, cintilante enquanto o Sol ressurgia das
nuvens, surgia em sua alvura e em sua longa crina que caía
sobre o pescoço arqueado. O animal parou ao lado de Will,
curvou o nariz subitamente e tocou o ombro do menino
como um cumprimento, depois balançou a enorme cabeça
branca, exalando uma nuvem esfumaçante de respiração
no ar frio. Will estendeu o braço e colocou uma mão
reverente no pescoço do animal.
— Você chegou em boa hora — disse John Smith. — O
fogo está bem quente.
Voltou para dentro da ferraria e encheu uma ou duas
vezes o fole, de modo que o fogo emitiu um grande estalo.
Em seguida, desenganchou uma ferradura de uma parede
escondida pelas sombras mais adiante e colocou-a no calor.
— Olhe bem — disse, estudando o rosto de Will. —
Você nunca viu um eqüino como este antes. Mas não será a
última vez.
— Ela é linda — completou Will, e mais uma vez, a
égua roçou gentilmente seu pescoço.
— Suba — redargüiu o ferreiro.
O menino riu. Seria obviamente impossível; sua
cabeça mal alcançava os ombros do animal, e mesmo se
houvesse um estribo, estaria muito longe do alcance de
seus pés.
— Não estou brincando — disse o ferreiro, e de fato
não parecia o tipo de homem que sorri freqüentemente,
sem falar de fazer brincadeiras. — É um privilégio seu.
Segure na crina que pode alcançar e você verá.
Para fazer a vontade dele, Will estendeu o braço e
passou os dedos das duas mãos nos longos fios da crina do
animal, bem na altura do pescoço. No mesmo instante,
ficou atordoado; sua cabeça zumbia como uma fiação, e por
trás do som, ouviu com bastante clareza, mas muito
distante, aquela frase tocada como um sino que ele ouvira
antes de sair naquela manhã. Gritou. Seus braços se
moviam de forma brusca e estranha; o mundo girava; e a
música desapareceu. Sua mente ainda tentava recobrá-la
desesperadamente quando percebeu que se encontrava
mais perto dos galhos das árvores, cobertos pela neve, do
que jamais estivera antes, sentado bem alto às largas
costas da égua branca. Olhou para baixo, para o ferreiro, e
sorriu alto de prazer.
— Depois que estiver ferrada — disse o ferreiro, — ela
o levará, se pedir.
Subitamente, Will se restabeleceu do torpor,
pensando. Depois alguma coisa conduziu seu olhar através
dos arcos das árvores em direção ao céu, e ele viu duas
gralhas negras batendo as asas preguiçosamente, lá no
alto.
— Não — disse. — Eu acho que preciso ir sozinho. — E
tocou no pescoço da égua, girou suas pernas para um lado,
escorregou para o chão, preparando-se para um impacto.
Mas, percebeu que havia caído suavemente em terra, com
os dedos dos pés na neve. — Obrigado, John. Muito
obrigado. Adeus.
O ferreiro acenou rapidamente com a cabeça, depois
passou a se ocupar do animal, e Will saiu caminhando com
certo desapontamento; esperava uma palavra de despedida
pelo menos. Chegando às árvores, olhou para trás. John
Smith tinha prendido um dos pés da égua entre seus
joelhos, e estendia suas mãos enluvadas para pegar suas
pinças, E o que Will viu em seguida o fez esquecer-se de
qualquer palavra ou despedida. O ferreiro não removeu
nenhuma ferradura velha, ou aparou o casco; aquele animal
nunca havia sido ferrado antes. E a ferradura que estava
sendo preparada para ela, como a fileira das três outras
que podia vislumbrar cintilando sobre o muro mais afastado
da Ferraria, não era uma ferradura, mas algo com outra
forma, uma forma que ele conhecia muito bem. Todas as
quatro ferraduras da égua branca eram réplicas do círculo
quartejado pela cruz que ele usava em seu cinto.

***

Will se afastou estrada abaixo, sob o estreito céu azul.


Colocou a mão dentro de sua jaqueta para tocar o círculo
em seu cinto, e o ferro estava frio como o gelo. Ele
começava a conhecer o significado do objeto, naquele
momento. Não havia qualquer sinal do Cavaleiro, nem era
possível ver a trilha deixada pelas pegadas do cavalo negro.
Por isso, o menino não pensava em encontros malévolos.
Podia apenas sentir que alguma coisa o conduzia cada vez
mais forte em direção ao lugar onde, em seu próprio tempo,
ficava a fazenda dos Dawson.
Encontrou o estreito caminho lateral e fez a curva
para descê-lo. A trilha seguia por um longo trecho,
serpenteando cm curvas suaves. Esta parte da floresta
parecia abrigar um grande matagal; o topo dos galhos das
árvores pequenas e arbustos mostravam a quantidade de
neve acumulada sobre elas, como chifres brancos dos
cervos em suas cabeças. Em seguida, na próxima curva,
Will avistou uma cabana quadrada baixa, com paredes
rudimentarmente revestidas de argila e um telhado alto
com um chapéu de neve; era como uma torta espessa de
gelo. Na entrada, parado irresoluto com uma mão sobre a
porta desconjuntada, encontrava-se o velho mendigo
desgrenhado do dia anterior, com os mesmos longos
cabelos grisalhos, as mesmas roupas e o mesmo o rosto
enrugado e astucioso.
Will se aproximou do velho homem e falou da mesma
maneira como ouvira o fazendeiro Dawson falar, no dia
anterior:
— Então o Andarilho está por aí.
— Somente o único — respondeu o velho. — Eu
apenas. E que relação isso tem com você? — Fungou,
olhando de soslaio para Will e esfregando o nariz na manga
da roupa engordurada.
— Eu quero que me conte algumas coisas —
respondeu Will, mais audacioso do que se sentia
propriamente. — Eu quero saber por que ontem você
esteve andando por aí. Por que estava observando? Por que
as gralhas atacaram você? Eu quero saber — acrescentou
em uma franca urgência repentina — o que quer dizer ser o
Andarilho?
Ao mencionar as gralhas, o velho recuou para dentro
da cabana, seus olhos piscavam nervosamente para o topo
das árvores; mas, neste instante, olhava para Will com uma
desconfiança mais forte do que antes.
— Você não pode ser ele! — disse o homem.
— Não posso ser o quê?
— Você não pode ser... você deveria saber de tudo
isso. Especialmente sobre aqueles pássaros infernais.
Tentando me enganar, hein? Tentando enganar um pobre
velho. Você está com o Cavaleiro, não está? Você é o garoto
dele, não é, hein? Ê claro que não — retrucou Will. — Eu
não sei o que você quer dizer. — E olhou para a cabana
deplorável; o caminho terminara ali, mas mal havia uma
clareira apropriada. As árvores se estendiam próximas, ao
redor deles, escondendo boa parte do sol. De repente, falou
desolado:
― Onde está a fazenda?
― Não tem fazenda nenhuma — respondeu o velho
andarilho impacientemente. — Não ainda. Você deveria
saber.
Fungou novamente de forma brusca e murmurou algo
para si mesmo; então seus olhos se estreitaram e ele
se aproximou de Will, fitando atentamente o rosto do
menino e deixando escapar um cheiro repugnante de suor
velho e de pele, sem asseio. — Mas você poderia sê-lo, você
poderia se estivesse carregando o primeiro sinal que o
Ancião entregou para você. Você o tem aí com você, tem?
Mostre. Mostre o sinal para o velho Andarilho.
Tentando se afastar com dificuldade, em sinal de
repulSA, Will tateou os botões de sua jaqueta. Sabia que
sinal seria esse. Mas enquanto empurrava o couro de cabra
para o lado a fim de mostrar o círculo colocado em seu
cinto, sua mão deslizou pelo ferro liso e o sentiu
queimando, ardente como o gelo; ao mesmo tempo, viu o
velho saltar para trás, encolhendo-se de medo, fitando, não
ele, mas o que havia atrás dele, sobre seus ombros. Will
olhou ao redor e avistou o Cavaleiro ocultado pelo manto,
assentado sobre seu cavalo negro como a noite.
― Bem encontrado — disse o Cavaleiro, calmamente.
O velho gritou como um coelho amedrontado e virando-se
correu, esbarrando nos montes de neves em direção as
arvores. Will permaneceu onde estava, olhando para o
Cavaleiro; seu coração batia tão violentamente que ficou
difícil respirar.
— Não foi prudente sair da estrada, Will Stanton —
disse o homem no manto; seus olhos resplandeciam como
estrelas azuis. O cavalo negro avançou um pouco, e um
pouco mais; Will se encolheu contra a lateral da cabana
esfarrapada, fitando aqueles olhos, e então, com grande
esforço, enfiou o braço entorpecido em sua jaqueta de
modo que o círculo em seu cinto ficasse visível. Segurou o
cinto de lado; a frieza do signo era tão intensa que podia
sentir a força do objeto, como a radiação de um calor
profundo e em chamas. O Cavaleiro parou, e seus olhos
piscaram.
— Então você já tem um deles. — Mexeu os ombros
de forma estranha, e o cavalo sacudiu a cabeça; ambos
pareciam ganhar força e ficar cada vez mais altos. — Um
não o ajudará, não sozinho, não ainda — acrescentou o
Cavaleiro, crescendo, crescendo, eminente contra o mundo
branco, enquanto seu garanhão relinchava
triunfantemente, empinando os seus pés dianteiros e
açoitando o ar. Diante disso, Will podia apenas pressionar
seu próprio corpo contra a parede, inutilmente. Cavalo e
cavaleiro se ergueram sobre ele como uma nuvem negra,
tapando sua visão tanto da neve quanto do Sol.
E então, ele vagamente ouviu novos sons, e a forma
negra pareceu abaixar as patas levantadas, atormentado
pelo esplendor de uma luz áurea, brilhante com a força-
padrão dos círculos fulgurantes das estrelas e do Sol. Will
piscava, e de repente viu que se tratava da égua branca da
ferraria, erguendo por sua vez as patas dianteiras sobre ele.
Agarrou desesperadamente a crina esvoaçante, e assim
como antes, encontrou-se montado num solavanco sobre o
dorso do animal. Curvou-se sobre o pescoço da égua,
agarrando-se em prol da própria vida. A grande égua
branca emitiu um relincho alto e saltou para a trilha através
das árvores, passando pelas nuvens negras sem forma que
permaneciam imóveis na clareira como fumaça, cruzando
tudo em um crescente galope, até que chegaram por fim à
estrada, à Trilha do Vale, a estrada através do Vale do
Caçador.
O movimento da grande égua ficou cada vez mais
lento, mantendo o trote vigoroso, e Will ouvia as batidas do
próprio coração em seus ouvidos, enquanto o mundo
passava voando em um borrão branco. Então, ao mesmo
tempo, as sombras os cercaram, e o Sol escureceu. O vento
irrompia pelo colarinho, mangas e botas do menino,
agitando seus cabelos. Nuvens imensas se aproximavam
rapidamente do norte, fechando-se ao redor deles, enormes
nuvens escuras de tormenta; o céu reverberava e rugia. A
única fresta de névoa branca ainda se encontrava ali, com
um leve indício de azul atrás de si, mas já estava se
fechando, fechando. A égua branca saltou em sua direção,
desesperadamente. Sobre os ombros, Will pôde ver que
investia contra eles uma forma mais escura do que as
nuvens gigantes: o Cavaleiro, erguendo-se, imenso, os
olhos como dois pontos terríveis de fogo branco-azulado.
Relâmpagos e trovões cortavam o céu, e a égua saltou
rumo ao estrondo das nuvens enquanto a última fresta se
fechava.
E ali permaneceram seguros. O céu estava azul sobre
eles e diante deles; o Sol resplandecia, aquecendo a pele
do menino que acabava de perceber que tinham deixado
seu Vale do Tâmisa para trás. Agora, eles se encontravam
entre as encostas inclinadas das colinas de Chiltern,
cobertas por grandes árvores como faias, carvalhos e
freixos. E estendendo-se como fileiras pela neve,
encontravam-se as cercas vivas que eram as marcas de
antigos campos — muito antigos — segundo o que Will
sempre soube; mais antigo do que qualquer coisa neste
mundo, exceto as próprias colinas e as árvores. Então, em
um morro embranquecido, avistou uma marca diferente. A
forma estava talhada pela neve e encoberta no calcário
embaixo do solo; teria sido difícil descobri-la se não fosse
familiar. Mas Will a conhecia. A marca era um círculo,
quartejado por uma cruz.
Então, suas mãos soltaram abruptamente a crina
espessa a que se agarrara firmemente, e a égua branca
emitiu um longo relincho esganiçado que soou alto em seus
ouvidos para então em seguida esmorecer estranhamente
com algo longínquo. Will estava caindo, caindo; porém, não
sentiu nenhum choque com a queda; só percebia que se
encontrava com o rosto na neve. Levantou-se
cambaleando, sacudindo-se. A égua branca já não estava
mais ali. O céu estava claro, e os raios do Sol aqueciam seu
pescoço. Ficou de pé sobre um monte de neve, com um
bosque denso de árvores altas cobrindo toda uma extensão
ainda bem mais adiante, e dois pássaros pretos moviam-se
lentamente de um lado para o outro sobre as árvores.
Diante dele, levando a lugar nenhum, encontravam-
se sozinhos e altaneiros, sobre a encosta embranquecida,
dois portais enormes talhados em madeira.

O DESCOBRIDOR DOS SIGNOS

Will colocou suas mãos frias nos bolsos, e ficou


olhando os painéis talhados das duas portas fechadas que
se erguiam diante dele. Não lhe diziam nada. E não
conseguia encontrar qualquer significado no ziguezague de
símbolos repetidos várias vezes, variações intermináveis,
sobre cada painel. Nunca havia visto uma madeira como
aquela, trincada e fendida, porém polida pelos anos, de
modo que quase não se poderia dizer se era madeira,
exceto por uma curvatura aqui e ali, onde alguém não foi
suficientemente capaz de evitar os vestígios dos nós. Não
fosse por isso, Will teria achado que as portas eram uma
pedra.
Os olhos do menino passearam pelo contorno
enquanto observava, e ele pôde ver que tudo ao redor era
uma agitação de coisas, um movimento como o tremor do
ar sobre uma fogueira ou sobre uma estrada pavimentada
aquecida pelo sol do verão. Porém, não havia diferença de
calor para explicar o que se via ali.
Não havia maçaneta nas portas. Will esticou os
braços à sua frente, deixando a palma de cada mão
encostada sobre as portas, e empurrou. Enquanto se
abriam sob suas mãos, o menino pensava ter ouvido a frase
do sino surgir rapidamente — como uma música
novamente; mas logo parou, na fresta enevoada entre a
memória e a imaginação. Atravessou a entrada e sem um
murmúrio sequer de som, as duas portas enormes se
fecharam atrás dele; e a luz, o dia e o mundo mudaram de
tal modo que o menino se esqueceu totalmente do que
haviam sido.
Encontrava-se agora em um Grande Salão. Não havia
luz do Sol ali. De fato, não havia sequer janelas nas
imponentes paredes de pedra, somente uma série de
fendas bem finas. Entre elas, de ambos os lados, via-se
pendurada uma série de tapeçarias tão estranhas e belas
que podiam cintilar à meia-luz. Will deslumbrou-se com os
animais brilhantes, as flores e os pássaros que foram
tecidos ou bordados ali em ricas cores, como vidro colorido
pela luz do Sol.
Certas imagens lhe saltavam à mente; viu um
unicórnio prateado, um campo de rosas vermelhas, um
reluzente sol dourado. Acima de sua cabeça, a viga
abobadada do telhado mais alto arqueava na sombra;
outras sombras ocultavam o fim do aposento. Prosseguiu
como num sonho, seus pés não faziam barulho sobre os
tapetes de couro de cabra que cobriam o chão de pedra, e
continuou olhando adiante. Tudo ao mesmo tempo faiscava
e o fogo crepitava na escuridão, iluminando uma enorme
lareira situada na parede mais distante; o menino viu
portas, cadeiras de encosto alto e uma pesada mesa
talhada. Nos dois lados da lareira, podia-se avistar a
silhueta de duas pessoas de pé aguardando por ele: uma
velha dama com uma bengala e um homem bem alto.
— Bem-vindo, Will — saudou a velha dama; sua voz
era suave e gentil, porém vibrava pelo salão abobadado
como o som agudo de um sino. Ela estendeu uma mão fina
na direção dele, e a luz do fogo brilhou em um enorme anel
que se projetava como um mármore em cima de seu dedo.
Era muito pequena, frágil como um pássaro e, embora
estivesse ereta e alerta, ao olhar para a mulher, Will tinha a
impressão de que a idade dela era incalculável.
Não podia ver-lhe o rosto. Ficou parado onde estava
e, inconscientemente, sua mão moveu-se discretamente
para o cinto. Depois, a silhueta mais alta do outro lado da
lareira se moveu, curvou-se e acendeu um longo círio no
fogo e, indo em seguida até a mesa, começou a colocá-lo
em um círculo de velas compridas que estavam ali. A luz da
chama amarela esfumaçante passeava pelo rosto dele. Will
pôde perceber a cabeça de ossatura forte com olhos
profundos e nariz arqueado, como o bico de um falcão;
volumosos cabelos brancos e ouriçados emergiam da fronte
altiva, deixando aparentes as sobrancelhas cheias e o
queixo sobressalente. E embora não soubesse o motivo,
enquanto olhava para as linhas misteriosas e severas
daquele rosto, o mundo que ele havia habitado desde que
nascera pareceu rodopiar, romper e atingir novamente
padrões que não eram os mesmos de antes.
Endireitando-se, o homem alto olhou-o através do
círculo de velas reluzentes sobre a mesa, dentro de uma
moldura semelhante à do aro de um pneu furado. Sorriu
discretamente; a boca sombria inclinava-se nos cantos, e
um repentino leque de linhas franzia cada lado de seus
olhos profundos. Ele apagou o círio queimado com um
sopro ligeiro.
— Venha, Will Stanton — disse, e a voz profunda
também parecia saltar na memória do menino. — Venha e
aprenda. E traga essa vela com você.
Confuso, Will olhou ao redor. Perto de sua mão direita,
encontrou um suporte de ferro forjado escuro, da mesma
altura dele, erguendo-se em três pontos; dois desses pontos
tinham no topo uma estrela de cinco pontas de ferro e o
terceiro, um castiçal com uma fina vela branca. Levantou a
vela, pesada o suficiente para necessitar das duas mãos, e
atravessou o salão até os dois vultos que o esperavam na
outra extremidade. Piscando com a luz, viu quando se
aproximou deles que o círculo de velas sobre a mesa não
era uma círculo completo afinal; um orifício de encaixe
encontrava-se vazio. Debruçou-se sobre a mesa, segurando
os lados lisos inflexíveis da vela, e acendeu-a com a chama
das outras ali dispostas, fixando-lhe cuidadosamente no
orifício vazio. Fez o mesmo com o restante. Eram velas
muito estranhas, irregulares em largura, mas frias e rígidas
como o mármore branco; elas queimavam com uma longa
chama brilhante e sem fumaça e exalavam um perfume
ligeiramente impregnante, como os pinheiros.
Foi somente quando se voltou para se colocar de pé
que Will percebeu os dois braços de ferro cruzados dentro
do anel do castiçal. Aqui mais uma vez, como todo lugar,
havia um signo: a cruz dentro do círculo, a esfera
quartejada. Era possível ver agora outros encaixes para
velas na moldura: duas ao longo de cada braço da cruz, e
uma no ponto central onde eles se encontravam. Mas estes
ainda estavam vazios.
A velha dama relaxou, e sentou-se na cadeira de
encosto alto ao lado da lareira.
— Muito bem — disse confortavelmente, com aquela
mesma voz musical. — Obrigada, Will.
Sorriu, sua face pregueada como uma teia de rugas; e
Will sorriu incondicionalmente de volta. Não sabia por que
estava repentinamente tão feliz; e parecia tão natural para
ser questionado. Ele se sentou em um banco que estivera
ali claramente aguardando por ele, em frente ao fogo, entre
as duas cadeiras.
— As portas — disse ele —, as grandes portas pelas
quais passei, como podem elas permanecer ali por si
mesmas?
— As portas? — perguntou a dama.
Alguma coisa em sua voz fez Will se voltar para trás,
sobre os ombros, para a parede na outra extremidade de
onde acabara de vir: a parede com as duas portas altas, e o
orifício do qual ele havia tirado a vela. Olhou; havia algo
errado. As grandes portas de madeira tinham desaparecido.
A parede acinzentada se estendia em branco, suas maciças
pedras quadradas estavam quase descaracterizadas,
exceto por um escudo dourado redondo, solitário,
pendurado bem no alto, cintilando opacamente na luz do
fogo.
O homem alto riu suavemente.
— Nada é o que parece, garoto. Espere nada e não
tema nada, aqui ou em qualquer outro lugar. Eis a sua
primeira lição. E eis seu primeiro exercício... Então, nós
temos diante de nós Will Stanton; diga-nos, o que tem
acontecido com ele nestes últimos dois dias.
Will olhou as chamas insistentes, quentes e bem-
vindas em seu rosto naquele ambiente gelado. Foi
necessário grande esforço para levar sua mente de volta ao
momento quando ele e James saíram de casa em direção à
fazenda dos Dawson para buscar feno — feno! — na tarde
de ontem. Ele pensou, desconcertado, sobre tudo o que
ocorrera entre aquele momento e o presente. Depois de um
tempo:
— O signo. O círculo com a cruz. Ontem o sr. Dawson
deu-me o signo. Depois, o Andarilho me perseguiu, ou
tentou, e depois disso eles, seja lá quem for e se são eles,
tentaram me pegar. — Engoliu seco, sentindo frio ao se
lembrar do medo que vivera à noite. — Para pegar o signo.
Eles o querem, só se trata disto. É por isso que hoje é dessa
maneira, mesmo assim é muito mais complicado, pois
agora não é agora, é outro tempo, eu não sei quando. Tudo
é como um sonho, mas real... Eles ainda o procuram. Eu
não sei quem são, exceto o Cavaleiro e o Andarilho. Eu não
conheço vocês também, só sei que são contra eles. Vocês,
o sr. Dawson e John Wayland Smith.
Parou.
— Continue — disse a voz profunda.
— Wayland? — continuou Will, perplexo. — É um
nome estranho. Não faz parte do nome de John. O que me
fez dizer isto?
— As mentes guardam mais do que sabem — disse o
homem alto. — Particularmente a sua. E o que mais tem a
dizer?
— Eu não sei — respondeu Will. Ele olhava para baixo
e deslizava um dedo pela borda de seu banco que havia
sido talhado em suaves ondas regulares, como um mar
tranqüilo. — Bem, sim, eu tenho. Duas coisas. Uma é sobre
algo engraçado com relação ao Andarilho. Eu não acho que
ele seja um deles, já que tremeu de medo do Cavaleiro
quando o viu, e fugiu.
— E a outra coisa? — perguntou o homem.
Em algum lugar nas sombras do Grande Salão soou
um relógio, com uma nota grave como um sino abafado:
uma única nota, de meia hora.
— O Cavaleiro — acrescentou Will. — Quando o
Cavaleiro viu o signo, disse: "Então você já tem um deles".
Ele não sabia que eu o tinha. Mas ele me perseguiu. Veio
atrás de mim. Por quê?
— Sim — disse a velha dama. Ela o olhava de maneira
bastante triste. — Ele estava perseguindo você. Temo que a
suposição de sua mente esteja correta, Will. Não é o signo
que eles querem acima de tudo. É você.
O homem alto se levantou, passou por trás de Will, e
colocou uma mão sobre o encosto da cadeira da velha
dama e a outra no bolso do paletó escuro de gola alta que
vestia.
— Olhe para mim, Will — pediu ele. A luz do anel
ardente das velas sobre a mesa brilhava em seus cabelos
brancos; depois os olhos indistinguíveis e taciturnos
tornaram-se ainda mais sombrios, como um poço de
escuridão em seu rosto magro. — Meu nome é Merriman
Lyon — disse. ― Receba meus cumprimentos, Will Stanton.
Estivemos esperando por você há muito tempo.
— Eu conheço você — disse Will. — Quero dizer...
você parece... eu senti que... não conheço você?
― Em certo sentido — respondeu Merriman. — Você e
eu somos, podemos dizer, semelhantes. Nós nascemos com
o mesmo dom, e pelo mesmo importante propósito. E você,
Will, está aqui neste momento, para começar a
compreendei qual é este propósito. Mas, primeiro, deverá
ser ensinado a respeito de seu dom.
Tudo parecia se mover para muito longe, e muito
rápido. — Eu não entendo — disse Will, observando
alarmado o rosto forte e determinado. — Eu não tenho dom
nenhum, de verdade, eu não tenho. Quero dizer, eu não
lenho nada de especial. — Olhava de um para o outro, as
silhuetas alternadamente iluminadas e ocultadas pela
dança das chamas das velas e do fogo, e começou a sentir
o medo crescer, um sentimento de estar caindo numa
armadilha. E disse: — Apenas as coisas que têm acontecido
comigo, só isso.
— Tente recordar, e lembre-se de alguma destas
coisas — pediu a velha dama. — Hoje é seu aniversário. Dia
de solstício de inverno, seu décimo primeiro dia de solstício
de inverno. Pense sobre ontem, sua décima véspera de
solstício de inverno, antes de ver o signo. Não houve algo
de especial, então? Nada novo?
Will pensava. — Os animais tinham medo de mim —
informou relutantemente. — E os pássaros talvez. Mas não
parecia significar alguma coisa naquele momento.
— E se você tivesse um rádio ou uma televisão ligada
em sua casa? — perguntou Merriman. — Por acaso, os
aparelhos agiam de modo estranho quando passava perto
deles?
Will o olhava atentamente. — O rádio realmente
ficava fazendo uns ruídos. Como você sabe disso? Eu
achava que era uma coisa magnética ou outra coisa.
Merriman sorriu. — De certo modo. De certo modo. —
E então ficou sério novamente. — Ouça agora. O dom do
que falo é um poder que mostrarei a você. É o poder dos
Anciãos , que são tão antigos quanto esta terra e até
mesmo mais antigos do que ela. Você nasceu para herdá-lo,
Will, quando chegasse ao final de seu décimo ano. Na noite
que antecedeu o seu aniversário, o dom começou a
despertar e agora, no dia do seu aniversário, já está livre,
desabrochou, completamente desenvolvido. Mas ainda está
confuso e não canalizado, pois você não tem o controle
apropriado disto, ainda. Deve ser treinado para lidar com
ele, até que possa tomar sua devida forma e cumprir a
busca pela qual você está aqui. Não fique tão nervoso,
garoto. Levante-se. Eu lhe mostrarei o que seu dom pode
fazer.
O garoto se levantou, e a velha dama lhe sorriu de
modo incentivador. E Will perguntou-lhe de repente: —
Quem é você?
— A dama — começou Merriman.
A dama é muito velha — disse ela em sua clara voz
juvenil — e tinha em seu tempo muitos, muitos nomes.
Talvez fosse melhor por agora, Will, que você pensasse em
mim apenas como a velha dama.
— Sim, senhora — aceitou Will, e ao som da voz dela,
a felicidade dele transbordava novamente, o crescente
alarme se desfez, e o menino ficou ereto e ansioso, olhando
as sombras atrás da cadeira para onde Merriman tinha
retrocedido alguns passos. Ele podia enxergar o brilho dos
cabelos brancos do vulto alto, nada mais.
A voz profunda de Merriman surgiu das sombras: —
Fique parado. Olhe o que quiser ver, mas não muito, não se
concentre em nada. Deixe sua mente divagar, finja que
está entediado na escola.
Ele riu, e ficou ali, relaxado, inclinando sua cabeça
para trás. Sem preocupação, olhou de soslaio, tentando
distinguir entre as vigas negras cruzadas em forma de cruz
no Alto do telhado e os contornos escuros de suas sombras.
Merriman disse com naturalidade: — Estou colocando
uma imagem em sua mente. Diga-me o que vê.
A imagem se formou na mente do menino tão natural
mente como se tivesse decidido pintar uma paisagem
imaginaria e estivesse tentando visualizá-la antes de
colocar no papel. E então falou, descrevendo os detalhes
como se lhe apareciam.
— Vejo uma encosta verdejante, acima do mar, como
um tipo de penhasco moderadamente inclinado. O céu é
muito azul, e o fundo do mar possui uma tonalidade de azul
ainda mais escura. Bem mais adiante, bem mais abaixo, lá
onde o mar se encontra com a terra, há uma faixa de areia,
uma areia dourada agradavelmente reluzente. E na terra,
desde o verdejante promontório, estão as colinas, colinas
enevoadas; não se pode avistá-las daqui, exceto pelo canto
de seu olho. Elas são um tipo de roxo suave, e suas
extremidades se dissolvem em uma névoa azulada, do
mesmo modo que as cores numa pintura se dissolvem em
outra cor se molharmos o quadro. E... — o menino saiu de
seu estado semiconsciente de visão e olhou fixamente para
Merriman, observando com atenção as sombras com um
interesse inquisitivo. — É uma imagem triste. Você sente
falta de lá, você sente falta de casa, seja ela onde for. Onde
é?
— Basta — completou Merriman apressadamente,
mas ele parecia satisfeito. — Você foi bem. Agora, é sua
vez. Dê-me uma imagem, Will. Apenas escolha alguma cena
comum, qualquer coisa, e pense com o que ela se parece,
como se estivesse olhando para ela.
Will pensou na primeira imagem que lhe surgiu na
cabeça. Era a mesma imagem, percebia agora, com a qual
estivera se preocupando no fundo de seus pensamentos
durante todo esse tempo: a imagem das duas grandes
portas, isoladas sobre a encosta coberta de neve, com
todas as suas gravuras intricadas, e o estranho borrão em
suas extremidades.
Merriman disse ao mesmo tempo: — As portas não.
Nada tão perto. Algum lugar de sua vida antes do inverno
chegar.
Por um segundo, Will o fitou, desconcertado; em
seguida, engoliu seco, fechou os olhos e pensou na
joalheria que seu pai dirigia na pequena cidade de Eton.
Merriman lentamente retomou a palavra: — A
maçaneta da porta é um tipo de alavanca, como uma barra
redonda, para ser empurrada para baixo, talvez dez graus
de abertura. Uma pequena campainha toca enquanto a
porta se move. Você desce alguns centímetros para tocar o
chão, e o solavanco da descida é surpreendente sem ser
perigoso. Há vitrines de vidro em todas as paredes ao redor,
e embaixo do balcão de vidro... é claro, só pode ser a loja
do seu pai. Com lindas coisas em seu interior. Um relógio do
avô, muito antigo, no canto do fundo, com uma face
pintada e um tique profundo e lento. Um colar azul-
turquesa exibido na vitrine central com um conjunto de
serpentes de prata: trabalho Zuni, penso eu, muito distante
de casa. Um pingente de esmeralda como uma grande
fenda verde. Um pequeno modelo encantador de um
castelo medieval dos Cruzados, em ouro... talvez num
saleiro... do qual você deve ter gostado muito, acho, desde
que era um garotinho. E aquele homem atrás do balcão,
baixo, satisfeito e gentil, deve ser o seu pai, Roger Stanton.
É interessante vê-lo tão claramente afinal, sem nenhum
impedimento... Está usando óculos de relojoeiro, e observa
um anel: um antigo anel de ouro com nove pedras
minúsculas fixadas em três filas, três de diamante no
centro, três rubis de cada lado, e uma curiosa escrita rúnica
as cercando... acredito que devo olhá-las mais perto
futuramente.
― Você viu até o anel! — disse o garoto, fascinado. —
É ― O anel da minha mãe. Papai o estava examinando na
última vez que estive na loja. Ela achava que uma das
pedras havia le perdido, mas ele disse que se tratava de
uma ilusão de ótica... Mas, você faz isso?
― Faço o quê? — Havia uma leveza sinistra na voz
profunda.
― Bem, aquilo. Colocar uma imagem na minha mente.
E então vê aquele que eu tenho comigo. Telepatia, não é
assim que se chama? É fantástico. — Mas um mal-estar
começava a surgir em sua mente.
— Muito bem — disse Merriman com impaciência. —
Eu lhe mostrarei de outra maneira. Há um círculo de velas
ali ao seu lado, sobre a mesa, Will Stanton. Agora... você
conhece qualquer maneira possível de apagar alguma
daquelas chamas, além de soprar, respingar água, abafar
ou colocar a mão sobre elas?
— Não.
— Não. E não há. Mas vou contar uma coisa. Você,
por causa de quem você é, pode fazer isso simplesmente
desejando que aconteça. Pois para o dom que possui, esta é
uma tarefa das mais simples, na realidade. Se em sua
mente você escolher urna destas chamas e pensar nela
sem mesmo olhá-la e dizer-lhe para se apagar, então a
chama se apagará. E isso é algo possível a qualquer garoto
normal?
— Não — disse Will de forma triste.
— Faça — ordenou Merriman. — Agora.
Houve um momento de silêncio no salão, pesado
como veludo. Will podia sentir que os dois o observavam.
Pensava desesperadamente: Apagarei a vela, pensarei na
chama, mas não será uma daquelas; será algo maior,
alguma coisa que não poderia ser apagada exceto por uma
mágica fantástica e impossível, que mesmo Merriman não
conhece... Olhou ao redor, para a luz e as sombras
dançando lado a lado na rica tapeçaria sobre as paredes de
pedra, e pensou com afinco, em uma concentração furiosa,
na imagem da lenha de fogo queimando na enorme lareira
atrás de si. Sentia o calor da madeira na parte de trás de
seu pescoço; pensava no centro alaranjado cintilante da
grande pilha de lenha e nas línguas de fogo amareladas e
crepitantes. Apague-se, fogo, ordenava em sua mente,
sentindo-se seguro e livre dos riscos do poder, pois é claro
que nenhum fogo tão grande quanto aquele poderia
possivelmente se apagar sem uma verdadeira razão. Pare
de queimar, fogo. Apague-se.
E o fogo se apagou.
De repente, o quarto ficou frio e mais escuro. O anel
das chamas das velas sobre a mesa continuou queimando,
na pequena e fria reserva de sua própria luz. Will virou-se,
fitando consternado a lareira; não havia sequer vestígio de
fumaça, ou água, ou qualquer coisa com a qual o fogo
poderia ter se extinguido. Mas estava bem extinto, frio e
negro, sem qualquer faísca. O menino se moveu naquela
direção, vagarosamente. Merriman e a velha dama não
diziam uma palavra, e não se mexiam. Will se curvou e
tocou as lenhas enegrecidas na lareira; estavam frias como
pedras, porém incrustadas com a camada de cinzas novas
que caíram dentre os dedos em um pó esbranquiçado.
Levantou-se, esfregando as mãos lentamente para cima e
para baixo em sua calça, depois olhou impotente para
Merriman. Os olhos profundos do homem queimavam como
as chamas escuras da vela, mas havia compaixão neles. Em
seguida, Will olhou nervosamente para a velha dama;
percebeu um tipo de ternura em sua face também, e ela
disse gentilmente: — Está um pouco frio, Will.
Por um período infinito de tempo que não durou mais
do que um formigamento de nervos, Will sentiu uma
centelha gritante de pânico, a lembrança do medo que
tivera no pesadelo noturno durante a tempestade de neve;
mas, em seguida, acabou e, na paz de seu
desaparecimento, sentiu que de alguma maneira estava
mais forte, maior, mais relaxado. Sabia que de algum modo
havia aceitado o poder, seja lá o que fosse, a que estava
resistindo, e sabia o que deveria fazer. Tomando fôlego,
mexeu os ombros e se posicionou firme e ereto onde estava
no Grande Salão. Sorriu para a velha dama; depois passou a
olhar o nada, concentrando-se na imagem do fogo. Volte,
fogo, dizia ele em sua mente. Queime novamente. E logo a
luz estava dançando sobre a tapeçaria das paredes mais
uma vez; e a sensação do calor das chamas voltava a ser
sentida atrás de seu pescoço, e o fogo queimava.
— Obrigada — disse a velha dama — Muito bem! —
Merriman concluiu com suavidade, e Will sabia que ele não
falava apenas da extinção e do reacendimento do fogo.
— Trata-se de um fardo — disse Merriman. — Não se
engane quanto a isso. Todo grande dom, poder ou talento é
um fardo, e este mais do que qualquer outro. Você com
freqüência desejará se livrar dele. Mas não há nada que se
possa fazer. Se nascer com o dom, então deve servi-lo, e
nada neste mundo ou fora dele pode ficar no caminho deste
serviço, pois foi para isso que nasceu e esta é a Lei. E é
assim mesmo, jovem Will; você faz apenas uma leve idéia
do dom que está em seu interior, pois até as primeiras
experiências do aprendizado acabarem, você correrá
grande perigo. E quanto menos souber do sentido de seu
poder, melhor será para protegê-lo, como aconteceu nestes
últimos dez anos.
Ele olhava fixamente para o fogo durante um
momento, com o cenho franzido.
— Devo contar-lhe apenas isto: você é um dos
Anciãos, o primeiro que nasceu em quinhentos anos, e o
último. E como todos eles, está destinado por natureza a
devotar-se ao longo conflito existente entre a Luz e as
Trevas. Seu nascimento, Will, completou o círculo que
estava se desenvolvendo durante quatrocentos anos nas
partes mais antigas desta terra: o círculo dos Anciãos.
Agora que descobriu o seu poder, sua tarefa é tornar esse
círculo indestrutível. É sua busca encontrar e guardar os
seis grandes Signos da Luz, produzidos durante séculos
pelos Anciãos, para serem reunidos em poder somente
quando o círculo estiver completo. O primeiro signo já se
encontra em seu cinto, mas para encontrar os restantes
não será fácil. Você é o Descobridor dos Signos, Will
Stanton. Este é o seu destino, sua primeira busca. Se puder
realizar isto, poderá trazer à vida uma das três grandes
forças que os Anciãos deverão instigar, em breve, para
vencer os poderes das Trevas que estão se estendendo
agora constante e furtivamente por todo este mundo.
O ritmo de sua voz, que se elevava e decrescia em
um padrão crescentemente formal, mudara subitamente
para um tipo de clamor de guerra cantado, um chamado —
pensou Will, com um calafrio percorrendo sua pele — para
coisas além do Grande Salão e além do tempo do chamado.
— Pois as Trevas, as Trevas estão se rebelando. O
Andarilho está por aí, o Cavaleiro está cavalgando; eles
acordaram, as Trevas estão se rebelando. E o último do
Círculo já chegou para reivindicar o seu, e os círculos
devem ser reunidos agora. A égua branca deve encontrar o
Caçador , e o rio deve tomar o vale; deve haver fogo na
montanha, fogo sob a pedra, fogo sobre o mar. Fogo para
queimar as Trevas para sempre, pois as Trevas, as Trevas
estão se rebelando!
Ele permaneceu ali, alto como uma árvore no
aposento assombreado, sua voz profunda soava como um
eco, e Will não conseguia tirar os olhos dele. As Trevas
estão se rebelando. Era exatamente daquela maneira que
ele se sentira na noite passada. Era o que ele começava a
sentir agora novamente, uma consciência sombria do mal
formigando na ponta de seus dedos e pela sua espinha;
mas pela própria vida, ele não poderia pronunciar uma só
palavra. Merriman dizia, em um tom de canção que soava
estranho em vista de sua silhueta enorme, como se fosse
uma criança recitando:
Quando as Trevas se rebelarem, seis devem
fazê-la recuar,
Três do círculo, três da trilha;
Madeira, bronze, ferro, água, fogo e pedra;
Cinco retornarão, e um deve sozinho continuar.
Então saiu das sombras, passou pela velha dama,
assentada serena e com olhos brilhantes em sua cadeira de
encosto alto; com uma das mãos, Merriman retirou uma das
espessas velas brancas do anel em chamas, e com a outra
conduziu Will em direção às altas paredes laterais.
— Olhe bem, em cada momento, Will — disse ele. —
Os Anciãos mostrarão algo de si mesmos, e lembrarão a
sua parte mais profunda. Por um momento, olhe cada um.
— E com o menino ao seu lado, ele atravessou o salão a
passos largos, segurando a vela no alto para cada tapeçaria
da parede. A todo o momento, como se fosse ordenado,
uma imagem viva reluzia por um instante de cada motivo
bordado, tão viva e profunda quanto uma imagem
iluminada pelo Sol através de uma janela. E o garoto viu.
Ele viu uma árvore de maio branca em floração,
crescendo do telhado de sapê de uma casa. Viu quatro
pedras acinzentadas enormes sobre o verde promontório
acima do mar. Viu o crânio branco sem olhos de um cavalo,
com um único chifre espesso, porém quebrado, na fronte
óssea, e fitas vermelhas cingindo as longas mandíbulas. Ele
viu relâmpagos atingindo uma enorme faia e, depois do
lampejo, vislumbrou um grande fogo queimando uma
encosta sem vegetação sob o céu escuro.
Viu ainda o rosto de um garoto, apenas um pouco
mais velho que ele, observando curiosamente o seu: um
rosto sombrio embaixo dos cabelos escuros raiados de luz;
seus olhos eram estranhos como os de um gato, as pupilas
claras nas bordas, mas quase amareladas em seu interior.
Viu também um rio vasto transbordante e ao lado um
homem velho cheio de rugas curvado sobre um enorme
cavalo. Enquanto Merriman o conduzia inexoravelmente de
uma imagem a outra, avistou, num lampejo de terror, a
imagem mais iluminada de todas: um homem mascarado
com uma face humana, a cabeça de um veado, os olhos de
uma coruja, os ouvidos de um lobo e o corpo de um cavalo.
A figura saltou, puxando alguma lembrança perdida no
fundo de sua mente.
— Lembre-se deles — disse Merriman. — Eles serão
poder.
Will aquiesceu, ficando tenso logo depois. De repente,
ouviu ruídos que ficavam cada vez mais altos do lado de
fora do salão e soube com um choque de certeza terrível o
motivo que o levara a sentir aquele desconforto um pouco
antes. Enquanto a velha dama permanecia imóvel em sua
cadeira, e ele e Merriman ficavam novamente do lado da
lareira, o Grande Salão foi envolvido repentinamente com
uma mistura horrenda de lamentações, murmúrios e
gemidos estridentes, como o de vozes enjauladas em um
zoológico malévolo. Era o som mais puramente grotesco
que ele já ouvira.
O cabelo se eriçou na parte de trás do pescoço do
menino, e então, subitamente, veio o silêncio. Uma lenha
caiu, estalando, no fogo. Will ouvia a pressão sangüínea em
suas veias. E invadindo o silêncio, um novo som surgiu de
algum outro lugar do lado de fora, além das paredes mais
afastadas: de desconsolo, de ganidos suplicantes de um
cão abandonado, gritos de pânico por socorro e afabilidade.
Era exatamente como faziam Raq e Ci, seus cães, quando
eram filhotinhos, latindo por conforto na escuridão; Will se
sentiu amolecer em compaixão, e virou-se instintivamente
na direção do som.
— Ai, onde é isto? Pobre coitadinho.
Enquanto ele olhava para as paredes de pedra vazias
ao longe, viu uma porta tomar forma no lugar. Não era uma
porta como aquelas enormes desaparecidas pelas quais ele
havia entrado, mas bem menores; uma porta estranha,
pequena, apertada, que parecia destoar totalmente do
lugar. Mas ele sabia que poderia abri-la para ajudar o
suplicante animal. O cão ganiu novamente revelando uma
penúria ainda pior; mais alto, ainda mais suplicante, em um
desesperado uivo. Will se virou impulsivamente para correr
até a porta; mas foi paralisado no meio do passo pela voz
de Merriman, suave, mas fria como uma pedra no inverno.
— Espere. Se você visse a forma desse pobre e triste
cão, ficaria grandemente surpreso. E seria a última coisa
que veria em sua vida.
Incrédulo, Will parou e aguardou. O ganido cessou
novamente, em um último e longo uivo. E o silêncio voltou
por um momento. Então, subitamente, ouviu a voz de sua
mãe atrás da porta.
— Will? Wiiiiill... Venha, ajude-me, Will! — Sua voz era
inconfundível e cheia de uma emoção desconhecida: havia
nela um tom de pânico quase controlado que o aterrorizava.
E soou novamente. — Will? Preciso de você... Onde você
está, Will? Ai, por favor, Will, venha e ajude-me. — E então
uma pausa infeliz, como um soluço.
Ele não conseguia suportar. Deu um impulso e correu
em direção à porta. A voz de Merriman ecoou atrás dele
como um açoite.
— Pare!
— Mas eu devo ir, não consegue ouvi-la? — gritou o
menino irritadamente. — Eles pegaram a minha mãe: eu
tenho que ajudar.
— Não abra essa porta! — Havia um indício de
desespero na voz profunda que falava com Will, através do
instinto, de que em último caso Merriman seria incapaz de
detê-lo.
— Não é sua mãe, Will — a velha dama disse
claramente.
— Por favor, Will! — a voz de sua mãe implorava.
— Estou indo! — alcançou a pesada tranca da porta,
mas com a pressa cambaleou, batendo-se contra o enorme
castiçal de modo que seu braço foi luxado de um lado.
Sentindo uma repentina dor no antebraço, gritou e caiu ao
chão encarando a parte interna do pulso onde o signo do
círculo quartejado foi marcado agonizantemente como uma
mancha vermelha em sua pele. Mais uma vez, o símbolo do
ferro em seu cinto o atingiu com seu intenso toque gelado;
a pele queimou desta vez com a temperatura do frio
extremo, em um furioso alerta resplandecente contra a
presença do mal — a presença que Will havia sentido, mas
esquecido. Merriman e a velha dama ainda não se mexiam.
O menino se levantou pisando em falso e continuou
ouvindo, enquanto do lado de fora da porta a voz de choro
de sua mãe tornou-se furiosa e ameaçadora, para, em
seguida, suavizar-se novamente, persuasiva e bajuladora; e
então, finalmente, cessou desaparecendo em um soluço
que o dilacerava, embora sua mente e razão lhe dissessem
que não era real.
E a porta desapareceu com ela, desmanchando como
a névoa, até que a parede de pedra acinzentada ficasse
sólida e intacta como antes. Do lado de fora, o terrível coro
inumano de gemidos e lamentações recomeçaram.
A velha dama ficou de pé e atravessou o salão; seu
longo vestido verde farfalhava suavemente a cada passo.
Ela segurou o antebraço machucado do menino em suas
mãos e colocou a palma fria de sua mão direita sobre ele,
deixando-o logo depois. A dor no braço desapareceu, e
onde houvera a mancha vermelha de queimado que tinha
visto encontrava-se agora uma pele lustrosa e sem pêlos,
pois também havia sido curada. Mas o formato da cicatriz
era bem nítido, e ele sabia que o carregaria até os últimos
dias de sua vida.
Era como uma marca. Os ruídos do pesadelo além
das paredes cresciam e diminuíam em ondas irregulares.
Sinto muito — disse Will lamentando-se. - Estamos
cercados, como pode ver — disse Merriman, avançando
para se juntar a eles. — Eles esperam obter controle sobre
você enquanto ainda não desenvolveu todo o seu poder. E
isso é apenas o início do perigo, Will. Por todo este solstício
de inverno, o poder deles se tornará cada vez mais forte, e
a Velha Magia só será capaz de mantê-los à distância na
véspera do Natal. Porém, mesmo depois do Natal, o poder
continuará crescendo, sem perder sua força máxima até o
Décimo Segundo Dia. A Décima Segunda Noite já foi certa
vez o Dia do Natal e, antes disso, há muito tempo, era o
principal festival de inverno de nosso tempo antigo.
— O que acontecerá? — perguntou Will.
— Devemos pensar apenas naquilo que devemos
fazer — disse a velha dama. — E a primeira é libertá-lo do
círculo do poder sombrio que ainda paira ao redor deste
salão.
Merriman disse, ouvindo atentamente: — Fique alerta.
Contra tudo. Eles falharam com uma emoção; mas tentarão
enganá-lo com alguma outra da próxima vez.
— Mas não tema — disse ela. — Lembre-se disso, Will.
Com freqüência você sentirá medo. No entanto, nunca se
deixe intimidar. Os poderes das Trevas podem realizar
muitas coisas, mas não podem destruir. Eles não podem
matar os que pertencem à Luz. A não ser que obtenham
uma dominação final sobre toda a Terra. E é tarefa dos
Anciãos, sua tarefa e nossa, impedir isto. Então, não deixe
que eles lhe coloquem medo e desespero.
Ela continuou dizendo mais coisas, mas sua voz foi
abafada como uma rocha submersa em ondas da maré alta,
quando o horrível coro que lamentava e chorava do lado de
fora das paredes soou mais alto, rápido e irritadiço, em uma
cacofonia de gritos estridentes e risos sobrenaturais, gritos
de terror e gargalhadas de alegria, uivos e rugidos.
Enquanto Will ouvia, sua pele se arrepiava e transpirava
cada vez mais.
Como num sonho, ouviu a voz grave de Merriman
ecoar através do barulho terrível chamando por ele. Ele não
teria se movido se a velha dama não lhe tivesse tomado as
mãos, conduzindo-o pelo aposento, de volta à mesa e à
lareira, a única cavidade de luz naquele salão escuro.
Merriman falava próximo ao seu ouvido, rápido e insistente.
— Sustente o círculo, o círculo da luz. Fique de costas
para a mesa, e segure nossas mãos. É uma união que eles
não podem romper.
Will permaneceu ali, com os braços bem estendidos,
enquanto fora de vista, ao seu lado, cada um deles
segurava uma de suas mãos. A luz do fogo na lareira
apagou, e ele ficou consciente de que logo atrás as chamas
do círculo de velas sobre a mesa ficaram mais altas,
gigantescas, tão altas que, ao virar sua cabeça, pode vê-las
se elevando bem acima de si, em um pilar branco de luz.
Não havia calor nesta enorme árvore de chamas, e embora
irradiasse com grande brilho, não lançava qualquer luz
além da mesa. Will não podia ver o restante do salão, nem
as paredes nem as pinturas nem qualquer porta. Ele não
enxergava nada além da escuridão, um vasto vazio negro
de uma terrível noite eminente.
Eram as Trevas, rebelando-se, rebelando-se para
tragar Will Stanton antes que ele pudesse se fortalecer o
suficiente para lhes causar dano. À luz das velas estranhas,
Will segurava firmemente os dedos frágeis da velha dama e
o pulso como madeira vigorosa de Merriman. O grito das
Trevas crescia atingindo seu auge de forma intolerável, era
um ganido triunfante; e Will soube sem olhar que diante
dele, na escuridão, o grande garanhão negro tinha
empinado suas patas dianteiras como havia feito do lado de
fora da cabana ao bosque, com o Cavaleiro aguardando
para o abater, caso os cascos recém-ferrados não fizessem
o trabalho. E nenhuma égua branca naquele momento
poderia surgir do céu para socorrê-lo.
Ele ouviu o grito de Merriman.
— A árvore de chamas, Will! Ataque com as chamas!
Como você ordenou ao fogo, ordene à chama, e ataque!
Em desesperada obediência, Will encheu toda a sua
mente com a imagem do grande círculo de altas, altas
chamas atrás de si, crescendo como uma árvore branca e,
enquanto fazia isso, sentia a mente de seus dois
companheiros fazendo o mesmo; sabia que os três juntos
poderiam realizar mais do que ele jamais imaginou. Sentiu
certa pressão de cada mão que o segurava, e concentrou-
se na coluna de luz, sacudindo-a como se fosse um chicote
gigante. Acima de sua cabeça, surgiu um vasto clarão de
luz branca, enquanto as altas chamas se erguiam para a
frente e para baixo em um parafuso de luzes, e logo se
ouviu um tremendo grito da escuridão mais além, quando
algo — o Cavaleiro, o garanhão negro, ambos — apostatou,
abandonou, prosternou, eternamente prosternou.
E no vazio da escuridão diante deles, enquanto ele
ainda piscava os olhos ofuscados, encontravam-se as duas
grandes portas de madeira pelas quais o menino havia
entrado no salão.
No silêncio repentino, Will ouviu a si mesmo gritando
triunfante. Então, saltou à frente, ficando livre das mãos
que lhe seguravam, para correr até as portas. Ambos,
Merriman e a velha dama gritaram em alerta, mas era tarde
demais. Will quebrara o círculo, ele estava sozinho. Tão logo
percebeu isso, o menino se sentiu atordoado e pasmo,
segurando a cabeça, enquanto um som estranho começava
a grunhir em seus ouvidos. Forçando suas pernas a se
moverem, ele deu um impulso até as portas, inclinou-se
contra elas e as golpeou debilmente com os punhos. Elas
não se moveram. O som sinistro em sua cabeça aumentou.
Ele viu Merriman movendo-se até ele, caminhando com
grande esforço, inclinando-se para a frente como se
estivesse lutando contra o vento forte.
— Que tolice — dizia Merriman ofegante. — Que
tolice, Will. — Agarrou as portas e as golpeou, empurrando
para a frente com a força de seus dois braços de modo que
as veias laterais em sua fronte apareceram sob a pele como
um arame espesso; e enquanto fazia isto, ergueu a cabeça
e bradou uma longa frase de ordenança que Will não
compreendia. Mas as portas não se moveram, e o menino
sentiu a fraqueza lhe abater, como se fosse um boneco de
neve derretendo ao Sol.
O que o despertou, logo quando estava começando a
mergulhar em um tipo de transe, foi algo que nunca seria
capaz de descrever, ou mesmo de lembrar-se muito bem.
Era como o fim da dor, como a mudança do desacordo para
a harmonia, como o alívio para os ânimos que se pode
sentir repentinamente no meio de um dia chuvoso e
monótono, algo incalculável até que se perceba que o Sol
começara a brilhar. Essa música silenciosa que entrou na
mente de Will e tomou seu espírito veio, ele soube
imediatamente, da velha dama. Sem palavras, ela lhe
falava. Falava para ambos — e para as Trevas. Ele olhou
para trás deslumbrado; ela parecia maior, mais alta, mais
ereta do que antes, uma figura sem precedentes. E via-se
uma nuvem dourada ao redor de sua silhueta, um brilho
que não se originava da luz das velas.
Will piscava, mas não podia enxergar claramente; era
como se um véu os separasse. Então, ouviu a voz profunda
de Merriman, mais suave do que já havia escutado, porém
distorcida por alguma repentina e forte tristeza.
— Senhora — disse Merriman deploravelmente. —
Cuide-se, cuide-se.
Não houve resposta, no entanto Will tinha a sensação
de uma benção. Então passou, e a forma alta e cintilante
que era, e também não era, a velha dama, moveu-se
lentamente adiante na escuridão em direção às portas, e
por um Instante Will ouviu novamente a frase recorrente da
música que ele nunca assimilava em sua memória, e as
portas lentamente se abriram. Do lado de fora, havia uma
luz acinzentada, o silêncio, e o ar estava frio.
Atrás dele, a luz do círculo de velas se esvaecera, e
havia apenas a escuridão. Uma escuridão vazia e
perturbadora, de modo que ele soube que o salão já não
estava lá. E, repentinamente, percebeu que a luminosa
silhueta dourada diante dele estava desaparecendo
também, sumindo, como Fumaça que se ergue cada vez
mais espessa, até que não possa ser mais vista. Por um
momento, viu-se um lampejo do brilho na cor rosa do
enorme anel que a velha dama portava em sua mão, e
então essa imagem também diminuiu, e a sua luminosa
presença desapareceu deixando apenas o nula. Will sentia
uma desesperada dor de perda, como se lodo o mundo
tivesse sido tragado pelas Trevas, e por isso gritou.
Uma mão tocou seu ombro. Merriman estava ao seu
Indo. Eles passaram pelas portas. Lentamente, os grandes
portais talhados de madeira se fecharam atrás deles, dando
o tempo suficiente para que Will pudesse ver claramente
que se tratavam na realidade dos mesmos portais
estranhos que se lhe abriram, na inexplorada encosta
bronca da Colina de Chiltern. E, no momento em que se
fecharam, as portas também já não estavam mais lá. Não
via nada: somente a luz acinzentada da neve que refletia o
céu chuvoso. Encontrava-se de volta no mundo de florestas
suprimidas pela neve, onde caminhara naquela manhã.
Ansiosamente, virou-se para Merriman:
— Onde ela está? O que aconteceu?
— Foi demais para ela. A tensão era grande demais,
mesmo para ela. Nunca, eu nunca vi algo assim antes. Sua
voz era grave e amarga; ele olhava irritado para o nada.
— Eles a pegaram? — Will não sabia que palavras
poderia usar por causa do medo.
— Não! — disse Merriman. A palavra em resposta
veio tão rápida e com tanto desprezo que poderia ter sido
uma risada. — A Dama está além dos poderes deles. Além
de qualquer poder. Você não fará uma pergunta dessa
quando tiver aprendido um pouco. Ela partiu por um tempo,
só isso. Foi a abertura das portas, diante de tudo o que as
desejava fechadas. Embora as Trevas não pudessem
destruí-la, elas teriam drenado suas forças, deixando-a
como uma casca. Ela deve se recuperar, em um lugar
distante, sozinha, e isto é ruim para nós caso precisemos
dela. Como precisaremos. Como o mundo sempre precisará.
— E olhou para Will sem afeição; de repente, parecia
distante, quase ameaçador, como um inimigo; ele acenou
com uma mão impacientemente. — Feche o casaco, garoto,
antes que se congele.
Will se atrapalhou com os botões de sua pesada
jaqueta; Merriman, ele via, estava agasalhado com um
longo e surrado casaco azul de colarinho alto.
— Foi minha culpa, não é? — perguntou, infeliz. — Se
eu não tivesse corrido, quando avistei as portas, se eu
tivesse continuado segurando suas mãos e não tivesse
quebrado o círculo...
Merriman respondeu rispidamente.
— Sim — depois, cedeu um pouco. — Mas isso é o
que eles fazem, Will, não você. Eles influenciaram você,
aproveitando de sua impaciência e esperança. Eles gostam
de distorcer a boa emoção para realizar o mal.
Will permaneceu de ombros caídos, com as mãos nos
bolsos, olhando para o chão. No fundo de sua mente, um
canto surgiu em forma de zombaria em sua cabeça: você
perdeu a Dama, você perdeu a Dama. A tristeza comprimia
sua garganta; ele engoliu seco; não conseguia falar. Uma
brisa soprou através das árvores, levando cristais de neve
ao seu rosto.
— Will — chamou Merriman. — Eu estava zangado,
perdoe-me. Rompendo o círculo dos Três ou não, os fatos
seriam os mesmos. As portas são nossos portões para o
Tempo, e você saberá mais sobre a utilização deles muito
em breve. Mas, naquele momento, você não poderia tê-las
aberto, nem eu, e talvez ninguém do círculo. Pois a força
que estava pressionada contra elas era todo o poder do
solstício de inverno das Trevas, que ninguém, além da
Dama, poderia vencer sozinho; e mesmo ela somente o fez
pagando um alto preço. Anime-se; no devido tempo, ela
retornará.
Merriman puxou o colarinho alto de seu casaco, que
se tornou um capuz, e cobriu a cabeça. Com os cabelos
brancos escondidos, era uma figura sombria, alta e
inescrutável.
— Venha — disse conduzindo o menino pela neve
profunda, entre grandes faias e carvalhos carregados de
folhas. Depois de certa distância, pararam numa clareira.
— Você sabe onde está? — perguntou Merriman.
Will olhou ao redor, para os bancos de neve
aplainados, e para as árvores altaneiras.
— É claro que não sei — respondeu. — Como saberia?
— Porém antes de se completarem três quartos do
inverno — disse Merriman — você virá de mansinho neste
pequeno vale isolado para olhar as lágrimas brancas que se
amontoam em todos os lugares entre as árvores. E depois,
na primavera, você retornará para ver os narcisos. Todos os
dias, por uma semana, a julgar pelo último ano. Will o
olhava boquiaberto.
— Você quer dizer o Solar? — perguntou. — O terreno
do Solar?
Em seu próprio século, o solar do Vale do Caçador era
a principal casa do vilarejo. A casa propriamente dita não
podia ser vista da estrada, mas seu terreno ficava ao longo
da Trilha do Vale em frente à casa dos Stanton, e estendia-
se ao longo do caminho em todas as direções, rodeada
alternadamente por grades altas de ferro e muros de tijolos
antigos. Era propriedade da srta. Greythorne, como foi de
sua família durante séculos, mas Will não a conhecia
direito; raramente a via ou a seu Solar, do qual ele se
lembrava vagamente como uma massa de tijolos altos em
forma de coruchéu e chaminés no estilo Tudor. As flores de
que Merriman falara foram um marco especial naquele ano.
Pois até onde conseguia se lembrar, ele havia passado
pelas grades do Solar no final do inverno para ficar naquela
mágica clareira e olhar as lágrimas brancas que
afugentavam o inverno, e posteriormente o crescimento
dos narcisos dourados na primavera. Não sabia quem havia
plantado aquelas flores e nunca vira alguém visitando o
local. Nem mesmo tinha certeza se alguma outra pessoa
sabia da existência delas. A imagem das flores irradiava
alegria em sua mente.
Mas o surgimento de certas questões logo a
rechaçou.
— Merriman? Você quer dizer que esta clareira está
aqui há centenas de anos, antes de eu a ter visto pela
primeira vez? E o Grande Salão, é um Solar antes do Solar,
há centenas de anos? E a floresta ao nosso redor, que eu
atravessei quando vi o ferreiro e o Cavaleiro... que se
estende por todo lugar, tudo isso pertence...
Merriman olhou para o menino e riu, uma risada
alegre, repentinamente sem o peso que pairava sobre
eles — Deixe-me mostrar mais uma coisa — acrescentou,
conduzindo Will pelas árvores, para longe da clareira, até
que terminava a seqüência de troncos e montes de neve. E
diante dele, Will pôde ver não a trilha estreita daquela
manhã que esperava avistar, serpenteando o caminho
através da interminável floresta de antiga multidão de
árvores, mas o sentido familiar do século 21 da Trilha do
Vale do Caçador e, além dele, uma trilha curta para a
estrada, um vislumbre de sua própria casa. As grades do
Solar encontravam-se diante deles, mas de alguma maneira
reduzidas pela neve profunda; Merriman passou a perna
rígida sobre elas e Will moveu-se furtivamente pelo vão que
costumava usar; logo ambos já se encontravam na estrada
coberta pela neve.
Merriman recolocou seu capuz novamente, e ergueu
sua cabeça grisalha como se desejasse sentir o cheiro do ar
deste novo século.
— Percebe, Will — disse-lhe —, nós do Círculo temos
liberdade dentro do tempo. As portas são uma passagem
por ele, para qualquer direção que desejarmos tomar. Pois
todos os tempos coexistem, e o futuro pode algumas vezes
afetar o passado, mesmo se o passado for uma estrada que
conduz ao futuro... Mas os homens não podem
compreender isto. Nem você compreenderá por enquanto.
Nós podemos viajar pelos anos por outros meios também;
um deles foi usado nesta manhã para trazê-lo de volta
através de cinco séculos ou mais. Lá é onde você estava,
no tempo das Florestas Reais que se estendiam sobre toda
a parte sudeste desta terra desde Southampton Water até
aqui no vale do Tâmisa.
Apontou da estrada até o horizonte plano, e Will se
lembrou de como havia enxergado o Tâmisa duas vezes
naquela manhã: a primeira vez nos campos de sua família,
a segunda escondido entre as árvores. Reparava na
intensidade da recordação no rosto de Merriman.
— Há quinhentos anos — continuou Merriman — os
reis da Inglaterra escolheram deliberadamente preservar
estas florestas, destruindo vilarejos inteiros e vilas em seu
interior; assim os animais selvagens, os cervos, os javalis e
mesmos os lobos poderiam se reproduzir por lá para a caça.
Mas as florestas não são lugares negociáveis, e os reis
estavam, sem saber disto, estabelecendo um refúgio
também para os poderes das Trevas que, de outra forma,
poderiam ter sido rechaçados para as montanhas e outros
lugares remotos do norte... Então, lá é onde você esteve
até agora, Will. Na floresta de Anderida, como costumavam
chamá-la. Num passado bem distante. Você esteve por lá
no início do dia, quando andava pela floresta, na neve; e na
encosta vazia de Chiltern; e também quando passou pela
primeira vez pelos portais... eles simbolizavam sua primeira
caminhada, seu aniversário como um dos Anciãos. E lá,
naquela época, foi onde deixamos a Dama. Eu gostaria de
saber onde e quando a veremos novamente. Mas
certamente ela voltará, quando puder. — Deu de ombros,
como se desejasse se livrar do peso novamente. — E agora
você pode ir para casa, pois já se encontra em seu próprio
mundo.
— E você está nele também — disse Will. Merriman
sorriu.
— Mais uma vez. Com uma mistura de sensações.
— Para onde você vai?
— Tratarei de alguns assuntos por aí. Eu tenho um
lugar nesta época atual, assim como você. Vá para casa
agora, Will. O próximo estágio nessa busca depende do
Andarilho, e ele encontrará você. E quando o círculo dele
estiver em seu cinto, ao lado do primeiro, eu voltarei.
— Mas — Will de repente desejava agarrar-se a ele,
implorar-lhe para que não partisse. Sua casa não parecia
mais uma fortaleza inacessível como sempre havia sido.
— Você ficará bem — disse Merriman gentilmente. —
Viva cada coisa ao seu tempo. Lembre-se de que o poder
lhe protege. Não faça nada que possa lhe causar problemas
e você ficará bem. Logo deveremos nos encontrar, eu
prometo.
— Tudo bem, então — aquiesceu Will sem convicção.
Uma estranha rajada de vento os cercou naquela
manhã tranqüila, e os flocos de neve respingaram das
árvores na beira da estrada. Merriman apertou seu casaco
ao redor do corpo, a barra de sua vestimenta roçava a
neve; deu um olhar cortante para o menino, um misto de
advertência e encorajamento; depois puxou o capuz sobre o
rosto e saiu descendo a estrada sem dizer uma palavra.
Logo desapareceu pela curva ao lado do Bosque das
Gralhas, a caminho da Fazenda dos Dawson.
O garoto tomou bastante fôlego e correu para casa. O
caminho estava silencioso na neve profunda e na manhã
cinzenta; nenhum pássaro se movia ou pipilava; em todos
os lugares, nada se mexia. A casa também se encontrava
totalmente silenciosa. Desvencilhou-se de algumas roupas
e subiu as escadas silenciosas. Ao alcançar o patamar, ficou
mirando o lado de fora da casa, os telhados brancos e os
campos. Nem mesmo uma grande floresta se estendia pela
terra agora. A neve estava muito profunda, mas uniforme
sobre os campos aplainados do vale, por todo o caminho
até a curvatura do Tâmisa.
— Tá bom, tá bom — dizia James, sonolento, de seu
quarto.
Por trás da porta ao lado, Robin deu um tipo de
rosnado indefinível e murmurou.
— Só um minuto, estou indo.
Gwen e Margaret saíram tropeçando para fora do
quarto que compartilhavam, vestindo ainda as suas
camisolas e esfregando os olhos.
— Não há necessidade de berrar — disse Bárbara de
forma reprovadora para Will.
— Berrar? — Olhava atentamente para a irmã.
— Acordem todos vocês! — ela repetiu num grito
zombeteiro. — Quero dizer, é feriado, pelo amor de Deus.
— Mas eu... — falou Will.
— Não tem problema — disse Gwen. — Você pode
perdoá-lo por querer nos acordar hoje de manhã. Afinal,
tem um bom motivo para isso. — Então, avançou alguns
passos e deu um beijo rápido na cabeça do menino.
— Feliz aniversário, Will — acrescentou.

O ANDARILHO NA VELHA
ESTRADA

— Dizem que vem mais neve por aí — a mulher


rechonchuda com a bolsa de crochê sugeriu ao motorista
do ônibus.
Ele, que era caribenho, aquiesceu com a cabeça e
lançou um olhar para toda a vista ao redor.
— Tempo mais louco — exclamou. — Mais um inverno
desses, eu volto para Porto de Espanha.
— Anime-se, meu bem — falou a mulher
rechonchuda. — Você não verá mais neve como esta. Há
sessenta e seis anos, eu vivo no Vale do Tâmisa e nunca vi
desse tanto, não antes do Natal. Nunca.
— Mil novecentos e quarenta e sete — disse o homem
sentado ao lado dela, um homem magro com um longo
nariz pontudo. — Aquele sim foi um ano de neve. Dou
minha palavra que foi. Montes mais altos que a sua cabeça,
por toda a Trilha do Vale do Caçador e da Vereda do
Pântano até a Câmara dos Comuns. Não se pôde sequer
cruzar a Câmara por duas semanas. Precisaram recolher a
neve. Ah, aquele foi um ano de neve.
— Mas não antes do Natal — disse a mulher
rechonchuda.
— Não, foi em janeiro. — Aquiesceu o homem
pesarosamente. — Não antes do Natal, não...
Eles poderiam ter continuado assim por todo o
caminho até Maidenhead, e talvez o fizeram, mas Will
subitamente percebeu que seu ponto de ônibus estava se
aproximando, e logo desceria naquele indistinto mundo
branco lá fora. Ficou de pé em um salto, agarrando suas
caixas e sacolas. O motorista lhe apertou a campainha.
— Compras de Natal — observou.
— Ahã. Três... quatro... cinco... — Will espremeu os
pacotes contra o peito e segurou firme no corrimão do
ônibus que sacolejava pelo caminho. — Eu terminei as
compras agora — disse. —já era tempo.
— E eu queria ter terminado — disse o motorista. — A
véspera do Natal já é amanhã. Minha nossa, isso é um
problema para mim, eu preciso de um clima quente para
acordar.
O ônibus parou, e ele ajudou Will a se firmar
enquanto descia.
— Feliz Natal, rapaz — disse o condutor. Conheciam-
se das idas e vindas de Will da escola.
— Feliz Natal — disse Will. Em um impulso, gritou,
enquanto o ônibus partia: — Você terá um clima quente no
dia do Natal!
O motorista abriu um largo sorriso branco.
— Você vai arrumar isso? — gritou ele de volta. Talvez
eu possa, pensava Will enquanto andava pela estrada
principal em direção à Trilha do Vale do Caçador. Talvez eu
possa. A neve era profunda até mesmo sobre as calçadas;
poucas pessoas saíram de casa para pisar sobre ela nos
últimos dois dias. Para Will aqueles foram dias de paz,
apesar das recordações sobre o que acontecera antes.
Havia passado um aniversário bem alegre, com uma festa
de família tão agitada que ao cair na cama adormeceu
pensando pouquíssimo sobre as Trevas. Depois disso,
experimentou um dia de briga de bola de neve e tobogãs
improvisados com seus irmãos, nos campos inclinados atrás
da casa. Dias cinzentos, com mais neve pairando sobre
suas cabeças, mas inexplicavelmente sem cair. Dias de
silêncio; dificilmente um carro descia por aquele caminho,
exceto a caminhonete do leiteiro e do padeiro. E as gralhas
estavam quietas, somente uma ou duas voavam
lentamente de um Lado para o outro sobre o bosque.
Will achava que os animais já não tinham mais medo
dele. Na verdade, eles pareciam mais afeiçoados a ele do
que antes. Somente Raq, o mais velho dos collies, que
gostava de se sentar com o queixo descansando sobre os
joelhos do menino, afastava-se bruscamente de perto dele
algumas vezes sem nenhum motivo aparente, como se
impulsionado por um choque elétrico. Depois, o cão saía
inquieto rondando o lugar por alguns minutos, para então
voltar, olhar curiosamente para o rosto do menino, e ajeitar-
se confortavelmente como antes. Will não sabia o que fazer
sobre isto. Tinha consciência de que Merriman saberia, mas
Merriman estava fora de seu alcance.
O círculo cruzado em seu cinto permanecia quente ao
toque desde que havia chegado em casa há duas manhãs.
Deslizou a mão sob o casaco, naquele momento, enquanto
andava, para conferir, mas o círculo estava frio; achava que
isso acontecia simplesmente porque estava ao ar livre,
onde tudo estava frio. Passou a maior parte da tarde
comprando os presentes de Natal em Slough, a maior das
cidades próximas; tratava-se de um ritual anual, no dia
precedente à véspera de Natal, pois nesse dia era certo que
teria ganhado dinheiro como presente de aniversário de
vários tios e tias para gastar. Este, no entanto, foi o
primeiro ano que ele fez compras sozinho. E estava
gostando disso; era possível considerar melhor as coisas
por si mesmo. O presente mais importante de todos para
Stephen — um livro sobre o Tâmisa — foi comprado há
bastante tempo e postado para Kingston, na Jamaica, onde
seu barco estava ancorado num lugar conhecido como a
Caribbean Station. Will achava que isso soava mais como
um trem e decidiu que deveria perguntar ao seu amigo
motorista do ônibus como Kingston era; ainda que o
condutor tivesse vindo de Trinidad, talvez pudesse
expressar sua sensação sobre as outras ilhas.
Sentiu novamente seus ânimos se abaterem um
pouco como ocorrera nos últimos dois dias, pois, neste ano,
pela primeira vez que podia se lembrar, não houve presente
de aniversário de Stephen. Mas ele se desvencilhou daquela
frustração pela centésima vez, com o argumento de que os
correios devem tê-lo extraviado, ou o navio de repente
zarpou em alguma missão urgente entre as verdejantes
ilhas. Stephen sempre se lembrava e deve ter se lembrado
desta vez, se algo não o impediu. Possivelmente, ele não
poderia ter esquecido.
À sua frente, o Sol já estava se pondo, visível pela
primeira vez desde a manhã de seu aniversário. Ardia,
enorme, como uma laranja de ouro, através das frestas nas
nuvens, e tudo ao redor, o mundo de neve prateada
cintilava com os pequenos raios dourados de luz. Depois
das acinzentadas ruas de neves derretidas da cidade, tudo
ficava bonito de novo. Will se arrastou ao longo do caminho,
passando pelos muros do jardim, pelas árvores e então pelo
topo de uma pequena trilha sem pavimentação, quase uma
estrada, conhecida como o Beco do Vagabundo, que se
afastava da rua principal e finalmente se curvava para se
ligar à Trilha do Vale do Caçador, perto da casa dos Stanton.
As crianças a usavam como um atalho, em algumas
circunstâncias. Will a olhava naquele momento e viu que
ninguém usou aquele caminho desde que a neve começara
a cair; mais abaixo, a trilha permanecia intacta, lisa, branca
e convidativa, marcada apenas pela figura de pegadas dos
pássaros. Um território inexplorado. Will achou isso
irresistível.
Então, virou-se para o Beco do Vagabundo e seus
passos rangiam com prazer através da clara e suave
camada de neve, de modo que uma quantidade dela se
agarrava , como uma franja às calças enfiadas em suas
botas. Perdeu a visão do Sol em um determinado momento,
bloqueado por um bosque que se encontrava entre a
pequena trilha e algumas casas beirando o topo da Trilha do
Vale do Caçador.
Enquanto pisava duro sobre a neve, apertou seus
embrulhos no peito, contando-os novamente: a faca de
Robin; couro de camurça para Paul, para limpar sua flauta;
o diário para Mary; os sais de banho para Gwennie; as
canetas pilot superespeciais Max. Todos os outros presentes
já haviam sido comprados e embalados. Natal é uma
festa complicada quando se tem oito irmãos.
Não demorou, o caminho pelo beco se tornou menos
divertido do que esperava. Os tornozelos de Will doíam
devido à força empreendida para andar chutando a neve do
caminho. Os embrulhos eram inoportunos para carregar. O
brilho dourado-avermelhado do Sol já se extinguira em um
Céu nublado. Sentia fome e frio.
Àrvores surgiam altas à sua direita, principalmente
olmos e algumas faias. Do outro lado da trilha havia um
extenso terreno baldio, transformado pela neve de
bagunçada coleção de erva daninha e mato em uma
paisagem de brancas encostas íngremes e depressões
abrigadas do Sol. Tudo ao redor dele, depositado e
espalhado sobre a trilha coberta de neve, os gravetos e os
pequenos ramos, foi derrubado das árvores pelo peso da
neve. Logo adiante, Will viu um ramo caído pelo caminho e
olhou apreensivo para cima, perguntando-se quantos outros
galhos mortos dos grandes olmos estavam aguardando pelo
vento ou pelo peso da neve para despencar no chão. Uma
boa época para recolher madeira para a lareira, pensava, e
subitamente teve uma imagem tentadora do fogo
crepitante que ardia na lareira do Grande Salão: o fogo que
havia mudado seu mundo, ao se extinguir pelas palavras de
sua ordem e ao voltar obedientemente a arder para a vida
novamente.
Enquanto se arrastava ao longo da neve fria, uma
repentina e alegre idéia surgiu em sua mente sob o
pensamento daquele fogo e parou, sorrindo para si mesmo.
Você vai arrumar isto? Bem, não, amigo, eu provavelmente
não posso providenciar um dia quente de Natal, mas eu
posso aquecer as coisas por aqui, agora. Olhou confiante
para o galho seco diante dele e, com um simples comando
do dom que sabia possuir em si mesmo, disse de forma
suave e travessa: — Queime!
E lá sobre a neve, o galho caído da árvore envolveu-
se em chamas. Cada centímetro, da espessa base
apodrecida ao menor graveto, ardia sob uma língua de fogo
amarelada. Ouviu-se um som sibilante e um longo raio de
luz brilhante se ergueu do fogo como um pilar. Nenhuma
fumaça era emitida das partes queimadas e as chamas
eram constantes; alguns gravetos que deveriam ter
incendiado e crepitado rapidamente e então virado cinza
persistiam em queimar, como se alimentados por outro
combustível em seu interior. Ficando ali, sozinho, Will se
sentiu repentinamente pequeno e assustado; não se tratava
de um fogo comum, que poderia ser controlado por meios
comuns. Não agia de maneira nenhuma do mesmo modo
como o fogo da lareira. E o menino não sabia como agir em
relação a isso. Em pânico, concentrou-se sobre as chamas
novamente e ordenou que apagassem, mas a madeira
continuou queimando, constantemente como antes. Ele
sabia que havia agido de maneira tola, inapropriada, e
talvez perigosa. Olhando pelo pilar que tremulava luz, pôde
ver lã no alto, no céu cinzento, quatro gralhas batendo suas
asas lentamente em um círculo.
Ai, Merriman, pensava descontente, onde você está?
Então, soltou um grito sufocado, quando por trás alguém o
agarrava bloqueando o chute de seus pés em um
amontoado de neve, e trazendo seus braços pelos pulsos
para as costas. Os pacotes se espalharam pela neve.
Gritava sentindo dor em seus braços. A pressão sobre o
punho do menino relaxou, como se o agressor estivesse
relutante em causar- lhe realmente algum mal; mas Will
continuava ainda firmemente preso.
― Apague o fogo! — disse uma voz rouca em seus
ouvidos, urgentemente.
― Eu não consigo! — disse Will. — Sinceramente, eu
tentei, mas não consigo.
O homem praguejou e murmurou de forma estranha,
e instantaneamente Will soube quem ele era. O terror que
sentia se dissipou como se tivesse ficado livre de um peso.
― Andarilho — disse ele —, deixe-me em paz. Você
não deve me segurar desse jeito.
A pressão se intensificou novamente: — Ah, não, não
você, garoto. Eu conheço seus truques. Você é aquele, tudo
bem, eu sei agora, você é um Ancião, mas eu não confio na
sua espécie tanto quanto não confio nas Trevas. Você
acabou de despertar, sim, e não pode fazer nada a ninguém
a menos que possa vê-lo com seus olhos. Então, você não
me verá, disso eu sei.
Will replicou.
— Eu não quero fazer nada a você. Realmente
existem pessoas dignas de confiança, você sabe.
— Pouquíssimas — disse o Andarilho amargamente.
— Eu poderia fechar meus olhos, se me soltasse.
— Ora! — reagiu o velho. Will então falou:
— Você carrega o segundo Signo. Entregue-o para
mim. — Ambos ficaram em silêncio. O menino sentia as
mãos do homem desvencilharem-se de seus braços, mas
permanecia no mesmo lugar e não se virou. — Eu já tenho o
primeiro Signo, Andarilho — continuou. — Você sabe que eu
tenho. Olhe, eu estou desabotoando a minha jaqueta e vou
afastá-la, e você poderá ver o primeiro círculo em meu
cinto.
Afastou a jaqueta e sem mover a cabeça tinha
consciência da forma corcunda do Andarilho passando para
o seu lado. O fôlego do homem sibilava por entre seus
dentes em um longo suspiro enquanto ele olhava, e logo
virou-se para Will sem cautela. Na luz amarelada do galho
continuamente em chamas, o menino viu o rosto contorcido
por emoções conflitantes: esperança, medo, alívio ligados
firmemente pela angustiante incerteza.
Quando o homem falou, sua linguagem era simplória
e deficiente como a de uma pequena e triste criança.
— É tão pesado — disse melancolicamente. — Eu o
tenho carregado por tanto tempo. E eu já nem me lembro
por quê. Sempre amedrontado, sempre tendo que fugir. Se
pelo menos eu pudesse me livrar disto, se pelo menos eu
pudesse descansar. Ah, se pelo menos acabasse. Mas não
ouso dar isto à pessoa errada, não ouso. As coisas que
aconteceriam comigo se eu fizesse isso seriam terríveis, e
não podem ser colocadas em palavras. Os Anciãos podem
ser cruéis, cruéis... Acho que você é a pessoa certa, garoto,
e tenho procurando por você há muito tempo... hã muito
tempo... para entregar o Signo. Mas como eu posso ter
certeza? Como eu posso ter certeza de que você não é um
truque das Trevas?
O homem viveu amedrontado por tanto tempo,
pensava Will, que havia se esquecido de como parar de
sentir medo. Que horror, ficar tão absolutamente sozinho.
Ele não sabe como confiar em mim; faz tanto tempo que
confiou em alguém, que se esqueceu como...
— Olhe — disse gentilmente. — Você deve saber que
eu não faço parte das Trevas. Pense. Você viu o Cavaleiro
tentando me abater.
Mas o velho balançava a cabeça lamentavelmente, e
Will se lembrou de como ele se alarmara gritando na
clareira no momento em que o Cavaleiro apareceu.
― Bem, se isso não ajuda — disse o menino. — O fogo
não diz nada pra você?
― O fogo, quase — respondeu o Andarilho. Olhou para
as chamas, esperançoso; em seguida, seu rosto se
contorceu alarmado. — Mas o fogo, o fogo os trará, garoto,
você sabe disso. As gralhas já estão dando a direção. E
como eu saberei se você acende o fogo porque é um Ancião
que acabou de despertar fazendo brincadeirinhas, ou
porque está fazendo um sinal para trazê-los até mim? —
Gemia para si mesmo em agonia, e apertou os braços em
volta de seu ombro. O homem era uma coisa deplorável,
pensava Will com compaixão. Mas, de alguma maneira, ele
precisava ser convencido.
Will olhou para cima. Havia mais gralhas circulando
preguiçosamente, e podia ouvi-las chamando asperamente
umas pelas outras. Teria o velho razão, seriam os pássaros
pretos mensageiros das Trevas? — Andarilho, por tudo o
que é mais sagrado — dizia impaciente —, você deve
confiar em mim. Se não confiar em alguém apenas uma vez
e por tempo suficiente para lhe entregar o Signo, terá que
carregá-lo para sempre. É o que deseja?
O velho mendigo gemeu e murmurou, olhando para o
menino com seus pequenos olhos ensandecidos; parecia
preso em séculos de desconfiança como uma mosca em
uma teia. Mas a mosca ainda tinha asas que podiam romper
a teia, dando-lhe forças para se agitar, apenas uma vez...
Levado por alguma parte desconhecida de sua mente, sem
saber bem o que estava fazendo, Will segurou o círculo de
ferro em seu cinto, endireitou-se o mais ereto e alto
possível, apontou o objeto para o Andarilho e o chamou:
O último dos Anciãos chegou, Andarilho, e é chegada
a hora. O momento de entregar o Signo é agora, agora ou
nunca. Pense somente que nenhuma outra oportunidade
surgirá. Agora, Andarilho. A menos que você carregue isto
para sempre; obedeça aos Anciãos agora. Agora.
Foi como se aquelas palavras liberassem uma mola.
Em um instante, todo o medo e desconfiança no rosto velho
e contorcido relaxaram em uma obediência infantil. Com
um sorriso quase de uma ansiedade tola, o Andarilho se
atrapalhava com a alça larga de couro que portava na
diagonal de seu peito, retirando um círculo quartejado
idêntico àquele que Will carregava em seu cinto, mas
resplandecendo com o brilho opaco nos tons marrom-
dourado do bronze; colocou o objeto nas mãos de Will e
soltou uma gargalhada alta e curta de estupefata
satisfação.
O galho flamejante sobre a neve diante deles
incendiou-se de repente ainda mais brilhante e depois
apagou. Permaneceu caído assim como estava quando Will
chegou ao beco: cinza, sem qualquer indício de queima,
frio, como se nenhuma parte dele tivesse sido tocada por
uma centelha de chama. Apertando o círculo de bronze, Will
olhava para a rígida casca da madeira, deitada ali sobre a
neve intacta. Agora que seu fogo se extinguira, o dia
parecia subitamente muito mais escuro, cheio de sombras,
e ele percebeu com um choque o quão pouco da tarde
ainda restava. Já estava tarde. Deveria partir. Mas uma voz
ecoou nitidamente das sombras adiante: — Olá, Will
Stanton.
O Andarilho gritou aterrorizado, emitindo um som
agudo e feio. Will enfiou o círculo de bronze rapidamente
em seu bolso e adiantou-se, rígido. Depois, quase se sentou
aliviado sobre a neve quando viu que o recém-chegado era
apenas Maggie Barnes, a leiteira da fazendo dos Dawson.
Nada de sinistro sobre Maggie, a admiradora de Max, com
bochechas como maçã. Sua silhueta rechonchuda estava
toda escondida pelo casaco, botas e cachecol; ela
carregava uma cesta tampada e dirigia-se para a rua
principal. Ela sorriu para Will e depois olhou
acusadoramente para o Andarilho.
— Por que — disse ela, com seu sotaque de
Buckinghamshire — estaria este velho mendigo andando
por aí nestes últimos quinze dias? O dono da fazenda disse
que Queria vê-lo pelas costas, velho. Ele estava
importunando você, jovem Will? Aposto que estava. — Ela
observava o Andarilho, que se encolheu de repente em sua
capa suja, semelhante a um casaco.
― Ah, não — disse Will. — Eu só tinha acabado de
saltar do ônibus de Slough e topei com ele. Realmente
topei. E dei- XEI CAIR todas as minhas compras de Natal —
acrescentou asperamente, inclinando-se para recolher os
embrulhos e pacotes que ainda permaneciam espalhados
pela neve.
O Andarilho fungou, encolhendo-se ainda mais dentro
de sua capa, e tentou atravessar para o outro lado de
Maggie, em direção ao alto da trilha. Mas quando ficou à
mesma altura dela, parou abruptamente, fazendo um
movimento brusco para trás como se tivesse batido contra
uma barreira invisível. Ele abriu a boca, mas não emitiu
som nenhum. Will endireitou-se lentamente, observando,
com os braços cheios de embrulhos. Uma sensação terrível
de apreensão começou a surgir dentro dele, como a
triagem de uma brisa gelada.
Maggie Barnes disse amavelmente: — Faz tempo que
o último ônibus de Slough passou, jovem Will. Na realidade,
estou indo pegar o próximo. Você sempre leva meia hora
para caminhar os cinco minutos de caminhada do ponto do
ônibus, Will Stanton?
― Não acho que seja assunto seu saber quanto tempo
eu levo para fazer alguma coisa — respondeu Will.
Observava o Andarilho paralisado, e algumas imagens
muito confusas rodopiavam em sua cabeça.
― Modos, modos — disse Maggie. — Para um
garotinho tão bem-educado como você, também. — Os
olhos dela brilhavam muito, fitando atentamente Will de
seu cachecol enrolado na cabeça.
— Bem, adeus, Maggie — disse Will. — Tenho que ir
pra casa. O chá já deve estar pronto.
— O problema com mendigos sujos e desagradáveis,
como este aqui com o qual você acabou de se encontrar,
mas que não o está incomodando — prosseguiu Maggie
Barnes com suavidade, sem se mover —, o problema com
eles é: eles roubam coisas. E este aí roubou uma coisa, dias
atrás, da fazenda, jovem Will, uma coisa que me pertencia.
Um ornamento. Um tipo grande de ornamento de cor
marrom-dourada com o formato de um círculo que eu usava
em uma corrente em volta do pescoço. Quero isso de volta.
Agora. — As últimas palavras soaram ameaçadoras e,
depois, a moça retomou a suavidade, como se sua voz
gentil nunca tivesse sofrido alteração. — Eu quero de volta,
quero sim. E eu realmente acho que ele pode ter enfiado
isso no seu bolso quando não estava olhando, quando
esbarrou nele, caso ele tivesse me visto chegar, como
poderia ter feito muito bem sob a luz dessa pequena e
divertida fogueira aqui. O que você acha disso tudo, jovem
Will Stanton, hein?
Will engoliu seco. Seus cabelos se arrepiavam na
parte de trás do pescoço enquanto a ouvia. E ela
continuava ali, fitando com o mesmo olhar de sempre, com
as bochechas rosadas, como uma garota de fazenda sem
complicações que manuseava a máquina de ordenha dos
Dawson e criava os bezerros menores; e além do mais, a
mente de onde surgiam aquelas palavras podia ser nada
menos do que a mente das Trevas. Teriam eles roubado
Maggie? Ou Maggie sempre foi uma deles? Se fosse assim,
o que mais ela poderia fazer?
Ele permaneceu encarando a moça, uma mão
apertando seus embrulhos e a outra deslizando
cautelosamente por seu bolso. O Signo do Bronze estava
frio, frio ao toque. Ele convocou todo o poder que achava
que pudesse encontrar para afastá-la e, mesmo assim, ela
ainda continuava lá, sorrindo-lhe friamente. Will ordenava
que ela partisse era nome de todos os poderes que podia
lembrar sendo usados por Merriman: da Dama, do Círculo,
dos Signos. Mas sabia que não tinha as palavras certas para
dizer. E Maggie riu alto .avançando deliberadamente,
encarando-o; e Will percebeu que não conseguia mover um
músculo sequer.
Foi pego, paralisado assim como o Andarilho; fixo,
imóvel numa posição que não conseguia mudar nem
mesmo um centímetro. O menino olhava furiosamente para
Maggie Barnes, agasalhada pelo cachecol vermelho e
casaco preto modesto, enquanto a moça calmamente
deslizava a mão pelo bolso do casaco do menino e retirava
o Signo de Bronze. Depois, ela ficou de frente para o rosto
dele, e então rapidamente desabotoou-lhe o casaco e
ligeiramente arrancou o cinto de suas calças, para em
seguida alinhar o círculo de bronze próximo ao de ferro.
— Segure as calças, Will Stanton — disse ela
zombeteiramente. — Ah, meu Deus, agora você não pode,
ou pode... mas então você realmente não usa o cinto para
segurar as calças, usa? Você o coloca para guardar esta
pequena... decoração... a salvo. — Will percebeu que a
moça segurava os dois Signos tão levemente quanto
possível, e estremeceu quando ela precisou tocá-los com
mais firmeza; o frio que deles emanava deveria certamente
estar queimando até seus ossos.
Ele observava em total desespero. Não havia nada
que pudesse fazer. Todo o seu esforço e busca estavam
chegando ao fim antes mesmo de ter começado de maneira
apropriada, e não havia nada que pudesse fazer. Desejava
tanto gritar de raiva quanto chorar. E então, lá no fundo,
alguma coisa causou um alvoroço em sua mente. Algum
detalhe de sua memória que surgia, mas ainda não
conseguia assimilar o que era. Lembrou-se apenas no
momento em que Maggie Barnes estendeu o cinto diante
dele com o primeiro e o segundo círculos alinhados, ferro
opaco e reluzente bronze lado a lado. Fitando avidamente
os dois objetos, Maggie irrompeu em um gorgolejo de
gargalhada desdenhosa que soava ainda mais malévolo
pela boca de sua face rosada. E Will se lembrou:
.... quando o círculo dele estiver em seu cinto,
ao lado do primeiro, eu voltarei...
Naquele momento, as labaredas do fogo ressurgiram
no galho do olmo caído, o qual Will havia rapidamente
acendido antes, e as chamas crepitavam de lugar nenhum
em um círculo de luz branca queimando por todos os lados
de Maggie Barnes — um círculo de luz mais alto que sua
cabeça. Ela se agachou subitamente na neve, encolhendo-
se, boquiaberta de medo. O cinto com os dois Signos
alinhados caiu de sua mão frouxa.
E lá estava Merriman. Alto em seu longo casaco
preto, com a face escondida nas sombras de seu capuz; lá
estava ele na margem da rua, um pouco distante do círculo
flamejante e da garota agachada.
— Leve-a desta estrada — disse ele com a voz nítida
e alta, e o círculo ardente de luz moveu-se lentamente para
um lado, forçando a garota Maggie a mover-se
cambaleando com ele, até que pairou sobre o solo firme
próximo à estrada. Em seguida, com um abrupto estalo,
desapareceu; e Will notou no lugar uma grande barreira de
luz reluzindo dos dois lados do caminho, margeando o lugar
com o fogo flamejante, estendendo-se em uma longa
distância em ambas as direções — mais longa do que a
própria extensão da trilha que Will conhecia como Beco do
Vagabundo. Continuou olhando, um pouco assustado. Longe
da claridade, podia ver Maggie Barnes rastejando
deploravelmente na neve, com os braços protegendo seus
olhos da luz. Mas ele, Merriman e o Andarilho se
encontravam em um interminável túnel de chamas frias e
brancas.
Will se curvou para recolher o cinto e, num tipo de
retribuição pelo alívio, apertou os dois Signos em suas
mãos, ferro na mão esquerda, bronze na direita. Merriman
aproximou-se do seu lado, ergueu o braço direito de modo
que o casaco balançou como a asa de um pássaro enorme e
apontou um dedo longo para a moça. Gritou um nome
comprido e estranho, que Will nunca havia ouvido antes e
não pôde guardar em sua mente, e Maggie gemeu alto.
Merriman bradou, com desprezo cortante em sua voz:
Volte e diga-lhes que os Signos estão fora de alcance.
E Be você permanecer ilesa, não tente novamente fazer a
sua vontade enquanto estiver em um de nossos Caminhos.
Pois as antigas estradas estão acordadas e seus poderes
ressurgiram novamente. Neste momento, elas não terão
misericórdia nem remorso. — Falou o estranho nome mais
uma vez, e as chamas margeando a estrada subiram ainda
mais alto, e a garota gritou alto e esganiçado como se
estivesse sentindo imensa dor. Então, ela partiu se
arrastando pelos campos cobertos de neve, como um
animal pequeno e encurvado.
Merriman olhou para Will. — Lembre-se de duas
coisas que salvaram você — disse-lhe, a luz cintilando
agora sobre seu nariz bicudo e olhos profundos sob o capuz,
protegidos da luz. — Primeiro, eu conhecia o nome
verdadeiro dela. A única maneira para desarmar uma das
criaturas das Trevas é chamando-a pelo seu nome
verdadeiro: nomes que elas mantêm em grande segredo. E,
assim como o nome, havia a estrada. Você sabe o nome
desta trilha?
— Beco do Vagabundo — respondeu Will
automaticamente.
— Este não é o verdadeiro nome — retrucou
Merriman com desagrado.
— Bem, não. Minha mãe nunca o usou, e nós não
devíamos usá-lo. É feio, disse ela. Mas nenhuma outra
pessoa que eu conheço já a chamou de outra coisa. Eu me
sentiria um idiota se a chamasse de Velha Estrada. — Will
parou de repente, ouvindo e provando o nome
apropriadamente pela primeira vez em sua vida. E retomou
lentamente: — Se eu a chamasse por seu nome verdadeiro,
Trilha da Velha Estrada...
— Você se sentiria um idiota — disse Merriman
desalentado. — Mas o nome que o fez se sentir um idiota
ajudou a salvar sua vida. Trilha da Velha Estrada. Sim. E não
foi nomeada Velha Estrada por algum distante senhor. O
nome simplesmente nos diz o que a estrada é, como os
nomes das ruas e lugares de terras antigas fazem com
muita freqüência, se os homens ao menos lhes dessem
mais atenção. Foi sorte você se encontrar justamente em
uma das Estradas Velhas, pisadas pelos Anciãos por três mil
anos, quando você fazia suas brincadeirinhas com o fogo,
Will Stanton. Se você estivesse em qualquer outro lugar, em
seu estado despreparado quanto ao seu poder, você teria
se colocado numa situação tão vulnerável que as Trevas
presentes nestas terras teriam sido conduzidas até você.
Assim como a garota-feiticeira foi conduzida pelos pássaros.
Olhe atentamente para esta estrada agora, garoto, e não a
chame por nomes comuns novamente.
Will engoliu seco e fitou a estrada com suas margens
em chamas se estendendo em distância como algum nobre
caminho do Sol e, num impulso repentino, fez-lhe uma
pequena e desajeitada reverência, curvando-se desde a
cintura, da maneira como seus braços cheios de pacotes o
deixavam. As chamas aumentaram novamente, e se
inclinavam para dentro, quase como se o estivessem
reverenciando em resposta. Depois se apagaram.
— Muito bem — disse Merriman, com surpresa e um
toque de divertimento.
Will falou então: — Eu nunca, nunca novamente farei
qualquer coisa com o... o poder, a menos que haja uma
razão. Eu prometo. Pela Dama e o mundo antigo. Mas... —
ele NÃO conseguia resistir — Merriman, foi o fogo que acendi
que trouxe o Andarilho até mim, não foi? E o Andarilho tinha
o Sinal.
— O Andarilho estava esperando por você, garoto
estúpido — disse Merriman irritado. — Eu disse que ele o
encontraria e você não se lembrou. Lembre-se agora. Nesta
nossa magia, cada palavra, por menor que seja, tem um
peso e um significado. Cada palavra que eu digo, ou que
Algum outro Ancião possa dizer. O Andarilho? Ele estava
aguardando pelo seu nascimento e pelo momento em que
ficasse sozinho com ele para lhe entregar o Signo, e isto
ocorreu por mais tempo do que possa imaginar. Você agiu
bem, eu diria, foi um problema convencê-lo a entregar o
Signo quando chegou a hora. Pobre alma. Ele traiu os
Anciãos certa vez, há muito tempo, e esta foi sua sentença.
— A voz dele suavizou um pouco. — Foi uma era difícil para
ele, carregar o segundo Signo. Ele tem mais uma parte em
nosso trabalho, antes que possa descansar, caso prefira
isso. Mas não é para agora.
Ambos viram a figura imóvel do Andarilho, que
continuava paralisado em seus movimentos do lado da
estrada, como Maggie Barnes o havia deixado.
— Esta é uma posição terrivelmente desconfortável —
disse Will.
— Ele não sente nada — disse Merriman. — Nem
mesmo um músculo ficará dolorido. Os Anciãos e o povo
das Trevas têm alguns pequenos poderes em comum, e um
deles é este de prender um homem fora do Tempo, pela
duração que for necessária. Ou no caso das Trevas pela
duração que eles acharem divertida.
Ele apontou um dedo para a silhueta sem forma e
imóvel e falou algumas suaves e rápidas palavras que Will
não ouviu, e o Andarilho relaxou de volta à vida como uma
figura em um filme que teve uma pausa e recomeçou
novamente. Observando com os olhos esbugalhados, olhou
para Merriman, abriu a boca e emitiu um curioso e seco
som sem palavras.
— Vá — disse Merriman. O velho partiu encolhido,
apertando a roupa ao redor do corpo, atrapalhado em uma
quase corrida, subindo a passagem estreita. Observando-o
partir, Will piscou, depois fixou com mais atenção e
esfregou os olhos, pois o Andarilho parecia estar
desaparecendo, dissipando-se cada vez mais, de modo que
era possível ver as árvores através de seu corpo. Então, de
uma só vez, desapareceu, como uma estrela ocultada pelas
nuvens.
Merriman acrescentou: — Meu dever, não o dele. Ele
merece paz por enquanto, eu acho, em outro lugar. Este é o
poder das Estradas Velhas, Will. Você teria usado este
segredo para escapar da garota feiticeira, tão facilmente,
se soubesse como. Mas ainda vai aprender isso, e os nomes
corretos e muitas outras coisas logo, logo.
Will perguntou com curiosidade: — Qual é o seu nome
correto?
Os olhos negros brilharam-lhe para de dentro do
capuz.
— Merriman Lyon. Eu disse quando nos conhecemos.
— Mas eu acho que se este fosse seu nome
verdadeiro, como um Ancião, você não teria me contado —
replicou Will. — De forma alguma, não tão alto.
— Você já está aprendendo — disse Merriman com
alegria. — Venha, está ficando escuro.
Partiram juntos descendo o caminho. Segurando
firmemente suas sacolas e caixas, Will andava apressado ao
lado da figura vestida com um manto, que insistia em andar
a passos largos. Conversaram pouco, mas a mão de
Merriman estava sempre atenta para pegá-lo caso
tropeçasse em algum buraco ou depressão. Enquanto
saíam, na curva afastada da trilha de maior largura da
Trilha do Vale do Caçador, Will avistou seu irmão Max vindo
rapidamente na direção deles.
— Olhe, é o Max!
— Sim — disse Merriman. Max chamou, acenando
alegremente, e então se aproximou.
— Eu já estava indo encontrá-lo do ponto de ônibus —
Nossa mãe já estava quase enlouquecendo porque seu
bebezinho estava atrasado.
— Ah, pelo amor de Deus — disse Will. — Por que
você está vindo por este caminho? — acenou Max na
direção do Beco do Vagabundo.
— Nós estávamos apenas... — começou Will, e
enquanto virava sua cabeça para incluir Merriman em seu
comentário, parou tão abruptamente que chegou a morder
a língua.
Merriman havia partido, sem deixar qualquer tipo de
vestígio na neve onde se encontrava alguns momentos
antes. E quando Will olhou o caminho que tinham
atravessado pela Trilha do Vale do Caçador e para o topo da
curva abaixo da trilha menor, conseguiu ver apenas uma
trilha de pegadas — as suas próprias.
O menino pensou ter ouvido uma música cristalina e
distante, em algum lugar no ar, mas mesmo enquanto
erguia sua cabeça para escutar, também já não estava
mais lá.
VÉSPERA DE NATAL

Véspera de Natal. Era o dia em que as alegrias do


Natal realmente pegavam fogo na família Stanton. Pistas,
promessas e esperanças de coisas especiais, que surgiram
subitamente e iluminaram as semanas anteriores, agora de
repente floresciam em uma expectativa alegre e constante.
A casa estava cheia de maravilhosos cheiros de coisas
assadas que exalavam da cozinha, em um canto onde
Gwen poderia ser encontrada dando os toques finais ao
glacê do bolo de Natal. Sua mãe havia feito o bolo há três
semanas e o pudim de Natal, três meses antes disto.
Imutáveis, as músicas natalinas conhecidas permeavam a
casa sempre que alguém ligava o rádio. A televisão nunca
era ligada; e havia se tornado, naquela época, algo
irrelevante. Para Will, o dia conferia a si mesmo um enfoque
natural desde cedo. Logo depois do café-da-manhã — um
assunto ainda mais que o normal — seria dado andamento
ao duplo ritual da lenha Yule e da árvore de Natal.
O sr. Stanton estava terminando sua última torrada.
Will e James ficavam um de cada lado dele à mesa do café,
sem parar quietos. O pai pegou uma casquinha esquecida
em uma das mãos enquanto folheava as páginas de esporte
do jornal. Will também era fervorosamente interessado na
sorte do Clube de Futebol Chelsea, mas não na manhã da
véspera do Natal.
— O senhor gostaria de mais torrada, papai? — disse
ele em voz alta.
— Hum — murmurou o sr. Stanton.
— Ah! — disse James. — Quer mais chá, papai?
O sr. Stanton olhou para cima, girou o rosto redondo
de olhar terno de um lado para o outro e sorriu. Colocou o
papel sob a mesa, terminou a xícara de chá e enfiou o
pedaço de torrada na boca.
— Vamos lá, então — disse ele indistintamente,
tomando cada filho por uma orelha. Eles uivaram
alegremente e correram para pegar as botas, jaquetas e
lenços.
Logo estavam descendo a estrada com o carrinho de
mão: Will, James, o sr. Stanton e o alto Max, mais alto que
seu pai, mais alto que qualquer outra pessoa, deixando
sobressair de um velho e vergonhoso boné seu longo
cabelo preto em uma franja um tanto engraçada. O que
Maggie Barnes pensaria disto, perguntou-se Will
alegremente, quando a moça surgisse, maliciosamente
como sempre, perto da cortina da cozinha para flagrar os
olhos de Max; e então, no mesmo instante, ele se lembrou
de Maggie Barnes e pensou com pressa, alarmado: O
fazendeiro Dawson é um dos Anciãos, ele deve ser avisado
sobre ela — e estava desesperado por não ter pensado
nisto antes.
Eles pararam no quintal dos Dawson; o Velho George
Smith veio saudá-los com seu enorme sorriso. A ida havia
sido mais fácil pela estrada naquela manhã, desde que a
retirada de parte da neve foi executada, mas, para todos os
lados, ela ainda permanecia constantemente imóvel em um
gelo cinzento, desprovida de vento.
— Arrumei uma árvore para abater! — informou Velho
George alegremente. — Reta como um mastro, igual à do
dono da fazenda. As duas são árvores Reais, eu reconheço
uma.
— Reais como de onde vêm — disse o sr. Dawson,
tirando seu casaco apertado enquanto saía. Ele quis dizer
exatamente isso, sabia Will: todo ano, um número de
árvores de Natal era vendido da plantação da Coroa ao
redor do Castelo de Windsor e várias delas eram
transportadas no caminhão da fazenda dos Dawson para o
vilarejo.
— Bom dia, Frank — disse o sr. Stanton.
— Dia, Roger — disse o fazendeiro Dawson, e sorriu
para os garotos. — Ei, rapazes! Dêem a volta com o
carrinho. — Seus olhos passaram impessoais sobre Will,
sem nada mais do que um lampejo de percepção, mas o
garoto deixou sua jaqueta aberta de propósito, de forma
que ficasse claro que naquele momento havia dois Signos
do círculo cruzado em seu cinto, não apenas um.
— Bom vê-los tão vivazes — disse o sr. Dawson para
todos, enquanto eles colocavam o carrinho atrás do celeiro;
sua mão descansou brevemente no ombro de Will com uma
discreta pressão, dizendo-lhe que o fazendeiro Dawson
fazia uma boa idéia do que estava acontecendo nos últimos
dias. Ele pensou em Maggie Barnes e buscou
insistentemente palavras que pudessem mascarar o aviso.
— Onde está a sua namorada, Max?— disse-lhe,
cuidadosamente alto e claro.
— Namorada? — Max perguntou indignado. O rapaz
estava profundamente envolvido com uma estudante de
sua Escola de Arte de Londres que usava os cabelos loiros
em uma trança, e de quem chegava uma enorme
quantidade de cartas em envelopes azuis pelo correio todos
os dias, o que o deixava totalmente desinteressado pelas
garotas locais.
— Ora, ora, ora — disse Will, esforçando-se. — Você
sabe.
Felizmente, James era fã desse tipo de coisa e se
juntou a ele com entusiasmo.
— Maggie-maggie-maggie — cantava jocoso. — Oh,
Maggie. A doce ordenhadora e Maxie, o grande artista,
oooh-oooh... — Max socou o irmão na costela e caiu numa
risada fungando.
— A jovem Maggie precisou nos deixar — disse o sr.
Dawson friamente. — Doença na família. Precisavam dela
em casa. A moça fez as malas e partiu cedo pela manhã.
Desculpe desapontá-lo, Max.
— Não estou desapontado — o menino retrucou,
ficando vermelho. — Isso é coisa desse estúpido...
— Oooooh-oooooh — cantava James, dançando ao
redor, fora do alcance dos braços cumpridos de Max. —
Oooh, pobre Maxie, perdeu sua Maggie.
Will não disse nada. Estava satisfeito com o que
ouvira.
O enorme pinheiro, com seus galhos amarrados para
baixo pelas faixas de corda branca de pêlos, foi
transportado para dentro do carrinho de mão, junto da
velha raiz torcida de uma faia que o fazendeiro Dawson
tinha cortado mais cedo naquele ano, partido ao meio e
separado para fazer lenha de Yule, para si mesmo e para os
Stanton. Tinha que ser a raiz de uma árvore, não um galho,
sabia Will, embora ninguém jamais tivesse explicado o
motivo. Em casa, naquela noite, eles depositariam a lenha
no fogo, na enorme lareira de tijolos da sala de estar, e ela
iria queimar lentamente até a madrugada, quando todos
iriam para a cama. Em algum lugar estocado, encontrava-
se um pedaço da lenha de Yule do ano anterior, guardado
para ser usado como cavaco para acender o fogo para seu
sucessor.
— Aqui — disse Velho George, aparecendo de repente
do lado de Will enquanto eles empurravam o carrinho para
fora da porteira. — Vocês precisam ter alguns destes aqui.
— Ele acrescentou um enorme ramo de azevinho,
cheio de frutinhas.
— Muita gentileza sua, George — agradeceu o sr.
Stanton.
— Mas nós temos desta árvore de azevinho na frente
da porta de casa. Se souber de alguém que não tenha...
— Não, não, pode levar. — O velho acenou
negativamente com o dedo. — Não tem nem metade de
tanta frutinha nesse seu arbusto. Este é o azevinho
especial. — Ele deitou o ramo cuidadosamente no carrinho,
depois partiu rapidamente um broto e o enfiou na última
casa de botão do casaco de Will. — E uma boa proteção
contra as Trevas — a velha voz disse baixinho nos ouvidos
do menino —, se pregada sobre a janela e sobre a porta. —
Então, o sorriso de gengivas rosadas dividiu seu rosto
moreno e enrugado em um grasnido de gargalhada antiga e
o Ancião voltava a ser o Velho George novamente,
acenando-lhes. — Feliz Natal!
— Feliz Natal, George!
Enquanto eles carregaram a árvore cerimonialmente
à frente da casa, os gêmeos a fixaram com tábuas cruzadas
e chave de fenda, fornecendo assim uma base de apoio. Na
outra extremidade do aposento, Mary e Bárbara estavam
sentadas sobre um monte de papéis coloridos, cortando-os
em faixas vermelhas, amarelas, azuis e verdes, para depois
colá-las em círculos interligados pelas correntes de papel.
— Vocês deveriam ter feito isso ontem — disse Will.
— Elas precisam de tempo para secar.
— Você deveria ter feito isto ontem — respondeu
Mary ressentida, jogando para trás seus cabelos longos. —
Isto deveria ser trabalho do mais novo.
— Eu cortei um monte de faixas dias atrás — disse
Will. — Nós as usamos há algumas horas.
— Eu sim as cortei, todas iguais.
— Além disso — disse Bárbara tranqüilamente —, ele
estava fazendo compras de Natal ontem. Então é melhor
você se calar, Mary, ou ele pode decidir tomar seu presente
de volta.
Mary murmurou, mas cedeu, e Will não muito
entusiasmado colou algumas correntes de papel.
Entretanto, mantinha um olho sobre a porta de entrada e,
quando viu seu pai e James aparecerem com seus braços
cheios de velhas caixas de papelão, saiu furtivamente atrás
deles. Nada o impediria de decorar a árvore de Natal.
De dentro das caixas surgiam todos os enfeites
conhecidos que transformariam a vida da família em uma
festa por doze noites e dias: a figura de cabelos dourados
para o topo da árvore; as faixas de luzinhas coloridas.
Depois havia as três frágeis bolas de vidro de Natal,
cuidadosamente guardadas durante anos. Meias esferas
espiraladas como conchas marinhas vermelhas e verde-
douradas; elegantes lanças de vidro e teias de aranha feitas
de gotas e fios de vidro cintilante e todos eles seriam
gentilmente pendurados e ligados sobre os ramos escuros
da árvore, para reluzir no ambiente.
Havia outros tesouros. Pequenas estrelas douradas e
círculos de palha trançada, luzes e sinos de papel prateado
plissado. Em seguida, uma miscelânea de enfeites feitos
por diversas crianças Stanton, variando desde a rena do
limpador de cachimbo de Will até uma linda cruz filigranada
que Max havia fabricado de fio de cobre em seu primeiro
ano na escola de artes. E havia as faixas natalinas para
serem pregadas em algum espaço livre, e só então a caixa
estaria vazia.
Mas não tão vazia assim. Passando seus dedos
cautelosamente pelo amontoado de papel de embalagem
esfarelado, Will encontrou em um recipiente de papelão
aproximadamente tão alto quanto ele uma caixa plana
pequena, não tão mais larga que sua mão. E que
chacoalhava.
— O que é isto? — disse ele curiosamente, tentando
abrir a tampa.
— Bons céus — disse a sra. Stanton de sua poltrona
situada no centro da sala. — Deixe-me ver isso um instante,
querido. Seria... sim, é sim! Estava na caixa grande? Eu
pensei que a tinha perdido há alguns anos. Olhe só pra isso,
Roger. Veja o que seu filho mais novo encontrou. É a caixa
de letras do Frank Dawson.
Ela pressionou o fecho sobre a tampa da caixa, de
modo que ela oscilou e Will pôde ver em seu interior uma
quantidade de pequenas peças talhadas e ornamentadas,
feitas com alguma madeira clara que o garoto não
conseguia identificar. A sra. Stanton segurou uma para
cima: um S curvado, com a cabeça lindamente detalhada e
o corpo escamoso de uma serpente, rodopiando em uma
linha quase imperceptível. Então outra: um M arqueado,
com picos semelhantes às agulhas gêmeas de uma catedral
surreal. Os entalhes eram tão delicados que seria
impossível ver onde elas se juntavam à linha que as
prendia.
O sr. Stanton desceu as escadas e colocou
cuidadosamente um dedo dentro caixa. — Ora, ora — disse.
— Muito esperto, velho Will.
— Eu nunca vi isso antes — disse o menino.
— Bem, na realidade já viu sim — disse sua mãe. —
Mas hã tanto tempo que você não se lembraria. Elas
desapareceram anos e anos atrás. Engraçado estarem no
fundo daquela caixa durante todo esse tempo.
— O que são?
— Enfeites de árvore de Natal, é claro — concluiu
Mary, espiando sobre os ombros de sua mãe.
— O fazendeiro Dawson as fez para nós — explicava a
sra. Stanton.
— Elas foram impecavelmente talhadas, como pode
ver. E são exatamente tão antigas quanto esta família... em
nosso primeiro dia de Natal nesta casa, Frank fez um R
para. Roger — disse recolhendo a letra da caixa — e um A
para mim.
O sr. Stanton retirou duas letras que estavam
penduradas juntas na mesma linha. — Robin e Paul. Este
par chegou um pouco mais tarde do que o normal. Nós não
esperávamos que fossem gêmeos... Realmente, Frank foi
muito amável. Fico pensando se ele tem tempo para essas
coisas agora.
A sra. Stanton ainda girava as pequenos espirais de
madeira em seu queixo, com dedos fortes. — M para Max,
outro M para Mary... Frank ficou muito zangado conosco por
termos repetido, eu me lembro... Ah, Roger, — ela chamou
com a voz subitamente mais branda. — Olhe esta aqui.
Will ficou ao lado de seu pai. Era uma letra T, talhada
com uma pequena e belíssima árvore que se estendia em
dois galhos largos.
— T? — perguntou. — Mas ninguém aqui começa com
T.
— Era Tom — respondeu sua mãe. — Eu não sei
realmente por que eu nunca falei para vocês, os mais
novos, sobre Tom. Já faz tanto tempo... Tom foi seu
irmãozinho que faleceu. Ele tinha alguma coisa errada nos
pulmões, uma doença que alguns bebês novos adquirem, e
viveu somente por três anos. Frank já tinha a inicial talhada
para ele, pois foi nosso primeiro bebê e já tínhamos os dois
nomes escolhidos: Tom se fosse um menino e Tess se fosse
uma menina.
A voz dela soava levemente abafada, e Will de
repente se arrependeu de encontrar as letras. Bateu nos
ombros de sua mãe, constrangido. — Não faz mal, mamãe
— disse ele.
— Ah, meu menino gentil — disse a sra. Stanton
rapidamente. — Não estou triste, querido. Foi há muito
tempo. Tom já seria um homem agora, mais velho do que
Stephen. Além disso — ela lançou um olhar engraçado pela
sala, amontoada de gente e caixas —, nove filhos seriam
demais para qualquer mulher.
— Você pode dizer isso de novo — disse o sr. Stanton.
— Isso resultou de ter ancestrais fazendeiros, mamãe
— disse Paul. — Eles acreditavam em famílias grandes.
Muita mão-de-obra grátis.
— Falando em mão-de-obra grátis — disse seu pai —,
por onde andam James e Max?
— Pegando as outras caixas.
— Bom Deus. Quanta iniciativa!
— Espírito de Natal — disse Robin da escada portátil.
— "Alegrai-vos, povos crentes", e tudo o mais. Por
que alguém não coloca uma música?
Bárbara, sentada ao lado de sua mãe, pegou a
pequena letra talhada T da mão dela e a colocou junto com
uma fileira que havia feito sobre o carpete de cada inicial
pela ordem. — Tom, Steve, Max, Gwen, Robin e Paul, eu,
Mary, James — disse ela. — Mas onde está o W de Will?
— A letra do Will estava junto com as demais. Dentro
da caixa.
— Não era um W na realidade, se você se lembrar —
disse o sr. Stanton. — Era um tipo de desenho. Ouso dizer
que Frank ficou cansado de fazer iniciais àquela altura. —
Disse sorrindo para Will.
— Mas não está aqui — continuou Bárbara. Ela
segurou a caixa de cabeça para baixo e balançou. Depois,
olhou para o irmão mais novo como o rosto sério. — Will —
disse — você não existe.
Mas Will estava sentindo um crescente desconforto
que parecia surgir de alguma parte muito profunda de sua
mente.
— O senhor disse que era um desenho, não um W—
disse como quem não quer nada. — Que tipo de desenho,
pai?
— Uma mandala, se me recordo — respondeu o sr.
Stanton.
— Uma o quê?
Seu pai riu baixinho. — Não dê atenção a isso. Eu
estava apenas dando um exemplo. Eu não imagino Frank
chamando o desenho disso. Uma mandala é um tipo de
símbolo muito antigo que data da época da adoração do Sol
e esse tipo de coisa... qualquer desenho feito de um círculo
com linhas radiantes externas e internas. Seu pequeno
enfeite de Natal era um modelo básico... exibia um círculo
com uma estrela em seu interior, ou uma cruz. Acho que
era uma cruz.
— Eu não consigo imaginar por que não o
encontramos na caixa com o resto — disse a sra. Stanton.
Mas Will conseguia. Se havia poder em conhecer o
nome próprio das pessoas das Trevas, talvez as Trevas, por
sua vez, executassem a magia sobre os outros usando
algum Signo que era símbolo de um nome, como uma
inicial talhada... Talvez alguém tenha retirado o seu símbolo
para tentar obter poder sobre ele daquela maneira. E
talvez, na realidade, tenha sido este o motivo que levou o
fazendeiro Dawson a lhe talhar, não uma inicial, mas um
símbolo que ninguém das Trevas poderia usar. De qualquer
maneira, eles o roubaram, para tentar...
Um pouco depois, Will esgueirou-se da decoração da
árvore em direção ao andar superior, fixou um ramo sobre a
porta e cada janela de seu quarto. Então inseriu um pedaço
de ramo dentro do fecho recentemente consertado da
clarabóia também. Depois, fez o mesmo nas janelas do
quarto de James que seria compartilhado por ambos os
meninos na véspera de Natal, voltando em seguida para o
andar de baixo e fixando com cuidado um pequeno ramo
sobre as portas da frente e dos fundos da casa. E teria feito
o mesmo em todas as janelas, se Gwen não tivesse
passado pela sala e percebido o que ele estava fazendo.
— Oh, Will — disse ela. — Não em todo lugar. Coloque
isso pela cornija da lareira ou em algum outro lugar, para
que fique controlável. Quero dizer, de outra forma,
pisaremos nas frutinhas do azevinho toda vez que alguém
abrir ou mexer nas cortinas.
Um atitude tipicamente feminina, pensava Will
revoltado; mas ele não estava inclinado a chamar atenção
para o azevinho fazendo algum tipo de protesto. De
qualquer maneira, refletia enquanto colocava a planta
artisticamente sobre a cornija da lareira, até ali teria
proteção, a única entrada na casa de que ele havia se
esquecido. Tendo deixado seus dias de Papai Noel para trás,
ele não havia pensado nas chaminés.
A casa encontrava-se reluzente, com cores e a
animação. A véspera de Natal já estava quase consumada.
Mas por último, chegou a hora dos cânticos natalinos.
Depois do chá naquele dia, quando as luzes de Natal
foram ligadas, e quando o último farfalhar de embrulhos de
presentes chegou ao fim, o sr. Stanton alongou-se em sua
poltrona surrada de couro, pegou seu cachimbo e sorriu
suntuosamente para todos.
— Bem — disse —, quem fará a jornada neste ano?
— Eu — disse James.
— Eu — falou Will.
— Bárbara e eu — respondeu Mary.
— Paul, é claro — acrescentou Will. O estojo da flauta
do irmão já estava separado na mesa da cozinha.
— Eu não sei se eu deveria — disse Robin.
— Sim, você deve sim — falou Paul. — Nada fica bom
sem um barítono.
— Ah, tudo bem então — disse o gêmeo com
relutância. Essa breve interação era repetida anualmente
há três anos. Por sua compleição larga e raciocínio lógico, e
sendo um excelente jogador, Robin sentia que não era
adequado se mostrar ansioso por qualquer atividade tão
feminina quanto as cantigas natalinas. Na realidade, ele se
dedicava genuinamente à música, como o restante da
família, e tinha uma voz grave bastante agradável.
— Ocupada demais — disse Gwen. — Desculpem-me.
— O que ela quer dizer — acrescentou Mary a certa
distância — é que precisa lavar seus cabelos caso Johnnie
Penn possa passar por aqui.
— O que quer dizer com possa? — disse Max da
poltrona do lado de seu pai.
Gwen olhou-o feio. — Bem — interpelou —, e o que
acha de você ir cantar?
— Ainda mais ocupado do que você — respondeu Max
preguiçosamente. — Desculpe.
— E o que ele quer dizer é — disse Mary, agora
rondando a porta — que precisa se sentar em seu quarto e
escrever outra carta enorme para seu passarinho verde de
Southampton.
Max arrancou um de seus chinelos para atirar, mas
ela já tinha saído.
— Passarinho? — perguntou seu pai. — Qual seria a
próxima palavra?
— Nossa, pai! — James o interpelou com horror. — O
senhor realmente vive na Idade da Pedra. Garotas são
chamadas de passarinho verde desde o início dos tempos.
Quase tanto inteligência quanto passarinho também, se
quiser saber.
— Alguns pássaros de verdade são muito inteligentes
— disse Will de forma reflexiva. — Você não acha? — Mas o
episódio das gralhas foi tão efetivamente apagado da
mente de James que ele nem percebeu; as palavras não
surtiram efeito.
— Fora todos vocês — disse a sra. Stanton. — Botas,
casacos quentes, e voltem lã pelas oito e meia.
— Oito e meia? — disse Robin. — E se cantarmos três
canções natalinas para a srta. Bell, e se a srta. Greythorne
convidar a todos para um ponche?
— Bem, nove e meia e já bem atrasados — disse ela.

***

Estava muito escuro na hora em que saíram; o céu


não ficava claro, nem a Lua ou mesmo uma única estrela
brilhavam na noite. A lamparina que Robin carregava em
uma vara lançava um círculo de luz cintilante sobre a neve,
mas cada um carregava uma vela em um dos bolsos do
casaco. Quando chegassem ao Solar, a idosa srta.
Greythorne insistiria para que entrassem e ficassem em seu
enorme salão de entrada revestido de pedra, com todas as
luzes acesas. Daí cada um seguraria a vela enquanto
cantassem.
O ar estava gelado, e a respiração do grupo exalava
uma fumaça branca e densa. Aqui e ali caíam esparsos
flocos de neve do céu, e Will pensava nas predições da
mulher rechonchuda do ônibus. Bárbara e Mary
conversavam afastadas do grupo, tão confortavelmente
como se estivessem sentadas em casa, mas por trás da
conversa, os passos de todo o grupo soavam frios e rígidos
sobre o caminho de neve. Will sentia-se feliz, aconchegado
pelos pensamentos do Natal e o prazer dos cânticos
natalinos; prosseguia caminhando em um estado sonhador
bastante satisfeito, segurando a grande caixa de
arrecadação que levavam para ajudar a menor, a mais
antiga e famosa igreja Saxônia do Vale do Caçador, que
rapidamente se deteriorava. Bem adiante situava-se a
fazenda dos Dawson, com um enorme ramo de muitos
azevinhos frutíferos pendurados sobre as portas do fundo. E
logo as canções natalinas começaram.
Saíram pela cidade cantando: "Nowell " para o
pároco; "God Rest Ye Merry, Gentlemen ", para o alegre sr.
Hutton, o enorme homem de negócios que vivia na nova
casa de estilo Tudor no final do vilarejo, e que sempre
olhava como se estivesse muito alegre mesmo; "Once in
Royal David's City", para o sr. Pettigrew, o viúvo da agente
do correio, que tingira os cabelos com folhas de chá e
mantinha um cãozinho coxo que parecia um novelo de lã
cinza. Eles ainda cantaram "Adeste Fideles " em latim, e
"Les Anges dans nos Campagnes " em francês para a
pequenina srta. Bell, a professora aposentada do vilarejo,
que havia ensinado todos eles a ler e escrever, adicionar e
subtrair, falar e pensar, antes que fossem para escolas de
outros lugares. A pequenina srta. Bell disse roucamente: —
Lindo, lindo — e colocou algumas moedas das quais eles
sabiam que ela não tinha condições financeiras para se
desfazer em favor da caixa de arrecadação, e ofereceu a
cada um deles um abraço e seus votos: — Feliz Natal! Feliz
Natal! — e assim eles partiram para a próxima casa da lista.
Faltavam mais quatro ou cinco casas, uma delas era o
lar da taciturna sra. Homiman, que "trabalhava" para a mãe
deles uma vez por semana, e que nascera e fora criada no
leste de Londres até que uma bomba explodisse sua casa
hã trinta anos. Ela sempre dava para cada um seis pêni de
prata, e mais uma vez lhes deu, ignorando calmamente a
troca de moedas. — Não seria Natal sem os seis pêni —
disse a sra. Homiman. — Eu separei um bom estoque delas
antes de aterrissarmos, com todos os decimais. Assim as
terei em todo Natal do jeito que eu costumava fazer, meus
queridos, e calculo que meu estoque me abastecerá até
que eu vá para a cova e vocês estejam cantando para
alguma outra pessoa nesta porta. Feliz Natal! E então era a
vez do Solar, a última parada antes de casa.
Aqui vamos nós brindando, entre folhas tão
verdejantes Tão formosos, vamos nós errantes Eles sempre
começavam com a antiga Wassail para a srta. Greythorne, e
naquele ano, os trechos sobre as folhas verdes, para Will,
eram menos apropriadas do que o normal. E continuaram a
entoar o cântico mas, na última estrofe, Will e James
elevaram muito a voz num contraponto, que não
costumavam fazer para o término da música, pois desta vez
eles precisaram de muito fôlego:
Bom senhor e boa senhora,
Enquanto estão sentados no calor da chama
Rogamos que pensem em nós,
pobres crianças que vagam pela lama...
Robin puxou o longo metal do sino, cujo tinido
profundo sempre causava em Will a sensação de um alarme
sombrio e, enquanto eles entoavam os últimos versos, a
enorme porta se abriu e lã se encontrava o mordomo da
srta. Greythorne, com o fraque que ele sempre vestia nas
vésperas de Natal. Não se tratava de um exímio mordomo;
o seu nome era Bates, um homem alto, magro e moroso
que freqüentemente podia ser visto na horta ajudando um
jardineiro mais velho, perto do portão dos fundos do Solar,
ou discutindo sobre suas artrites com a sra. Pettigrew no
Correio.
Venha sobre vós o amor e alegria
E saúde também
O mordomo sorriu e lhes acenou educadamente,
mantendo a porta aberta; então, Will engoliu a última nota
alta da canção, pois o mordomo não era Bates, era
Merriman.
Os cânticos natalinos chegaram ao fim e todos
relaxaram, caminhando com dificuldade pela neve.
— Encantador — disse Merriman com voz grave,
examinando-os de forma impessoal. E o tom imperioso da
srta. Greythorne surgiu atrás dele.
— Traga-os para dentro! Traga-os para dentro! Não os
deixe esperando na porta da casa!
Ela estava ali, na enorme entrada do salão, na
mesma cadeira de encosto alto que eles viam em todas as
vésperas de Natal. Estava impossibilitada de andar hã anos,
desde um acidente ocorrido quando era ainda bem jovem
— seu cavalo havia caído e rolado sobre ela, contava o
vilarejo — mas ela decididamente se recusava ser vista em
uma cadeira de rodas. Tinha o rosto magro e olhos
brilhantes e seus cabelos grisalhos estavam sempre
levantados no topo de sua cabeça como um tipo de nó: era
uma figura totalmente misteriosa no Vale do Caçador.
— Como está sua mãe? — perguntou a srta.
Greythorne para Paul. — E seu pai?
— Muito bem, obrigado, srta. Greythorne.
— Passando um bom Natal?
— Esplêndido, obrigado. Espero que a senhorita
também. — Paul, que sentia pena da srta. Greythorne,
sempre se metia em encrenca por ser entusiasticamente
cordial; ele tentava assegurar que seus olhos não
passeariam pelo alto salão enquanto falava. Pois embora a
governanta-cozinheira e a criada estivessem sorrindo no
fundo do aposento e, é claro, houvesse o mordomo que
abrira a porta, de outra maneira não havia quaisquer
indícios de outros visitantes, árvores, enfeites ou outro sinal
das festas de Natal naquela casa, exceto por um ramo
gigantesco de azevinho fixado sobre a cornija da lareira.
— Uma época estranha — disse a srta. Greythorne,
olhando para Paul pensativamente. — Tão cheia de uma
quantidade enorme de coisas, como aquela odiosa
garotinha disse no poema. — Ela se virou repentinamente
para Will. — E você anda muito ocupado neste ano, hein,
jovem rapaz?
— Certamente — disse Will com franqueza, pego de
surpresa.
— Luz para suas velas — disse Merriman em tom
baixo e respeitoso, aproximando uma caixa com enormes
palitos de fósforo. Apressadamente, todos eles puxaram as
velas de seus bolsos. O mordomo acendeu um fósforo e
moveu-se cuidadosamente entre o grupo. A luz tornava
suas sobrancelhas em uma cerca viva e fantástica de pêlos,
e as linhas do nariz até a boca em ravinas profundas e
sombrias. Will olhou pensativamente para o fraque dele,
cortado na altura do quadril, e com um tipo de babado no
pescoço em vez de uma gravata branca. Sentia certa
dificuldade em pensar em Merriman como um mordomo.
Alguém no fundo do salão apagou as luzes, deixando
o enorme aposento iluminado apenas pelas chamas
bruxuleantes na mão de cada membro do grupo. Ouviu-se
uma leve batida de pé; depois começaram a entoar a doce
cantiga de Natal Lullay lullay, thou little tiny child... —
terminando com a última estrofe sem as vozes, apenas com
o instrumento tocado por Paul. O som claro e áspero da
flauta envolveu o ar como barras de luz e encheu Will com
um estranho saudosismo, a sensação de alguma coisa
esperando, algo que não conseguia compreender. Depois,
para variar, eles cantaram God Rest Ye Merry, Gentlemen;
em seguida, The Holly and the Ivy. E então voltaram a
entoar Good King Wenceslas, que sempre foi um grand
finale para a srta. Greythorne e sempre fazia Will sentir
pena de Paul, pois certa vez o rapaz comentou que esse
hino não se adequava ao tipo de música dele e que
provavelmente deveria ter sido composto por alguém que
odiava flauta.
Mas era divertido ser o pajem, tentando combinar
com exatidão a sua voz com a de James, de modo que
quando cantassem juntos soasse uma só voz.
Senhor, a léguas daqui, ele faz sua morada ...
e Will pensava: estamos realmente cantando bem
desta vez, eu juraria que James não estaria cantando se...
no sopé da montanha ...
se sua boca não estivesse de fato se mexendo...
Bem diante da floresta isolada
... e olhou para a penumbra enquanto cantava, e viu,
com um espanto tão brutal quanto se alguém o tivesse
golpeado no estômago, que de fato a boca de James não
estava se mexendo, nem qualquer outra parte de James,
nem Robin ou Mary ou qualquer um dos Stanton. Eles
estavam imóveis, todos presos no Tempo como havia ficado
o Andarilho na Velha Estrada quando a garota das Trevas
lançou o encantamento sobre ele. E as chamas de suas
velas não bruxuleavam mais, mas cada uma queimava na
mesma coluna de ar, estranha e inconsumível, branca e
luminosa que se erguera do galho que Will havia queimado
no outro dia. Os dedos de Paul não mais se moviam pela
flauta; também estava imóvel, segurando o instrumento em
sua boca. Porém, a melodia, muito semelhante, ainda mais
suave do que a tocada pela flauta, prosseguia ecoando,
assim como Will continuava cantando contra a sua vontade,
terminando a estrofe...
... perto da fonte de Santa Agnes ...
E bem quando ele começava a se perguntar, ao longo
da melodia doce e singular que lhe acompanhava e que
parecia surgir do ar, bem como a próxima estrofe foi
cantada — exceto se esperassem que um garoto tenor
cantasse como o bom rei Wenceslau, em sua partitura —
uma voz linda e grave envolveu o aposento com as
palavras conhecidas; uma voz ampla e profunda que Will
nunca havia ouvido numa canção, mas já a reconhecia.
... Traze carne e traze o vinho;
a lenha do pinheiro, traze pra cá;
Tu e eu o veremos cear
Quando os trouxermos de lá
A cabeça do menino rodava um pouco, o aposento
parecia crescer e se encolher de novo, mas a música
continuava e os pilares de luz permaneciam sobre as
chamas das velas, e, quando a próxima estrofe começou,
Merriman aproximou-se naturalmente, tomou sua mão e
eles andaram adiante cantando juntos:
Partiram rei e pajem partiram juntos no indômito
vento de audazes lamentos no tempo que mordaz
vem Ambos desceram a enorme entrada do salão, para
longe da presença dos Stanton ainda imóveis, da srta.
Greythorne em sua cadeira, da governanta-cozinheira e da
criada, vivos, mas suspensos da vida. Will sentia como se
caminhasse no ar, sem tocar o chão, pelo salão escuro; não
havia luz adiante deles agora, mas somente o brilho que
reluzia atrás. E entraram na escuridão...
Senhor, a noite agora mais escura está
E o vento forte aumenta mais;
Não sei como, meu coração desfalecendo está,
Já não posso mais....
Will ouviu sua voz tremer, pois as palavras eram as
palavras certas para o que havia em sua mente.
Marque meus passos, meu bom pajem;
Ande tu sobre eles corajoso como convém...
Merriman cantava, e de repente mais coisas se
encontravam diante de Will do que somente a escuridão.
Adiante dele erguiam-se os grandes portais, as
enormes portas talhadas que ele havia visto na encosta
coberta de neve de Chiltern, e Merriman ergueu seu braço
esquerdo e apontou para eles os cinco dedos abertos e
retos. Lentamente as portas se abriram e a elusiva música
cristalina dos Anciãos surgiu rapidamente em ondas para se
juntar ao acompanhamento da cantiga de Natal, e logo
desapareceu novamente. Will prosseguiu juntamente com
Merriman rumo à luz, em uma época diferente e em um
Natal diferente, cantando como se pudesse derramar toda a
música no mundo mediante aquelas notas — e cantava tão
confiante que o maestro do coro da escola, que era muito
exigente quanto às cabeças erguidas e maxilares bem
movidos, ficaria mudo de estupefato orgulho.
O LIVRO DA MAGIA

Eles se encontravam em um aposento claro agora,


um aposento diferente de tudo o que Will já havia visto. O
teto era alto, pintado com imagens de árvores, bosques e
montanhas; as paredes continham painéis feitos de
madeira dourada reluzente, iluminados aqui e ali por
estranhos globos brancos cintilantes. E o ambiente estava
repleto de música, a mesma canção natalina que haviam
iniciado era agora entoada por muitas vozes, em uma
junção de pessoas vestidas como se tivessem sido
extraídas da cena fantástica de um livro de história. As
mulheres, com os ombros despidos, usavam vestidos
longos com saias elaboradamente rodadas e esvoaçantes;
os homens vestiam fraques não como o de Merriman, de
casaca cortada na forma retangular, longas calças retas,
babados brancos ou gravatas de seda preta. De fato, agora
que Will se aproximava novamente para olhar Merriman,
percebia que as roupas que ele usava nunca haviam sido na
realidade as de um mordomo, mas pertenciam
completamente a outro século, seja lá qual fosse.
Uma senhora em um vestido branco avançava em
sua direção para cumprimentá-lo; enquanto ela se movia,
as pessoas ao redor se afastavam respeitosamente para
dar-lhe passagem e, quando a canção natalina chegou ao
fim, ela exclamou: — Lindíssimo! Lindíssimo! Aproxime-se,
aproxime-se! — Seu timbre era exatamente o mesmo da
voz da srta. Greythorne ao serem recebidos na porta do
Solar um pouco mais cedo e, quando Will olhou para sua
face, viu que de certa maneira era a srta. Greythorne
também. Eram os mesmos olhos e rosto magro, as mesmas
maneiras imperiosas, porém amigáveis, só que a srta.
Greythorne era muito mais jovem e bonita, como uma flor
que se abriu, mas que não havia ainda sido maltratada pelo
Sol, ventania e dias.
— Venha, Will — disse ela, sorrindo e tomando-lhe as
mãos. O menino a seguiu tranqüilamente; estava muito
claro que aquela senhora o conhecia e todos ao redor,
homens e mulheres, jovens e velhos, sorridentes e
descontraídos, também. A maior parte da multidão
iluminada estava deixando o aposento naquele momento e
partindo na direção de um cheiro delicioso de comida que
claramente significava a ceia oferecida em algum outro
lugar da casa. Mas um grupo de poucos permaneceu no
local.
— Estávamos esperando por você — disse a srta.
Greythorne e o conduziu até os fundos do salão onde o fogo
crepitava quente e convidativo, numa decorada lareira. Ela
olhava para Merriman também, incluindo-lhe em suas
palavras. — Estamos todos prontos, não existem quaisquer
obstáculos.
— Estão certos disto? — A voz de Merriman soou
rápida e grave como uma batida de martelo, e Will olhou-o
com curiosidade. Mas o rosto de nariz de falcão estava tão
misterioso como sempre.
— Definitivamente certos — disse a senhora. E
depois, de repente, ajoelhou-se ao lado de Will; o seu
vestido ondulava ao seu redor como uma grande rosa
branca; ela ficou na mesma altura dos olhos dele agora e
segurou-lhe ambas as mãos, observando e falando suave e
insistentemente. — Trata-se do terceiro Signo, Will. O Signo
da Madeira. Algumas vezes, nós o chamamos de o Signo do
Aprendizado. Chegou a hora de refazer este Signo. Will, em
todos os séculos, desde o princípio, a cada cem anos, o
Signo da Madeira deve ser renovado, pois este é o único
dentre os seis que não pode manter sua natureza imutável.
A cada cem anos nós temos que o refazer, do mesmo modo
como fomos ensinados. E agora esta será a última vez, pois
quando o seu século voltar, você o levará para todo o
sempre, para a junção, e por isso não haverá mais
necessidade de renovação.
Ela se ergueu, dizendo claramente.
— Estamos felizes em vê-lo Will Stanton, o
Descobridor dos Signos. Muito, muito felizes. — Então,
ouviram um rumor de vozes, baixo e alto, suave e profundo,
todas em consentimento e aprovação; era como um muro,
pensava Will, do qual é possível aprender e receber apoio.
De maneira muito intensa, ele pôde sentir a força da
amizade que emanava desse pequeno grupo de pessoas
vestidas de modo diferente e elegante e, perguntava-se se
todos eles eram Anciãos. Olhando para Merriman ao seu
lado, sorriu com alegria, e Merriman retribuiu o sorriso com
um olhar relaxadamente mais prazeroso que Will já havia
visto naquele rosto severo e principalmente lúgubre.
— Já está quase na hora — disse a srta. Greythorne.
— Um pequeno refresco para os recém-chegados
primeiro, talvez — disse um homem ao lado deles: um
homem pequeno, quase da mesma altura de Will. Ele
estendeu uma taça. Will a pegou olhando para cima e
percebeu que fitava um rosto magro e vivaz, quase
triangular, bastante enrugado, mas não velho, com olhos
brilhantes como estrelas que o fitavam atentamente e de
alguma maneira dentro dele. Era um rosto perturbador,
com muitas coisas a ocultar. Mas o homem moveu-se para
longe dele, para oferecer uma taça a Merriman, deixando o
menino apenas com a visão das costas vestidas com
impecável veludo verde.
— Meu senhor — disse ele com reverência enquanto
erguia a bebida, curvando-se. Merriman o olhou com uma
curva divertida nos lábios, sem dizer nada, mas continuava
olhando zombeteiramente e esperando. Antes que Will
tivesse a chance de começar a refletir sobre o
cumprimento, o homenzinho piscou e parecia ter
subitamente recuperado o bom humor, como alguém
sonhando que desperta abruptamente. Rompeu numa
gargalhada.
— Ah, não — disse gaguejando. — Pare. Eu tenho
mantido este hábito há anos, afinal. — Merriman riu com
afeição, depois ergueu a taça para ele e bebeu; já que não
conseguia decifrar aquela estranha troca, Will bebeu
também e ficou estupefato com a bebida irreconhecível
que, além de saborosa, era como um esplendor de luz, a
explosão da música, alguma coisa forte e maravilhosa que
envolvia todos os seus sentidos ao mesmo tempo.
— O que é isto?
O homenzinho virou-se e riu; seu rosto erguia todas
as rugas de expressão. — Metheglin costuma ser o nome
mais parecido — disse recolhendo a taça vazia. Soprou
dentro dela e falou inesperadamente: — Os olhos de um
Ancião podem ver — estendendo a taça. Olhando dentro da
base, Will de repente sentiu que podia ver um grupo de
pessoas em vestes marrons fazendo aquilo que acabara de
beber. Mirou o homem no casaco verde que o fitava de
perto, com uma expressão perturbadora que era quase uma
mistura de inveja e satisfação. Depois, o homem riu e levou
a taça rapidamente; a srta. Greythorne chamava por ele
para que se aproximasse dela; os globos brancos para
iluminação do aposento emitiam uma luz mais fraca e as
vozes se acalmaram. Will pensava que ainda podia ouvir
música de algum lugar na casa, mas não tinha certeza.
A srta. Greythorne permaneceu perto do fogo. Por um
momento, ela baixou a cabeça, observou Will e depois
Merriman. Em seguida, virou-se para as paredes. Ficou
observando atentamente por um longo tempo. Os painéis, a
lareira e o console eram uma peça única, toda talhada da
mesma madeira dourada: muito plana, sem qualquer curva
ou arabescos, apenas algumas rosas simples de quatro
pétalas dispostas aqui e ali. Colocou a mão em uma dessas
pequenas rosas talhadas no topo do canto esquerdo da
lareira, pressionando seu centro. Ouviu-se um estalido, e
embaixo da rosa, no nível de seu quadril, apareceu uma
abertura escura e quadrada no painel. Will não viu nenhum
painel se movendo; a abertura simplesmente apareceu ali
de maneira repentina. Então a srta. Greythorne pegou um
objeto no formato de um pequeno círculo. Era a mesma
imagem dos que ele já tinha em seu cinto, e logo percebeu
que sua mão, como antes, havia se movido de livre e
espontânea vontade e os segurava protetoramente. O
aposento ficou em total silêncio. Do lado de fora das portas,
Will podia certamente ouvir uma música agora, mas não
conseguia identificar a natureza daquele som.
O círculo do Signo era muito fino e escuro, e um dos
braços cruzados em seu interior se quebrou enquanto
observava. A srta. Greythorne o estendeu para Merriman, e
mais um pouco caiu como poeira. Will podia ver agora que
era de madeira, endurecida e extenuada, mas
apresentando ainda alguns veios.
— Tem apenas cem anos? — perguntou ele.
— Em cada cem anos, a renovação — disse ela.
— Sim — Will rebateu impulsivamente, no aposento
em silêncio. — Mas madeira dura muito mais do que isso.
Eu vi no Museu de Londres. Partes de velhas embarcações
que eles retiraram do Tâmisa. Pré-históricos. Com milhares
de anos.
— Quercus Britannicus — disse Merriman, severa e
abruptamente, parecendo um professor zangado. —
Carvalho. As canoas às quais se refere foram feitas de
carvalho. E mais ao sul, as pilhas de carvalho sobre as quais
a atual Catedral de Winchester foi fundada foram cortadas
há novecentos anos e continuam tão firmes hoje como
eram naquela época. É verdade, carvalhos duram muito
tempo, Will Stanton, e chegará o dia em que a raiz de um
carvalho desempenhará um importante papel em sua
jovem vida. Mas o carvalho não é uma madeira apropriada
para o Signo. Nossa madeira é uma de que as Trevas não
gostam. Sorveira-brava, Will; essa é a nossa árvore. O freixo
da montanha. A sorveira tem certas qualidades que não são
encontradas em nenhuma outra madeira, e de que
precisamos. Mas também há pressões sobre o Signo que a
sorveira não poderia suportar como um carvalho, ou o ferro,
ou o bronze. Por isso, o Signo deve renascer — ele o
estendeu, entre um dedo longo e um polegar
profundamente curvado e escuro — a cada cem anos.
Will aquiesceu sem dizer nada, percebendo que
estava muito consciente da presença das pessoas no
aposento. Era como se todos eles se concentrassem com
afinco em um único propósito, tornando sua concentração
até mesmo audível. Parecia que haviam se multiplicado,
num número sem fim, uma vasta multidão que se estendia
além da casa e além daquele século ou qualquer outro.
Ele não compreendeu completamente o que
aconteceu logo em seguida. Merriman puxou a mão
subitamente, quebrou o Signo de Madeira facilmente em
duas partes e o jogou no fogo, onde uma enorme e única
lenha como a lenha Yule de sua casa encontrava-se
queimando pela metade. As chamas se ergueram. Então, a
srta. Greythorne se aproximou do homenzinho no casaco de
veludo verde, recebeu dele a botija de prata da qual
versava as bebidas e jogou o conteúdo da botija sobre o
fogo. Ouviu-se um grande assovio juntamente com a
fumaça e o fogo se apagou. Ela se inclinou em seu longo
vestido branco e colocou o braço na fumaça e nas cinzas
queimando sem chamas, recolhendo um pedaço queimado
da grande lenha. Parecia com um disco irregular.
Segurando o pedaço da madeira no alto, de modo
que todos pudessem ver, ela começou a retirar as partes
embranquecidas da peça como se estivesse descascando
uma laranja; seus dedos se moviam rapidamente, e as
bordas queimadas caíam enquanto a parte reduzida da
madeira era mantida: um círculo nítido e liso, contendo
uma cruz. Não havia qualquer irregularidade, como se
nunca tivesse t ido outra forma além daquela. E em
seguida, as alvas mãos da srta. Greythorne não
apresentavam um traço sequer de fuligem ou cinza.
— Will Stanton — ela disse, virando-se —, aqui está o
terceiro Signo. Eu não devo entregá-lo para você neste
século. Sua busca deve ser realizada em seu próprio século.
Mas a madeira é o Signo de Aprendizado, e quando tiver
completado todo o seu aprendizado em especial, você o
encontrará. Eu posso deixar em sua mente os movimentos
que serão necessários para descobri-lo. — Fixou-o
firmemente e depois se ergueu e deslizou o estranho círculo
de madeira dentro da abertura escura no painel. Com a
outra mão, pressionou a rosa talhada no alto da parede, e
com a mesma rapidez, para não ser vista, assim como
antes, repentinamente, a abertura já não estava mais lã. A
parede de painéis de madeira encontrava-se lisa e absoluta
como se não tivesse passado por qualquer mudança.
Will observou. Lembre-se de como foi feito, lembre-
se... Ela havia pressionado a sua mão na primeira rosa
talhada no topo do canto esquerdo. Mas agora havia três
rosas em um grupo naquele canto; qual delas seria?
Enquanto ele prestava mais atenção, viu com temeroso
espanto que agora toda a parede de painéis estava coberta
com quadrados de madeira talhada, cada um contendo
uma única rosa de quatro pétalas. Teriam se multiplicado
naquele momento, sob seus olhos? Ou estariam ali desde
sempre, invisíveis por causa da ilusão da luz? Balançou a
cabeça alarmado e olhou ao redor para Merriman. Mas já
era tarde. Ninguém estava próximo dele. A solenidade já
havia desaparecido no ar; as luzes estavam mais claras
novamente e todos conversavam animadamente. Merriman
murmurava alguma coisa para a srta. Greythorne,
curvando-se muito para falar ao seu ouvido. Will sentiu um
toque em seu braço e virou-se.
Era o homenzinho no casaco verde, acenando para
ele. Perto das portas na outra extremidade do aposento, o
grupo de músicos que havia acompanhado a canção
natalina começou a tocar novamente: o som suave de
flauta doce e violinos e outro instrumento que parecia uma
harpa. Era outro cântico que tocavam naquele momento, e
antigo, muito mais antigo do que o próprio século daquele
aposento. Will queria ouvir, mas o homem do casaco verde
segurava seu braço e o conduzia insistentemente em
direção à porta lateral.
Will permaneceu firme, rebelde, e virou-se para
Merriman. A silhueta alta se levantou abruptamente, girou
ao redor procurando por ele. Mas, quando viu o que estava
acontecendo, Merriman relaxou, erguendo apenas uma das
mãos em consentimento. Will sentiu uma reafirmação
sendo colocada em sua mente: pode ir, está tudo bem. Eu
estarei junto.
O homenzinho pegou uma lamparina, olhou com
naturalidade sobre ele, depois rapidamente abriu a porta
lateral o suficiente para que ele e Will passassem. — Você
não confia em mim, não é? — perguntou com sua voz
aguda e descontrolada. — Bom, não confie em ninguém a
menos que seja necessário, garoto. Assim, você realizará
tudo o que está aqui para fazer.
— Parece que conheço as pessoas agora, em sua
maioria — disse Will. — Quero dizer, de alguma maneira,
identifico aqueles em quem posso confiar. Geralmente. Mas
você... — interrompeu sua fala.
— Sim? — disse o homenzinho.
Will continuou: — Você não se encaixa.
O homenzinho gritou dando uma gargalhada, seus
olhos desapareciam nas rugas de seu rosto; então ele parou
abruptamente e ergueu a lamparina. No círculo da luz
bruxuleante, Will percebeu que o lugar parecia um pequeno
aposento desprovido de móveis, exceto por uma poltrona,
uma mesa, uma pequena escada móvel e uma estante alta
com a frente de vidro no centro voltada para cada parede.
Ouviu o som de um tique e viu, escondido nas sombras, um
enorme relógio de pêndulo situado em um canto. Se o
cômodo estivesse dedicado apenas à leitura, como parecia,
então mantinha um controlador do tempo que avisava em
alto som quando se lia por tempo demais.
Will recebeu a lamparina das mãos do homenzinho. —
Eu acho que deve haver outra por aqui... ah. — Logo
começou um som sibilante indefinível que Will havia
percebido uma ou duas vezes no aposento ao lado; em
seguida, ouviu-se o estalo de um palito de fósforo, outro
som alto "pop!" e uma luz surgiu na parede, queimando a
princípio com uma chama avermelhada e depois
expandindo-se em um círculo branco cintilante bem maior.
— Mantos — disse ele. — Algo ainda muito recente
em casas particulares e muitíssimo chique. A srta.
Greythorne está notavelmente chique pra este século.
Will não estava ouvindo. — Quem é você?
— Meu nome é Hawkin — respondeu o homem
animadamente. — Nada mais, apenas Hawkin.
— Bem, olhe aqui Hawkin — começou Will. Ele estava
tentando entender algo e isso o deixava bastante ansioso.
— Você parece saber o que está acontecendo. Diga-me uma
coisa, eu estou aqui no passado, num século que já
aconteceu, que faz parte dos livros de história. Mas o que
aconteceria se eu fizesse algo para alterá-lo? Eu poderia, eu
conseguiria? Qualquer coisinha... que tornasse alguma
coisa diferente na história, como se realmente eu estivesse
lá?
— Mas você esteve — disse Hawkin e depois tocou no
cordão torcido para aumentar a chama na lamparina que
Will segurava.
Will perguntou impotente: — O quê?
— Você esteve-está neste século quando ocorreu. Se
alguém tivesse escrito uma história relatando a realização
da festa de hoje à noite, você, eu e meu senhor Merriman
estaríamos nela descritos. Ainda que improvável. Um
Ancião dificilmente deixa seu nome ser registrado em
algum lugar. Geralmente, pessoas como vocês, conseguem
afetar a história de uma maneira desconhecida a qualquer
homem.
Ele igualou a chama flamejante nas três velas sobre a
mesa colocada ao lado de uma das poltronas; o couro preto
da cadeira brilhou sob a luz amarelada.
Will continuou: — Mas eu não consigo... eu não vejo.
— Venha — disse Hawkin sem demora. — É claro que
não. É um mistério. Os Anciãos podem viajar no Tempo
conforme desejarem; você não está ligado a essas leis do
Universo como nós as conhecemos.
— Você não é um?— perguntou Will. — Eu pensei que
fosse.
Hawkin balançou a cabeça, sorrindo. — Não —
respondeu. — Apenas um simples pecador. — Olhou para
baixo e deslizou sua mão sobre a manga verde de seu
casaco. — Mas o mais privilegiado de todos. Pois como
você, eu também não pertenço a este século, Will Stanton.
Fui trazido aqui somente para fazer certas coisas, e então
meu senhor Merriman me mandará de volta para o meu
tempo.
— Onde — soou a voz grave de Merriman depois do
clique suave da porta fechada — eles não possuem coisas
como o veludo, o motivo que o leva a sentir tanto prazer
neste bonito casaco. Preferível a um casaco afetado, dos
padrões atuais, devo-lhe dizer, Hawkin.
O homenzinho olhou para cima com um sorriso
ligeiro, sentindo a mão de Merriman afetuosamente
apoiada em seus ombros. — Hawkin é uma criança do
século treze, Will — disse ele. — Setecentos anos antes de
você nascer. Ele pertence àquela época. Por minha
intervenção, ele foi trazido para o dia atual e depois voltará
novamente. Como poucos homens comuns o fizeram.
Will passou a mão distraidamente pelos cabelos;
sentia como se estivesse tentando entender o horário de
uma via férrea.
Hawkin riu suavemente. — Eu falei, Ancião. É um
mistério.
— Merriman? — disse Will. — A que tempo você
pertence?
O rosto escuro e pontudo de Merriman o fitou sem
expressão, como uma imagem esculpida. — Você logo
compreenderá — respondeu. — Nós três temos outro
propósito aqui além do Signo da Madeira. Eu pertenço a
lugar nenhum e a todos os lugares, Will. Eu sou o primeiro
dos Anciãos e estive em todas as eras. Eu existi e existo no
século de Hawkin. Lá, Hawkin é meu vassalo. Eu sou seu
senhor, e mais do que senhor, pois ele esteve comigo
durante toda a sua vida, criado como se fosse um filho,
desde que eu o peguei quando seus pais faleceram.
— Nenhum filho recebeu um cuidado melhor — disse
Hawkin, bastante rouco; ele olhou para os próprios pés e
puxou a jaqueta para baixo. Will então percebeu que apesar
de todas as rugas em seu rosto, Hawkin não era muito mais
velho do que seu irmão Stephen.
Merriman acrescentou: — Ele é o meu amigo que me
serve, e tenho profunda afeição por ele. E nele tenho
grande confiança. Tão grande que lhe dei um papel vital
para desempenhar nesta busca que devemos todos realizar
neste século, a busca para seu aprendizado, Will.
— Ah — disse Will debilmente.
Hawkin lhe sorriu; depois saltou adiante e o abraçou,
rompendo deliberadamente o mau humor. — Eu tenho que
agradecê-lo por ter nascido, Ancião — disse — e por ter me
dado a oportunidade de correr como um rato para outro
tempo que não é o meu.
Merriman relaxou, sorrindo. — Você percebeu, Will,
como ele gosta de acender as lamparinas a gás? No tempo
dele, usam velas esfumaçantes que exalam cheiro e que
não são velas na realidade, mas juncos colocados no sebo.
— Lamparinas a gás? — Will olhava para o globo
branco fixado na parede. — É o que elas são?
— É claro. Não existe eletricidade ainda.
— Bem — disse Will na defensiva. — Eu nem sei que
ano seria este, afinal.
— Mil oitocentos e setenta e cinco Anno Domini —
respondeu Merriman. — Não é um ano ruim. Em Londres, o
sr. Disraeli está fazendo o possível para comprar a
Companhia do Canal de Suez. Mais da metade dos barcos
mercantes ingleses que irão atravessá-lo são barcos de
navegação. A Rainha Victoria está no trono inglês há trinta
e oito anos. Na América, o presidente tem o nome
esplendido de Ulysses S. Grant, e Nebraska é o mais novo
dos trinta e quatro estados da União. E num remoto solar
situado em Buckinghamshire, distinto e notório aos olhos do
público, somente por seu acervo referente à coleção mais
valiosa do mundo de livros sobre necromancia, uma
senhora chamada Mary Greythorne está realizando uma
festa de véspera de Natal, com cânticos natalinos e música
para seus amigos.
Will se moveu para perto da estante mais próxima. Os
livros estavam todos atados em couro, em sua maioria de
tonalidade marrom. Havia volumes novos com as lombadas
brilhando em folhas douradas e havia livros mais espessos
e pequenos, tão antigos que o couro estava gasto chegando
a apresentar a espessura de um rígido tecido. Leu os títulos
de alguns exemplares: Culto aos Demônios, Liber Poenitalis,
Descoberta da Bruxaria, Malleus Maleficarum — e assim por
diante em diversos idiomas como o francês e o alemão, e
outros dos quais ele não conseguia reconhecer o alfabeto.
Merriman acenou desdenhoso com a mão para aqueles
livros e para todas as prateleiras ao redor.
— Vale uma pequena fortuna — disse —, mas não
para nós. Estes são os contos de pessoas pequenas, alguns
sonhadores e alguns homens loucos. Contos de bruxaria e
de coisas terríveis que os homens certa vez fizeram às
pobres e simples almas a quem chamavam de bruxas. A
maioria dentre elas eram seres humanos comuns,
inofensivos; um ou dois verdadeiramente estiveram lidando
com as Trevas... Nenhuma delas, é claro, tinha algo a ver
com os Anciãos; pois quase todo conto que os homens
relatam sobre magia e bruxas nasceu da ignorância, da
tolice e da enfermidade da mente, ou era uma maneira de
explicar coisas que eles não compreendiam. A única coisa
de que eles não sabem nada, a maioria deles, é sobre o que
somos. E isto está contido, Will, em um único livro neste
aposento. O restante é útil agora e depois como um
lembrete do que as Trevas podem realizar e os métodos
obscuros que podem usar algumas vezes. Mas há um livro
que é a razão pela qual você voltou a este século. Trata-se
do livro do qual você aprenderá sobre o seu lugar como um
Ancião e não há palavras para descrever o quanto isto é
precioso. O livro de coisas ocultas, da verdadeira magia. Há
muito tempo, quando a magia era o único conhecimento
escrito, nossas atividades eram chamadas simplesmente de
Conhecimento. Mas há muito que conhecer em seu tempo,
sobre todos os assuntos debaixo do Sol. Então, nós
empregamos uma palavra quase esquecida, assim como
nós Anciãos somos quase esquecidos. Nós a chamamos de
"Magia".
Atravessou o lugar em direção ao relógio, fazendo-lhe
um sinal. Will olhou para Hawkin e viu seu rosto magro e
confiante expressando certa apreensão. Eles seguiram.
Merriman ficou de frente para o grande relógio no canto,
que era mais alto que a cabeça dele uns sessenta
centímetros, pegou uma chave de seu bolso e abriu o painel
frontal. Will podia ver o pêndulo interno movendo-se lenta e
hipnoticamente de um lado... para o outro, de um lado...
para o outro.
— Hawkin — chamou Merriman. Sua voz era muito
gentil, até mesmo amável, no entanto uma ordem. O
homem no casaco verde, sem uma palavra, ajoelhou-se à
esquerda dele, ficando lã bem quieto. Disse em um sussurro
suplicante: — Meu senhor — mas Merriman não lhe deu
atenção. Antes colocou a mão esquerda sobre o ombro de
Hawkin e estendeu a mão direita dentro do relógio. Muito
cuidadosamente, deslizou seus dedos longos por um lado,
mantendo-os o mais estendidos possível para não tocar no
pêndulo, e com um giro rápido retirou um livro pequeno de
capa preta. Hawkin desabou; com a garganta sufocada e
com um terrível alívio, Will olhava-o espantado. Mas
Merriman o afastou dali. Ele fez Will assentar-se em uma
das cadeiras e colocou o livro em suas mãos. Não havia
titulo na capa.
— Este é o livro mais antigo do mundo — disse
simplesmente. — E quando o tiver lido, deverá ser
destruído. Este é o Livro da Magia, escrito na Linguagem
Antiga. E não pode ser compreendido por ninguém, exceto
pelos Anciãos e, mesmo que um ser humano ou criatura
pudesse compreender qualquer encanto de poder que nele
possa conter, não poderia usar tais palavras de poder a
menos que fosse um Ancião. Por isso, não houve perigo no
fato de sua existência em todos estes anos. Porém não
seria bom manter uma coisa como esta depois da data
marcada para o seu fim, pois sempre estaria em perigo com
relação às Trevas, e a infinita engenhosidade das Trevas
ainda encontraria um meio de usá-la com as próprias mãos.
Neste aposento agora, no entanto, o livro cumprirá seu
propósito final, que é o de conceder a você, o último dos
Anciãos, o dom da magia... e depois disto deverá ser
destruído. Quando obtiver o conhecimento, Will Stanton,
não haverá mais necessidade de mantê-lo, pois com você o
círculo estará completo.
Will permaneceu bem quieto, observando as sombras
se moverem sobre o rosto severo e austero acima ele;
então sacudiu a cabeça como se quisesse acordar e abriu o
livro. E disse: — Mas não está em meu idioma! Você disse...
Merriman riu. — Esta não é sua língua, Will. E quando
falamos um ao outro, você e eu não usamos o seu idioma.
Usamos a Linguagem Antiga. Nós nascemos com ela em
nossa língua. Você acha que está falando em que idioma
agora? Pois seu senso comum diz a você que a língua
materna é a única que compreende, mas se sua família o
ouvisse agora, eles ouviriam apenas uma linguagem
inarticulada. O mesmo ocorre com esse livro.
Hawkin já se colocara de pé, ainda que não houvesse
cor em seu rosto. Respirando irregularmente, recostou-se
na parede e Will o olhou com preocupação.
Mas Merriman o ignorou e prosseguiu: — No momento
em que alcançou seu poder em seu aniversário, você pôde
falar como um Ancião. E o fez, sem saber o que estava
fazendo. Foi por isso que o Cavaleiro o reconheceu; quando
se encontraram na estrada, você saudou John Smith na
Linguagem Antiga, e ele, no entanto, teve que responder
para você do mesmo modo e correr o risco de ficar marcado
como um Ancião, mesmo que o ofício de um ferreiro não
estivesse sob sujeição. Mas homens comuns podem falá-la
também, como Hawkin aqui, e outros nesta casa que não
fazem parte do Círculo. E do mesmo modo os Senhores das
Trevas, embora nunca sem o sotaque próprio que os trai.
— Eu me lembro — disse Will lentamente. — O
Cavaleiro parecia ter um sotaque, um sotaque que eu não
conhecia.
Mas, é claro, eu pensei que ele estivesse falando
minha língua e que deveria ser alguém de alguma outra
região do país. Não é de surpreender que ele tenha vindo
atrás de mim logo depois.
— Tão simples assim — disse Merriman. Olhou para
Hawkin pela primeira vez e colocou a mão em seu ombro,
mas o homenzinho não se mexeu. — Ouça agora, Will. Nós
deveremos deixá-lo até que tenha lido todo o livro. Não
será uma experiência semelhante como a de ler um livro
comum. Quando tiver terminado, eu voltarei. Onde quer
que eu esteja, eu sempre sei quando o livro é aberto e
quando é fechado. Leia-o agora. Você é um Ancião e por
isso deverá lê-lo apenas uma vez, ficando em você os
ensinamentos por todo o Tempo. Depois disso, nós
terminaremos com isto.
Will perguntou: — Está tudo bem com Hawkin? Ele
parece doente.
Merriman olhou para baixo, para a pequena figura
abatida, com a dor atravessada em seu rosto. — É demais
como pergunta — disse incompreensivelmente, levantando
Hawkin. — Mas o livro, Will. Leia-o. Ele aguarda você há
muitos anos.
Merriman saiu, apoiando Hawkin, na direção da
música e das vozes do aposento ao lado, e Will ficou
sozinho com o Livro de Magia.

TRAIÇÃO

Depois disso, Will nunca foi capaz de contar quanto


tempo passou com o Livro da Magia. Reteve tanta coisa
daquelas páginas em seu interior e mudou tanto, que a
leitura pode ter levado um ano inteiro; porém sua mente foi
tão absorvida que, quando ele chegou ao fim, tinha a
impressão de que acabara de começar. Realmente, não se
tratava de um livro como os outros. Havia títulos simples o
bastante para cada página: Sobre Voar; Sobre Desafios;
Sobre as Palavras de Poder; Sobre Resistência; Sobre o
Tempo Através dos Portais. Mas em vez de lhe apresentar
uma história ou instrução, o livro lhe proporcionava apenas
um trecho de um verso ou uma imagem viva, que de
alguma maneira o envolvia instantaneamente, seja lá como
fosse, naquela experiência.
Ele lia nada mais do que uma linha — Eu viajei como
uma águia — e logo se encontrava voando bem alto como
se batesse asas, aprendendo por intermédio das sensações;
sentindo o modo de pousar sobre o vento e de inclinar-se
pelas colunas elevadas do ar, de movimentar-se
impetuosamente e voar em grandes altitudes, de olhar as
colinas bem abaixo parecendo um pedaço de retalho
esverdeado, cobertos com árvores escuras, e rios que
as serpenteiam com suas águas cristalinas. Soube
enquanto voava que a águia era um dos únicos cinco
pássaros que podiam avistar as Trevas, e instantaneamente
conheceu a quarta ave, e alternadamente ele se tornou
cada uma delas...
Depois leu: ... você chegou ao lugar onde se encontra
a criatura mais antiga que vive neste mundo, e foi ela que
chegou aos lugares mais longínquos, a Águia de
Gwemabwy... e Will foi erguido sobre o penhasco de uma
rocha no topo do mundo, apoiado sem medo sobre um
recife de granito reluzente; seu lado direito inclinava-se
sobre a coxa macia de penas douradas e sobre uma asa
dobrada, e sua mão estava ao lado das garras cruéis, duras
como aço, enquanto em seus ouvidos uma voz rouca
sussurrava as palavras que controlariam o vento e a
tempestade, o céu e o ar, as nuvens e a chuva, a neve e o
granizo — e tudo o que há no céu, exceto o Sol e a Lua, os
planetas e as estrelas.
Em seguida, viu-se voando novamente em um amplo
céu azul escuro, com as estrelas cintilando infinitas sobre
sua cabeça, e o feitio de cada estrela deixou de ser
conhecido por ele, tanto as iguais quanto as diferentes
formas e poderes atribuídos a elas pelos homens com o
passar dos anos. O Pastor passou, acenando com a cabeça,
acompanhado da brilhante estrela Arcturo em seus joelhos;
o Touro rugia, suportando o grande sol de Aldebarã e o
pequeno aglomerado estelar de Plêiades cantando em
pequenas vozes melódicas, como nunca havia ouvido
antes. Voando mais acima e adiante, através do espaço
negro, avistou as estrelas mortas, as estrelas
esplendorosas, a vida dispersa e escassa que povoava o
vazio infinito mais além. E quando terminou, conhecia cada
estrela do céu, tanto pelo nome como pelos pontos
astronômicos registrados, e principalmente como algo
muito maior do que tudo isso; e conhecia cada
encantamento do Sol e da Lua; e ainda conhecia o mistério
de Urano e o desespero de Mercúrio; depois de tudo,
montou na calda de um cometa.
Então, lá para baixo, longe dos céus, o Livro o guiou
com uma frase:
... o mar encolhido sob ele se move lentamente...
E para baixo ele mergulhou verticalmente, em direção
à superfície azul rasteira e encolhida, conforme ia se
aproximando cada vez mais, em uma seqüência de ondas
enormes fustigantes. Em seguida, ele se encontrou no mar,
lá embaixo no caos, pelas brumas esverdeadas, em um
espantoso e translúcido mundo de beleza, impiedade e
desolada sobrevivência. Cada criatura alimentava-se de
outra, nada estava totalmente a salvo. E o Livro lhe ensinou
os meios de sobrevivência contra a malevolência, e os
encantamentos do mar, do rio, dos córregos, dos lagos,
riachos e fiordes, e mostrou-lhe como as águas eram o
único elemento que podia, de certo modo, desafiar toda
magia; pois águas em movimento não tolerariam a magia
fosse ela do bem ou do mal, antes a varreria para longe
como se nunca tivesse sido feita.
Através de corais afiados e letais, o Livro o conduziu
nadando entre notáveis e agitadas algas marinha de
tonalidades verde, vermelha e roxa, entre peixes brilhantes
nas cores do arco-íris que emergiam de baixo até ele, com
olhos atentos, balançando uma barbatana ou calda. Will
passou pelos espinhos escuros dos inclementes ouriços-do-
mar, depois por criaturas macias tremulantes que não
pareciam plantas nem peixes; e finalmente subiu até as
areias brancas, respingando pela superfície rasa e dourada
até as árvores. Ao redor dele, uma densa quantidade de
árvores se estendia como raízes até a água do mar, num
tipo de selva sem folhas, e num piscar de olhos, Will já se
encontrava fora daquele emaranhado e retornando
rapidamente para alguma página do Livro da Magia:
... Eu sou o fogo descontente e eu brinco com o
vento...
Via-se entre as árvores então; árvores da primavera
com a combinação esverdeada das novas folhas e um sol
claro que as manchava; as árvores de verão estavam
cheias de folhas, sussurrando em massa; os pinheiros
escuros de invernos que não temiam qualquer mestre não
deixavam a luz resplandecer em seus bosques. Aprendeu
sobre a natureza de todas as árvores, sobre as mágicas em
especial que se encontram nos carvalhos, nas faias e nos
freixos. Depois, havia uma estrofe sozinha na página do
Livro:
Ele que vê assoviando, a árvore do bosque
silvestre,
E abibes circundando suas águas cintilantes,
Sonhos sobre Estranhos que ainda podem ser
Trevas aos nossos olhos.
Que fazer!
E na mente de Will, subindo no turbilhão de um vento
que o levava ao redor e por todo o Tempo, surgiu a história
dos Anciãos. Ele os viu desde o princípio quando a magia
era generalizada no mundo; a magia que era o poder das
rochas, do fogo, da água e dos seres viventes, de modo que
os primeiros homens viviam nela e com ela, como um peixe
vive na água. Ele viu os Anciãos, através das eras dos
homens que trabalhavam com a pedra, com o bronze, com
o ferro, com um dos seis grandes Signos nascidos em cada
era. Ele viu um povo depois do outro atacando a ilha de seu
país, e trazendo toda vez a malevolência das Trevas com
eles; uma agitação após agitação de navios se apressando
inexoravelmente nas praias. Cada movimentação de
homens, alternadamente, tornou-se pacífica na medida em
que conheciam e amavam essa terra, de modo que a Luz
passava a resplandecer novamente. Mas as Trevas sempre
estiveram por lá, inchando e diminuindo, ganhando um
novo Senhor das Trevas sempre que um homem escolhia
deliberadamente ser transformado em uma coisa mais
temível e poderosa que seus companheiros. Tais criaturas
não nasceram para cumprir seu destino, como os Anciãos,
mas optaram por ele. O menino viu o Cavaleiro Negro em
todas as épocas desde o princípio dos tempos.
Viu também uma época em que chegou a hora do
primeiro grande teste da Luz, e os Anciãos se consagraram
por três séculos em rechaçar as Trevas de suas terras, cora
a ajuda no final de seu maior líder, perdido no processo de
redenção, a menos que algum dia ele acorde e volte
novamente.
Uma encosta se ergueu daquele tempo, verdejante e
iluminada pelo Sol, diante dos olhos de Will, com o Signo do
círculo e da cruz cortada em sua relva verde, reluzindo
enorme e branca no calcário de Chiltern. Ao redor de um
braço alvo da cruz, usando ferramentas diferentes como
machados com longas lâminas para esmagá-la, viu um
grupo de pessoas vestindo roupas verdes: homens
pequenos, ainda menores diante da largura do grande
Signo. Observou um deles rodopiar como num sonho para
fora do grupo em sua direção: um homem vestido numa
túnica verde, com um casaco pequeno na cor azul-escura, e
um capuz colocado sobre a cabeça. O homenzinho abriu,
amplamente os braços, segurando uma pequena espada de
lâminas de bronze em uma das mãos e um cálice cintilante
semelhante a um copo na outra; girou e desapareceu de
repente. Em seguida, atraído pela próxima página, Will
encontrou-se caminhando através de uma densa floresta,
sentindo a maciez de ervas verde-escuro perfumadas sob
seus pés; era um caminho que se alargava e calejava até se
tornar pedregoso, pedras onduladas bem polidas como o
calcário que o conduziu para fora da floresta até que se viu
caminhando por uma cordilheira alta e ventosa sob um céu
cinzento, de onde pôde avistar o vale escuro quase coberto
pela névoa lá embaixo. E durante todo esse tempo em que
andava, embora ninguém lhe fizesse companhia,
firmemente era sua mente, em progressão, emergiam as
palavras secretas de poder para serem usadas nas Velhas
Estradas, e as sensações e sinais pelos quais ele saberia,
doravante, em qualquer lugar do mundo, onde corria a
Velha Estrada mais próxima dali, seja literalmente ou como
o fantasma de uma estrada...
E assim se sucedeu, até que Will percebeu que
chegava ao fim do Livro. Uma estrofe estava escrita diante
dele:
Eu despojei a samambaia.
Através de todos os segredos que espionei;
O Velho Math ap Mathonwy
Não sabia mais do que eu.
Olhando para a capa, na última página, havia o
desenho de seis Signos de cruzes circuladas, todos reunidos
em um círculo. E era tudo.

***

Fechou o Livro e ficou absorto em direção ao nada.


Sentia como se houvesse vivido por uns cem anos. Para
saber tanto assim agora e para ser capaz de realizar tantas
coisas; isto deveria animá-lo, mas melancolicamente tinha
a sensação de estar sobrecarregado ao pensar em tudo o
que já passou e tudo o que estava por vir.
Merriman entrou pela porta, sozinho, e ficou
observando-o. — Ah, sim — falou baixinho. — Como eu
disse, trata-se de uma responsabilidade, um fardo. Mas é
assim, Will. Nós somos os Anciãos, nascidos no círculo, e
nada pode mudar isso. — Recolheu o livro e tocou no ombro
do menino. — Venha.
Enquanto atravessava o aposento até o alto relógio
de pêndulo, Will o seguia observando-o retirar a chave do
bolso novamente e abrir o painel frontal. O pêndulo ainda
estava lá, longo e lento, num balanço como a batida do
coração. Mas naquele momento, Merriman não se
preocupou em evitar tocá-lo. Tocou-o com o Livro em sua
mão, mas moveu-se com um estranho solavanco, como um
ator encenando um homem desajeitado; e quando
Merriman empurrou o Livro para dentro, uma das bordas
roçou o longo braço do pêndulo. Will teve apenas o lampejo
de um momento para ver a interrupção do balanço. Em
seguida, cambaleava para trás, cobrindo os olhos com as
mãos; o aposento foi preenchido com alguma coisa que ele
nunca pôde descrever — uma explosão silenciosa, um
estouro ofuscado de luz escura, um grande rugido de
energia que não poderia ser visto ou ouvido e mesmo assim
o fez sentir por um instante que o mundo inteiro havia
explodido. Quando tirou as mãos do rosto, piscando,
descobriu-se pressionado contra a lateral de uma poltrona,
há uns três metros de onde estava. Merriman encontrava-se
encostado contra a parede ao lado dele, com braços e
pernas estendidos. E o lugar onde o relógio havia sido
instalado, no canto do aposento, encontrava-se vazio. Não
havia qualquer dano, nem qualquer sinal de violência ou
explosão. Simplesmente, não havia nada.
— Era isto, percebe? — disse Merriman. — Esta era
uma proteção do Livro da Magia, desde que o nosso tempo
começou. Se o que o protegia era tão grandioso quando
tocado, ele e o Livro e o homem que o tocasse se tornariam
nada. Somente os Anciãos são imunes a esta destruição, e
como você pôde ver — esfregou o braço pesarosamente —,
mesmo nós, na ocasião, podemos ser feridos. A proteção
tomou várias formas, é claro... o relógio destinava-se
simplesmente a este século. Então, agora nós destruímos o
Livro, pelo mesmo propósito que através de todas essas
eras nós o preservamos. Como você deve ter aprendido,
esta é a única maneira adequada de se usar a magia.
Will falou trêmulo: — Onde está Hawkin?
— Ele não era necessário agora — respondeu
Merriman.
— Ele está bem? Pois parecia...
— Bastante bem. — Havia um tom estranho na voz de
Merriman, como o de tristeza, mas nenhuma de suas novas
habilidades poderia revelar ao menino a emoção colocada
naquelas palavras.
Depois disso, eles voltaram para a confraternização
do aposento ao lado, onde as canções natalinas que haviam
recomeçado quando saíram chegavam naquele momento
ao fim; e onde ninguém se comportava como se eles
estivessem ficado fora por mais de um momento, ou por
algum tempo real. Mas então, pensava Will, nós não
estamos no tempo real. Pelo menos, estamos no passado, e
mesmo assim parecemos capazes de nos delongar o quanto
desejarmos, mesmo agilizar ou tornar mais lento...
A multidão tinha aumentado, e mais pessoas ainda se
moviam para o salão de ceia. Will percebia agora que a
maioria delas era constituída de pessoas comuns, e que
somente o pequeno grupo que tinha permanecido antes no
salão era de Anciãos. É claro, pensava o menino: somente
eles poderiam testemunhar a renovação do Signo.

***

Outras pessoas estavam lá, e ele já estava se virando


para estudá-las quando foi tomado pelo espanto e horror de
todas as suas reflexões. Seus olhos descobriram um rosto
bem no fundo do aposento, uma moça, que não o olhava,
mas estava entretida em uma conversa com alguém
despercebido. Enquanto observava, ela sacudiu a cabeça
em uma risada autocontrolada. Depois, inclinou-se para
ouvir novamente, logo sumiu de vista, quando outros
convidados bloquearam a visão do grupo. Mas já foi o
suficiente para Will ver que a moça sorridente era Maggie
Barnes, a Maggie da fazenda dos Dawson, do outro século.
Ela não era nem mesmo uma antevisão, como a vitoriana
srta. Greythorne era um tipo de eco recente da srta.
Greythorne que ele conhecia. Aquela era a Maggie que ele
tinha visto em seu próprio tempo.
Virou-se em consternação, mas tão logo encontrou os
olhos de Merriman, viu que o fato também era de seu
conhecimento. Não havia a expressão de surpresa no rosto
de nariz de falcão, somente o início de um tipo de
sofrimento.
— Sim — disse ele cansado. — A moça feiticeira está
aqui. E eu acho que você deve ficar ao meu lado, Will
Stanton, pelos próximos instantes, e observar comigo, pois
não me interesso muito em observar sozinho.
Admirado, Will se juntou a ele em um canto, sem
serem vistos. A moça Maggie ainda estava escondida na
multidão, em algum lugar. Eles esperaram; então, viram
Hawkin, em seu casaco verde garboso, passando pela
multidão para se aproximar da srta. Greythorne, e ficando
reverencialmente ao lado dela, da maneira pela qual um
homem se acostumara a se colocar à disposição para
ajudar. Merriman enrijeceu-se um pouco, e Will o olhou
atentamente; a expressão de dor se aprofundou no rosto
forte, como se Merriman estivesse prevendo uma grande
mágoa futura. Olhou novamente para Hawkin e viu seu
sorriso divertido por alguma coisa que a srta. Greythorne
teria dito; sem mostrar qualquer sinal de que algo o tivesse
afligido na biblioteca, o homenzinho tinha um brilho,
semelhante a uma pedra preciosa, que traria alegria a
qualquer tristeza. Will podia perceber por que ele se tornou
tão querido por Merriman.
Mas ao mesmo tempo, sentia uma terrível convicção
de um desastre iminente pairando no ar.
Ele perguntou roucamente: — Merriman! O que é?
Merriman olhou acima dos convidados na direção do
rosto pontudo e disse sem expressão: — É o perigo, Will,
que está por vir por intermédio de minhas ações. Um
grande perigo, para toda esta busca. Eu cometi o pior erro
que um Ancião poderia fazer, e o erro está prestes a cair
sobre a minha cabeça. Depositar mais confiança em um
mortal, além de suas forças para suportar, é algo que, há
séculos, todos nós aprendemos a não fazer, desde antes do
Livro da Magia se tornar minha responsabilidade. Porém,
num momento de tolice, eu cometi esse erro. E agora não
há nada que possamos fazer para corrigir, somente
observar e aguardar os resultados.
— Trata-se de Hawkin, não é? Alguma coisa a ver com
o motivo que o fez trazê-lo aqui?
— O encantamento de proteção para o Livro — disse
Merriman dolorosamente — ocorreria em duas partes, Will.
Você viu a primeira, a proteção contra os homens... o
pêndulo os destruiria se tentassem tocá-lo, mas não
destruiria a mim ou qualquer outro Ancião. Mas eu
entrelacei outra parte dentro deste encantamento que seria
uma proteção contra as Trevas. Estabeleci que eu poderia
recolher o Livro atrás do pêndulo somente se eu estivesse
tocando em Hawkin com minha outra mão. Sempre que o
Livro foi retirado para o último Ancião que o viu, em
qualquer século, Hawkin tinha que ser trazido de seu
próprio tempo para participar.
Will perguntou: — Não teria sido mais seguro se um
Ancião fizesse parte do encantamento e não um ser
humano comum?
— Ah, não, todo o propósito era ter um ser humano
envolvido. Esta é uma batalha insensível na qual estamos,
Will, e nela devemos fazer algumas coisas insensíveis. Este
encantamento foi entrelaçado à minha volta como o
protetor do Livro. As Trevas não podem me destruir, pois eu
sou um Ancião, mas poderiam talvez com magia ter me
enganado para pegar o Livro. Caso isso acontecesse,
deveria haver um meio pelo qual outro Ancião pudesse me
deter antes que fosse tarde demais. Eles também não
poderiam me destruir, para me impedir de fazer a obra das
Trevas. Mas um homem pode ser destruído. Se ocorresse o
pior, e as Trevas me forçassem pela magia a entregar-lhes o
Livro, então antes que eu começasse, a Luz teria que tirar a
vida de Hawkin. Isto teria mantido o Livro a salvo para
sempre, pois neste caso, eu não poderia usar o
encantamento de liberação por tocá-lo enquanto retirasse o
Livro. E por isso, eu não seria capaz de apanhar o Livro.
Nem as Trevas, nem qualquer outra pessoa.
— Então ele arriscou a própria vida — disse Will
lentamente, observando os passos animados de Hawkin
enquanto ele atravessava o aposento até os músicos.
— Sim — disse Merriman. — Em nosso serviço, ele
estava seguro contra as Trevas, mas sua vida corria risco de
todo jeito. Ele concordou porque era meu vassalo e sentia
orgulho disso. Espero ter deixado claro que ele sabia do
risco que corria. Um risco duplo, pois ele também poderia
ter sido destruído hoje, por mim, se eu tivesse
acidentalmente tocado o pêndulo. Você viu o que aconteceu
quando no final eu o toquei. Você e eu, como Anciãos,
fomos meramente sacudidos; mas se Hawkin estivesse lá,
sob o meu toque, ele teria sido morto em um único
lampejo, destruído como o próprio Livro.
— Ele não deve ser apenas corajoso, como realmente
deve amá-lo muito, como se fosse seu filho — disse Will —
para fazer coisas como estas por você e pela Luz.
— Mas ainda assim, ele é apenas um ser humano —
disse Merriman, sua voz estava rouca e a expressão de dor
profunda em seu rosto. — E ama como um ser humano,
exigindo provas de amor em retribuição. Meu erro foi
ignorar o risco que poderia haver. E como resultado, neste
aposento nos próximos minutos, Hawkin me trairá e trairá a
Luz, moldando todo o curso de sua busca, jovem Will. Na
verdade, o choque, justo agora, de ter arriscado sua vida
por mim e pelo Livro da Magia, foi demais para a sua
lealdade. Talvez você tenha visto o rosto dele quando
segurei seu ombro e retirei o Livro de seu lugar perigoso.
Foi apenas naquele momento que Hawkin entendeu
completamente que eu estava preparado para deixá-lo
morrer. E agora que tem esse entendimento, nunca me
perdoará por não amá-lo... em seus termos... como ele me
amou, seu senhor. E ele se voltará contra nós — disse
Merriman apontando pelo aposento. — Veja como isso
começa.
A música tocou envolvente, e os convidados
começaram a formar pares para dançar. Um homem que
Will reconheceu como um Ancião aproximou-se da srta.
Greythorne, inclinou-se e ofereceu-lhe o braço; todos os
casais em volta se juntaram a eles em grupos de oito para
uma dança que o menino desconhecia. Ele avistou Hawkin
irresoluto, movendo a cabeça levemente conforme o
compasso da música; e viu uma moça em um vestido
vermelho aparecer ao lado dele. Era a feiticeira Maggie
Barnes.
Ela disse alguma coisa para Hawkin, rindo, e fez-lhe
uma pequena reverência. Hawkin sorriu educadamente, em
dúvida, e balançou a cabeça. O sorriso da moça se ampliou;
ela jogou os cabelos faceiramente e lhe falou novamente,
olhando em seus olhos.
— Ah — disse Will. — Se pudéssemos ouvir! Merriman
o olhou sombriamente por um momento, com o rosto
ausente e pensativo.
— Ah — continuou Will, sentindo-se tolo. — É claro. —
Levaria certo tempo, naturalmente, até que ele se
acostumasse a usar seus próprios dons. Olhou novamente
para Hawkin e a moça e desejou ouvi-los, e pôde ouvi-los.
— Realmente, senhora — dizia Hawkin —, não tenho
nenhuma intenção de parecer rude, mas eu não danço.
Maggie segurou-lhe as mãos. — Por que está fora de
seu século? Eles dançam aqui com as pernas, assim como
você fazia cinco séculos atrás. Venha.
Hawkin a fitava horrorizado enquanto ela o conduzia
até um grupo de casais. — Quem é você? — sussurrou ele.
— Você é uma Anciã?
— Nem por tudo no mundo — disse Maggie Barnes na
Linguagem Antiga, e Hawkin ficou pálido, permanecendo
em silêncio. Ela sorriu discretamente, dizendo em seu
idioma: — Uma única dança, ou as pessoas vão perceber. É
bem fácil. Olhe para o cavalheiro ao lado, quando a música
começar.
Hawkin, pálido e aflito, tropeçava durante a primeira
parte da dança; aos poucos, conseguiu aperfeiçoar os
passos. Merriman disse aos ouvidos de Will: — Ele foi
informado que nenhuma alma aqui presente o conheceria e
que sob pena de morte ele deveria falar na Linguagem
Antiga somente com você.
Então, a conversa recomeçou:
— Você parece bem, Hawkin, para um homem que
escapou da morte.
— Como você sabe dessas coisas, garota? Quem é
você?
— Eles teriam deixado você morrer, Hawkin. Como
pôde ser tão estúpido?
— Meu mestre me ama — afirmou Hawkin —, mas
havia fraqueza nessas palavras.
— Ele o usou, Hawkin. Você não é nada para ele. Você
deveria seguir mestres melhores, que se importassem com
sua vida. E que alongassem os seus dias pelos séculos e
não que o deixassem confinado em seu próprio tempo.
— Como a vida de um Ancião? — perguntou Hawkin,
a ansiedade nascendo em sua voz pela primeira vez. Will se
lembrou do tom de inveja quando Hawkin havia falado com
ele sobre os Anciãos; agora, era perceptível um indício de
ganância também.
— As Trevas e o Cavaleiro são mestres mais gentis do
que a Luz — afirmava Maggie Barnes com brandura em
seus ouvidos quando a primeira parte da dança acabou.
Hawkin permaneceu calado novamente, fitando a moça
com atenção, até que ela olhou ao redor e disse
claramente: — Acho que preciso de uma bebida gelada. —
E Hawkin partiu conduzindo-a para longe dali, de modo que
agora, com toda a atenção dele e a oportunidade de lhe
falar a sós, a feiticeira das Trevas teria um ouvinte bem
disposto. Will sentia-se repentinamente com náuseas pela
abordagem traiçoeira e não os ouviu mais. Percebeu
Merriman ao seu lado, ainda olhando para o espaço.
— Então, assim será — disse Merriman. — Ele terá
uma doce imagem das Trevas para atraí-lo, como os
homens sempre têm e, além disso, ele se livrará de todas
as exigências da Luz, que são pesadas e sempre serão.
Enquanto isso, alimentará seu ressentimento pela maneira
como eu o fiz desistir de sua vida sem a promessa de
recompensa. Você pode ter certeza de que as Trevas não
dão sinais de exigências. Na verdade, seus senhores nunca
arriscam exigindo a morte, mas somente oferecem uma
vida sombria... Hawkin — disse baixinho, de forma lúgubre.
— Vassalo, como pode fazer o que está prestes a realizar?
De repente, Will sentiu medo, e Merriman percebeu.
— Chega disso — disse ele. — Já está claro como a história
acabará. Hawkin agora será como um informante, uma
passagem secreta obscura. E assim como as Trevas não
podiam tocá-lo quando ele era meu vassalo, agora que ele
se tornou o vassalo das Trevas não poderá ser destruído
pela Luz. Ele será os ouvidos das Trevas em nosso meio,
nesta casa que tem sido nossa fortaleza. — A sua voz era
fria, já aceitava o inevitável e a dor desaparecera. —
Mediante a forma como a feiticeira conseguiu entrar aqui,
ela não poderia realizar uma fagulha sequer de magia sem
ser destruída pela Luz. Mas agora, sempre que Hawkin as
chamar, as Trevas poderão nos atacar, aqui ou em outro
lugar. E o perigo só aumentará com os anos.
Levantou-se, deslizando os dedos pela gravata
branca; havia uma terrível dureza em seu perfil severo, e
por um momento o seu olhar fez o sangue de Will correr
denso e lento em suas veias. Era o rosto de um juiz,
implacável, condenador.
— E a sentença que Hawkin trouxe sobre si mesmo,
por seu ato — disse Merriman inexpressivo —, é algo
apavorante, que o fará muitas vezes desejar a própria
morte.
Will ficou atordoado, tomado pela pena e pelo
assombro. Não perguntou o que aconteceria com o
homenzinho de olhos brilhantes, que lhe havia sorrido,
auxiliado e sido seu amigo por tão pouco tempo; não queria
saber. A música da segunda parte da dança retinia prestes
a finalizar, e os pares fizeram um ao outro uma divertida
corte. Will continuava imóvel e infeliz. O olhar implacável de
Merriman suavizou-se, para depois voltar e examinar o
centro do aposento.
Will via apenas um vazio na multidão, com o grupo de
músicos atrás dela. Enquanto ficava ali, eles começaram a
cantar novamente Good King Wenceslas, a canção natalina
que entoavam quando entraram no aposento, pelos Portais.
Alegremente, todos se reuniram para cantar, e então as
próximas estrofes se iniciaram e a voz profunda de
Merriman soou pelo aposento; logo Will percebeu, num
lampejo, que as estrofes eram as suas.
Tomou fôlego e e ergueu a cabeça:
Senhor, a léguas daqui, ele faz sua morada no
sopé da montanha...
E não houve um momento de despedidas, um
momento no qual ele viu o século 19 desaparecer, mas de
repente, sem consciência da mudança, enquanto cantava,
soube que o Tempo havia piscado, e outra voz jovem
cantava com ele; ambos de forma tão simultânea que
qualquer pessoa que pudesse ver os lábios se movendo
teria jurado que se tratava da voz de um único menino...
... perto da fonte de Santa Agnes....
.... Bem diante da floresta isolada ...
mas Will sabia que estava perto de James, Mary e dos
outros, e que ele e James cantavam juntos, e aquela música
acompanhando suas vozes era o som da flauta doce de
Paul. Continuou ali na entrada escura do salão, com as
mãos erguidas diante do peito, segurando a vela iluminada.
Logo percebeu que a vela não havia queimado um
milímetro a mais desde a última vez que a viu.
Eles terminaram de entoar a canção natalina.
A srta. Greythorne disse então: — Muito bom, muito
bom, de fato. Nada como Good King Wenceslas. Este
sempre foi o meu cântico favorito.
Will espiou através da chama de sua vela,
observando a silhueta imóvel na enorme cadeira talhada; a
voz dela soava mais velha, mais grave com os anos, assim
como seu rosto, mas por outro lado, ela era muito parecida
com sua avó... e se aquela srta. Greythorne mais jovem
teria sido sua avó? Ou sua bisavó?
A srta. Greythorne continuou: — Sabem, os constas
natalinos do Vale do Caçador têm cantado Good King
Wenceslas nesta casa há mais tempo do que vocês ou
eu mesma poderíamos lembrar. Bom, agora, Paul, Robin e
todos vocês, o que acham de um pouco de ponche de
Natal? A pergunta era clássica, assim como a resposta.
— Bem — disse Robin com voz grave —, obrigado
srta. Greythorne. Talvez um pouquinho.
— Até mesmo o jovem Will, este ano — disse Paul. —
Ele tem onze anos agora, srta. Greythorne, a senhorita
sabia?
A governanta estava se aproximando com uma
bandeja, trazendo taças cintilantes e uma grande poncheira
com a bebida marrom-avermelhada, e quase todos os olhos
se voltaram para Merriman, que se adiantava para servir as
taças. Mas o olhar de Will estava fixo na figura
determinada, com olhos mais jovens sentada na cadeira de
encosto alto.
— Sim — disse a srta. Greythorne suavemente, quase
ausente em pensamento. — Eu me recordo. Foi aniversário
de Will Stanton. — Ela se virou para Merriman, que já se
aproximava, e segurou duas taças em suas mãos. — Um
feliz aniversário para você, Will Stanton, sétimo filho de um
sétimo filho — disse a srta. Greythorne. — E sucesso em
todas as suas buscas.
— Obrigado, senhora — disse Will, admirado. Então,
eles ergueram as taças solenemente em um brinde e
beberam, como os filhos dos Stanton sempre faziam no
Natal, no único dia do ano quando era permitido o vinho no
jantar.
Merriman andava ao redor, e naquele momento todos
tinham suas taças cheias de ponche e bebiam com
satisfação. O ponche de Natal do Solar sempre foi delicioso,
embora ninguém nunca tenha descoberto o que havia na
bebida. Como os membros mais velhos da família, os
gêmeos foram conversar com a srta. Greythorne; Bárbara,
com Mary a tiracolo, foi direto até a srta. Hampton, a
governanta, e Annie, a criada, ambas eram membros
relutantes de um grupo de drama do vilarejo que ela
tentava animar. Merriman disse para James: — Você e seu
irmão mais novo cantam muito bem.
James sorriu. Embora rechonchudo, ele não era mais
alto que Will, e não era freqüente que um estranho o
agradasse reconhecendo-o como o irmão mais velho e
superior entre eles. — Nós cantamos no coral da escola —
disse ele.
— E executamos solos em festivais artísticos. Até
mesmo um em Londres, no ano passado. O regente gosta
muito de festivais artísticos.
— Eu não gosto — disse Will. — Todas aquelas mães
olhando.
— Bem, você era o primeiro de sua classe em Londres
— disse James. — Então, é claro que todas elas odiavam
você, vencendo seus queridinhos. Eu era apenas o quinto
da minha sala — disse ele em tom pragmático para
Merriman.
— Will tem a voz muito melhor do que a minha.
— Ah! Pare com isso — retrucou Will.
— Sim, você tem. — James era um menino de mente
equilibrada; e genuinamente preferia a realidade aos
devaneios. — Até que paremos de cantar, de alguma
maneira. Nenhum de nós pode ser bom então.
Merriman disse com a mente ausente: — Na
realidade, você se tornará um tenor muito realizado. Quase
nível profissional. A voz de seu irmão será um barítono...
agradável, mas nada de especial.
— Suponho que poderia ser possível — disse James,
educado, mas incrédulo. — É claro, embora não há como ter
certeza, ainda.
Will retrucou beligerante: — Mas ele... — sentiu o
olhar sombrio de Merriman e parou. — Hum, aaah —
murmurava, e James olhou para ele com espanto.
A srta. Greythorne chamou Merriman pelo salão: —
Paul gostaria de ver a antiga coleção de flautas transversais
e flautas doces. Leve-o, sim?
Merriman inclinou a cabeça em uma pequena
reverência e disse, como quem não quer nada, para Will e
James:
— Gostariam de nos acompanhar?
— Não, obrigado — respondeu James de pronto. Seus
olhos estavam fixos na porta dos fundos, pela qual a
governanta entrava com outra bandeja. — Estou sentindo o
cheiro das tortas de carne da srta. Hampton.
Will respondeu, compreendendo: — Eu bem que
gostaria de ver.
Ele saiu com Merriman em direção à cadeira da srta.
Greythorne, onde Paul e Robin se encontravam tensos e
bastante constrangidos, um de cada lado, como guardiões.
— Vão todos vocês! — disse a srta. Greythorne
rapidamente. — Você irá também, Will? É claro que sim,
você é outro músico, já ia me esquecendo. Um ótimo
acervo de instrumentos e outras coisas por lá. Ficarei
surpresa se nunca os tiver visto antes.
Embalado por aquelas palavras, Will falou sem
pensar:
— Na biblioteca?
Os olhos atentos da srta. Greythorne brilharam para
ele. — A biblioteca? — replicou ela. — Você deve estar nos
confundindo com outra pessoa, Will. Não existe biblioteca
aqui. Havia uma pequena, certa vez, com alguns livros
muito valiosos, acredito eu, mas foram queimados há quase
um século. Aquela parte da casa foi atingida por um
relâmpago e, segundo dizem, causou muitos estragos.
— Minha nossa — disse Will um tanto confuso.
— Bem, mas isso não é conversa para o Natal —
acrescentou a srta. Greythorne acenando para que fossem.
Olhando-a de volta, enquanto ela se virava para Robin com
sorriso amplo e cordial, Will ficou se perguntando se as
duas srtas. Greythorne não eram uma só afinal.
Merriman o conduziu com Paul para a porta lateral, e
eles atravessaram uma estranha passagem pequena que
cheirava a mofo em direção a um aposento alto e claro que
Will não reconheceu de imediato. Somente quando avistou
a lareira foi que percebeu onde estava. Lá estava a ampla
lareira e a imensa cornija com seus painéis quadrados e
talhados com emblemas de rosas no estilo Tudor. Mas em
volta de todo o restante do aposento, os painéis haviam
sumido; as paredes estavam pintadas de branco e
decoradas alegremente aqui e ali por paisagens marinhas
pintadas nos tons pálidos de azul e verde. No lugar onde
Will se dirigiu certa vez para a pequena biblioteca já não
existia mais porta.
Então, Merriman abriu um armário alto com a frente
de vidro instalado na parede lateral.
— O pai da srta. Greythorne era um cavalheiro muito
musical — disse ele com sua voz de mordomo. — E com
dons artísticos também. Ele pintou todos aqueles desenhos
sobre as paredes do lado de lá. Nas índias Ocidentais,
acredito eu. Este aqui, no entanto... — ergueu um
instrumento pequeno e bonito como uma flauta doce,
produzido em marchetaria escura e prata — dizem que ele
na realidade não tocava, apenas gostava de ficar olhando
para ele.
Paul foi absorvido pela descrição, olhando,
examinando cada uma das flautas antigas enquanto
Merriman as tirava do armário. Ambos eram muito solenes
ao lidar com elas, colocando-as cuidadosamente de volta
antes de retirar um novo instrumento. Will se virou para
examinar os painéis ao redor da lareira, mas teve um
sobressalto quando ouviu Merriman silenciosamente
chamá-lo. Ao mesmo tempo, podia ouvir a voz sonora de
Merriman falando com Paul: era uma estranha combinação.
— Rápido, agora! — disse a voz em sua mente. —
Você sabe onde procurar. Rápido, enquanto você tem
chance. Já é hora de pegar o Signo!
— Mas... — disse a mente de Will.
— Prossiga! — disse Merriman silenciosamente.
Will olhou de volta rapidamente sobre seus ombros. A
porta pela qual eles entraram ainda estava entreaberta,
mas seus ouvidos certamente o avisariam se alguém
estivesse vindo pela passagem entre aquele aposento e o
outro.
Ele se moveu furtivamente até a lareira, ergueu o
braço e colocou sua mão sobre o painel. Fechando os olhos
por um instante, apelou para todos os seus dons e o mundo
antigo do qual eles vieram. Qual painel havia sido? Qual
rosa talhada? Estava confuso com a ausência da parede de
painéis ao redor; a cornija parecia menor do que antes.
Estaria o Signo perdido, murado por tijolos em algum lugar
atrás daquela parede branca e plana? Pressionou cada rosa
que conseguia ver no topo do canto esquerdo da lareira,
mas nenhuma delas se moveu, nem mesmo a fração de um
centímetro. Então, no último instante, reparou, bem lá no
canto, uma rosa parcialmente enterrada no reboco,
projetando-se da parede que claramente havia sido
reparada assim como alterada nos últimos cem anos ou dez
minutos, pensou ele, desde que a viu.
Às pressas, Will alongou-se para alcançá-la e
pressionou seu polegar o mais forte possível contra o centro
da flor talhada, como se fosse o botão de uma campainha.
E enquanto ele ouvia o suave clique, deparou-se olhando
para um buraco escuro no formato de um quadrado na
parede, exatamente na altura de seus olhos. Ele estendeu a
mão e tocou o círculo do Signo de Madeira e, quando já
suspirava aliviado, seus dedos se fechando em volta da
madeira lisa, ouviu Paul começando a tocar uma das flautas
antigas.
Foi uma tentativa para tocar: um lento arpejo
primeiro, depois um compasso rápido, porém hesitante e,
em seguida, muito suave e gentilmente, Paul começou a
tocar a melodia Greensleeves. E Will ficou transfixado, não
apenas pela adorável cadência da canção antiga, mas pelo
som do instrumento propriamente dito. Pois embora a
melodia fosse diferente, aquela era a sua música, seu
encantamento, o mesmo tom distante e estranho que ele
sempre ouvia, e então sempre perdia, naqueles momentos
de sua vida que eram os mais importantes. Qual era a
natureza daquela flauta que seu irmão estava tocando?
Faria parte dos Anciãos, pertenceria à magia deles, ou era
simplesmente algo muito comum feito por mãos humanas?
Retirou a mão do vão na parede, que se fechou
instantaneamente antes que ele pudesse pressionar a rosa
novamente e, enquanto deslizava o Signo da Madeira em
seu bolso, virou-se extasiado pela canção.
Mas, então, ficou paralisado.
Paul continuava tocando pelo quarto, ao lado do
armário. Merriman estava de costas e com as mãos
descansando nas portas de vidro. Mas, naquele momento, o
aposento revelava a presença de duas outras figuras
também. Na porta de entrada pela qual eles passaram,
encontrava-se Maggie Barnes, olhando não para Will, mas
para Paul, com um olhar terrível de malevolência. E perto,
ao lado de Will, muito perto, no local onde a porta para a
antiga biblioteca estivera certa vez instalada, erguia-se o
Cavaleiro Negro. Estava na proximidade da largura dos
braços de Will, embora não se movesse, permanecendo
transfixado, como se a música o tivesse detido no meio de
um ataque. Seus olhos estavam fechados, os lábios
moviam-se silenciosamente; as mãos estendidas
apontavam sinistramente para Paul, enquanto a música
suave e sublime continuava tocando.
Will agiu bem em uma coisa, aproveitando o instinto
de seu novo aprendizado. Imediatamente, ele criou uma
parede de resistência em volta de Merriman, Paul e de si
mesmo, de modo que os dois adversários das Trevas
vacilaram para trás diante da força da barreira. Mas ao
mesmo tempo, ele gritou assustado: — Merriman! — E
quando a música foi interrompida, e ambos, Paul e
Merriman, viraram-se com horror imediato, ele soube o que
havia feito de errado. Ele não gritou como um Ancião
chamaria o outro, através da mente. Ele havia cometido um
erro muito grave ao gritar tão alto.
O Cavaleiro e Maggie Barnes desapareceram
imediatamente. Paul atravessava o aposento preocupado.
— Mas o que está acontecendo, Will? Você se machucou?
Merriman disse rápido e discretamente atrás dele: —
Ele tropeçou, eu acho — e Will foi sagaz em fazer uma
careta de dor, curvando-se como se estivesse aflito,
segurando firme um dos braços.
Ouviu-se o som de passos correndo, e Robin irrompeu
pela passagem, com Bárbara logo atrás dele. — O que foi?
Nós ouvimos um grito horrível...
Ele olhou para Will e parou confuso. — Você está bem,
Will?
— Ui — disse Will. — Eu... ai... acabei de bater o nervo
do meu cotovelo. Desculpem-me, é que doeu.
— Parecia que alguém estava prestes a matá-lo —
repreendeu Bárbara.
Envergonhado, Will se refugiou na indelicadeza. Seus
dedos se encresparam pelo bolso em busca do terceiro
Signo para saber se estava a salvo. — Bem, desculpe-me
por desapontá-la — disse ele petulante — mas realmente
eu estou bem. Eu apenas dei uma pancada em mim mesmo
e gritei, é isso. Sinto muito se você ficou assustada. Eu não
vejo o porquê desse alvoroço todo.
Robin olhava-o. — Espere que venha correndo em seu
socorro da próxima vez — disse rispidamente.
— Fica brincando de o Menino e o Lobo pra ver —
disse Bárbara.
— Eu acho — disse Merriman gentilmente, fechando o
armário e girando a chave — que deveríamos todos sair e
oferecer à srta. Greythorne mais uma canção natalina. — E
esquecendo-se totalmente que ele era nada mais do que
um mordomo, todos eles saíram obedientemente para fora
do aposento atrás dele.
Will o chamou, em apropriado silêncio desta vez: —
Mas eu preciso falar com você! O Cavaleiro estava aqui! E a
garota!
Merriman respondeu em sua mente: — Eu seu. Mais
tarde. Eles sempre têm meios para ouvir este tipo de
conversa, lembre-se disto. — E continuou andando,
deixando Will tremendo de exasperação e alarme.
Na porta de entrada, Paul parou segurando
firmemente o irmão pelo ombro e o virou para olhá-lo de
frente. — Você está realmente bem?
— Sinceramente. Desculpe-me por causa do barulho.
Aquele flauta soava magnífica.
— Uma coisa fantástica. — Paul o soltou, virando-se
para olhar desejosamente para o armário. — Verdade. Eu
nunca ouvi nada como o som daquela flauta. E, é claro,
nunca toquei uma assim também. Você não faz idéia, Will,
eu não tenho como descrever, tremendamente antiga, e
ainda em condições de uso; poderia ser quase nova. E o
timbre dela... — Havia certa dor em sua voz e em seu rosto,
e alguma coisa dentro de Will reagia a este respeito com
uma compaixão antiga e profunda. Ele repentinamente
soube que um Ancião estaria fadado a sentir sempre aquele
mesmo desejo inominável e informe por alguma coisa além
de seu alcance, como uma parte infinita da vida.
— Eu daria qualquer coisa — dizia Paul — para ter
uma flauta como aquela um dia.
— Quase qualquer coisa — corrigiu Will gentilmente.
Paul olhou-o espantado, e o Ancião dentro dele percebeu
subitamente atrasado que esta talvez não fosse a resposta
de um garotinho; então sorriu e mostrou a língua de forma
travessa para Paul, e saiu pulando pela passagem, de volta
às relações normais do mundo normal.
Eles cantaram The First Nowell para encerrar a
cantata natalina e se despediram; o grupo se encontrava do
lado de fora novamente, pisando na neve e sentindo o ar
gelado; olhavam o sorriso impassível e educado de
Merriman atrás das portas do Solar. Will parou nos largos
degraus de pedra e observou as estrelas. As nuvens haviam
se dissipado finalmente, e, naquele momento, as estrelas
reluziam como fagulhas de fogo branco no buraco negro do
céu noturno, em todas as estranhas formas que foram um
mistério complicado para ele em toda a sua vida, mas que
finalmente tinham um significado agora.
— Veja como as plêiades estão brilhantes hoje à noite
— disse baixinho.
Mary o olhou estarrecida e disse — As o quê?
Então, Will passou a prestar atenção nos céus escuros
e faiscantes e em seu pequeno mundo, amarelo e de tochas
acesas, em que os cantores de Natal da família Stanton
percorriam até seu lar. Caminhou entre eles em silêncio,
como se estivesse em um sonho. Seus irmãos achavam que
estivesse cansado, mas estava flutuando maravilhado. Ele
tinha os três Signos de Poder agora. E tinha, também, o
conhecimento para usar o Dom da Magia: uma vida longa
de descoberta e sabedoria, oferecida a ele em um
momento suspenso no tempo. Não se tratava mais do
antigo Will Stanton de alguns dias atrás. Sabia que, agora e
sempre, habitaria numa escala de tempo diferente daquela
vivida por todos que conhecia e amava... Mas conseguiu
parar de pensar nessas coisas, mesmo naquelas duas
figuras invasoras e ameaçadoras das Trevas. Pois era Natal,
uma época que sempre foi mágica, para ele e para todos no
mundo. Esta era uma festa esplendorosa e reluzente e,
enquanto seu encanto estivesse sobre o mundo, o círculo
encantado de sua família e lar estariam protegidos contra
qualquer invasão externa.
No interior da casa, a árvore cintilava e brilhava, a
música de Natal pairava no ar junto com os aromas
picantes da cozinha. E na ampla lareira da sala de estar, a
grande lenha de Yule retorcida bruxuleava e flamejava
enquanto queimava suavemente. Will deitou-se de costas
no tapete da lareira, olhando para a fumaça subindo pela
chaminé, e ficou repentinamente sonolento. James e Mary
também estavam tentando não bocejar, e mesmo Robin já
parecia ter pálpebras pesadas.
— Ponche demais — disse James, enquanto seu irmão
se estendia pelo espaço desocupado da poltrona.
— Cai fora! — disse Robin amavelmente.
— Quem quer torta de carne? — perguntou a sra.
Stanton, carregando uma enorme bandeja trazendo
canecas com chocolate quente.
— James já comeu seis — disse Mary de forma
afetada mostrando desaprovação. — No Solar.
— Agora são oito — disse James, com uma torta em
cada mão. — Ora!
— Você vai engordar — disse Robin.
— Melhor do que já ser gordo — respondeu James,
com a boca cheia, olhando para Mary, cuja forma
rechonchuda recentemente se tornara sua preocupação
mais desalentadora. Mary ficou boquiaberta, depois a
fechou, avançando sobre ele e fazendo um som de rosnado.
— Ei, ei, ei — disse Will sepulcralmente do chão. —
Boas criancinhas nunca brigam no Natal. — E visto que
Mary se encontrava irresistivelmente perto dele, ele a
agarrou pelo calcanhar. Ela caiu sobre ele, uivando
alegremente.
— Cuidado com o fogo — disse a sra. Stanton, por
força do hábito adquirido pelos anos.
— Ei — disse Will, quando sua irmã o socou no
estômago, rolando para longe de seu alcance. Mary parou e
ficou olhando para ele com curiosidade. — Por que raios
você tem tantas fivelas em seu cinto? — questionou ela.
Will puxou seu pulôver apressadamente para baixo,
escondendo o cinto, mas era tarde demais: todos já tinham
visto. Mary estendeu o braço e puxou o pulôver para cima
novamente.
— Que coisas engraçadas. O que são?
— Apenas um ornamento — disse Will bruscamente.
— Eu as fiz num trabalho em metal da escola.
— Eu nunca vi você lá — disse James.
— Você nunca olhou então.
Mary cutucou com um dedo o primeiro circulo no
cinto de Will e puxou a mão de volta com um gritinho. —
Isso me queimou! — gritou.
— Muito provável — disse a mãe deles. — Will e seu
cinto, ambos estão perto do fogo. E logo vocês dois estarão
lá dentro se continuarem rolando desse jeito. Venham
agora, é hora da bebida de véspera de Natal, da torta de
carne de véspera de Natal... e de irem para a cama na
véspera de Natal.
Will ficou de pé rapidamente, agradecido. — Eu
pegarei meus presentes enquanto o chocolate esfria um
pouco.
— Eu também. — Mary o seguiu. Nas escadas ela
disse:
— Aquelas coisas de fivela são bonitas. Você faria
uma para mim para um broche no próximo semestre?
— Acho que sim — disse Will, e sorriu para si mesmo.
A curiosidade de Mary nunca foi algo para se preocupar:
sempre levava ao mesmo lugar.
Saíram ruidosamente para os respectivos quartos e
desceram carregados de pacotes que deveriam ser
acrescentados ã crescente pilha já embaixo da árvore. Will
estivera tentando com esforço não olhar para aquela
montanha mágica de presentes desde que haviam chegado
da cantata natalina, mas era arduamente difícil,
especialmente desde que ele pôde ver uma caixa
gigantesca etiquetada com um nome que claramente
começava com W. Quem mais começaria com W, afinal...?
Forçou-se a ignorar e resolutamente empilhou seus próprios
pacotes em um espaço ao lado da árvore.
— Você está olhando, James! — gritou Mary, atrás
dele.
— Não estou — disse James. Depois confirmou,
porque era véspera de Natal. — Bem, sim. Eu acho que sim.
Desculpe-me. — E Mary ficou tão espantada que colocou
todos os seus embrulhos em silêncio, incapaz de pensar em
algo para dizer.
Na noite de Natal, Will sempre dormia com James. As
camas iguais ainda estavam no quarto de James desde a
época que precedia a mudança de Will para o sótão de
Stephen. A única diferença agora era que seu irmão havia
mantido a antiga cama de Will empilhada com almofadas
de arte abstrata, referindo-se a isto como "minha chaise
longue". Ambos sentiam que havia alguma coisa sobre
vésperas de Natal que exigia companhia; alguém precisava
de outro para sussurrar, durante os momentos de sonho
caloroso e lindo entre o pendurar a meia vazia na
extremidade da cama e cair no agradável esquecimento
que floresceria para uma maravilhosa manhã de Natal.
Enquanto James respingava água no banheiro, Will
tirou seu cinto, afivelou o terceiro Signo e o colocou debaixo
de seu travesseiro. Parecia prudente, mesmo sabendo, sem
dúvida, que nada ou ninguém o perturbaria ou a seu lar
durante a noite. Naquela noite, talvez, pela última vez, ele
era um menino comum novamente.
Partes de música e o suave rumor de vozes eram
ouvidos do andar de baixo. Em um ritual solene, Will e
James enrolaram suas meias de Natal sobre a ponteira da
cama: meias marrons preciosas, mas desprovidas de
beleza, feitas de uma material grosso e macio, e que foram
usadas por sua mãe há um tempo distante inimaginável e
deformadas agora pelos anos de serviços como sacola de
Natal. Quando ficavam cheias, era impossível se manter por
causa do peso; então, na manhã seguinte, seriam
descobertas acomodadas magnificamente aos pés da
cama.
— Aposto que eu sei o que a mamãe e o papai vão
dar pra você — disse James baixinho. — Aposto que é...
— Não ouse — sussurrou Will, e seu irmão tentou
conter o riso afundando-se sob os cobertores.
— Boa noite, Will.
— Boa noite. Feliz Natal.
— Feliz Natal.
E aconteceu como sempre, quando ele se deitou
alegremente como um caracol em seu aconchegante
invólucro, prometeu a si mesmo que permaneceria
acordado, até, até....
... até que acordasse, no quarto mal iluminado pela
manhã, com a luz tênue surgindo furtivamente ao redor do
quadrado escuro da janela fechada pela cortina, e visse e
ouvisse nada além de um espaço encantado cheio de
expectativa, pois todos os seus sentidos se concentravam
na forte sensação, sobre e ao redor de seus pés cobertos,
de estranhos estalidos, cantos e formas que não estavam
ali quando caiu adormecido. E já era dia de Natal.

DÍA DE NATAL

Quando Will se ajoelhou ao lado da árvore de Natal e


rasgou o papel colorido que embrulhava a gigante caixa
etiquetada com o nome "Will", a primeira coisa que
descobriu foi que não se tratava de uma caixa, mas de um
caixote de madeira. Enquanto isso, um coro natalino soava
distante e alegre do rádio na cozinha; tratava-se da meia de
Natal, antes do encontro para o café-da-manhã da família,
quando cada membro abria apenas um de seus "presentes
da árvore". O restante da reluzente pilha permaneceria lá
até o jantar, torturando de alegria.
Will, sendo o mais jovem, foi o primeiro. Ele foi direto
até a caixa, em parte porque parecia tão
impressionantemente larga e em parte porque suspeitava
que tivesse sido enviada por Stephen. Logo descobriu que
alguém havia retirado os pregos da tampa de madeira, de
modo que ele pudesse abri-la com facilidade.
— Robin retirou os pregos, e Barb e eu colocamos o
papel por cima — disse Mary sobre seu ombro, toda
impaciente. — Mas não olhamos dentro dela. Abre logo,
Will, abre logo.
Ele retirou a tampa. — Está cheia de folhas secas! Ou
juncos, ou outra coisa.
— Folhas de palmeira — disse seu pai, olhando. —
Para embalar, eu suponho. Cuidado com os dedos, elas
podem ter as bordas afiadas.
Will jogou fora um punhado das folhagens
sussurrantes, até que a primeira forma rígida de algo
começou a aparecer. Tinha um estranho formato. Tinha um
aspecto encurvado, fino, marrom, liso como um galho e
parecia ser feito de um tipo duro de papel machê. Era um
chifre, parecido e diferente ao mesmo tempo de um chifre
de cervo. Will parou de repente. Um sentimento forte e
totalmente inesperado o envolveu assim que tocou o
objeto. Não era um sentimento que já havia sentido na
presença de seus familiares antes; era uma mistura de
excitação, segurança e alegria que o envolvia sempre que
se encontrava com um dos Anciãos.
Viu um envelope saindo do caixote ao lado do chifre e
o abriu. Aquele papel continha o exato cabeçalho do navio
de Stephen:
Querido Will, Feliz aniversário. Feliz Natal. Eu
sempre jurei não conciliar os dois, não foi? E agora,
estou fazendo isso. Eu não sei se você
compreenderá; especialmente depois que ver o
presente. Mas talvez sim. Você sempre foi um pouco
diferente de todos os outros. Não estou dizendo
idiota! Apenas diferente.
Foi assim, eu estava na parte velha de Kingston certo
dia, durante o carnaval. Carnaval nestas ilhas é uma época
muito especial de grande diversão, com ecos repercutindo
por um longo, longo caminho. Bem, eu me misturei no meio
de uma folia, com pessoas rindo e bandas fazendo o som
de aço tilintando, e dançarinos vestidos com fantasias
muito loucas, e então eu conheci um homem velho.
Era um homem velho, bastante impressionante, com
a pele muito escura e cabelos muito brancos, e ele parecia
que tinha surgido do nada; daí, ele me levou pelo braço e
tirou-me da agitação. Eu nunca o tinha visto antes em
minha vida, de qualquer maneira. Tenho certeza disto. Mas
ele olhava para mim e dizia: "Você é Stephen Stanton, da
Marinha de Sua Majestade. Tenho algo pra você. Não para
você mesmo, mas para seu irmão mais novo, o sétimo filho.
Você enviará para ele como um presente, por seu
aniversário deste ano e pelo Natal, as duas datas
conciliadas em uma. Será um presente seu, irmão dele, e
ele saberá o que fazer com isso no devido tempo, embora
você não saiba".
Foi tudo tão inesperado que eu fiquei desnorteado.
Tudo o que eu pude dizer foi: "Mas quem é você? Como me
conhece?" e o velho somente me olhou novamente com um
olhar sombrio e intenso que parecia me atravessar por
inteiro, e disse: "Eu conheceria você de qualquer maneira.
Você é irmão de Will Stanton. Há um olhar que nós Anciãos
temos. Nossas famílias têm algo disto também".
E foi isso que aconteceu, Will. Ele não disse nenhuma
outra palavra. Estas últimas não fazem qualquer sentido,
eu sei, mas foi o que ele disse. Depois, ele apenas se
moveu para dentro da folia de carnaval e partiu
novamente; e quando voltou estava carregando... vestindo,
na realidade, a coisa que você encontrará nesta caixa.
Então, estou aqui enviando isto pra você. Do jeito que
me pediram. Parece loucura, e eu consigo imaginar um
monte de coisas de que você gostaria mais. Mas aí está.
Havia algo de extraordinário sobre aquele velho, e eu
simplesmente tive que fazer o que ele me solicitou.
Espero que goste de seu presente maluco,
companheiro. Pensarei em você, nas duas datas.
Com. amor, Stephen
Lentamente Will dobrou a carta e a colocou de volta
no envelope. "Um olhar que nós Anciãos temos..." Então o
círculo se estende ao redor de todo o mundo. Mas é claro
que sim; não teria razão de ser de outra forma. Ele estava
feliz por Stephen participar daquele arranjo; estava certo,
de alguma maneira.
— Ah, anda logo, Will! — pedia Mary com curiosidade,
agitando seu penhoar. — Abra, abra!
Will subitamente percebeu que sua tradicional e
preocupada família permanecia aguardando,
pacientemente imóvel, esperando por cinco minutos
enquanto ele lia a carta. Utilizando a tampa do caixote
como uma bandeja, começou a retirar apressadamente
mais e mais folhas de palmeira até que finalmente o objeto
ficasse visível. Ao retirá-lo, admirou-se quando sentiu o
peso, e todos prenderam a respiração.
Era uma cabeça gigante de carnaval, brilhante e
grotesca. As cores eram claras e grosseiras, as feições
audaciosamente feitas e facilmente reconhecíveis, tudo
feito da mesma substância lisa, luminosa de um papel
machê ou um tipo de madeira sem veios. E não era a
cabeça de um homem. Will nunca havia visto nada como
aquilo antes. A cabeça de onde surgiam os chifres tinha o
formato da cabeça de um veado, mas as orelhas ao lado
dos chifres eram de cachorro ou lobo. E a face era a face de
um humano, mas com os olhos rodeados por penas de um
pássaro. Tinha um nariz reto e forte de um humano, a boca
firme de um humano, disposta em um leve sorriso. Não
havia puramente muito mais de um ser humano naquela
coisa. O queixo era barbado, mas a barba tinha tal formato
que poderia facilmente ser tanto do queixo de um bode ou
cervo como de um homem. A face poderia ser vista como
assustadora. Quando todos ofegaram, o som que Mary
deixou escapar e apressadamente abafou foi algo mais
parecido com um grito. Mas Will sentia que o efeito do
objeto dependia de quem estivesse olhando pra ele. A
aparência não significava nada. Não era feio nem bonito,
nem assustador nem divertido.
Era uma coisa feita para provocar profundas reações
da mente. Era mesmo uma coisa de Anciãos.
— Meu Deus! — disse seu pai.
— É um tipo engraçado de presente — disse James.
Sua mãe não disse nada.
Mary não disse nada, mas afastou-se um pouco.
— Lembra alguém que eu conheço — disse Robin,
rindo. Paul não disse nada.
Gwen não disse nada.
Max falou baixinho: — Olha aqueles olhos!
Bárbara disse: — Mas para que serve isso?
Will deslizou os dedos pela face estranha e grande.
Demorou apenas um instante para encontrar o que estava
procurando: estava quase imperceptível, a menos que
alguém estivesse esperando encontrá-lo, esculpido na
fronte, entre os chifres. A impressão de um círculo,
quartejado pela cruz.
Então disse: — É uma cabeça de carnaval das índias
Ocidentais. É antiga. É especial. Stephen a encontrou na
Jamaica.
James estava ao seu lado agora, olhando o interior da
cabeça.
— Há um tipo de armação de arame que fica sobre os
ombros. E uma fenda onde a boca está um pouquinho
aberta. Eu acho que você olha através disto. Vamos lá, Will,
tente colocá-la.
Ergueu-a sobre a cabeça para passá-la sobre os
ombros de Will que se afastou, como se alguma parte de
sua mente lhe desse um silencioso aviso.
— Não agora — disse ele. — Outra pessoa deve abrir
seu presente.
E logo Mary esqueceu a cabeça e sua reação a ela, no
feliz instante em que descobriu que era sua vez. Ela
mergulhou na pilha de presentes perto da árvore, e as
alegres descobertas recomeçaram.
Um presente cada; eles estavam quase terminando, e
já estava quase na hora do café-da-manhã, quando soou
uma batida na porta. A sra. Stanton que estava prestes a
alcançar seu pacote, deixou o braço cair e olhou para cima
inexpressivamente.
— Quem poderia ser uma hora dessas?
Todos fitaram um ao outro, e então para a porta,
como se ela pudesse falar. Estava tudo errado, como o
compasso de uma música mudando no meio da melodia.
Ninguém nunca os visitava naquela hora no dia do Natal,
não estava no esquema.
— Será que... — disse o sr. Stanton, com uma leve
suspeita despertando em sua voz; ele enfiou os pés com
mais firmeza em seus chinelos, levantou e foi abrir a porta
da frente.
Eles ouviram a porta se abrir. As costas dele
preenchiam o espaço e os impedia de ver o visitante, mas a
voz se ergueu em óbvio contentamento. — Meu prezado
amigo, como é bom ver você... entre, entre... — E quando
ele se virou em direção à sala de estar, estava segurando
uma pequena embalagem em uma das mãos que não tinha
sido vista antes, definitivamente um produto que chegava
com aquela figura alta que agora surgia na soleira da porta,
seguindo seu pai. O sr. Stanton estava radiante e feliz,
ocupado com as apresentações: — Alice, querida, este é o
sr. Mitothin... tão gentil, fazer todo esse caminho no Natal
só para entregar... não deveria ter tomado... Mitothin, meu
filho Max, minha filha Gwen.... James, Bárbara...
Will ouvia sem atenção aquela cordialidade de
adultos; somente quando ouviu a voz do estranho que o
olhou atentamente. Havia algo familiar naquela voz grave e
levemente nasalada que revelava certo sotaque, ao repetir
cuidadosamente os nomes.
— Como tem passado, sra. Stanton.... Meus
cumprimentos da estação, Max, Gwen...
Então, Will viu o perfil do rosto, os cabelos castanhos-
avermelhados um tanto longos, e ficou imóvel. Era o
Cavaleiro. Esse tal de sr. Mitothin, o amigo de seu pai de
sabe Deus onde, era o Cavaleiro Negro de algum lugar fora
do Tempo.
Will agarrou a coisa mais próxima de sua mão, um
casaco jovial que tinha sido um presente da Jamaica
enviado por Stephen para sua irmã Bárbara, e o colocou
rapidamente sobre a cabeça de carnaval para ocultá-la.
Quando se virou novamente, o Cavaleiro erguia a cabeça
para olhar com mais detalhes pela sala e o viu. Fixou Will
em um aberto desafio triunfante, revelando um pequeno
sorriso em seus lábios. O sr. Stanton fez um sinal, acenando
com a mão.
— Will, venha cá um minuto... meu filho mais novo,
sr... Instantaneamente, Will se tornou um Ancião
furioso, tão furioso que não parou para pensar sobre o que
deveria fazer. Ele podia sentir cada centímetro de si
mesmo, como se tivesse aumentado de tamanho, ficando
três vezes maior. Estendeu a mão direita com os dedos
esticados em direção à sua família, e os viu presos no
tempo, paralisados de todos os movimentos. Como peças
de cera, eles ficaram rígidos e imóveis pela sala.
— Como ousa vir aqui? — gritou ele para o Cavaleiro.
Os dois ficaram se encarando pela sala, as únicas
coisas móveis e viventes no lugar: nenhum humano se
mexia, os ponteiros do relógio sobre a cornija da lareira não
se movia, e mesmo as chamas bruxuleantes do fogo não
consumiam as lenhas que queimavam.
— Como ousa? No Natal, na manhã de Natal! Saia
daqui! — Era a primeira vez em sua vida que ele sentia
tanta raiva, e isso não era nada agradável, mas ele se
sentia indignado com a ousadia das Trevas de interromper o
ritual mais precioso de sua família.
O Cavaleiro disse suavemente: — Contenha-se. — Na
Linguagem Antiga, seu sotaque era muito mais acentuado.
Ele sorria para Will sem qualquer nuance de mudança em
seus frios olhos azuis. — Eu posso cruzar a sua soleira e
passar por seu azevinho, já que fui convidado. Se pai, de
boa-fé, convidou-me a entrar pela porta. E ele é o senhor
desta casa, e não há nada que você possa fazer sobre isso.
— Sim, há sim — disse Will. Olhando fixamente para o
sorriso confiante do Cavaleiro, concentrou todos os seus
poderes em um esforço para ler a sua mente, descobrir o
que ele pretendia fazer ali. Mas acabou se deparando com
muro negro de hostilidade, intransponível. O menino
achava que isso não deveria ser possível e ficou chocado.
Procurou irado em sua memória palavras de destruição com
as quais, em último caso, mas somente em último caso
mesmo, um Ancião poderia quebrar o poder das Trevas. E o
Cavaleiro Negro riu.
— Ah, não, Will Stanton — disse ele tranqüilamente.
— Isso não funcionará. Você não pode usar armas desse
tipo aqui, a menos que você deseje lançar toda a sua
família fora do Tempo. — Ele olhou sarcástico para Mary,
que permanecia imóvel perto dele, boquiaberta, presa fora
da vida, no meio de uma frase que dizia ao seu pai.
— Isto seria uma pena — disse o Cavaleiro. Então,
voltou a olhar para Will, e o sorriso desapareceu de seu
rosto como se o tivesse lançado fora, e seus olhos se
estreitaram. — Seu jovem tolo, você acha que por causa de
todos os seus Dons da Magia pode me controlar? Coloque-
se no seu lugar. Você não é um dos mestres ainda. Você
pode fazer muitas coisas tão bem quanto pode inventar,
mas os altos poderes não são para seu senhorio ainda. E eu
também não.
— Você tem medo dos meus mestres — disse Will de
repente, sem saber muito bem o que queria dizer, mas
sabendo que era uma verdade.
O rosto pálido do Cavaleiro enrubesceu. E ele falou
baixinho: — As Trevas estão se rebelando, Ancião, e desta
vez nós não deixaremos que alguma coisa atrapalhe o
nosso caminho. Chegou a nossa hora de nos rebelarmos, e
os próximos doze meses verão finalmente o nosso
estabelecimento. Diga aos seus mestres. Diga-lhes que
nada poderá nos deter. Diga-lhes que todos os Artefatos de
Poder que eles esperam possuir, nós os tiraremos deles, o
graal, a harpa e os Signos. Nós quebraremos o seu Círculo
antes mesmo que possa ser reunido. E nada poderá deter
as Trevas de se rebelarem.
As últimas palavras soaram penetrantes em um grito
alto de triunfo, e Will estremeceu. O Cavaleiro olhou-o, seus
olhos pálidos cintilavam; então, desdenhosamente, ele
estendeu suas mãos em direção aos Stanton, e ao mesmo
tempo eles voltaram à vida, e a animação do Natal também
voltou; e não havia nada que Will pudesse fazer.
— ... pertence essa caixa? — continuava Mary.
— Mitothin, este é o nosso Will. — O sr. Stanton
colocou a mão sobre os ombros de Will.
Will cumprimentou friamente: — Como tem passado?
— Os cumprimentos da estação para você, Will —
disse o Cavaleiro.
— Desejo-lhe o mesmo que me desejar — disse Will.
— Muito lógico — disse o Cavaleiro.
— Muito pomposo, se quiser saber minha opinião —
disse Mary, sacudindo a cabeça. — Ele é assim, algumas
vezes. Papai, a quem pertence essa caixa, que ele trouxe?
— Sr. Mitothin, não "ele" — corrigiu seu pai,
automaticamente.
— Para sua mãe, uma surpresa — disse o Cavaleiro.
— Algo que não estava pronto ontem à noite para que seu
pai pudesse trazer para casa.
— Do senhor?
— Do papai, eu presumo — disse a sra. Stanton,
sorrindo para seu marido. Ela seu virou para o Cavaleiro. —
Gostaria de tomar o café-da-manhã conosco, sr. Mitothin?
— Ele não pode — disse Will. —- Will!
— Ele vê que estou com pressa — disse o Cavaleiro
educadamente. — Não, eu lhe agradeço, sra. Stanton, mas
estou indo passar o dia com uns amigos e não posso
cancelar.
Mary perguntou: — Onde o senhor está indo?
— Ao norte daqui... que cabelos longos você tem,
Mary. Muito bonitos.
— Obrigada — ela disse satisfeita, agitando os longos
cabelos para trás de seus ombros. O Cavaleiro estendeu a
mão e removeu delicadamente alguns fios soltos na manga
de sua roupa. — Permita-me — disse cordialmente.
— Ela está sempre os exibindo — disse James
calmamente. Mary colocou a língua para fora.
O Cavaleiro olhou novamente a sala. — Esta é uma
árvore magnífica. É do local?
— É uma árvore Real— disse James. — Do Great Park.
— Venha e veja! — Mary agarrou a mão do Cavaleiro
e o puxou pela sala. Will mordeu os lábios e
deliberadamente limpou todos os pensamentos sobre a
cabeça de carnaval de sua mente concentrando-se
fervorosamente sobre o que ele comeria no café-da-manhã.
Estava certo de que o Cavaleiro poderia ler muito bem a
sua mente, mas talvez não aqueles pensamentos
enterrados lá no fundo dela.
Mas não havia perigo. Embora o enorme caixote vazio
e sua pilha de embrulhos exóticos estivessem ao lado dele,
o Cavaleiro, rodeado pelos Stanton, apenas olhava
obedientemente e admiravelmente para os enfeites da
árvore. Parecia, em particular, envolvido com as minúsculas
iniciais talhadas da caixa do fazendeiro Dawson.
— Lindo — ele disse, de forma ausente, girando a
peça gêmea do M de Mary, que estava de cabeça para
baixo, conforme Will havia notado.
Então, ele se voltou para o sr. e sra. Stanton. — Eu
realmente preciso ir, e vocês devem tomar seu café-da-
manhã. Para mim, Will parece bastante faminto. — Havia
um lampejo de malícia enquanto eles se entreolhavam, e
Will soube que agira certo ao limitar a visão das Trevas.
— Estou imensamente grato a você, Mitothin — disse
o sr. Stanton.
— Sem problemas, você estava bem no meu
caminho. Cumprimentos da estação para todos vocês. —
Com uma salva de despedidas, ele se foi, atravessando o
caminho a passos largos. Will lamentou que sua mãe
houvesse fechado a porta antes que tivesse a chance de
ouvir o motor de um carro ligado. Ele não achava que o
Cavaleiro chegara ali de carro.
— Bem, minha querida — disse o sr. Stanton, dando
um beijo em sua esposa e entregando-lhe o embrulho. —
Aqui está o seu primeiro presente da árvore. Feliz Natal!
— Oh — exclamou a mãe, quando abriu a
embalagem. — Oh, Roger!
Will se espremeu entre seus alvoroçados irmãos para
dar uma olhadinha. Acomodado em veludo branco, em uma
caixa marcada com o nome da loja de seu pai, encontrava-
se o anel antigo de sua mãe: o anel que ele tinha visto o sr.
Stanton examinar para conferir as pedras perdidas hã
algumas semanas; o anel que Merriman viu na imagem que
ele extraíra da mente de Will. Mas, cercando o objeto, havia
outra coisa: uma pulseira produzida como uma ampliação
do anel, exatamente igual. Uma faixa de ouro, fixada com
três diamantes no centro, três rubis de cada lado, e
gravada com um modelo estranho de círculos, linhas e
curvas ao redor dela. Will examinou a jóia, desejando saber
por que o Cavaleiro quisera ter aquele objeto nas mãos.
Pois, seguramente, isso deveria estar por trás de sua visita
naquela manhã; nenhum Senhor das Trevas precisava
entrar em qualquer casa somente para ver o que havia
dentro dela.
— Foi o senhor que fez, pai? — perguntou Max. — Um
trabalho adorável.
— Obrigado — agradeceu seu pai.
— Quem era aquele homem que o trouxe? —
perguntou Gwen com curiosidade. — Ele trabalha com o
senhor? Que nome engraçado.
— Ah, ele é um negociante — disse o sr. Stanton. —
Precisamente, de diamantes. Um camarada estranho, mas
muito agradável. Eu o conheço já há alguns anos, eu acho.
Nós compramos muitas pedras de certas pessoas, inclusive
estas. — Ele tocou suavemente na pulseira. — Eu precisei
sair mais cedo ontem enquanto o jovem Jeffrey estava
ainda fixando um dos desenhos... e aconteceu que Mitothin
estava na loja e se ofereceu para deixá-lo aqui para poupar-
me de voltar. Como ele disse, passaria por aqui nesta
manhã de qualquer maneira. Ainda assim, foi muita
gentileza, ele não precisava se oferecer.
— Muito amável — disse sua esposa. — Mas você é
mais amável. E achei linda.
— Estou com fome — disse James. — Quando iremos
comer?
Somente depois que os ovos e bacon, torradas e
chás, geléias e mel acabaram, e os destroços dos primeiros
prementes abertos liberaram o caminho, Will foi perceber
que a carta de Stephen não se encontrava em lugar
nenhum. Procurou pela sala de estar, verificou nos
pertences de cada um, engatinhou no chão ao redor da
árvore e da pilha de presentes ainda sem abrir, mas não
estava lá. Poderia, é claro, ter sido jogada fora sem
perceber, por engano como papel de embrulho; tais coisas
às vezes já aconteceram nos tumultuados dias de Natal de
sua casa.
Mas Will achava que sabia o que havia acontecido
com a carta. E ele se perguntava se, afinal, havia sido a
oportunidade de examinar o anel de sua mãe que trouxera
o Cavaleiro Negro à sua casa, ou a busca por alguma outra
coisa.

***

Pouco depois, eles perceberam que a neve estava


caindo novamente. Suave mas inexoravelmente, os flocos
caíam trêmulos ao chão, sem titubear. As pegadas do sr.
Mitothin, do lado de fora, no caminho da porta até o carro,
foram logo encobertas como se nunca tivessem estado ali.
Os cães, Raq e Ci, que pediram para sair antes que a neve
começasse, voltaram humildes arranhando a porta dos
fundos.
— Sempre gostei do Natal todo branco — disse Max,
olhando morosamente para fora —, mas isso é ridículo.
— Extraordinário — disse seu pai, olhando sobre os
ombros. — Eu nunca a vi dessa forma no Natal, em toda a
minha vida. Se mais neve cair ainda hoje, realmente haverá
problemas no transporte por todo o sul da Inglaterra.
— Era nisso que eu estava pensando — disse Max. —
Eu deveria ir para Southampton depois de amanhã para
ficar com Deb.
— Oh, ai, ai — exclamou James, abraçando o tórax.
Max olhou-o.
— Feliz Natal, Max — disse James.
Paul chegou ruidosamente na sala de estar calçado
com botas e abotoando seu sobretudo. — Com ou sem
neve, estou saindo para tocar o sino. Eles tocarão os sinos
da torre e não esperarão ninguém. Algum de vocês, seus
pagãos, cogitam ir à igreja nesta manhã?
— Os rouxinóis irão — disse Max, olhando para Will e
James, que dentre eles constituíam um terço do coro da
igreja. — Isso já conta pra você, não acha?
— Se você fosse apresentar seu ato da temporada —
disse Gwen, passando adiante — mas com algumas tarefas
úteis como descascar as batatas... Então talvez a mamãe
possa ir. Ela realmente gosta de ir, quando pode.
O pequeno grupo discreto que finalmente saiu na
neve cada vez mais espessa consistia de Paul, James, Will, a
sra. Stanton e Mary, que estava, conforme James havia dito
indelicadamente, mas falando a verdade, provavelmente
mais interessada em evitar as tarefas domésticas do que
em fazer sua devocional. Eles se arrastaram ao longo da
estrada, os flocos de neve agora caíam rigorosamente e
começavam a queimar suas bochechas. Paul saiu na frente
para se juntar aos outros sineiros, e logo as notas
acrobáticas dos seis sinos antigos e sonoramente
agradáveis que pendiam na pequena torre quadrada
começaram a soar pelo mundo cinzento e rodopiante ao
redor deles, trazendo a alegria de volta ao Natal. Os ânimos
de Will ressurgiram um pouco com as badaladas, mas não
muito: a presença intensa e persistente da neve o
incomodava. Ele não conseguia afastar a terrível suspeita
de que caía como uma precursora de alguma outra coisa,
como uma mensageira das Trevas. Ele enfiou as mãos
dentro dos bolsos de sua jaqueta de couro de cabra, e a
ponta dos dedos de uma mão circulavam pela pena da
gralha, esquecida ali desde a noite terrível da véspera do
solstício de inverno, antes do seu aniversário.
Na rua coberta de neve, quatro ou cinco carros
encontravam-se estacionados do lado de fora da igreja.
Geralmente, as manhãs de Natal contavam com mais
veículos, mas poucos habitantes que foram vistos
caminhando ao ar livre haviam optado por desbravar
aquele nevoeiro branco. Will observava os flocos brancos e
espessos que se acomodavam determinados e indissolúveis
sobre a manga de sua jaqueta; estava muito frio. Mesmo
dentro da pequena igreja, os flocos de neve continuavam a
cair obstinadamente e demoravam muito para derreter. Ele
seguiu James e um punhado de outros coristas até o
estreito corredor do vestiário, onde puseram com
dificuldade a sobrepeliz. Então, os sinos se fundiram ao
início do culto, para indicar a procissão dos garotos pelo
corredor até a galeria no fundo da pequena nave da igreja.
De lá, era possível ver todas as pessoas, e estava evidente
que a igreja de St. James the Less não estava lotada
naquele Natal, mas quase cheia.
A liturgia da Oração Matutina, como acontecia nesta
Igreja da Inglaterra, pela Autoridade do Parlamento, no
segundo ano do reinado do Rei Eduardo VI, foi iniciada
nobremente segundo os arranjos natalinos, sendo
conduzida pelo teatral reverendo que, por meio de sua voz
de baixo-barítono, a entoou sem qualquer constrangimento.
— Oh! Vós, Friúme e Frio, bendizei ao Senhor, louvai-
O, exaltai-O para sempre — cantava Will, refletindo que o
sr. Beaumont havia mostrado certa ironia ao escolher
aquele cântico.
— Oh! Vós, Gelo e Neve, bendizei ao Senhor, louvai-O,
exaltai-O para sempre.
De repente, Will notou que estava tremendo, mas não
por causa das palavras, nem por qualquer sensação de frio.
Sua cabeça girava; segurou firme na beirada da galeria por
um momento. A música parecia se tornar, por um breve
momento, horrendamente dissonante, irritante aos ouvidos.
Então, ela sumiu novamente e continuou como antes,
deixando Will trêmulo e com calafrios.
— Oh! Vós, Luz e Trevas — cantava James, olhando
para ele... você está bem? Sente-se... exaltai-O para
sempre.
Mas Will balançava a cabeça impacientemente e,
durante o restante do culto, manteve o vigor, cantou,
sentou-se, ou ajoelhou-se, e convenceu a si mesmo que não
acontecera nada de errado, apenas uma vaga sensação de
torpor, trazida pelo que seus irmãos mais velhos gostavam
de chamar de "excesso de animação". E então a estranha
impressão de iniqüidade e desarmonia voltou.
Aconteceu só mais uma vez, bem no final do culto. O
sr. Beaumont estava clamando a oração de São Crisóstomo:
"... Tu que prometeste, que quando dois ou três estivessem
reunidos era teu nome, Tu os atenderias...". O ruído
irrompeu repentinamente na mente de Will, um uivo
horrível e agudo no lugar das cadências conhecidas. Ele já
tinha ouvido aquilo antes. Era o som das Trevas assediando,
que ele ouvira do lado de fora do Salão do Solar onde
estivera com Merriman e a Dama, em algum século
desconhecido. Mas numa igreja? Perguntava-se Will, o
corista anglicano, incrédulo: você com certeza está sentido
isso dentro da igreja? E respondeu Will, o Ancião,
tristemente: qualquer igreja de qualquer região está
vulnerável aos ataques deles, pois lugares como estes são
os locais onde os homens se dedicam aos assuntos da Luz e
das Trevas. Ele arqueou a cabeça entre os ombros a ponto
de ser tocado pelo próprio nariz, e então tudo passou
novamente, e a voz do reverendo soava solitária, como
antes.
Will olhou rapidamente à sua volta, mas estava claro
que nenhuma outra pessoa mais havia notado alguma coisa
errada. Pelo desdobramento de seu suplício, ele segurou
firme os três Signos em seu cinto, mas não sentia calor nem
frio sob seus dedos. Para o poder de alerta dos Signos, uma
igreja seria um tipo de terra de ninguém; já que nenhum
mal poderia de fato entrar em suas paredes, por isso,
nenhum aviso contra o mal seria necessário. Porém, se o
mal estivesse rondando do lado de fora...
O culto acabou naquele momento e todos cantavam
alto "Oh Vinde Fiéis" desejando feliz Natal, enquanto o coral
descia da galeria e subia até o altar. Então, a bênção do sr.
Beaumont se estendeu sobre as cabeças da congregação:
"... que o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo...".
Mas as palavras não puderam trazer paz ao coração de Will,
pois ele sabia que alguma coisa estava errada, alguma
coisa surgindo iminente das Trevas, alguma coisa
esperando, lá fora, e quando chegasse o momento, ele teria
que encarar isto sozinho, sem estar fortalecido.
Observava todos caminhando sorridentes para fora
da igreja, sorrindo e acenando uns para os outros enquanto
recolhiam suas sombrinhas e subiam a gola do casaco para
se proteger da neve caindo com um rodamoinho. Ele avisou
o jovial sr. Hutton, o regente aposentado, girando a chave
do carro, abraçando a pequenina srta. Bell, a antiga
professora, e oferecendo-lhe calorosamente uma carona
para casa; e atrás dela a jovial sra. Hutton, uma mulher
enorme num casaco peludo, fazendo o mesmo com a
franzina sra. Pettigrew, a agente do correio. Diversas
crianças do vilarejo deixaram suas mães adornadas com
chapéu para correr em disparada para fora a fim de fazer
bolas de neve, ansiosas pelo peru de Natal. A lúgubre sra.
Horniman parou aturdida perto da sra. Stanton e Mary,
mostrando-se ocupada em prever algum destino fatal. Will
viu Mary, tentando não rir, recorrer à sra. Dawson e sua
filha casada que deixava o filho de cinco anos de idade
pavoneando alegremente com suas brilhantes botas novas
de vaqueiro.
Os componentes do coral, já preparados e
agasalhados, começavam a sair também com gritos de
"Feliz Natal" e "Vejo o senhor no Domingo, reverendo!" para
o sr. Beaumont, que realizaria somente aquele culto hoje e
o restante em suas outras paróquias. O regente, falando de
música com Paul, sorria e acenava vagamente. A igreja
começava a ficar vazia, enquanto Will aguardava seu irmão.
Sentia um arrepio no pescoço, como a eletricidade que cai
fortemente opressiva no ar antes de uma enorme
tempestade. Conseguia sentir isso em todos os lugares; o ar
dentro da igreja estava carregado dessa energia. O regente,
ainda conversando distraidamente, estendeu a mão e
desligou as luzes dentro do templo, deixando o ambiente
escuro, cinzento e frio, com a luz brilhando através do
reflexo propiciado pelos espectadores da neve situados ã
porta. Will, avistando algumas pessoas se moverem
naquela direção, para longe da escuridão, percebeu que a
igreja não estava totalmente vazia. Lá embaixo, perto da
pequena fonte do século 12, avistou o fazendeiro Dawson, o
Velho George, o filho do Velho George e John, o ferreiro,
com sua esposa silenciosa. Os Anciãos do Círculo estavam
esperando por ele, para apoiá-lo contra seja lá o que
estivesse escondido lá fora. Will se sentiu fraco por um
momento enquanto o alívio era derramado sobre ele em
uma maravilhosa onda de calor.
— Tudo pronto, Will? — perguntou o regente
cordialmente, vestindo seu sobretudo. Ele continuou, ainda
preocupado, falando com Paul. — É claro, eu realmente
concordo que o concerto duplo é um dos melhores. Eu só
gostaria que ele gravasse a suíte desacompanhada de
Bach. Eu o ouvi tocá-la certa vez numa igreja em
Edimburgo, no Festival... maravilhoso.
Paul, com os olhos mais atentos, disse: — Há algo
errado, Will?
— Não — respondeu ele. — Isto é... não. — Estava
tentando pensar desesperadamente em alguma maneira de
levar os dois para fora do templo antes de se aproximar
sozinho da porta.
Mas antes, antes mesmo que qualquer coisa pudesse
acontecer, aconteceu. Pela porta da igreja ele podia sentir
os Anciãos se moverem lentamente em um grupo fechado,
apoiando uns aos outros. Podia sentir uma força muito
resistente naquele momento, muito próxima, por todos os
lados; o ar estava denso; fora do templo, havia destruição e
caos, o coração das Trevas, e ele não conseguia pensar era
nada que pudesse fazer para remediar isto. Então, quando
o regente e Paul se viraram para caminhar pela nave, ele
viu ambos ficarem imóveis no mesmo instante, e suas
cabeças se ergueram como a cabeça de um cervo em sinal
de alerta. Era tarde demais; a voz das Trevas era tão alta
que mesmos os humanos puderam perceber seu poder.
Paul cambaleou, como se alguém o tivesse
empurrado no peito, e segurou-se num banco procurando
apoio. — O que foi isto? — perguntou ele roucamente. —
Reverendo? Que raios foi isto?
O sr. Beaumont virou-se muito pálido. Havia um brilho
de suor em sua testa; a igreja estava muito fria novamente.
— Nada de mais, eu acho, talvez — disse ele. — Deus me
perdoe. — E ele saiu tropeçando perto da porta, como um
homem lutando através das ondas do mar, e, inclinando-se
levemente, fez um rápido sinal da cruz. Gaguejava. —
Proteja-nos, seus humildes servos, de todos os ataques de
nossos inimigos; pois certamente confiamos em sua
proteção e não temeremos o poder de quaisquer
adversários...
O fazendeiro Dawson falou muito calmamente, mas
com intensidade, ao grupo do lado da porta: — Não,
Reverendo.
O pastor parecia não ouvi-lo. Seus olhos estavam
arregalados, fitando a neve; ele permaneceu transfixado e
tremia como um homem febril; o suor escorria por seu
rosto. Ele conseguiu erguer parcialmente um braço e
apontou para trás de si: — .... a sacristia... — dizia sem
fôlego. — ... o livro, sobre a mesa... exorcismo...
— Pobre e corajoso amigo — disse John Smith na
Linguagem Antiga.
— Esta batalha não é para ele lutar. Provavelmente
ele acha que sim, é claro, estando em sua igreja.
— Calma, Reverendo — disse a esposa do ferreiro no
idioma que ele podia entender; a sua voz era suave e
gentil, com o forte sotaque da região. O pastor olhou-a
como um animal assustado, mas naquele instante todo seu
domínio da fala e movimento lhe foram arrancados.
Frank Dawson disse: — Venha aqui, Will.
Lutando contra a barreira das Trevas, Will avançou
lentamente; tocou os ombros de Paul quando passou por
ele, olhando dentro dos olhos confusos da face tão
perturbada e impotente como a do pastor. E disse
suavemente: — Não se preocupe. Logo tudo ficará bem.
Cada um dos Anciãos o tocou calmamente quando se
aproximou do grupo, como se estivessem se unindo a ele; e
o fazendeiro Dawson o segurou pelo ombro, dizendo: — Nós
devemos fazer algo para proteger esses dois, Will, ou suas
mentes irão sofrer sérios danos. Eles não podem suportar a
pressão, as Trevas os enlouquecerão. Você tem o poder que
o resto de nós não tem.
Foi a primeira intimação de que ele poderia fazer
alguma coisa que os outros Anciãos não poderiam, mas não
havia tempo para perguntas; com o Dom da Magia, ele
fechou a mente de seu irmão e do pastor colocando uma
barreira que nenhum poder de qualquer tipo poderia
romper. Tratava-se de um perigoso empreendimento, já que
o realizador era o único que poderia remover a barreira, e,
se alguma coisa lhe acontecesse, os dois protegidos
ficariam como vegetais, incapazes de se comunicar para
sempre. Mas tinham que correr o risco; não havia mais
nada que pudessem fazer. Os olhos deles se fecharam
suavemente como se caíssem em um sono profundo e
permaneceram bem quietos. Depois de uns momentos,
seus olhos se abriram novamente, mas estavam tranqüilos
e vazios, inconscientes.
— Tudo bem — disse o fazendeiro Dawson. — Agora.
Os Anciãos se posicionaram na porta da entrada do
templo, de braços dados. Ninguém falava uma só palavra.
Ruídos enlouquecidos e turbulências eram ouvidos do lado
de fora; a luz escureceu, o vento uivava e gemia, a neve
chicoteava e rodopiava em suas faces como raspas de gelo
branco. E, repentinamente, as gralhas se amontoaram na
neve, centenas delas, uma onda negra de malevolência
grasnando e crocitando roucamente; algumas voando,
mergulhavam sobre o pórtico em um ataque assustador, e
então, levantando vôo, afastavam-se para longe. Elas não
conseguiam se aproximar o suficiente para arranhar ou
rasgar; era como se uma parede invisível as fizesse cair em
retrocesso a milímetros de distância de seu alvo.
Mas isso durou somente até quando a força dos
Anciãos pôde impedir. Em um temporal furioso branco e
negro, as Trevas atacavam, surrando suas mentes e seus
corpos, e acima de tudo se dirigindo ao Descobridor dos
Signos, Will. E o menino soube que se estivesse sozinho na
luta de sua mente, mesmo com todos os dons de proteção,
teria sofrido um colapso. Era a força do Círculo dos Anciãos
que o mantinha ágil agora.
Mas pela segunda vez em sua vida, o Círculo não
podia fazer nada mais do que manter o poder das Trevas
afastado. Mesmo juntos, os Anciãos não podiam rechaçá-lo.
E a Dama não se encontrava com eles, para propiciar um
tipo grandioso de socorro. Will percebia mais uma vez,
impotente, que para ser um Ancião deveria ser muito velho
antes do tempo apropriado, pois o medo que ele começava
a sentir naquele momento era pior do que o terror às cegas
vivenciado em sua cama no sótão, e pior do que o medo
que lhe fora infligido pelas Trevas no Grande Salão. Desta
vez, era um medo adulto, propiciado por experiências,
imaginação e zelo pelos outros, e isso era o pior de tudo. No
momento em que descobriu isto, percebeu também que
ele, Will, era o único que poderia vencer seus próprios
medos, e com isso o Círculo seria fortalecido e as Trevas
rechaçadas. Quem é você? Perguntava ele para si mesmo e
respondia: você é o Descobridor dos Signos que possui três
de todos os Signos, metade dos círculos dos Artefatos de
Poder. Use-os.
Havia suor em sua testa agora como havia na fronte
do pastor que, naquele momento, juntamente com Paul
permaneciam em sorridente paz, obviamente, ignorantes
de tudo o que estava se passando. Will podia ver a tensão
nos rostos de seus companheiros, sobretudo na face do
fazendeiro Dawson. Lentamente, ele moveu sua mão para o
interior do círculo visando aproximar as mãos de cada um
deles; a mão esquerda de John Smith ficara bem próxima da
mão direita do fazendeiro Dawson. E quando eles estavam
perto o suficiente, Will juntou as mãos de seus
companheiros, isolando-se. Por um momento de pânico, ele
as segurou firmemente de novo, como se estivesse
apertando um nó. Então ele saiu, ficando sozinho.
Desprotegido agora pelo Círculo, embora defendido
por trás, ele vacilava sob o impacto dos maus desejos que
vinham de fora da igreja. Então, movendo-se
propositalmente, desapertou o cinto com seus três
preciosos fardos e o colocou firmemente sobre o braço;
retirou de seu bolso a pena da gralha e a entrelaçou no
centro do Signo: o círculo quartejado de bronze. Em
seguida, pegou o cinto com ambas as mãos, segurando-o
diante de si, e moveu-se lentamente ao redor até que ficou
sozinho no vestíbulo da igreja, enfrentando os uivos e gritos
das gralhas negras e geladas adiante. Will nunca se sentira
tão sozinho antes. Ele não fez nada, não pensou em nada,
só ficou ali, deixando que os Signos agissem por si mesmos.
E, de repente, o silêncio.
Os pássaros agitados partiram. O vento não uivava
mais. O zumbido louco e horrível que enchia o ar e a mente
desapareceu completamente. Cada músculo e cada nervo
do corpo dele relaxaram quando a tensão esvaeceu. Do
lado de fora, a neve caía calmamente, mas os flocos eram
menores agora. Os Anciãos olhavam um para o outro e
riam.
— O círculo completo fará o verdadeiro trabalho —
disse Velho George —, mas a metade de um círculo pode
fazer muito, hein, jovem Will?
Will fitava os Signos em sua mão e balançava a
cabeça, admirado.
O Fazendeiro Dawson disse suavemente: — Em todos
os meus dias, desde o desaparecimento do graal, esta é a
primeira vez que presenciei algo além da mente de um dos
grandes, o rechaçar das Trevas. As coisas, desta vez,
agiram sozinhas, por toda nossa disposição. Nós temos os
Artefatos de Poder novamente. Já fazia tempo, muito
tempo.
Will ainda olhava os Signos, como se eles segurassem
seus olhos por algum propósito. — Espere — disse de forma
abstrata. — Não se mexam. Fiquem assim por um
momento.
Todos pararam, assustados. O ferreiro perguntou: —
Hã algum problema?
— Olhem para os Signos — disse Will. — Há algo
acontecendo com eles. Eles estão... estão radiantes.
Virou-se lentamente, ainda segurando o cinto com os
três Signos como antes, até que seu corpo estivesse
bloqueando a luz cinzenta que surgia da porta e suas mãos
estivessem na penumbra da igreja; então, os Signos
brilharam cada vez mais, cada um deles irradiando uma
estranha luz interna.
Os Anciãos olharam atentamente.
— Seria o poder de rechaçar as Trevas? — indagou a
esposa de John Smith em sua fala alegre e suave. — Seria
alguma coisa neles que estivera adormecida e começa a
despertar neste momento?
Will tentava em vão sentir o que os Signos estavam
lhe dizendo. — Eu acho que é uma mensagem, que significa
algo. Mas não consigo entender.
A luz propagou-se pelos três Signos e preencheu a
metade escura da pequena igreja como muito brilho; era
uma luz como um raio de sol, quente e forte. Ansiosamente,
ele estendeu um dedo para tocar o círculo mais próximo, o
Signo de Ferro, mas o objeto não estava quente nem frio.
O fazendeiro Dawson falou de repente: — Olhe lá!
Seus braços estavam erguidos, apontando para cima
da nave, em direção ao altar. No instante em que se
viraram, avistaram o que ele tinha visto: outra luz,
resplandecendo da parede, do mesmo modo como ao lado
deles a luz resplandecia dos Signos. Brilhava como a chama
de uma grande tocha.
E Will compreendeu. E disse feliz: — Então este é o
motivo.
Andou na direção do segundo trecho resplandecente,
carregando o cinto e os Signos, de modo que as sombras
sobre os bancos e os fachos de luz do telhado se moviam
com ele enquanto caminhava. Quando as duas luzes se
aproximaram, parecia que haviam ficado ainda mais
esplendorosas. Devido à altura de Frank Dawson e à pesada
silhueta iminente atrás dele, Will parou no meio de um raio
de luz emitido da parede. Era como se uma fenda estivesse
deixando a luz passar de algum aposento
inimaginavelmente iluminado do outro lado. Ele viu que a
luz era irradiada de alguma coisa muito pequena, assim
como um de seus dedos estendidos ao lado.
Convicto, Will comunicou ao sr. Dawson: — Eu devo
retirá-lo rápido, você sabe, enquanto a luz ainda
resplandece de dentro dele. Se a luz deixar de brilhar, não
poderá ser encontrado. — E colocando o cinto com o Signo
de Ferro, o Signo de Bronze e o Signo de Madeira nas mãos
de Frank Dawson, avançou em direção à parede com fenda
de luz e estendeu a mão dentro da pequena fonte de raio
de luz encantado.
O objeto cintilante saiu facilmente da parede de
estuque fendida, de onde se via a pederneira de Chiltern. O
objeto foi acomodado em sua palma: um círculo quartejado
por uma cruz. Não havia sido cortado naquele formato.
Mesmo com o resplendor do objeto, Will pôde ver a forma
circular e lisa dos lados que lhe diziam se tratar de uma
pedra natural, feita do calcário de Chiltern há quinze
milhões de anos.
— O Signo de Pedra — disse o fazendeiro Dawson. A
sua voz soava reverente e tranqüila e seus olhos eram
escuros e ilegíveis. — Nós encontramos o quarto Signo, Will.
Juntos, voltaram para se reunir aos outros, portando
as reluzentes Coisas de Poder. Os três Anciãos observavam
em silêncio. Paul e o pastor agora se encontravam sentados
tranqüilos em um banco, como se dormissem. Will
continuou com seus companheiros e pegou o cinto,
colocando nele o Signo de Pedra para que permanecesse
junto dos outros três. Foi necessário cerrar os olhos para
impedir que a luz o cegasse. Então, quando o quarto Signo
já estava acomodado com os outros, toda a luz que
resplandeciam se dissipou. Eles ficaram escuros e imóveis,
como antes, e o Signo da Pedra revelou-se um objeto liso e
bonito, apresentando a superfície branco-acinzentada de
uma pedra intacta.
A pena das gralhas negras ainda estava entrelaçada
no Signo de Bronze. Will a retirou. Ele não precisava dela
agora.
Quando a luz se dissipou de dentro dos Signos, Paul e
o pastor se mexeram. Abriram os olhos, admirados de ver a
si mesmos sentados em um banco quando hã alguns
instantes, conforme lhes parecia, estavam de pé. Paul se
reergueu de pronto instintivamente; sua cabeça girava,
cheia de perguntas. — Acabou! — disse o rapaz. Olhava
para Will, e uma expressão peculiar de confusão, surpresa e
admiração surgiu em seu rosto. Seus olhos passearam pelo
cinto nas mãos de Will. — O que aconteceu? — ele
perguntou.
O pastor se levantou, seu rosto liso e rechonchudo
enrugou-se pelo esforço de dar sentido ao incompreensível.
— Certamente acabou — disse, olhando lentamente ao
redor da igreja. — Qualquer que tenha sido a influência. O
Senhor seja louvado. — Ele também olhou para os Signos
no cinto de Will e olhou para cima novamente, sorrindo de
repente, um sorriso quase infantil de alívio e alegria. — Ela
fez seu trabalho, não fez? A Cruz. Não a da igreja, mas a
cruz cristã, todavia.
— Muito antigas, as cruzes deles são, pastor — disse
Velho George inesperadamente, firme e claro —, feitas
muito tempo antes do cristianismo. Muito antes de Cristo.
O pastor sorriu para ele. — Mas não antes de Deus —
disse ele com simplicidade.
Os Anciãos olharam-no. Não havia resposta que não
pudesse ofendê-lo, então ninguém tentou dar-lhe uma.
Exceto Will, depois de um momento.
— Não existe nada realmente antes e depois, existe?
— perguntou ele. — Tudo o que importa está além do
Tempo. E vem de lá e pode ir para lá.
O sr. Beaumont virou-se para ele surpreso. — Você
quer dizer a eternidade... é claro, meu garoto.
— Não exatamente — disse o Ancião que era Will. —
Eu quero dizer a parte de todos nós e de todas as coisas
que pensamos e cremos e que não tem nada a ver com o
ontem, o hoje ou o amanhã, pois pertence a um nível
diferente. O ontem ainda está lá, naquele nível. O amanhã
também está lá. E é possível visitar ambos. E todos os
deuses estão lá, e todas as coisas que eles sempre
apoiaram. E — ele acrescentou com tristeza — o oposto
também.
— Will — disse o pastor, mirando-o diretamente —, eu
não sei se você deveria ser exorcizado ou ordenado. Você e
eu precisaremos ter longas conversas, muito em breve.
— Sim, precisaremos — disse Will igualmente.
Afivelou o cinto, pesado com seus preciosos fardos. E
pensava com afinco e rapidamente enquanto fazia isso, e a
principal imagem diante de sua mente não eram as
suposições teológicas distorcidas do sr. Beaumont, mas o
rosto de Paul. Will viu seu irmão olhando-o com um tipo de
temor distante que lhe impingia dor como uma chicotada.
Era mais do que ele poderia suportar. Os dois mundos de
Will não podiam ser tão próximos. Ele ergueu a cabeça,
reunindo todos os seus poderes, estendeu os dedos
alongados de suas mãos e apontou uma mão para cada um
deles.
— Vocês esquecerão — declarou ele suavemente na
Linguagem Antiga. — Esqueçam, esqueçam.
— ... certa vez numa igreja em Edimburgo, no
Festival... maravilhoso — dizia o pastor para Paul,
estendendo a mão para abotoar o casaco até em cima —
sarabanda da quinta suíte literalmente me levou às
lágrimas. Ele é o maior violoncelista de todo o mundo, sem
dúvida.
— Ah sim — concordou Paul. — Ah, sim. Ele é. — O
rapaz colocou seu casaco sobre os ombros. — A mamãe já
foi, Will? Ei, sr. Dawson, olá, feliz Natal! — Ele sorriu e
acenou para o restante, enquanto voltavam para o
vestíbulo da igreja e para os flocos de neve espalhados ao
redor.
— Feliz Natal, Paul, sr. Beaumont — cumprimentou o
fazendeiro Dawson com seriedade. — Bom culto, reverendo,
muito bom.
— Ah, o calor da época, Frank — disse o pastor. —
Uma estação maravilhosa também. Nada pode interferir em
nossos cultos natalinos, nem mesmo a neve.
Rindo e conversando, saíram pelo mundo branco ao
redor, onde a neve se amontoava sobre as lápides invisíveis
e os campos brancos estendendo-se até o Tâmisa
congelado. Não havia qualquer som, nenhuma perturbação,
somente o murmúrio de vez em quando de um carro
passando na distante Rodovia Bath. O pastor virou-se para
o lado para encontrar sua motocicleta. O restante deles
partiu, em uma forte caminhada, para seus respectivos
lares.
Duas gralhas negras estavam empoleiradas sobre o
portão quando Will e Paul passaram por perto. Elas se
ergueram lentamente no ar, quase num pulo, em suas
formas escuras e deslocadas sobre a neve alva. Uma delas
passou perto dos pés de Will deixando algo cair ali e
emitindo um ruído rouco reprovativo enquanto passava. Will
recolheu: era uma lustrosa castanha do bosque das gralhas,
tão fresca como se tivesse amadurecido ontem. Ele e James
sempre recolhiam tais castanhas do bosque no início do
outono para o jogo de conker da escola, mas eles nunca
tinham visto uma como aquela.
— Olha só — disse Paul, divertido. — Você arranjou
um amigo que trouxe um presente extra de Natal.
— Uma oferta de paz, talvez — disse Frank Dawson
atrás dele, sem qualquer traço de expressão em seu
profundo sotaque de Buckinghamshire. — Mas por outro
lado, talvez não. Feliz Natal, rapazes. Aproveitem o jantar.
— Depois disso, os Anciãos partiram, subindo a estrada.
Will recolheu a castanha. — Bem, eu nunca — disse.
Fecharam o portão da igreja, derrubando um amontoado de
neve de suas barras de ferro. Na curva da esquina soou o
ruído do ronco da motocicleta quando o pastor tentou fazê-
la funcionar. Então, hã alguns centímetros adiante, sobre a
neve pisoteada, a gralha saltou para o chão novamente. O
pássaro pisava irresolutamente para a frente e para trás e
observava Will.
— Caak — fez a gralha, emitindo um som muito suave
para uma gralha. — Caaack, caak, caak. — Então, o pássaro
avançou alguns passos até a cerca do cemitério da igreja,
pulou para o outro lado do cemitério e andou para
trás como antes. O convite não poderia ser mais óbvio. —
Caak — chamava a gralha novamente, mais alto.
Os ouvidos dos Anciãos sabiam que as aves não
falavam com a mesma precisão das palavras; em vez disso,
elas transmitiam emoções. Hã muitos tipos e níveis de
emoção, muitos tipos de expressão mesmo na linguagem
dos pássaros. Entretanto, embora Will pudesse notar que a
gralha estava obviamente lhe pedindo para segui-la e olhar
algo, não poderia dizer se a ave estava sendo usada pelas
Trevas ou não.
Parou, pensando sobre o que as gralhas tinham feito;
então tocou a minúscula castanha marrom em sua mão.
— Tudo bem, pássaro — disse ele. — Uma olhada bem
rápida.
Voltou pelo portão, e a ave, gralhando como uma
porta velha, andava estabanadamente à sua frente,
subindo o caminho da igreja perto dali. Paul observava,
sorrindo. Mas logo viu Will subitamente se enrijecer quando
chegou à curva; o menino desapareceu por um momento e
reapareceu.
— Paul! Venha rápido! Tem um homem na neve.
Paul gritou pelo pastor, que começava a empurrar sua
moto estrada acima para tentar ligá-la de lá, e juntos
começaram a correr. Will estava curvado sobre uma figura
corcunda, estendida entre a parede da igreja e a torre; não
se viam movimentos e a neve já tinha coberto a roupa do
homem quase alguns centímetros com seus flocos frios e
leves. O sr. Beaumont moveu Will gentilmente para o lado e
ajoelhou-se, virando a cabeça do homem para tentar sentir
seu pulso.
— Ele está vivo, graças a Deus, mas está muito frio. O
pulso não está bom. Ele deve estar aqui há tempo
suficiente para que outros homens tivessem falecido numa
exposição desta. Olhem para a neve! Vamos levá-lo para
dentro.
— Dentro da igreja?
— Sim, é claro que sim.
— Vamos levá-lo para nossa casa — disse Paul
impulsivamente. — Fica logo ali, afinal. É quente e muito
melhor, pelo menos até a ambulância chegar ou até que
outra coisa venha ajudá-lo.
— Uma ótima idéia — disse o sr. Beaumont
calorosamente. — Sua boa mãe é uma samaritana, eu sei.
Pelo menos até que o dr. Armstrong possa ser chamado...
nós certamente não poderíamos deixar o pobre camarada
aqui. Acho que ele não tem nenhum osso quebrado.
Problemas do coração, provavelmente. — Ele colocou suas
pesadas luvas sob a cabeça do homem para protegê-lo da
neve, e Will viu o seu rosto pela primeira vez.
Disse alarmado: — É o Andarilho! Eles se viraram
para ele: — Quem?
— Um velho mendigo que andava por aí... Paul, não
podemos levá-lo para nossa casa. Não seria melhor o
levarmos para o consultório do dr. Armstrong?
— Desse jeito? — Paul indicou o céu cada vez mais
escuro; a neve rodopiava ao redor deles, mais densa
novamente, e o vento soprava mais alto.
— Mas não podemos levá-lo conosco! Não o
Andarilho! Ele trará de volta... — Ele parou de repente, no
meio de um grito. — Ah — disse impotente —, é claro, você
não pode se lembrar, não é?
— Não se preocupe, Will, sua mãe não se importará...
pobre homem in extremis. — O sr. Beaumont estava
alvoroçado agora. Ele e Paul carregavam o Andarilho até o
portão, como uma pilha de roupas velhas. E ao
conseguirem finalmente dar partida na motocicleta, eles de
alguma maneira apoiaram sobre ela a silhueta inerte;
então, metade empurrando, metade dirigindo, o estranho e
pequeno grupo tomou o rumo da casa dos Stanton.
Will olhou para trás uma ou duas vezes, mas a gralha
já não se encontrava em nenhum lugar em que pudesse ser
vista.

***

— Ora, ora — disse Max fastidiosamente, quando


desceu para a sala de jantar. — Agora, realmente, nós
encontramos um velho sujo.
— Ele cheirava — disse Bárbara.
— Você é quem está dizendo. Nosso pai e eu demos
um banho nele. Meu Deus, você deveria tê-lo visto. Bem,
não, não deveria. Teria-lhe desanimado da ceia do Natal. De
qualquer maneira, ele é um bebê recém-nascido e limpo
agora. O papai até lavou os cabelos e a barba dele. E a
nossa mãe está queimando as suas roupas horríveis, logo
que teve certeza de que nada valia a pena nelas.
— Nada de muito perigoso nisso, eu acho — disse
Gwen, saindo da cozinha. — Preste atenção, tire o braço
daí, esta travessa está quente.
— Nós deveríamos trancar toda prataria — disse
James.
— Que prataria?— perguntou Mary secamente.
— Bem, as jóias da mamãe então. E os presentes de
Natal. Mendigos sempre roubam coisas.
— Esse aí não roubará nada por um bom tempo —
disse o sr. Stanton, sentado-se em seu lugar na cabeceira
da mesa com uma garrafa de vinho e um saca-rolhas. — Ele
está enfermo. E já adormeceu, roncando feito um camelo!
— O senhor já ouviu um camelo roncar? — perguntou
Mary.
— Sim — confirmou seu pai. — E já montei em um.
Viu só! Quando o médico chega, Max? Foi uma pena
interromper o jantar dele, pobre homem.
— Nós não interrompemos — disse Max. — O doutor
estava fora fazendo um parto e sua família não sabia dizer
quando ele voltaria. A mulher estava esperando gêmeos.
— Ai, Senhor.
— Bem, o velho garoto deve estar bem se estiver
dormindo. Só precisa descansar, eu espero. Embora eu
deva dizer que ele parecia um tanto delirante, com toda
aquela conversa sinistra.
Gwen e Bárbara trouxeram mais travessas com
vegetais. Na cozinha, a mãe estava fazendo um barulho
impressionante ao chocar algum objeto com o forno.
— Que conversa sinistra? — indagou Will.
— Sei lá! — disse Robin. — Foi quando o levamos para
cima pela primeira vez. Parecia uma língua desconhecida
aos ouvidos humanos. Talvez ele seja de Marte.
— Eu só queria que sim — disse Will. — Assim, nós
poderíamos mandá-lo de volta.
Mas um grito de aprovação saldou a entrada de sua
mãe que sorria portando o peru lustroso e por isso ninguém
o ouviu.

***

Eles ligaram o rádio da cozinha enquanto lavavam a


louça:
A neve pesada está caindo novamente sobre o sul e o
oeste da Inglaterra — informava a voz impessoal. —A
nevasca que tem prosseguido violentamente por doze
horas no Mar do Norte está ainda imobilizando todo o
carregamento de navio para as costas do sudeste. As docas
londrinas fecharam esta manhã, devido à queda de energia
e às dificuldades com o transporte, causadas pela neve
intensa e temperaturas se aproximando de zero grau. A
massa de neve acumulada pelo vento que bloqueia as vias
expressas isolou vilarejos de muitas áreas remotas; e a
ferrovia britânica está lutando contra numerosas quedas de
energia e descarrilamentos causados pela neve. Um porta-
voz das autoridades responsáveis disse nesta manhã que o
público foi aconselhado a não viajar de trem, exceto em
caso de emergência.
Ouviu-se o som de papel farfalhando e a voz
continuou:
Não se espera que as tempestades inusitadas que
têm prosseguido violentas e intermitentes pelo sul da
Inglaterra nos últimos dias diminuam até o término do
feriado de Natal, conforme informado pelas autoridades
meteorológicas nesta manhã. A escassez de combustível se
agravou no sudeste, por isso está sendo solicitado aos
chefes de família que não usem qualquer forma de
aquecimento elétrico entre as nove horas da manhã e o
meio-dia, ou três e seis da tarde.
— Pobre e velho Max — disse Gwen. — Nada de trens.
Talvez ele possa viajar de carona.
— Ouça, ouça!
Um porta-voz da Associação Automobilística disse
hoje que as viagens por vias expressas no momento são
extremamente desaconselháveis em todas as estradas,
exceto nas autopistas. Ele acrescentou que os motoristas
retidos em tempestades intensas de neve devem, se
possível, permanecer dentro de seus veículos até que a
neve pare de cair. O porta-voz ressaltou: a menos que o
condutor esteja realmente certo sobre sua localização e
saiba como chamar ajuda dentro de dez minutos, ele não
deverá em hipótese alguma sair de seu carro.
A voz continuou, mas entre exclamações e assovios
Will desligou o aparelho: já tinha ouvido o bastante. Estas
tempestades não podiam ser interrompidas pelos
Anciãos sem o poder do círculo completo dos Signos, e ao
enviar as tempestades, as Trevas esperavam impedi-lo de
completar O círculo. Estava preso numa cilada; as Trevas
estavam estendendo suas sombras não apenas sobre sua
busca, mas também sobre todo o mundo comum. Desde o
momento em que o Cavaleiro invadiu seu aconchegante
Natal naquela manhã, Will percebeu que os perigos
aumentaram, mas não havia previsto esta ameaça mais
abrangente. Durante dias, esteve atento demais quanto aos
seus próprios riscos para reparar naqueles do mundo
exterior. Entretanto, tantas pessoas estavam ameaçadas
agora pela neve e o frio: os mais jovens, os mais velhos, os
fracos, os enfermos... De uma coisa o menino tinha certeza,
o Andarilho não teria um médico nesta noite. Ainda bem
que não estava morrendo...
O Andarilho. Por que ele estava aqui? Tinha que haver
algum significado por trás disso. Talvez ele estivesse
simplesmente rondando o lugar por razões pessoais e tenha
sido atingido pelo ataque das Trevas na igreja. Mas se fosse
isso, por que a gralha, um agente das Trevas, chamou sua
atenção para salvá-lo de congelar até a morte? Quem era o
Andarilho, afinal? Por que todos os poderes da Magia não
lhe diziam nada a respeito do velho homem?
Novamente, ouviam-se canções natalinas no rádio.
Will pensou com amargura: Feliz Natal, mundo.
Seu pai, passando por ali, bateu em suas costas. —
Anime-se, Will. Provavelmente vai parar esta noite, e você
estará brincando de tobogã amanhã. Venha, é hora de abrir
o restante dos presentes. Se fizermos Mary esperar mais
um pouco, ela vai explodir.
Will foi se juntar à sua animada e barulhenta família.
De volta à brilhante e aconchegante caverna do longo
aposento com o fogo e a árvore reluzente, o Natal seria
intocável por enquanto, como sempre havia sido. Além
disso, sua mãe, seu pai e Max economizaram juntos para
lhe dar uma nova bicicleta, com guidão de corrida e onze
marchas de velocidade.

***

Will nunca teve certeza se o que aconteceu naquela


noite foi um sonho.
Na parte mais escura da noite, nas horas mais frias
que são as primeiras do dia seguinte, ele acordou, e
Merriman estava lá. Ergueu-se ao lado da cama sob uma luz
suave que parecia surgir de dentro de sua própria silhueta;
o rosto dele estava sombrio, inescrutável.
— Acorde, Will. Acorde. Há uma cerimônia da qual
precisamos participar.
Em um instante, Will estava de pé e viu que já estava
completamente vestido, com os Signos e seu cinto já
colocados ao redor de seu quadril. Foi com Merriman até a
janela. Estava empilhada com neve até a metade de sua
altura, e mesmo assim os flocos caíam calmamente. Ele
disse de repente, desolado: — Existe algo que eu possa
fazer para parar isto? Metade do país está congelando,
Merriman, pessoas morrerão.
Merriman sacudiu a cabeleira branca lenta e
pesadamente. — As Trevas têm seu poder mais forte de
todos se levantando entre agora e o Décimo Segundo Dia.
Isto é só uma preparação. É deles a força fria e o inverno os
alimenta. Eles pretendem quebrar o círculo para sempre,
antes que seja tarde demais para eles. Logo, todos nós
deveremos enfrentar um teste muito difícil. Mas nem tudo
se move conforme a vontade deles. Muita magia ainda flui,
porém sem ser usada, pelos Caminhos dos Anciãos. E
podemos ficar mais esperançosos em breve. Venha.
A janela diante deles se abriu, espalhando toda a
neve. Um caminho levemente iluminado como uma faixa
larga se estendia adiante, alongando-se no ar salpicado de
neve. Will podia ver através dele, ver o contorno dos
montes de neve nos telhados, cercas e árvores lá embaixo.
Porém, o caminho era real também. Em uma passada,
Merriman o alcançou pela janela e saiu em grande
velocidade, em um movimento estranho como um
planador, desaparecendo na noite. Will saltou depois dele, e
o estranho caminho o fez deslizar pela noite, sem a
sensação de velocidade ou frio. A noite ao redor dele era
escura e densa; nada deveria ser visto, exceto o brilho dos
caminhos etéreos dos Anciãos. E então, ao mesmo tempo,
eles se encontravam num tipo de bolha do Tempo,
pairando, inclinando-se no vento como Will havia aprendido
de sua águia do Livro da Magia.
— Observe — disse Merriman, e seu casaco girou em
volta de Will como se tentasse protegê-lo.
Will viu no céu escuro, ou em sua própria mente, um
grupo de árvores grandes, sem folhas, erguendo-se sobre
uma cerca viva sem folhas, invernal, porém sem neve.
Ouviu uma música estranha e aguda, uma flauta
acompanhada pela batida curta, mas constante, de um
tambor, tocando continuamente a mesma canção
melancólica. E fora da escuridão profunda e no
fantasmagórico bosque pequeno de árvores, surgiu uma
procissão.
Era uma procissão de garotos, com roupas de alguma
época do passado: túnicas e calças rústicas; os cabelos
atingiam a altura dos ombros e usavam um capuz
semelhante a bolsas, num formato que nunca havia visto
antes. Eram mais velhos do que ele: tinham por volta dos
quinze anos, imaginava. E mantinham a mesma expressão
quase solene dos participantes de jogos de charada,
misturando o sério propósito com uma borbulhante
sensação de diversão. Na frente, surgiam garotos com
varas e feixes de gravetos de vidoeiro; no fim,
encontravam-se os músicos das flautas e tambores. Entre
eles, seis garotos carregavam um tipo de plataforma feita
de junco e galhos entrelaçados, com um ramo de azevinho
em cada canto. Era como uma maca, pensava Will, exceto
pelo motivo de que eles a estavam segurando na altura dos
ombros. Pensou a princípio que se tratava apenas disso e
que estava vazia; então, percebeu que sustentava alguma
coisa. Uma coisa muito pequena. Em um colchão de folhas
de hera, no centro do ataúde entrelaçado, encontrava-se o
corpo de um pássaro minúsculo: um pássaro marrom,
empoeirado, com um bico perfeito. Era um uirapuru.
A voz de Merriman soou suavemente sobre sua
cabeça, fora da escuridão: — É a Caça ao Uirapuru,
realizada todo anos, desde que os homens podem se
lembrar, no solstício. Mas este é um ano especial, e nós
poderemos ver mais, se tudo correr bem. Tenha esperança
em seu coração, Will, de que poderemos ver mais.
E quando os garotos e sua música triste se moveram
pela imensidão de árvores que não parecia poderem
transpor, Will percebeu com a respiração entrecortada que,
em vez de um pequeno pássaro, via-se emergindo a forma
indistinta de uma silhueta diferente sobre o ataúde. A mão
de Merriman segurou firme o ombro do menino como uma
braçadeira de aço, embora o homem alto não emitisse
qualquer som. Deitado sobre a cama de junco entre os
quatro azevinhos, agora não existia mais um minúsculo
pássaro, mas uma pequena e bem constituída mulher,
muito velha, delicada como um pássaro, vestida em trajes
cerimoniais azuis. As mãos estavam dobradas sobre o peito
e em um dedo cintilava um anel com uma pedra enorme de
tonalidade rosa. No mesmo instante, Will avistou sua face e
soube que era a Dama.
Gritou de dor: — Mas você disse que ela não estava
morta!
— E não está mais — disse Merriman.
Os garotos caminharam até a música; o ataúde com a
silhueta silenciosa deitada ali se aproximou e depois se
afastou, desaparecendo com a procissão em direção à
noite, e a canção triste da flauta e as batidas do tambor
diminuíram depois disso. Mas no auge do desaparecimento,
os garotos que tocavam pararam, deixaram seus
instrumentos e se viraram para olhar sem expressão para
Will.
Um deles disse: — Will Stanton, cuidado com a neve!
O segundo gritou: — A Dama retornará, mas as Trevas
estão se rebelando.
O terceiro, em uma rápida canção, entoou algo que
Will reconheceu logo que começou:
Quando as Trevas se rebelarem,
seis devem fazê-la recuar,
Três do círculo, três da trilha;
Madeira, bronze, ferro, água, fogo e pedra;
Cinco retornarão, e um deve sozinho continuar.
Mas o garoto não parou, assim como Merriman havia
feito. Prosseguiu dizendo:
Ferro para o aniversário, bronze depois de
muito carregar;
Pedra sem a música; madeira das chamas,
Água do degelo, fogo no círculo de velas;
Seis Signos formam o círculo, e o graal não
mais estará.
Então, um vento intenso surgiu do nada e, sob um
temporal de neve e escuridão, os garotos partiram,
rodopiando para longe. Will também se sentiu rodopiando
para trás, voltando através do Tempo, ao longo do reluzente
caminho dos Anciãos. A neve surrava seu rosto. A noite
estava em seus olhos, ardente. Longe da escuridão, ele
ouviu Merriman chamando por ele, com urgência, mas com
uma nova esperança e ressonância em sua voz profunda:
"O perigo se levanta com a neve, Will, cuidado com a neve.
Siga os Signos, cuidado com a neve...".
E Will se encontrou de volta em seu quarto, de volta
em sua cama, adormecendo com uma palavra sinistra
soando em sua cabeça, como o repicar mais intenso dos
sinos da igreja sobre os montes de neve. "Cuidado...
cuidado...”

PARTE 3

A PROVAÇÃO
A CHEGADA DO FRIO

No dia seguinte, a neve continuou caindo durante o


dia inteiro. E no posterior também.
— Eu realmente queria que isto parasse — disse Mary
descontente, fitando a janela encoberta. — É horrível a
maneira como continua caindo sem parar, odeio neve.
— Não seja tola — disse James. — Trata-se apenas de
uma tempestade mais demorada. Não precisa ficar
histérica.
— É diferente. É sinistra.
— Bobagem. É só um monte de neve.
— Ninguém nunca viu tanta neve antes. Olha a altura
disso, seria impossível sair pelas portas dos fundos se não
tivéssemos limpando o lugar desde quando a neve
começou a cair. Estaríamos soterrados, isso sim. Parece que
quer nos comprimir, chegou até a quebrar a janela da
cozinha, você sabia disso?
Will perguntou asperamente: — O quê?
— A janelinha dos fundos, perto do aquecedor.
Gwennie desceu esta manhã e a cozinha estava fria como
gelo, com neve e cacos de vidro pra todo lado. A neve
pressionou a janela com seu peso.
James suspirou alto. — Peso não empurra. A neve foi
se acumulando pelo vento naquele lado da casa, é só isso.
— Não me interessa o que você diz, é horrível. E
como se a neve estivesse tentando entrar. — A menina
parecia prestes a chorar.
— Vamos subir e ver se o Anda... o velho mendigo já
acordou — disse Will. Já era hora de fazer Mary parar antes
que estivesse perto da verdade. Quantas outras pessoas no
país estavam sendo tão atemorizadas desse jeito pela
neve? Ele pensava irritado nas Trevas e desejava saber o
que fazer.
O Andarilho havia dormido durante todo o dia
anterior, raramente se mexia, exceto quando murmurava
ocasionalmente algo sem significado, e uma ou duas vezes
emitiu um pequeno grito rouco. Will e Mary subiram para o
quarto dele, carregando uma bandeja com cereais,
torradas, leite e geléia.
— Bom-dia! — disse Will alto e claro assim que
entraram. — Gostaria de tomar o café-da-manhã?
O Andarilho abriu o canto de um olho e espiou quem
estava ali através de seu cabelo grisalho desgrenhado, mais
cheio e longo do que nunca agora que estava limpo. Will
estendeu a bandeja em sua direção.
— Fora! — falou o Andarilho com a voz rouca. Era um
ruído parecido com alguém cuspindo.
Mary disse: — Oro!
— Gostaria de outra coisa então? — perguntou Will. —
Ou apenas não está com fome?
— Mel — respondeu o Andarilho.
— Mel?
— Mel e pão. Mel e pão. Mel e...
— Tudo bem — disse Will. Eles levaram a bandeja
embora.
— Ele sequer disse por favor — disse Mary. — Ele é
um velho antipático. Não vou chegar perto dele de novo.
— Faça como quiser — disse Will. Deixado sozinho,
ele encontrou o que sobrara de mel em um pote no fundo
de uma despensa, bastante cristalino nas bordas, e o
espalhou abundantemente sobre três fatias de pão. Depois,
levou os pães com um copo de leite para o Andarilho que se
sentara ávido na cama e devorava todos os alimentos.
Enquanto comia, o velho não era uma visão muito
agradável.
— Bom — ele disse. Tentou limpar o mel caído em sua
barba e lambeu a mão, dando uma espiada em Will. —
Nevando ainda? Está caindo ainda, não é?
— O que você estava fazendo na neve?
— Nada — disse o Andarilho de repente. — Não me
lembro. — Os olhos dele se estreitaram atentos, e fazendo
um gesto para sua fronte, disse em um resmungo
intransigente: — Bati minha cabeça.
— Não se lembra de onde o encontramos?
— Não.
— Lembra-se de mim?
Prontamente, ele balançou a cabeça. — Não.
Will falou suavemente de novo, desta vez na
Linguagem Antiga: — Lembra-se de mim?
O rosto barbudo do Andarilho não revelava qualquer
expressão. Will começou a pensar que talvez o homem
realmente tivesse perdido a memória. Inclinou-se sobre a
cama para recolher a bandeja com os pratos e copo vazio, e
o Andarilho deixou escapar um grito agudo e recuou para
longe do menino, escondendo-se do outro lado da cama. —
Não! — gritava ele. — Não! Vá embora! Leve-os daqui!
Com os olhos arregalados e aterrorizados, ele fitava o
menino com ódio. Por um momento Will ficou perplexo;
depois percebeu que seu pulôver havia se erguido
enquanto ele levantava os braços, e o Andarilho avistou os
quatro Signos em seu cinto.
— Leve-os daqui! — uivava o velho. — Eles queimam!
Tire-os daqui!
Era muita informação para alguém com perda de
memória, pensava Will. Ouviu passos de preocupação
subindo as escadas e saiu do quarto. Por que o Andarilho
estaria tão aterrorizado pelos Grandes Signos, visto que ele
carregou um deles por tanto tempo?

***

Seus pais estavam sérios. As novidades do rádio


ficavam piores a cada dia enquanto o frio envolvia o país e
uma restrição seguia outra. Em todos os recordes da
temperatura inglesa, nunca esteve tão frio; os rios que
nunca haviam congelado antes encontravam-se sólidos
como o gelo, e todo porto em toda costa estava congelado
também. As pessoas só podiam esperar pelo fim da neve,
mas a neve persistia em cair.
Eles prosseguiam com a vida enclausurada e
desassossegada "como os homens das cavernas no
inverno", disse o sr. Stanton, indo para a cama a fim de
poupar o fogo e o combustível. O dia do Ano-novo veio e
passou, e quase não foi percebido. O Andarilho permanecia
deitado na cama irrequieto, murmurando e recusando-se a
comer qualquer outra coisa além de pão e leite, que
naquelas alturas era leite em pó dissolvido em água. A sra.
Stanton dizia gentilmente que o pobre velho estava
recuperando suas forças. Will ficava ao longe. E se
desesperava mais a cada dia enquanto o frio aumentava e
a neve caía, caía. Sentia que se não saísse de casa logo,
descobriria que as Trevas o enclausuraram para sempre.
Sua mãe lhe forneceu um álibi, no final. Seu estoque de
farinha, açúcar e leite enlatado tinha acabado.
— Eu sei que ninguém deveria sair de casa, exceto
em casos de emergência — disse ela, ansiosamente — mas
isto conta como uma. Nós precisamos de coisas para comer.
Os garotos levaram duas horas para remover a neve
do caminho de seu próprio jardim até a estrada, onde um
tipo de túnel sem teto, na largura de um limpa-neve,
encontrava-se desobstruído. O sr. Stanton havia anunciado
que somente ele e Robin sairiam para o vilarejo, mas
durante as duas horas que se seguiram, Will, cavando e
escavando, implorava pela permissão de acompanhá-los, e,
no final, a resistência de seu pai se enfraqueceu tanto, que
acabou concordando.
Vestiam lenços para proteger as orelhas, luvas
grossas e três pulôveres cada um sob o casaco. E levavam
uma tocha. Estava na metade da manhã, mas a neve
continuava caindo tão incessante quanto antes, e ninguém
sabia quando eles poderiam voltar para casa. Desde a
encosta íngreme no topo de uma estrada para o vilarejo,
alguns caminhos irregulares e minúsculos foram forçados e
removidos da neve até as lojas menores e principais casas
centrais; podiam ver pelas pegadas que alguém havia
trazido cavalos da fazenda dos Dawson para ajudar a
trinchar uma passagem até os chalés de pessoas como a
srta. Bell e a sra. Homiman, que nunca poderiam fazer isso
por si mesmas. Na loja do vilarejo, o minúsculo cãozinho da
sra. Pettigrew estava enrolado como um novelo cinzento e
trêmulo em um dos cantos, olhando mais murcho e infeliz
do que nunca; Fred, o filho gordo da sra. Pettigrew, que a
ajudava a conduzir a loja, havia torcido o pulso ao cair na
neve e por isso seu braço estava numa tipóia, e a sra.
Pettigrew estava muito nervosa. Ela agia de forma agitada e
confusa por causa de seu nervosismo, deixando cair coisas,
procurando açúcar e farinha nos lugares errados e não os
encontrando e, no final, se sentava repentinamente numa
cadeira, como uma marionete que se soltara de suas
cordas, e disparava a chorar.
— Ai — soluçava. — Desculpe-me, sr. Stanton, é essa
neve terrível. Estou tão assustada, eu não sei... Tenho tido
esses sonhos que estamos isolados e ninguém sabe onde
estamos...
— Nós já estamos isolados — disse o filho dela, de
forma lúgubre. — Nenhum carro entrou no vilarejo durante
toda esta semana. E sem suprimentos, todos estão
partindo... não temos manteiga, nem mesmo leite em pó. A
farinha está acabando; só temos apenas mais cinco pacotes
além deste aqui.
— E ninguém tem qualquer combustível —
resmungou a sra. Pettigrew. — O pequeno bebê Randall
está doente com febre, e a pobre sra. Randall não tem um
pedaço de carvão, e sabe Deus quantos outros mais estão
em dificuldade.
A campainha da loja soou quando a porta se abriu, e,
automaticamente como um velho costume do vilarejo,
todos se viraram para ver quem estava entrando. Um
homem muito alto, em um volumoso sobretudo preto,
tirava seu chapéu de abas largas revelando os cabelos
brancos; então, olhos profundos e sombrios sobre um nariz
severo na forma de um gancho voltaram-se para eles.
— Boa-tarde — disse Merriman.
— Olá — disse Will, sorrindo. Seu mundo ficou
repentinamente mais claro.
— Tarde — disse a sra. Pettigrew e assoou forte o
nariz. Em seguida, disse com a voz abafada pelo lenço: —
Sr. Stanton, o senhor conhece o sr. Lyon? Ele está no Solar.
— Como tem passado? — disse o pai de Will.
— Mordomo da srta. Greythorne — acrescentou
Merriman, inclinando a cabeça respeitosamente. — Até que
o sr. Bates volte de férias. Isso quer dizer, quando a neve
parar de cair. No momento, é claro, eu não posso sair, e
Bates não pode chegar.
― Isso nunca vai parar — gemeu a srta. Pettigrew e
irrompeu em lágrimas novamente.
— Ai, mãe — disse o gordo Fred desgostoso.
Tenho algumas novidades para a senhora, sra.
Pettigrew — disse Merriman em alta e tranqüilizante voz.
Ouvimos um pronunciamento pela rádio local... nosso
telefone está mudo, é claro, como o seu... que combustível
e alimentos serão entregues nas terras do Solar, visto que o
lugar pode ser visivelmente encontrado do ar, nesta neve. E
a srta. Greythorne pergunta se todos no vilarejo não
gostaria de se mudar para o Solar, durante essa
emergência. Ficará lotado de gente, naturalmente, mas
quente. E reconfortante, talvez. O dr. Armstrong estará lá...
ele já está a caminho, creio eu.
— Isso é empreendedor — disse o sr. Stanton
pensativamente. — Quase feudal, como se diria.
Os olhos de Merriman se estreitaram levemente. —
Mas não com essa intenção.
— Ah, não. Eu percebo isso, sim.
As lágrimas da sra. Pettigrew cessaram. — Que idéia
adorável, sr. Lyon! Ah, meu Deus, seria um grande alívio
ficar com outras pessoas, especialmente à noite.
— Eu sou outra pessoa — disse Fred.
— Sim, querido, mas...
Fred replicou de maneira insensata: — Eu vou pegar
uns cobertores. E embalar algumas coisas da loja.
— Isso seria prudente — disse Merriman. — O rádio
diz que a tempestade ficará muito pior nesta noite.
Portanto, tão logo todos possam ficar juntos, melhor.
— O senhor gostaria de ajuda a avisar as pessoas? -
perguntou Robin, já puxando sua gola para cima
novamente.
— Excelente. Isso seria excelente.
— Todos nós ajudaremos — confirmou o sr. Stanton.
Will havia se virado para olhar pela janela enquanto
comentava-se sobre a tempestade, mas a neve caindo do
céu firme e cinzento parecia como antes. As janelas
estavam tão embaçadas que era difícil enxergar além das
vidraças. Mas ele podia visualizar naquele momento alguma
coisa se movendo do lado de fora. Era alguém caminhando
pela Trilha do Vale do Caçador que havia se transformado
numa estrada coberta de neve tranchada. Foi uma visão
muito rápida, que durou somente enquanto a figura
atravessava o caminho dos Pettigrew, mas durou o
necessário para que ele reconhecesse o homem sentado
ereto sobre um enorme cavalo negro.
— O Cavaleiro passou por aqui! — disse ele apressada
e claramente na Linguagem Antiga.
A cabeça de Merriman girou rapidamente ao redor;
depois, ele se recompôs e ostentosamente recolocou o
chapéu. — Eu ficaria muito grato por receber ajuda.
— O que você disse, Will? — Robin, distraído, olhava
para o irmão.
— Ah, nada. — Will foi até a porta, fazendo um
grande estardalhaço para abotoar o casaco. — Só acabei de
ver alguém.
— Mas você disse algo numa língua esquisita.
— É claro que não. Eu acabei de perguntar: "Quem é
aquele lá fora?" Mas não era ninguém de qualquer maneira.
Robin ainda olhava atentamente para ele. — Você
parecia o velho mendigo, quando ele ficava balbuciando no
dia em que o colocamos na cama pela primeira vez... —
Mas ele não estava disposto a gastar tempo com
imprevistos; balançou sua cabeça realista e abandonou o
assunto. — Está bom então.
Merriman conseguiu andar bem atrás de Will,
enquanto deixavam os Pettigrew para avisar e espalhar a
notícia pelo restante do povo do vilarejo. E disse baixinho
na Linguagem Antiga: — Leve o Andarilho para o Solar, se
puder. Rápido. Ou ele o impedirá de sair. Mas você pode ter
problemas com o orgulho de seu pai.
Na hora em que os Stanton chegaram em casa,
depois de rodarem pelo vilarejo com muita dificuldade, Will
quase esqueceu do que Merriman dissera sobre seu pai.
Estava ocupado demais descobrindo uma maneira de como
poderiam levar o Andarilho para o Solar sem, na verdade,
ter que o carregar. E lembrou-se do assunto somente
quando ouviu o sr. Stanton conversando na cozinha,
enquanto se despiam de seus casacos e entregavam os
novos suprimentos.
— ... bondade da senhorita aceitar todos em sua
casa. Naturalmente, eles possuem espaço e lareiras para
isso; e aquelas velhas paredes são tão espessas que podem
manter o frio mais longe do que as de qualquer um. Foi a
melhor coisa para as pessoas dos chalés, como a pobre
srta. Bell que não duraria muito nessa situação.... Nós
ainda, é claro, estamos todos bem por aqui. Protegidos.
Sem razão para partirmos e sobrecarregarmos o Solar.
— Ah, pai — disse Will impulsivamente —, o senhor
não acha que deveríamos ir também?
— Acho que não — respondeu seu pai, com a tênue
garantia de que Will já deveria saber que ele era mais difícil
de ceder do que qualquer fé.
— Mas o sr. Lyon disse que mais tarde ficaria muito
perigoso, já que a tempestade vai piorar.
— Eu acho que posso julgar o clima por mim mesmo,
Will, sem a ajuda do mordomo da srta. Greythorne — disse
o sr. Stanton amigavelmente.
— Uau! — disse Max com uma grosseria animada. —
Você é um velho esnobe horrível. Ouça só o que está
dizendo.
— Qual é, não é isso que eu quis dizer — disse seu pai
lançando um cachecol sobre ele. — É, sobretudo, o
contrário de esnobismo. Eu simplesmente não vejo uma boa
razão para sairmos em bando a fim de compartilharmos da
generosidade da senhora do Solar. Estamos perfeitamente
bem aqui.
— Bem colocado — disse a sra. Stanton rapidamente.
— Agora, saiam da cozinha, todos vocês. Eu quero
fazer alguns pães.
A única esperança, decidiu Will, era o próprio
Andarilho. Ele saiu furtivamente e subiu para o minúsculo
quarto onde o Andarilho continuava na cama. — Eu quero
falar com você.
O velho virou a cabeça sobre o travesseiro. — Tudo
bem — disse dando a impressão de estar triste e comedido.
De repente, Will sentiu pena dele.
— Você está melhor? — perguntou o menino. — Quero
dizer, realmente está doente agora, ou apenas se sente
fraco?
— Não estou doente — respondeu o Andarilho
indiferente. — Não além do normal.
— Consegue andar?
— Você quer me jogar de volta na neve, não é?
— É claro que não — falou Will. — Mamãe nunca
deixaria você sair num tempo desses, nem eu; não que eu
tenha muito a opinar quanto a isso. Eu sou o mais novo
nesta família, você sabe disto.
— Você é um Ancião — disse o Andarilho, olhando
para ele com desgosto.
— Bem, isso é diferente.
— Não é diferente nada. Apenas significa que não há
motivos para conversar sobre você comigo como se fosse
apenas o filhotinho de uma família. Eu conheço bem como é
isso.
Will acrescentou: — Você foi guardião de um dos
Grandes Signos... eu não vejo razão que o levaria a nos
odiar.
— Eu fiz o que me obrigaram fazer — replicou o
velho. — Você me achou... você me identificou... — As
sobrancelhas se enrugaram, como se ele estivesse
tentando se lembrar de alguma coisa de muito tempo atrás;
em seguida, voltou a ser vago novamente — ... me
obrigaram fazer.
― Bem, olhe, eu não quero obrigá-lo a fazer nada,
mas há uma coisa que todos nós temos que fazer. A neve
está I.....ando tanto, que todos no vilarejo estão indo viver
no Solar, como um tipo de albergue, pois lá será mais
seguro e quente. — Enquanto falava, Will sentia como se o
Andarilho já soubesse o que ele estava para dizer, mas era
impossível entrar na mente do velho; sempre que tentava,
sentia certa obstrução, como se batesse contra o
enchimento de um colchão.
— O médico estará lá também — acrescentou. — Se
você fizesse todos pensarem que precisa de cuidados
médicos, todos nós iríamos para o Solar.
— Quer dizer que de outra forma você não iria? —
disse o Andarilho olhando-o de soslaio com desconfiança.
— Meu pai não nos deixaria ir. Mas devemos partir, é
mais seguro...
— Eu não irei também — replicou o Andarilho e virou
a cabeça para o lado. — Vá embora. Deixe-me assim.
Will disse suavemente, em tom de advertência, na
Linguagem Antiga: — As Trevas virão atrás de você.
Houve uma pausa. Então, muito lentamente, o
Andarilho virou a cabeça grisalha desgrenhada novamente,
e Will estremeceu horrorizado quando viu o rosto do
homem. Por apenas um momento, a história estava
evidente. Havia grande profundidade de dor e terror em
seus olhos, as rugas obtidas pelas más experiências faziam
um vinco nítido e terrível; em algum lugar, aquele homem
conheceu um medo e angústia tão terríveis que nada
poderia, realmente, sensibilizá-lo outra vez. Os olhos do
velho estavam arregalados pela primeira vez, bem abertos,
pelo conhecimento que tinha do horror procurando por algo.
E o Andarilho disse inexpressivo: — As Trevas já
vieram atrás de mim.
Will respirou profundamente o ar. — Mas chegou
agora o círculo da Luz — disse ele. Retirou o cinto com os
Signos e o estendeu diante do Andarilho. O velho
estremeceu afastando-se, contraindo o rosto, gemendo
como um animal assustado; Will se sentia enojado, mas
nada podia ser feito. Aproximou os Signos do rosto velho e
enrugado até que, como se ele fosse um pedaço de arame
quebrado, o Andarilho perdeu o autocontrole. Gritava e
começava a babar e a se debater pedindo socorro. Will
correu para fora do quarto e chamou seu pai, e metade da
família veio correndo.
— Eu acho que ele está tendo algum tipo de
convulsão. Terrível. Não deveríamos levá-lo para o dr.
Armstrong no Solar, pai?
O sr. Stanton respondeu incerto: — Talvez
pudéssemos trazer o médico até aqui.
— Mas ele ficará muito melhor lá — disse a sra.
Stanton, olhando para o Andarilho com preocupação. — O
velho, quero dizer. Com o doutor disponível para assisti-lo...
e terá mais conforto e comida. Realmente, isso é alarmante,
Roger. Eu não sei o que fazer por ele aqui.
O pai de Will cedeu. Deixaram o Andarilho ainda
esbravejando e se sacudindo, ficando Max perto dele para
evitar acidentes, e saíram para transformar o grande
tobogã da família em uma maca móvel. Só uma coisa afligia
a mente de Will: talvez tenha sido sua imaginação, mas no
momento em que o Andarilho perdeu o controle ao avistar
os Grandes Signos, enlouquecendo mais uma vez, tinha
pensado ter visto um lampejo de triunfo em seus olhos
bruxuleantes.

***

O céu mantinha-se cinzento e pesado, esperando o


momento para nevar, quando eles partiram para o Solar
levando o Andarilho. O sr. Stanton levou os gêmeos e Will
consigo. Sua esposa os observava partindo com um
nervosismo desconhecido. — Realmente, espero que isso
acabe. Você realmente acha que Will deveria ir?
― Algumas vezes, é uma mão na roda ter alguém
mais leve nesta neve — disse seu pai, enquanto Will
gaguejava. — Ele ficará bem.
— Você não ficará por lá, não é?
— É claro que não. A única razão desta empreitada é
deixar o velho sob os cuidados do doutor. O que foi, Alice,
essa não se parece com você. Não há perigo, você sabe.
— Eu acho que não — disse a sra. Stanton.
Eles partiram, empurrando o tobogã com o Andarilho
afivelado no aparelho, tão enrolado em cobertores que era
impossível vê-lo: parecia uma grossa salsicha humana. Will
Foi o último a sair; Gwen entregou-lhe as tochas e uma
garrafa térmica. — Devo dizer que não sinto pena ao ver
sua descoberta partir — disse ela. — Ele me assusta. Mais
parecido com um animal do que um velho homem.
Parecia que havia passado muito tempo até que por
fim eles chegaram ao portão do Solar. A entrada havia sido
desobstruída e pisoteada por muitos pés, e duas lamparinas
estavam fixadas na grande porta, iluminando a entrada da
casa. A neve caía novamente, e o vento começava a soprar
gelado em suas faces. Antes que Robin esticasse a mão
para tocar a campainha, Merriman já abria a porta. Olhou
primeiro para Will, embora ninguém tenha percebido o
lampejo de urgência em seus olhos. — Bem-vindos —
completou.
— Boa-noite — cumprimentou Roger Stanton. — Não
ficaremos. Estamos bem em casa. Mas há um velho
camarada aqui que está doente e precisa do médico.
Depois de considerarmos todas as possibilidades, pareceu
melhor trazê-lo aqui; melhor do que fazer o dr. Armstrong
ficar andando de um lado para o outro. Então, esperamos
partir antes que a tempestade comece.
— Já está começando — disse Merriman, olhando
para fora. Sendo assim, abaixaram-se e ajudaram os
gêmeos a carregar a forma imóvel do Andarilho para dentro
da casa. Na soleira, a trouxa de cobertores sacudia
convulsivamente, e o Andarilho se fazia ouvir
abafadamente por seus gritos contidos: — Não! Não! Não!
— O médico, por favor — disse Merriman para uma
mulher que estava próxima dali, e ela correu apressada. O
salão enorme onde tinham realizado a cantata natalina,
normalmente vazio, estava cheio de pessoas agora, além
de quente e cheio de animação, de maneira irreconhecível.
O dr. Armstrong apareceu, acenando rapidamente ao
redor; era um homem pequeno e vigoroso com uma franja
de cabelos grisalhos, semelhante à de um monge, fazendo
um círculo em sua cabeça careca. Os Stanton, como todos
do Vale do Caçador, conheciam-no bem; o doutor curava
toda enfermidade da família já bem antes mesmo de Will
nascer. Ele olhou para o Andarilho, que naquele momento
se contorcia e gemia em protesto.
— O que é isso, hein?
— Choque, talvez? — disse Merriman.
— De fato, ele se comporta de forma muito estranha
— disse o sr. Stanton. — Ele foi encontrado inconsciente na
neve alguns dias atrás, e pesávamos que estivesse se
recuperando, mas agora...
A enorme porta da frente bateu sozinha, calando o
vento emergente, e o Andarilho gritou.
— Hum — murmurou o médico e fez um sinal para
dois ajudantes jovens e robustos carregá-lo para algum
aposento. — Deixe-o comigo — disse ele animado. — Até
agora, temos uma perna quebrada e dois tornozelos
torcidos. Ele deve ter uma diversidade de coisas.
O doutor caminhou apressadamente atrás de seu
paciente. O pai de Will se virou para olhar pela janela e ver
que o tempo escurecia. — Minha esposa começará a se
preocupar — disse ele. — Nós devemos ir.
Merriman respondeu gentilmente: — Se o senhor
partir agora, acredito que sairá daqui, mas não chegará ao
seu lar. Provavelmente, durante um bom tempo.
— As Trevas estão se rebelando, percebe? — disse
Will. Seu pai o olhou com um meio sorriso: — Você anda
mui- to poético de uma hora para outra. Tudo bem,
esperaremos um pouco. Eu voltaria depois de uma pausa
de descanso, para dizer a verdade. É melhor dizer olá à
srta. Greythorne, enquanto isso. Onde ela está, Lyon?
Merriman, o mordomo reverente, abriu caminho pela
multidão. Era o ajuntamento mais estranho que Will havia
visto. De repente, metade do vilarejo estava vivendo com
muita intimidade numa minúscula colônia de camas,
bagagens e cobertores. As pessoas os chamavam de seus
pequenos ninhos espalhados pelo enorme salão: uma cama
ou um colchão enfiado num canto ou cercado por uma ou
duas cadeiras. A srta. Bell acenou alegremente de um sofá.
Parecia um hotel bagunçado com todos acampando no
saguão. A srta. Greythorne encontrava-se sentada ereta e
firme em sua cadeira de rodas ao lado do fogo, lendo A
Fênix e o tapete mágico para um grupo de crianças em
absoluto silêncio. Como todos no aposento, ela parecia
diferentemente alegre e animada.
— Engraçado — disse Will, enquanto se aproximavam
pelo caminho —, as coisas estão absolutamente horríveis, e
mesmo assim as pessoas parecem muito mais felizes do
que o normal. Olhe para elas. Tão animadas.
— São ingleses — disse Merriman.
— Bem, certo — disse o pai de Will. — Esplêndidos na
adversidade, tediosos quando estão seguros. Nunca
contentes de fato. Somos um povo estranho. Você não é
inglês, é? — perguntou repentinamente para Merriman, e
Will ficou impressionado ao ouvir o tom levemente hostil
em sua voz.
— Um mestiço — disse Merriman insipidamente. — É
uma longa história. — Seus olhos profundos brilharam para
o sr. Stanton, e então a srta. Greythorne os avistou.
— Ah, aí estão vocês! Boa-noite, sr. Stanton, meninos,
como vão vocês? O que acham disto, hein? Não é uma
folia?
— Enquanto ela deixava o livro de lado, o círculo de
crianças se separou para saldar os recém-chegados, e os
gêmeos e seu pai foram absorvidos pela conversa.
Merriman disse baixinho para Will, na Linguagem
Antiga:
— Olhe dentro do fogo, pelo tempo que for necessário
para traçar a forma de cada Grande Signo com sua mão
direita. Olhe dentro do fogo. Faça-o seu amigo. Não mova
os olhos durante todo esse tempo.
Cheio de questionamentos, Will se aproximou do fogo
como se desejasse se aquecer e fez o que lhe pediram.
Olhando para as chamas da enorme lenha crepitando na
lareira, deslizou seus dedos gentilmente sobre o Signo de
Ferro, o Signo de Bronze, o Signo de Madeira e o Signo de
Pedra. E falava ao fogo, não como fizera hã algum tempo
quando desafiado a apagá-lo, mas como um Ancião depois
da Magia. Falava sobre o fogo vermelho no salão do rei, do
fogo azul que dançava sobre os pântanos, do fogo amarelo
resplandecente sobre o farol das colinas para o festival
Beltane e o Dia das Bruxas; do fogo indômito, do fogo
necessário e do fogo frio do mar; e falava do Sol e das
estrelas. As chamas se ergueram. Seus dedos estendidos
chegaram ao fim da jornada em volta do último Signo.
Depois olhou para cima. Ele olhou e viu...
.... ele viu, não os simpáticos membros do vilarejo
reunidos em um alto e moderno aposento de painéis,
iluminado pelas lâmpadas elétricas comuns, mas o Grande
Salão de pedra sombreado pelas velas, com suas tapeçarias
penduradas e teto alto abobadado que ele havia visto antes
em um mundo distante. Olhou para a lenha queimando que
mantinha o mesmo fogo, mas crepitando agora em uma
lareira diferente, e viu como antes, além do passado, as
duas pesadas cadeiras talhadas, uma de cada lado da
lareira. Na cadeira à direita, sentava-se Merriman vestido
com uma capa, e na cadeira à esquerda, sentava-se uma
silhueta, a mesma que ele havia visto pela última vez, não
no dia anterior, deitada sobre um ataúde como se estivesse
morta. Inclinou-se rapidamente e ajoelhou-se aos pés da
velha dama.
— Senhora — disse.
Ela tocou-lhe os cabelos gentilmente: — Will.
— Desculpe-me por ter rompido o círculo aquela vez
— disse ele. — A senhora está bem agora?
— Tudo está bem — disse ela com sua voz clara e
suave. - E ficará, se conseguirmos vencer a última batalha
pelos Signos.
— O que devo fazer?
— Destrua o poder do frio. Pare a neve, o frio e o gelo.
Liberte nossa pátria do domínio das Trevas, com o próximo
do círculo, o Signo do Fogo.
Will a olhava impotente. — Mas eu não o tenho. E não
sei como...
— Você já tem um Signo de Fogo. O outro espera. Ao
conquistá-lo, você destruirá o frio. Mas antes disso, o nosso
círculo das chamas deve se completar, o que já é um eco
do Signo; e para fazer isso, você deve tirar o poder das
Trevas. — Ela apontou para o grande círculo forjado em
ferro dos encaixes da velas sobre a mesa, o círculo
quartejado por uma cruz. Enquanto erguia o braço, a luz
cintilou sobre o anel rosado em sua mão. O círculo mais
afastado de velas estava completo, doze colunas brancas
queimando da mesma maneira como haviam feito quando
Will estivera no salão, da última vez. Mas os braços da cruz
ainda permaneciam vazios em seus encaixes; nove espaços
para serem preenchidos.
Will as olhava com tristeza. Esta parte de sua busca o
deixava desesperado. Nove grandes velas encantadas que
deveriam surgir de algum lugar. O poder que deveria ser
apreendido das Trevas. Um Signo que ele já tinha, sem
conhecê-lo. Outro que deveria ser encontrado sem saber
onde ou como procurar.
— Tenha coragem — a velha dama lhe dizia. Sua voz
soava cansada e distante; quando Will a viu, percebeu que
ela mesma parecia distante, como se fosse nada mais do
que uma sombra. Estendeu-lhe a mão preocupado, mas ela
afastou o braço. — Ainda não... Ainda há outro tipo de
trabalho a ser realizado, também... Você deve perceber
como as velas queimam, Will. — A voz dela esvaeceu e em
seguida se reergueu. — Elas lhe mostrarão.
Will olhava para as chamas brilhantes das velas; o
alto círculo de luz capturava seus olhos. Enquanto as
percebia, sentiu a estranha sensação de um solavanco,
como se todo o mundo tivesse estremecido. Inclinando a
cabeça para cima, viu...
.... viu, quando ergueu os olhos, que se encontrava de
volta ao Solar, na época da srta. Greythorne, no tempo de
Will Stanton, com as paredes em painéis e o murmúrio de
muitas vozes, e uma voz falava ao seu ouvido. Era o dr.
Armstrong.
— ... chamando por você — dizia ele. O sr. Stanton
estava de pé ao seu lado. O médico parou e olhou
estranhamente para Will. — Você está bem, jovem rapaz?
— Sim, sim, estou bem. Desculpe. O que foi que
disse?
— Eu estava dizendo que seu amigo mendigo está
chamando por você. "O sétimo filho", como ele liricamente
colocou, embora, como sabia disso, não podemos dizer.
— Sou eu então, não sou? — disse Will. — Eu não
sabia até dias atrás sobre um irmão que faleceu. Tom.
O olhar do dr. Armstrong ficou distante por um
momento.
― Tom — disse ele. — O primeiro bebê. Eu me lembro.
Há muito tempo. — E seu olhar voltou. — Sim, você é.
Assim como seu pai, se isso interessa.
Will girou a cabeça e viu o sorriso de seu pai. — Você
foi o sétimo filho, pai?
— Certamente — respondeu Roger Stanton, com seu
rosto redondo e rosado, recordando o fato. — Metade da
família foi assassinada na última guerra, mas éramos doze.
Você sabia disso, não? Uma tribo propriamente dita, isso
sim. Sua mãe amava isso, ser filha única. Ouso dizer que é
essa a razão que a levou a ter todos vocês. Horrorizando,
nesta era superpopulosa. Sim, você é o sétimo filho de um
sétimo filho... nós costumávamos brincar sobre isso quando
você era bebê. Mas não depois, para o caso de você ter
idéias sobre uma segunda visão, ou seja lá o que eles dizem
sobre isso.
— Ah, ah — disse Will com certo esforço. — Você
descobriu o que está errado com o mendigo, dr. Armstrong?
— Para falar a verdade, ele me confundiu bastante —
disse o médico. — Ele deveria tomar um sedativo nesse
estado de perturbação, mas tem a pressão sangüínea e a
pulsação menores que eu já vi em toda a minha vida, por
isso estou em dúvida... Não há nada fisicamente errado
com ele, até onde posso afirmar. Provavelmente, ele tem a
mente delirante, como tantos desses velhos andarilhos; não
que seja possível ver muitos deles hoje em dia, eles
praticamente desapareceram. De qualquer forma, o homem
continua gritando para vê-lo, Will, então, se puder suportar
isso, eu o levarei até lá por um momento. Ele é bastante
inofensivo.
O Andarilho fazia muito barulho. E parou quando viu
Will estreitando os olhos. Seu humor mudou nitidamente;
estava mais confiante agora, e o rosto triangular cheio de
rugas bem claro. Olhou sobre o ombro de Will para o
médico e o sr. Stanton. — Vão embora — disse.
— Hum — resmungou o dr. Armstrong, mas saiu
levando o pai de Will para perto da porta, dentro do alcance
da visão, mas muito longe para ouvi-los. No pequeno
aposento que servia como uma área para enfermos, sua
perna quebrada estava esticada sobre a cama, mas ele
parecia estar dormindo.
— Você não pode me manter aqui — sussurrou o
Andarilho. — O Cavaleiro virá me buscar.
— Você já esteve com muito medo do Cavaleiro certa
vez — disse Will. — Eu vi você. Já se esqueceu disso
também?
— Eu esqueço de tudo — disse o Andarilho com
desdém.
— Aquele medo se foi. Partiu quando o Signo me
deixou. Deixe-me ir, deixe-me voltar para o meu povo. —
Uma formalidade firme e curiosa parecia surgir em seu
discurso.
— Seu povo não se importou em deixá-lo morrer
sobre a neve — disse Will. — De qualquer maneira, não
estou mantendo você aqui. Só o trouxe para ver o médico e
ele precisa vê-lo novamente; não posso deixar você sair no
meio de uma tempestade.
— Então, o Cavaleiro chegará — disse o velho. Seus
olhos cintilavam e ele ergueu a voz novamente de modo
que gritava para todos no aposento. — O Cavaleiro
chegará! O Cavaleiro chegará!
Will o deixou quando seu pai e o médico vieram
rapidamente em direção à cama.
— Mas o que está acontecendo aqui? — perguntou o
sr. Stanton. O Andarilho, com o doutor inclinando-se sobre
ele, reclinou-se novamente e caiu murmurando
furiosamente mais uma vez.
— Só Deus sabe — disse Will. — Ele não falava coisa
com coisa. Eu acho que o dr. Armstrong está certo, ele está
um pouco pirado. — Will olhou em volta do quarto, mas não
viu sinal de Merriman.
— O que aconteceu com o sr. Lyon?
— Está por aí — disse seu pai de forma vaga. —
Encontre os gêmeos, sim, Will? Irei ver se a tempestade já
passou um pouco para que possamos ir.
O garoto permaneceu no salão alvoroçado, enquanto
as pessoas entravam e saíam com cobertores e
travesseiros, copos de chá, sanduíches e pratos vazios indo
e voltando da cozinha. Sentia-se estranho, distante, como
se estivesse em suspenso no meio deste mundo
preocupante e não fizesse parte dele. Olhou para a grande
lareira e mesmo o crepitar das chamas não conseguiam
abafar o uivo do vento lá fora e as rajadas de neve gelada
contra a janela.
As chamas cresciam, mantendo o olhar de Will. De
algum lugar fora do tempo, Merriman dizia em sua mente:
— Cuidado. É verdade. O Cavaleiro virá buscá-lo. Este é o
motivo que nos fez trazê-lo aqui, para um lugar fortalecido
pelo Tempo. De outra maneira, o Cavaleiro teria ido à sua
casa, e tudo o que o acompanha também...
— Will! — soou a voz imperiosa de contralto da srta.
Greythorne. — Venha aqui! — E Will olhou novamente para
o tempo presente e foi até ela. Viu Robin ao lado de sua
cadeira e Paul se aproximando com uma caixa plana e
comprida, em um formato familiar, em suas mãos.
— Nós pensamos em promover um tipo de concerto
até que a neve pare de cair — disse a srta. Greythorne
rapidamente. — Todos fazendo um pouquinho. Todos que
gostarem da idéia, é isso. Uma cailey, ou qualquer outra
coisa que os escoceses possam chamar isso.
Will via a felicidade brilhar nos olhos de seu irmão. —
E Paul irá tocar aquela flauta antiga de que tanto gosta.
— No momento oportuno — disse Paul. — E você
cantará.
— Tudo bem — Will olhava para Robin.
— Eu — começou Robin — liderarei os aplausos.
Haverá muitos deles... nosso vilarejo parece ser
extremamente talentoso. A srta. Bell recitará um poema, os
três garotos de Domey têm uma banda de música
folclórica... dois deles até chegaram a trazer seus violões. O
velho sr. Dewhurst fará um monólogo, mas tente detê-lo. A
filhinha de alguém quer dançar. Não há fim pra isso.
— Eu pensei, Will — disse a srta. Greythorne —, que
talvez você pudesse começar. Se começasse apenas
cantando algo de que goste, então pouco a pouco as
pessoas parariam para ouvir e logo haveria completo
silêncio... muito melhor do que me ver tocando um sino ou
outra coisa, ou falando, "todos nós teremos um concerto",
você não concorda?
— Acho que sim — disse Will, embora nada pudesse
estar mais distante de seus pensamentos naquele
momento do que a idéia de apresentar uma música
tranqüila. Ele pensou subitamente e em sua mente surgiu
uma pequena canção melancólica que o mestre de música
da escola havia transposto para a voz dele, no semestre
anterior, como um experimento. Sentindo-se bastante
exibido, Will abriu a boca e começou a cantar:
Brancas sob a Lua, estendem-se as longas
estradas,
E a lua acima permanece alva;
Brancas sob a Lua, estendem-se as longas
estradas
Que me afastam de minha amada,
Tranqüilas, longe do temporal, as margens vão
permanecer
Tranqüilas, tranqüilas em meio às sombras
constantes:
Na poeira enluarada, onde meus pés podes
ver
Prosseguem, prosseguem pelo caminho
incessante.
A conversa ao redor foi diminuindo até cair o silêncio,
Ele percebeu os rostos virando-se em sua direção e quase
se perdeu numa nota quando reconheceu algumas das
pessoas que esperava ver, mas que não as havia
encontrado antes. Lá estavam elas agora, discretamente ao
fundo: o fazendeiro Dawson, o Velho George, John Smith e
sua esposa; os Anciãos prontos novamente para se juntar
ao círculo, se necessário. Perto dali, encontrava-se o
restante da família Dawson, e o pai de Will estava perto
deles:
O mundo dá voltas, assim dizem os viajantes,
Mas direto a rota encontrará,
Marche, marche, logo tudo acabará
O caminho o guiará atento.
De soslaio, ele viu, chocado, a figura do Andarilho
com o cobertor enrolado ao redor de seu corpo como se
fosse uma capa; o velho estava de pé na porta do quarto
dos enfermos, ouvindo. Por um instante, Will avistou o seu
rosto, e era impressionante. Todo logro e terror tinham
desaparecido de sua face triangular; havia apenas tristeza e
anseios impossíveis. Era possível perceber até mesmo um
brilho de lágrimas em seus olhos. Era o rosto de um homem
revelando algo imensamente precioso que havia perdido.
Por um segundo, Will sentiu que mediante sua música
ele poderia atrair o Andarilho para a Luz. Fitava-o enquanto
cantava, fazendo de cada nota um apelo, e o Andarilho
continuou fraco e infeliz, olhando para o passado:
Mas antes que o círculo corra para casa.
Muito, muito, há para remover;
Brancas sob a lua, estendem-se as longas
estradas
Que me afastam de minha amada.
O aposento se acalmou dramaticamente enquanto ele
cantava; a voz soprano do garoto, que sempre parecia
pertencer a um estranho, subiu alta e distante pelo ar.
Naquele momento houve um pequeno silêncio, a única
parte da apresentação que significava alguma coisa para
ele, e, depois disso, muitos aplausos. Will os ouviu por um
longo tempo. A srta. Greythorne chamou a todos: — Nós
tivemos uma idéia para passar o tempo, todos que se
sentirem dispostos poderiam fazer algo divertido. Algo para
afastar a tempestade. Quem gostaria de participar?
Ouviu-se um alegre cochichar, e Paul começou a tocar
a flauta antiga do Solar, de forma lenta e não muito alto. A
graça suave do som encheu o aposento, e Will ficou mais
confiante enquanto ouvia e pensava sobre a Luz. Mas no
instante seguinte, a música não pôde mais fortalecê-lo. Não
conseguia mais ouvi-la. Seus cabelos estavam arrepiados,
seus ossos doíam; sabia que alguma coisa, alguém estava
se aproximando, desejando o mal para o Solar, para todos
lá dentro e principalmente para ele.
O vento aumentou. E gemia guinchando na janela.
Ouviu-se uma tremenda batida na porta. O Andarilho
saltou; sua face estava contorcida novamente, tensa com a
espera. Paul tocava, sem precedentes. A pancada na porta
soou mais uma vez. De repente, Will percebeu que ninguém
entre eles podia ouvi-la. Embora o vento estivesse prestes a
ensurdecê-los, não se tratava de seus ouvidos, nem
saberiam o que estava acontecendo naquele instante. O
baque soou pela terceira vez, e ele soube que
provavelmente iria atender ao chamado. Caminhou sozinho
pelas pessoas desatentas até a porta, segurou o grande
círculo de ferro da maçaneta, murmurou algumas palavras,
em um fôlego só, na Linguagem Antiga, e escancarou a
porta.
A neve chuviscava sobre ele, a chuva de granizo
cortava seu rosto, os ventos assoviavam pelo salão. Lá fora,
na escuridão, o grande cavalo negro erguia suas patas
acima da cabeça de Will, com os cascos se agitando no ar,
os olhos brancos desassossegados e os dentes à mostra,
espumando. E sobre ele cintilavam os olhos azuis do
Cavaleiro e o avermelhado luminoso de seus cabelos.
Contra a sua vontade, Will gritou, levantando um braço
instintivamente em autodefesa.
E o garanhão negro relinchou e correu para as Trevas
com o Cavaleiro; a porta se fechou, e não havia mais nada
nos ouvidos de Will, exceto a doce cadência da flauta antiga
que Paul continuava tocando. As pessoas se sentaram
esparramadas tranqüilamente como tinham feito antes.
Lentamente, Will abaixou o braço, ainda encurvado
defensivamente sobre sua cabeça, e, enquanto fazia isso,
percebeu algo de que havia esquecido completamente. Na
parte inferior do antebraço, que usara para enfrentar o
Cavaleiro Negro quando ele havia segurado seu braço,
encontrava-se a cicatriz queimada do Signo de Ferro. No
início de tudo, naquele outro Grande Salão, ele havia se
queimado no Signo quando as Trevas fizeram sua primeira
investida contra ele. Uma queimadura que tinha sido
curada pela Dama. Will esqueceu que foi ali. Você já tem
um signo do fogo.
Então era isso que ela queria dizer...
Um Signo de Fogo havia mantido as Trevas ao longe,
rechaçando seu ataque mais forte, talvez. Will se reclinou
debilitado contra a parede e tentou respirar lentamente.
Mas enquanto observava a multidão tranqüila ouvindo a
música, avistou novamente a figura que jogara toda a sua
confiança no nada, e o instinto rápido da Magia lhe disse
que havia caído numa armadilha. Pensou que estivera
apenas enfrentando um desafio, e realmente estava. Mas
ao fazer isso, abriu a porta entre as Trevas e o Andarilho, e
assim, de alguma maneira, fortaleceu o velho mendigo a
ponto de fazê-lo ganhar o poder pelo qual tanto esperara.
Pois o Andarilho encontrava-se mais alto agora, seus
olhos estavam brilhantes, sua cabeça altiva e suas costas
eretas. Ele ergueu um braço bem alto e gritou forte e
claramente:
— Venha lobo, venha cão, venha gato, venha rato,
venha Held, venha Holda, eu os convido para entrar! Venha
Ura, venha Tann, venha Coll, venha Quert, venha Morra,
venha Mestre, eu os faço entrar!
As invocações continuaram, uma longa lista de
nomes, todos conhecidos de Will pelo Livro da Magia. No
salão da srta. Greythorne, ninguém podia ver ou ouvir; tudo
continuava como antes e, com o final da música de Paul e o
começo determinado e alto do monólogo do velho sr.
Oewhurst, todo olhar lançado na direção de Will parecia não
enxergá-lo ali. Ele se perguntava se seu pai, ainda
conversando com os Dawson, teria rapidamente percebido
que seu filho mais novo não estava sendo visto.
Mas logo, enquanto o soar das invocações do
Andarilho continuavam, ele parou de pensar sobre isso, pois
sob as suas sensações o salão começou a mudar
subitamente; o antigo salão da Dama começava a voltar em
sua consciência e passou a absorver cada vez mais a
aparência do salão do tempo presente. Amigos e família se
desvaneceram; somente o Andarilho permanecia nítido
como antes, de pé agora, no fundo do Grande Salão, longe
do fogo. E enquanto Will olhava para o grupo com o qual
seu pai estava, mesmo enquanto sumiam, ele pôde ver a
troca pela qual os Anciãos eram capazes de se mover
dentro e fora do Tempo. Viu uma forma de Frank Dawson
sair facilmente da primeira, deixando este outro eu como
parte do presente; a segunda forma ficou cada vez mais
nítida enquanto caminhava na direção dele e, depois disso,
o mesmo aconteceu com o Velho George, o jovem John e a
mulher de olhos azuis. Will sabia que aquela foi a sua
maneira de chegar até lá também.
Logo, os quatro se reuniram ao seu redor, no centro
do salão da Dama, cada um afrontando um dos quatros
cantos de um quadrado. E enquanto o Andarilho invocava
sua longa lista das Trevas, o próprio Salão começou a
mudar. Luzes estranhas e chamas bruxuleavam pelas
paredes, turvando a visão das janelas e maçanetas. Aqui e
ali, ao som de um nome em particular, o fogo azul se
lançava impetuosamente no ar e se apagava novamente.
Em cada uma das três paredes diante da lareira, três
grandes chamas sinistras cresciam rápidas e não se
apagavam depois disso, mas permaneciam dançando e se
curvando em um brilho medonho, preenchendo o salão com
uma luz fria.
Diante da lareira, na grande cadeira talhada que ele
havia ocupado desde o princípio, Merriman permanecia
imóvel. Havia uma terrível força contida na forma como se
sentara; Will olhava para os ombros largos com mau
pressentimento, como se estivesse olhando para uma fenda
gigantesca que poderia a qualquer momento romper.
O Andarilho entoava ainda mais alto: — Venha, Bath,
venha, Truta, venha, Feriu, venha, Lota! Venha, Burgo,
venha, Calais, eu os faço entrar...
Merriman se levantou, era como um grande pilar
branco e negro. Seu manto o envolvia. Apenas seu rosto
impassível estava à vista, deixando a luz resplandecer nos
volumosos cabelos brancos. O Andarilho olhou-o e titubeou.
Em volta do salão, o fogo espesso e as chamas das Trevas
dançavam e murmuravam, nos tons de branco, azul e
preto, sem tonalidades dourada, avermelhada ou quente
neles. As nove chamas mais altas permaneciam eretas
como árvores ameaçadoras.
Mas o Andarilho parecia ter perdido a voz novamente.
Olhou mais uma vez para Merriman e encolheu-se em
seguida. E através do misto de anseio e medo em seus
olhos brilhantes, Will o reconheceu subitamente.
— Hawkin — disse Merriman suavemente —, ainda há
tempo para voltar para casa.
O FALCÃO DAS TREVAS

O Andarilho respondeu num sussurro: — Não.


— Hawkin — continuou Merriman, gentilmente —,
todo homem tem uma última escolha depois da primeira,
uma chance de perdão. Não é tarde demais. Volte. Venha
para a Luz.
A voz era quase inaudível, um mero sussurro rouco:
— Não.
As chamas ainda se erguiam e, imponentes,
rodeavam o Grande Salão. Ninguém se movia.
— Hawkin — dizia Merriman, e não havia tom de
ordem em sua voz, porém apenas conforto e súplica. —
Hawkin, vassalo, abandone as Trevas. Tente se lembrar.
Certa vez, havia amor e confiança entre nós.
O Andarilho o fitava como um homem sentenciado, e
agora, no rosto pontudo e enrugado, Will podia enxergar
claramente os traços do homenzinho alegre que fora
Hawkin, trazido de seu próprio tempo para o resgate do
Livro da Magia, e lembrar do choque que o fez enfrentar a
morte e trair os Anciãos em prol das Trevas. Ele se
lembrava da dor que havia visto no olhar de Merriman
enquanto observavam o início daquela traição e da terrível
certeza que o fez contemplar o destino de Hawkin.
O Andarilho ainda olhava fixamente para Merriman,
mas seus olhos não enxergavam. Eles olhavam o passado,
enquanto o velho redescobria tudo o que havia esquecido,
ou retirado de sua mente. E disse lentamente, com um tom
de reprovação:
— Você me fez arriscar minha própria vida por um
livro. Por um livro. Depois, porque olhei para mestres mais
gentis, você me enviou para o meu próprio tempo, mas não
como eu havia sido antes. Você me deu, então, o fardo de
carregar o Signo. — A sua voz se intensificava cada vez
mais pela dor e ressentimento enquanto se lembrava. — O
Signo de Bronze, através dos séculos. Você me transformou
de um homem para uma criatura sempre em fuga, sempre
a procura, sempre caçada. Você me impediu de envelhecer
decentemente em meu próprio tempo, como todos os
homens fazem, ficando velhos, cansados e enfim
mergulhando no sono da morte. Você me tirou o direito de
morrer. Você me colocou em meu próprio século com o
Signo, hã tanto tempo, e você me fez carregá-lo através de
seiscentos anos até a era atual.
Os olhos dele piscaram na direção de Will e refletiram
um lampejo de ódio. — Até que o último dos Anciãos
nascesse, para tirar o Signo de mim. Você, garoto, tudo por
você. Esta mudança no tempo, que tirou minha vida boa
como homem, tudo isso é por sua causa. Antes de você
nascer, e depois. Por causa de seu maldito dom da Magia,
perdi tudo o que eu amava.
— Deixe-me dizer uma coisa — gritou Merriman —,
você pode voltar para casa, Hawkin! Agora! É sua última
chance: você pode voltar para a Luz e ser como era antes.
— Sua silhueta ereta e orgulhosa se inclinou para a frente,
suplicante, e Will se condoeu por ele, pois sabia que, para
Merriman, foi seu julgamento equivocado que levara seu
servo Hawkin à traição e à vida de um deplorável Andarilho,
uma carapaça lamuriosa comprometida com as Trevas.
Merriman disse roucamente: — Eu imploro, meu
filho...
— Não — disse o Andarilho. — Eu encontrei mestres
melhores do que você. — As nove chamas das Trevas
rodearam as paredes espalhando o frio e queimavam com a
luz azul, tremulando. Ele apertou ainda mais o cobertor
escuro que o envolvia e olhava furiosamente pelo salão.
Depois disso, gritou de maneira esganiçada e desafiadora:
— Mestres das Trevas, eu os faço entrar!
E as nove chamas se moveram das paredes,
aproximando-se do centro do aposento, ficando mais perto
de Will e dos quatro Anciãos. Will foi ofuscado pelo brilho
azul e branco e não avistava mais o Andarilho. Em algum
lugar atrás das grandes luzes, a voz aguda soou gritando
novamente, alta e ensandecia pela amargura. - Você
arriscou a minha vida pelo Livro! Você me obrigou a
carregar o Signo! Você deixou as Trevas me rondarem
através dos séculos, mas nunca me deixou morrer! Agora é
sua vez!
"Sua vez! Sua vez!" ecoava o grito pelas paredes. As
nove chamas moviam-se lentamente para mais perto, e os
Anciãos permaneceram no centro do pavimento observando
sua aproximação. Ao lado da lareira, Merriman virou-se
vagarosamente para o centro do aposento. Will viu que seu
rosto estava impassível novamente; os olhos profundos e
vazios e as rugas perfeitamente delineadas; e soube que
ninguém veria qualquer emoção intensa auto-reveladora
naquele rosto por muito tempo. A oportunidade do
Andarilho de resgatar a mente e o coração de Hawkin veio
e foi rejeitada, e agora se foi para sempre.
Merriman ergueu ambos os braços e a capa caiu
como asas. A voz profunda soou no silêncio crepitante: —
Pare!
As nove chamas pararam e permaneceram imóveis.
— Em nome do Círculo dos Signos — disse Merriman,
com nitidez e firmeza —, ordeno que saia desta casa.
A luz fria das Trevas que rodeava todas as paredes
atrás das grandes chamas bruxuleou e crepitou como o
grito. E além da escuridão, soou a voz do Cavaleiro Negro.
— Seu círculo não está completo e você não tem esse
poder — gritou ele com zombaria. — E seu vassalo nos
convocou para dentro desta casa, como fez antes e pode
fazê-lo novamente. Nosso vassalo, meu senhor. O falcão
está nas Trevas... Você não pode mais nos afugentar daqui.
Nem com chama, nem pela força, nem com o poder
reunido. Nós quebraremos seu Signo do Fogo antes que
possa ser libertado, e seu Círculo nunca se juntará. Antes,
será quebrado no frio, meu senhor, nas Trevas e no frio...
Will estremeceu. De fato, estava ficando mais frio no
Salão, muito frio. O ar era como uma corrente de água
gelada, vindo sobre eles de todos os lados. O fogo na
grande lareira não emitia calor agora; qualquer calor era
sugado pelas chamas frias e azuis das Trevas ao redor. As
nove chamas tremularam novamente, enquanto as olhava,
o menino podia jurar que não se tratava de chamas, mas de
estalactites de gelo gigantes, azuis e brancas, como antes,
porém sólidas, ameaçadoras: grandes pilares prontos para
serem derrubados e esmagá-los sob seu peso e frio.
— ... frio — disse o Cavaleiro Negro suavemente das
sombras — ... frio...
Will olhava assustado para Merriman. Sabia que cada
um deles, cada Ancião no aposento, estava investindo
contra as Trevas com todo o poder que possuíam desde que
a voz do Cavaleiro soou pela primeira vez e sabia que
nenhum esforço empreendido surtiu qualquer efeito.
Merriman disse suavemente: — Hawkin os deixa
entrar, como ele fez em sua primeira traição, e não
podemos impedir isso. Durante certa vez, ele teve minha
confiança e isto lhe proporcionou este poder mesmo depois
que a confiança já não existia mais. Nossa única esperança
está no que era desde o princípio: Hawkin nada mais é do
que um homem... Quando os encantos do frio profundo são
criados, há pouco o que se pode fazer contra eles.
Ele continuou no tom de desaprovação enquanto o
círculo de fogo azul e branco tremulava e dançava; ele
mesmo parecia frio, com um olhar sombrio no rosto. — Eles
trouxeram o frio profundo — disse ele, em parte para si
mesmo.
O frio do vazio, do buraco negro.
E o frio ficou ainda mais intenso, investindo contra o
corpo e a mente. Porém as chamas das Trevas pareciam ao
mesmo tempo diminuir, e Will percebeu que seu próprio
século estava novamente ressurgindo ao seu redor, e já se
encontravam de volta no solar da srta. Greythorne.
E lá também se sentia o frio.
Tudo estava mudando agora; o murmúrio de vozes
havia alterado de um alegre burburinho para um murmúrio
de ansiedade, e o alto aposento encontrava-se fracamente
iluminado por velas dispostas em castiçais, copos e pratos,
onde quer que houvesse espaço. Todas as lâmpadas
elétricas estavam apagadas, e os grandes radiadores de
metal que aqueciam a maior parte do salão não emitiam
calor.
Merriman correu intrigantemente para perto do
Cavaleiro Negro com a velocidade de alguém retornando de
um rápido serviço de rua; sua capa estava subitamente
diferente, havia mudado para o casaco que ele vestia mais
cedo naquele dia. Disse para a srta. Greythorne: — Não há
muito que podemos fazer aqui embaixo, senhora. A
fornalha já se extinguiu, é claro. Todas as linhas de energia
elétrica quase não funcionam mais. E também o telefone.
Eu peguei todos os cobertores e edredons da casa, e a srta.
Hampton está preparando uma enorme quantidade de sopa
e bebidas quentes.
A srta. Greythorne aquiesceu em aprovação. — Foi
bom termos mantido os antigos fornos a gás. Sabe Lyon,
eles queriam que eu os trocasse quando fizemos a
instalação dos aquecedores centrais. Eu não faria isso. A
eletricidade, bem... sempre soube que a velha casa não
resistiria a ela.
— Estou providenciando o máximo de madeira
possível para manter o fogo aceso — disse Merriman, mas,
no mesmo instante, como numa zombaria, um som
sibilante e uma quantidade de fumaça surgiram da lareira
ampla, fazendo aqueles que estavam perto sair
rapidamente dali, engasgados e gaguejando. Através da
repentina nuvem de fumaça soprada, Will pôde avistar
Frank Dawson e Velho George esforçando-se para remover
alguma coisa do fogo.
Mas o fogo apagou.
— A neve está caindo na chaminé! — gritou o
fazendeiro Dawson, tossindo. — Precisaremos de baldes,
Merry, rápido. Isto aqui está uma bagunça.
— Eu pego — gritou Will e correu para a cozinha,
contente de ter a chance de se mover. Mas antes que
pudesse alcançar a porta através dos grupos encolhidos de
pessoas amedrontadas e geladas, uma figura se ergueu
diante dele bloqueando o caminho, e duas mãos seguraram
seus braços numa garra tão apertada que ele emitiu um
grito sufocado de dor. Os olhos brilhantes perscrutavam os
seus, cintilando com um triunfo selvagem, e o volume mais
alto da voz do Andarilho soou esganiçada em seus ouvidos.
— Ancião, Ancião, último dos Anciãos, você sabe o
que vai acontecer com você? O frio está entrando, e as
Trevas vão congelá-lo. Frio e rigor e todos vocês estão
impotentes. Ninguém protegerá os pequenos Signos em seu
cinto.
— Solte-me! — contorcia-se Will com raiva, mas o
velho segurando seus pulsos era um fecho de loucura.
— E você sabe quem irá pegar esses Signozinhos,
Ancião? Eu irei. O pobre Andarilho, e os vestirei. Eles me
foram prometidos como uma recompensa pelos meus
serviços... nenhum senhor da Luz jamais me ofereceu uma
recompensa assim. Ou qualquer outro... eu serei o
Descobridor dos Signos, serei, e tudo o que foi seu, no final,
virá para mim...
Ele agarrou o cinto de Will, seu rosto estava distorcido
pelo triunfo, a boca salivava como espuma, e Will gritou por
socorro. Em um instante, John Smith estava ao seu lado,
com o dr. Armstrong logo atrás; o enorme ferreiro prendeu
as mãos do Andarilho pelas costas. O velho praguejava e
tremia, seus olhos resplandeciam o ódio que sentia por Will
e os homens precisaram se esforçar para segurá-lo. Depois
de um tempo, ele se encontrava preso e inofensivo. E o dr.
Armstrong afastou-se com um suspiro exasperado.
— Este camarada deve ser a única coisa quente em
todo o país — comentou ele —, por causa de todas as vezes
em que ficou fora de si, com pulso ou sem pulso. Eu vou
colocá-lo para dormir por enquanto. Ele é um perigo para a
comunidade e para si mesmo.
Will pensou, esfregando o punho dolorido: "se você
soubesse o tipo de perigo que ele é...". Então,
repentinamente, começou a perceber o que Merriman
queria dizer com: Nossa única esperança está no que era
desde o princípio: Hawkin nada mais é do que um homem...
— Mantenha-o lá, John, enquanto pego minha valise
— disse o médico e desapareceu. John Smith, com um
punho enorme segurando o ombro do Andarilho e o outro os
dois pulsos, piscou incentivadoramente para Will olhando
rapidamente para a cozinha; subitamente, Will se lembrou
do serviço que se dispusera a fazer e correu. Quando voltou
apressado com dois baldes vazios em cada mão, havia uma
nova comoção na lareira; um novo assovio começava a soar
e a fumaça se espalhava fazendo Frank Dawson cambalear
para trás.
— Inútil! — disse ele furiosamente. — Inútil! A gente
limpa a lareira por um momento, e mais neve é derramada
aqui embaixo. E o frio... — Ele parecia desesperado. — Olhe
para eles, Will.
O aposento estava no caos e na miséria: os
bebezinhos gemiam, os pais abraçavam seus filhos para
mantê-los aquecidos o suficiente para respirar. Will esfregou
as mãos geladas e tentava sentir os pés e o rosto através
da dormência causada pelo frio. O salão se tornava cada
vez mais gélido e, do mundo congelante lá fora, não se
ouvia sequer o barulho do vento. A sensação de estar
dentro de dois níveis do Tempo, de uma só vez, ainda
pairava em sua mente, embora tudo o que pudesse sentir
naquele momento em relação ao solar antigo era a
consciência das grandes velas geladas brilhando sinistras e
persistentes ao redor dos três lados do salão. Elas eram
como fantasmas, quase invisíveis, desde quando ele se viu,
pela primeira vez, trazido de volta pelo frio de seu tempo
real; mas, como o frio se intensificava, as luzes ficavam
mais nítidas. Will as olhava atentamente. E sabia que, de
alguma maneira, elas personificavam o poder das Trevas no
auge de seu solstício de inverno; porém, ele também sabia
que as velas faziam parte de uma magia independente
aproveitada pelas Trevas, a qual, como tantas outras coisas
naquela longa batalha, poderia ser rechaçada pela Luz,
bastando apenas que a coisa certa fosse feita no tempo
certo. Como? Como?
O dr. Armstrong já retornava ao quarto dos enfermos
com sua valise preta. Talvez pudesse haver, afinal, um meio
de deter as Trevas antes que o frio pudesse atingir o ponto
de destruição. Um homem, sem querer, oferecendo ajuda a
outro: este poderia ser o pequeno evento para revirar toda
a força sobrenatural das Trevas... Will esperou, tomado
repentinamente pela tensão da empolgação. O médico se
moveu na direção do Andarilho, que ainda praguejava
incoerentemente sob a firmeza do pulso de John Smith, e
então deslizou uma agulha habilidosamente no braço do
velho errante antes que ele soubesse o que estava sendo
feito com ele. — Pronto — disse ele tranquilizadoramente.
— Isso o ajudará. Durma bem.
Instintivamente, Will avançou alguns passos, caso
precisassem de ajuda, e viu que assim como ele, Merriman,
o fazendeiro Dawson e o Velho George estavam se
aproximando também. O médico e o paciente encontravam-
se fechados pelo círculo dos Anciãos, todos ao redor,
protegendo contra possíveis interferências.
O Andarilho avistou Will e rosnou como um cachorro,
revelando seus dentes quebrados e amarelados. —
Congelar, você vai congelar — disse cuspindo nele — e os
Signos serão meus, sem dúvida alguma... — Mas logo
titubeou e piscou, sua voz ficava mais baixa conforme o
medicamento espalhava a sonolência pelo corpo dele, e
mesmo quando a desconfiança começou a aparecer em
seus olhos, suas pálpebras se fecharam. Cada um dos
Anciãos avançou um ou dois passos, apertando o círculo. O
velho piscou novamente, mostrando a parte branca de seus
olhos horríveis num instante repentino e então ficou
inconsciente.
E com a mente do Andarilho fechada, os meios
utilizados pelas Trevas para entrar na casa foram fechados
também.
Instantaneamente, foi perceptível a diferença no
aposento pelo relaxamento das tensões. O frio não era mais
tão intenso, a infelicidade e o assombro ao redor deles
começaram a se dissipar como uma névoa. O dr. Armstrong
se ergueu, com uma pergunta e uma expressão confusa no
olhar; os olhos dele se arregalaram quando percebeu o
círculo de rostos determinados ao redor. E começou a
perguntar indignado: — O que...?
Mas o restante das palavras dele não foi escutado por
Will, pois, ao mesmo tempo, Merriman os chamava da
multidão, com urgência, silenciosamente, num discurso da
mente que nenhum homem poderia ouvir. — As velas! As
velas do inverno! Pegue-as, antes que desapareçam!
Os quatro Anciãos se dispersaram rapidamente pelo
salão, onde os estranhos cilindros azuis e brancos ainda
queimavam fantasmagoricamente pelas três paredes,
queimando com suas chamas frias e mortais. Voltando a
atenção diretamente para as velas, eles as seguraram,
duas em cada mão; Will, sendo o menor, subiu rapidamente
em uma cadeira para alcançar a última. Era fria, pesada e
lisa ao toque, como gelo que não derreteu. No momento
que a tocou, ficou atordoado, sua cabeça começou a girar...
.... e logo ele se encontrava novamente no Grande
Salão dos tempos antigos como os outros quatro e, ao lado
da lareira, a Dama estava sentada em sua cadeira de
encosto alto, acompanhada da esposa do ferreiro sentada
aos seus pés, olhando através dos límpidos olhos azuis.
Estava claro o que deveria ser feito. Tomando as velas
das Trevas, eles avançaram em direção aos encaixes do
grande anel de ferro, semelhante a uma mandala,
acomodado sobre a mesa maciça, e cada um deles
encaixou as velas nos nove soquetes que permaneciam
vazios na peça central da cruz. Cada vela mudou
subitamente enquanto era colocada em seu devido lugar, a
chama crescia mais espessa e alta, assumindo a tonalidade
dourada e branca no lugar do frio e ameaçador azul. Will,
com sua única vela, foi o último. Ele estendeu o braço para
encaixá-la no último soquete, situado bem no centro do
desenho e, enquanto fazia isso, as chamas das velas se
ergueram em um triunfante círculo de fogo.
A voz frágil da velha dama soou: — Aí está o poder
apreendido das Trevas, Will Stanton. Pela mágica fria, eles
invocaram as velas do inverno para a destruição. Mas,
agora que as apreendemos para um propósito melhor, as
velas se fortalecerão e serão capazes de levá-lo ao Signo do
Fogo. Veja.
Retrocederam alguns passos, observando, e a última
vela central que Will colocara no lugar começou a crescer.
Quando sua chama se estendeu acima das outras, ela
assumiu uma tonalidade nova: amarela, laranja e vermelha;
como continuava a crescer, alterou sua forma
transformando-se numa estranha flor sobre uma estranha
haste. Um botão curvado, cheio de pétalas que
resplandecia ali; cada pétala possuía um tom diferente das
cores das chamas; lenta e graciosamente, cada pétala abriu
e caiu, flutuando e desmanchando-se no ar. E finalmente,
no topo da longa haste curvada da planta de chama
avermelhada, um reluzente broto foi deixado, ondulando
suavemente por um momento, e numa explosão rápida e
silenciosa se abriu: os cinco lados desabrocharam ao
mesmo tempo como pétalas rijas. Em seu interior, havia um
círculo vermelho dourado na forma que todos conheciam.
A Dama ordenou: — Pegue-o, Will.
Will, admirado, deu dois passos em direção à mesa, e
o elegante pedúnculo se curvou para ele; enquanto o
menino estendia a mão, o círculo dourado se depositou
sobre ela. Instantaneamente, uma onda de poder invisível o
atingiu, um eco daquilo que ele havia sentido no momento
da destruição do Livro da Magia... e enquanto cambaleava e
se equilibrava novamente, percebeu que a mesa se
encontrava vazia. Num piscar de olhos, tudo o que estava
sobre ela havia desaparecido: a flor estranha, as nove velas
resplandecentes e o Signo na forma de um encaixe de ferro
que continha todas elas. Sumiram. Tudo desapareceu: tudo,
exceto o Signo do Fogo.
Estava na palma de sua mão, quente ao toque, uma
das coisas mais belas que ele já tinha visto. Ouro de várias
e diferentes tonalidades foi batido com grande habilidade
artesanal para gerar a forma do círculo cruzado; em todos
os lados, foram colocadas minúsculas gemas de rubis,
esmeraldas, safiras e diamantes, num desenho estranho e
rúnico que parecia estranhamente familiar aos olhos de
Will. O objeto cintilava e reluzia em sua mão como todos os
tipos de fogo que já existiram. Olhando de perto, viu
algumas palavras escritas com letras bem pequenas ao
redor da extremidade mais afastada:
LIHT MEC HEHT GEWYRCAN
E disse Merriman suavemente: — A Luz ordenou que
eu Tosse criado. Exceto por um, eles tinham todos os
demais Signos agora. Com júbilo, Will estendeu os braços,
agitando-os alegremente no ar, segurando o Signo no alto
para que todos pudessem vê-lo, e o círculo de ouro
trabalhado capturou o brilho de todas as luzes do salão,
bruxuleando como se fossem feito de chamas.
De algum lugar externo, ouviu-se um estrondoso
rugido revelando um longo gemido de raiva em seu interior.
O som retumbava, rosnava e surgia como um estrondo
novamente...
... e quando soou em seus ouvidos, Will estava de
volta ao salão da srta. Greythorne, com todos ao redor dele;
todos os rostos conhecidos do vilarejo virados para o
telhado em sinal de indagação e para o resmungo que rugia
no céu adiante.
— Um trovão? — perguntou alguém, intrigado.
Luzes azuis bruxuleavam em todas as janelas, e o
trovão soava tão próximo aos ouvidos que todos
estremeceram. Novamente surgiram os relâmpagos, e
novamente o trovão rugiu. Em algum lugar, uma criança
começou a chorar alto e estridente. Mas enquanto todo o
aposento lotado aguardava pelo próximo estrondo, não se
ouviu mais nada. Nenhum relâmpago, nenhum trovão, nada
mais do que um murmúrio longínquo. No lugar, depois de
um silêncio curto de respiração entrecortada, preenchido
apenas pelo sussurro das cinzas na lareira, ouviu-se o som
leve de uma batida na porta do lado de fora, intensificando
sutilmente e pouco a pouco até se tornar um inconfundível
staccato contra as janelas, portas e telhados.
A mesma voz anônima gritou de alegria: — Chuva!
E as vozes irromperam ao redor animadas, e as faces
sombrias brilharam; várias pessoas correram para olhar
pela janela, fazendo um sinal de alegria para os outros. Um
velho que Will nunca se lembrou de ter visto em sua vida
virou-se para ele com um sorriso desdentado e disse: — A
chuva derreterá a neve, de uma vez por todas!
Robin surgiu dentre a multidão. — Ah, aqui está você.
Estou ficando maluco, ou este aposento de repente parece
quente?
— Está mais quente — disse Will, tirando o pulôver.
Embaixo dele, o Signo de Fogo encontrava-se em seu cinto,
seguro com os outros.
— Engraçado, ficou tão horrivelmente frio por um
tempo. Eu acho que eles conseguiram ligar o aquecedor
central novamente...
— Vamos ver a chuva! — Dois garotos apressados
correram até a porta principal. Mas, enquanto eles ainda
mexiam na maçaneta, uma série de batidas, rápidas e
audíveis, soou do lado de fora; e lá na escada, quando a
porta foi aberta, com os cabelos alisados na cabeça pela
chuva suave que caía, encontrava-se Max.
Ele estava sem fôlego e era possível perceber que
tentava respirar urgentemente para conseguir falar. — A
srta. Greythorne está? Meu pai?
Will sentiu uma mão em seu ombro e viu Merriman ao
seu lado. Subitamente soube pela preocupação nos seus
olhos que de alguma maneira tratava-se do atual ataque
das Trevas. Max o avistou e se aproximou; a chuva escorria
por seu rosto e ele se sacudia como um cachorro.
— Chame nosso pai, Will — disse ele. — E o médico,
se ele puder vir. A mamãe sofreu um acidente, ela caiu da
escada. Ainda está inconsciente, e achamos que ela
quebrou uma perna.
O sr. Stanton já tinha ouvido e correu até o quarto do
médico.
Will olhava tristemente para Max. Ele chamou por
Merriman em silêncio, atemorizado: — Eles fizeram isto?
Fizeram?
A Dama disse...
— É possível — disse a voz em sua mente. — Eles não
podem ferir você, verdade, e eles não podem destruir os
homens. Mas podem incentivar os próprios instintos
humanos a fazer-lhes mal. Ou fazer soar um estrondo
inesperado de trovão, quando alguém estiver no topo de
uma escada... Will não ouviu mais do que isso. Já se
encontrava do lado de fora da porta com seu pai, seus
irmãos e o dr. Armstrong, seguindo Max até seu lar.

O REI DO FOGO E DA ÁGUA .

James ainda olhava pálido e angustiado, mesmo


depois que o médico chegou e examinou a sra. Stanton na
sala de Estar. Ele ficou ao lado de seus irmãos que estavam
mais perto dali, justamente Paul e Will, e os levou para
longe do Restante, de modo que não os ouvissem. E disse,
infeliz:
Mary desapareceu.
— Desapareceu?
— De verdade. Eu disse para ela não ir. Eu não pensei
que ela iria, eu pensei que ela ficaria com muito medo. —
E A preocupação levou o estóico James à beira das
lágrimas.
— Mas foi pra onde? — perguntou Paul asperamente.
— Para o Solar. Foi depois que Max partiu para
chamar vocês. Gwennie e Barb estavam na sala de estar
com nossa mãe; Mary e eu na cozinha tomando chã, e ela
ficou toda aborrecida e disse que Max já tinha saído há
muito tempo e nós deveríamos sair e verificar se alguma
coisa tinha acontecido com ele. Eu lhe disse para não ser
tão idiota, pois e claro que não iríamos, mas aí, a Gwen me
chamou para ajudá-la a acender o fogo, e, quando eu voltei,
Mary já tinha saído levando seu casaco e botas. — Ele
choramingou:
― Eu não consegui ver qualquer sinal para onde ela
pudesse ter ido; lá fora... a chuva acabara de começar e
não restava mais qualquer pegada. Eu já estava saindo
atrás dela sem dizer nada, pois as garotas tinham muito
com o que se preocupar, mas então vocês chegaram, e eu
pensei que ela estaria com vocês. Só que não estava. Ai,
meu Deus — disse James, aflito. — Ela é uma completa
idiota.
— Não se preocupe — disse Paul — Ela não pode ter
ido muito longe. Vá e espere por um bom momento para
explicar isso ao nosso pai e diga-lhe que eu saí para
procurá-la. Levarei Will, nós ainda estamos vestidos com
nossas roupas quentes.
— Bom — disse Will, que tentava rapidamente pensar
nos argumentos para poder ir junto.
Quando se encontravam sob a chuva novamente, a
neve já começara a derreter branca e cinzenta sob seus
pés. Paul perguntou: — Não acha que está na hora de me
contar o que tudo isso significa?
— O quê? — perguntou Will, estarrecido.
— No que você está envolvido? — disse Paul. Seus
olhos azuis claros olhavam severamente através de seus
pesados óculos.
— Nada.
— Veja bem, se Mary partiu, isso pode ter algo a ver
com isto, e você precisa dar uma explicação.
— Ai, Deus! — exclamou Will. Ele olhava para a
determinação ameaçadora de Paul e perguntava-se como
explicaria para seu irmão mais velho que um menino de
onze anos não era de fato um menino de onze anos, mas
uma criatura sutilmente diferente da espécie humana,
lutando para sobreviver... Não se explica, é claro.
Ele disse: — Trata-se disto, eu acho — perscrutando
cautelosamente o irmão, afastou a jaqueta e pulôver de seu
cinto e mostrou os Signos para Paul. — Eles são
antiguidades. Umas fivelas que o sr. Dawson me deu de
aniversário, mas elas devem ser muito valiosas, pois dois
ou três malucos já apareceram e tentaram pegá-las. Um
homem me perseguiu na Trilha do Vale do Caçador, certa
vez... e aquele mendigo estava metido com eles de alguma
forma. Foi por isso que eu não quis trazê-lo para casa, no
dia era que o encontramos na neve.
Ele pensava como tudo aquilo tinha soado
improvável.
Hum — disse Paul. — E aquele camarada no Solar, o
novo mordomo? Lyon, não é? Ele está metido com esses
palhaços?
— Ah, não — disse Will rapidamente. — Ele é meu
amigo.
Paul olhou-o por um momento, sem expressão. Will
pensava sobre o dia no porão, quando seu irmão se
mostrou tão compreensivo no começo, e na forma como ele
havia tocado a flauta antiga e soube que se havia alguém
entre seus irmãos a quem poderia fazer confidencias, este
era Paul. Mas isto estava fora de questão.
E Paul disse: — Obviamente você não me contou nem
metade da história, mas isso eu verei mais tarde. Presumo
que para você esses caçadores de antigüidades possam ter
levado Mary como um tipo de refém?
Eles chegaram ao fim da entrada da casa. A chuva
caía sobre eles, pesada mas não tão desagradável, e
começava a derreter os bancos de neve, escorrendo das
árvores, transformando as estradas em um riacho que se
move rapidamente. Eles olhavam para cima e para baixo,
em vão.
Will disse: — Eles devem ter. Quero dizer, ela deve ter
ido direto para o Solar, mas então por que não a vemos no
caminho de casa?
— Nós iremos por ali de qualquer maneira, para
verificar. — Paul inclinou sua cabeça subitamente e fitou o
céu. — Essa chuva! É ridículo! Assim, de repente, acaba
toda aquela neve... e está tão mais quente também. Não
faz sentido. — Ele saiu correndo respingando a água do
riacho que era a Trilha do Vale do Caçador e olhou para Will
com um meio sorriso de perplexidade. — Muitas coisas não
estão fazendo sentido para mim agora.
— Ah — disse Will. — Hum. Não. — Ele saiu correndo,
fazendo barulho com o respingo da água, para abafar seu
remorso, e procurava através da chuva por algum sinal da
irmã. O barulho ao redor deles era impressionante agora:
um ruído oceânico de espuma borbulhante, de ondas se
quebrando na praia, enquanto o vento fazia a chuva ser
desviada ritmicamente pelas árvores. Um ruído mais antigo,
como se eles estivessem na extremidade de um oceano
enorme que precede os homens. No alto da estrada por
onde corriam, eles olhavam e gritavam obstinadamente de
ansiedade; tudo o que eles viram se tornou várias vezes
estranho, enquanto a chuva talhava a neve em novos
caminhos e outeirinhos. Mas quando chegaram à uma
curva, Will soube muito bem onde estavam.
Ele viu Paul se esconder defensivamente sob um
braço levantado, ouviu o som rouco e áspero de um
grasnado abruptamente alto que logo sumiu e avistou,
mesmo através dos pingos da chuva, uma onda de penas
negras enquanto um bando de gralhas mergulhava do céu
sobre suas cabeças.
Paul se ergueu lentamente, olhando. — Que raios...?
— Saia desse lado da estrada — avisou Will,
empurrando o irmão firmemente para o lado. — As gralhas
ficam loucas de vez em quando. Já vi isso antes.
Outro mergulho e os pássaros atacaram Paul pelas
costas, empurrando-o para a frente, enquanto o primeiro
grupo descia rasante novamente para forçar Will contra um
banco de neve ao longo da margem do bosque coberto de
neve. Mais uma vez, elas investiram contra eles, e outras
vezes seguidas. Will se perguntava, esquivando-se, se seu
irmão tinha percebido que eles estavam sendo
arrebanhados como ovelhas, levados para onde as gralhas
queriam que fossem. Mas, mesmo enquanto se indagava,
ele já sabia que era tarde demais. A chuva densa e cinzenta
os separou completamente, e ele não tinha idéia de onde
Paul poderia estar.
Will gritou em pânico: — Paul? Paul? ― entretanto,
quando o Ancião dentro dele assumiu o controle,
acalmando o medo, ele parou de gritar. Aquele não era um
problema para seres humanos comuns, mesmo os de sua
própria família, e deveria sentir-se feliz por estar sozinho.
Ele sabia agora que Mary deveria estar retida e mantida
pelas Trevas. Se pelo menos ele tivesse a chance de tê-la
de volta. Assim, prosseguiu sob a chuva incessante,
olhando sobre si mesmo. A claridade estava se extinguindo
rapidamente. Will desabotoou o cinto e o afivelou em volta
de seu pulso; depois proferiu uma palavra na Linguagem
Antiga e ergueu os braços, e dos Signos surgiu um caminho
de luz reluzente e constante como a de uma tocha, que
resplandecia sobre as águas agitadas e marrons, onde a
estrada começava a se tornar um rio mais profundo e com
correnteza.
Ele se lembrou do que Merriman tinha avisado, hã
bastante tempo: que o auge mais perigoso do poder das
Trevas se daria na Décima Segunda Noite. Teria chegado
esse dia? Will já não sabia mais em que dia estava e passou
um por um em sua mente. A água lavava a borda de sua
bota enquanto ficou ali pensando; ele saltou rapidamente
para trás, para o banco de neve na extremidade do bosque,
e uma onda marrom na estrada-rio arrancou um enorme
pedaço da parede de neve acumulada sobre a qual ele
estava. Sob a luz dos Signos, Will percebia que naquele
momento outros montes de neve suja e gelo flutuavam na
água; enquanto boiavam passando por ali, gradualmente
arrancavam os blocos de neves acumulados de cada lado
pelo limpa-neve e carregavam para longe as partes
desvencilhadas como um iceberg miniatura.
Além disso, havia outras coisas na água, como um
balde boiando e um tufo de objetos que parecia um saco de
feno. O volume de água devia ter aumentado o suficiente
para arrastar coisas dos jardins das pessoas... talvez coisas
de sua família estivessem por ali. Como podia aumentar
assim tão rápido? Como em resposta, a chuva o açoitou nas
costas, fazendo mais neve se quebrar embaixo de seus pés;
lembrou que o chão onde pisava deveria estar congelado,
enrijecido pelo frio intenso que tinha paralisado a terra
antes de a chuva começar a cair. Em lugar nenhum, aquela
chuva seria capaz de se infiltrar no solo. O degelo da terra
demoraria muito mais do que o derretimento da neve — e,
nesse ínterim, a água da neve não tinha para onde ir,
nenhuma alternativa, a não ser correr pela superfície
congelada do campo, procurando um rio para se juntar. As
enchentes serão terríveis, pensava Will, pior do que havia
vivido antes. Pior do que o próprio frio...
Mas uma voz o interrompeu, um grito através das
águas velozes e do barulho da chuva. Ele cambaleou sobre
a pilha de neve derretida para olhar através da neblina. O
grito soou novamente. — Will! Por aqui!
— Paul? — Will gritou esperançoso, mas soube que
não se tratava da voz de Paul.
— Aqui! Por aqui!
O som do grito surgia do rio na estrada, na escuridão.
Will ergueu os Signos que reluziram sobre a água agitada,
revelando o que ele achou primeiro ser nuvens de vapor.
Em seguida, percebeu que o vapor encaracolado era o
sopro de uma respiração: a expiração profunda de um
cavalo gigante, com as quatro patas dentro da água,
enquanto ondas pequenas e bravias espumavam em seus
joelhos. Will avistou a cabeça larga, a longa crina na cor
castanha grudada no pescoço do animal e o reconheceu
como Castor ou Pollux, um dos dois grandes cavalos da
raça shire da fazenda dos Dawson.
A luz dos Signos iluminou mais ao alto e o menino
pôde avistar o Velho George, agasalhado em uma capa
impermeabilizada, montado nas costas do cavalo
gigantesco.
― Por aqui, Will. Pelas águas, antes que a correnteza
aumente demais. Temos um trabalho a fazer. Venha!
Ele nunca ouvira o som exigente de Velho George
antes; este era o Ancião, não o amável e velho ajudante da
fazenda. Inclinado contra o pescoço do cavalo, o homem o
instigou para mais perto através das águas. — Aproxime-se,
chegue perto, Pollux. — E o grande Pollux bufou a nuvem de
vapor através de suas largas narinas e deu passos firmes
adiante, de modo que Will fosse capaz de cambalear pelo
rio da estrada e agarrar suas pernas longas como árvores. A
água atingia quase a altura das coxas dele, mas estava tão
molhado por causa da chuva que isso não fazia muita
diferença. Não havia sela sobre o grande cavalo, apenas um
cobertor ensopado; no entanto, com uma força
impressionante, Velho George inclinou-se para baixo e
puxou a mão do menino que, com muito esforço, conseguiu
subir. A luz dos Signos afivelados em seu pulso não
fraquejou enquanto se virou e se contorceu, antes
permaneceu direcionada firmemente para o caminho que
deveria tomar.
Will escorregava e deslizava sobre as costas largas do
cavalo, grandes demais para que colocasse uma perna de
cada lado. George o puxou para a frente, onde conseguiria
se sentar melhor, acomodado sobre o enorme pescoço
curvado. — Os ombros de Polly já suportaram pesos
maiores que o seu — gritou o homem no ouvido de Will. Em
seguida, eles balançavam para a frente enquanto o cavalo
cavalgava novamente, espalhando água pelo crescente
riacho, para longe das gralhas do bosque, para longe da
casa dos Stanton.
— Aonde estamos indo? — gritou Will, olhando
temerosamente para a escuridão; não conseguia enxergar
nada, somente o rodamoinho de água sob a luz dos Signos.
— Nós vamos incitar a Caçada — soou a voz falha em
seus ouvidos.
— A Caçada? Que Caçada? George, eu preciso
encontrar Mary, eles estão com a Mary, em algum lugar. E
eu perdi o Paul de vista.
— Nós precisamos incitar a Caçada — enfatizou a voz
firme atrás dele. — Eu vi Paul, ele está seguro e a caminho
de casa agora. Quanto a Mary, você a encontrará na
ocasião oportuna. É hora do Caçador, Will; a égua branca
deve encontrar o Caçador, e você deve levá-la até lá. Esta é
a ordem das coisas, você se esqueceu disto. O rio está se
aproximando do vale, e a égua branca deve encontrar o
Caçador. E, então, veremos o que veremos. Temos um
trabalho para realizar, Will.
A chuva os açoitava, e em algum lugar distante soou
o estrondo de um trovão na noite que se aproximava,
enquanto o enorme Pollux, o cavalo da raça shire, corria
pacientemente respingando a água através do crescente rio
marrom que havia sido a Trilha do Vale do Caçador.
Era impossível dizer onde estavam. O vento
aumentava, e Will podia ouvir os sons das árvores
balançando acima da pisada firme das patas de Pollux.
Poucas luzes eram vistas no vilarejo; provavelmente, a
energia elétrica continuava cortada, talvez acidentalmente
ou pela atuação das Trevas. De qualquer maneira, a maioria
das pessoas daquela parte do vilarejo ainda estava no
Solar.
— Onde está Merriman? — gritou Will através do ruído
alto da chuva.
— No Solar — George gritou em seus ouvidos. — Com
o fazendeiro. Sitiados.
— Você quer dizer que eles estão presos? — A voz de
Will soava aguda, pelo temor.
Velho George respondeu, sussurrando, quase
inaudível: — Eles estão de guarda, de modo que possamos
trabalhar.
E a correnteza os mantém ocupados também. Olhe
para baixo, garoto.
No revolver das águas, a luz dos Signos revelava
improváveis objetos boiando por lá: uma cesta de vime,
várias caixas de papelão se desintegrando, uma vela
vermelha, emaranhados de fitas. De repente, Will
reconheceu uma das fitas, uma com motivo xadrez roxo e
amarelo, semelhante à que Mary cuidadosamente retirou
de um embrulho e enrolou para guardar no dia do Natal. Ela
era muito boa em estocar coisas, como um esquilo, e
aquela fita tinha ido para o estoque da menina.
— Aquelas coisas são da minha casa, George!
— Tem correnteza por ali também — avisou o velho.
— A terra está baixa. Mesmo assim, não tem perigo, fique
calmo. É apenas água e lama.
Will sabia que o homem estava certo, mas
novamente ele gostaria de ver por si mesmo. Certamente,
as águas continuariam apressadas, movendo móveis,
tapetes, arrastando livros e tudo que pudesse ser movido.
Estes objetos boiando devem ter sido arrastados antes que
alguém percebesse que a água estava na realidade
carregando as coisas...
Pollux tropeçou pela primeira vez, e Will se agarrou à
crina molhada; por um momento, ele quase escorregou,
mas conseguiu se restabelecer sem problemas. George
deixou escapar um suspiro de alívio, e o grande cavalo
resfolegou e bufou. O menino podia avistar poucas e fracas
luzes que surgiam das casas maiores nos terrenos altos, no
final do vilarejo; isto significava que eles estavam se
aproximando da Câmara dos Comuns. E aquilo ainda era a
Câmara e não um lago.
Alguma coisa estava mudando. Will piscou. A água
parecia muito distante, mais difícil de ver. Então, ele
percebeu que a luz dos Signos em seu pulso estava
enfraquecendo, esvaecendo para o nada; em pouco tempo,
eles se encontravam na escuridão. Tão logo todas as luzes
se extinguiram, Velho George falou suavemente: — Ôah,
Polly. — O grande cavalo shire parou, ficando ali sentindo as
águas ondulando-se por suas pernas.
George informou: — Devo deixá-lo aqui, Will.
— Ah — disse ele, sentindo-se abandonado.
— Tenho uma única instrução — disse Velho George.
— Leve a égua branca até o Caçador. Isto acontecerá
se não tiver problema. E existem dois pequenos conselhos
para que se mantenha longe deles. O primeiro: você
encontrará luz suficiente que lhe permitirá enxergar, se
contar até cem depois que eu partir. O segundo: lembre-se
do que já sabe, águas correntes são livre da Magia. — Ele
deu um tapinha reconfortante no ombro do menino. —
Coloque os Signos ao redor dos quadris novamente — disse
ele — e desça.
Ao descer do animal, o menino percebeu ainda mais o
couro molhado; descer era mais difícil do que montar o
cavalo e Pollux era tão alto que Will esparramou água
quando tocou o chão, pesado como um tijolo caindo. Porém,
não sentia frio, embora a chuva continuasse caindo sobre
ele; as gotas, no entanto, eram mais suaves e, de certa
maneira, um tanto curiosas, pareciam protegê-lo de se
sentir gelado.
Velho George falou novamente: — Irei preparar a
Caçada — e sem mais palavras de despedida, posicionou
Pollux para cavalgar pelas águas na direção da Câmara e
partiu.
Will escalou com as mãos o banco de neve
acumulado do lado do rio que se formara na estrada,
procurou um lugar para ficar sem cair e começou a contar
até cem. Antes que chegasse a setenta, começou a
entender o que o Velho George queria dizer. Pouco a pouco,
o mundo escuro adquiriu uma luz tênue em si mesmo. Ele
conseguia enxergar tudo em volta: a água veloz, a neve
amontoada, as árvores abatidas; tudo em uma luz tênue
acinzentada como o alvorecer. E enquanto ele olhava ao
redor, confuso, alguma coisa flutuando passou no riacho
veloz, trazendo-lhe tanto assombro que quase caiu na
água.
Ele viu os chifres primeiro, virando-se
preguiçosamente de um lado para o outro, como se a
grande cabeça estivesse aquiescendo para si mesma.
Então, as cores vivas apareceram azuis, amarelas e
vermelhas, do mesmo jeito como as tinha visto na manhã
de Natal. Não conseguia ver os detalhes da face estranha:
os olhos como os de um pássaro, as orelhas empinadas de
um lobo. Mas tratava-se sem dúvida da cabeça de carnaval,
do presente inexplicável que o velho jamaicano havia
entregado para Stephen para que lhe fosse enviado — seu
bem mais precioso no mundo.
Will deixou escapar um ruído como um soluço e
inclinou-se desesperadamente para a frente, para agarrar o
objeto antes que a água o carregasse para fora de seu
alcance; mas escorregou quando pulou e, assim que
recuperou o equilíbrio, a grotesca cabeça já estava boiando
longe de sua vista. Will começou a correr ao longo do banco
de neve; era uma coisa dos Anciãos, de Stephen, e o havia
perdido; ele precisava a todo custo recuperá-la. Mas a
lembrança o segurou no meio da passada e ele parou. — A
segunda coisa - Velho George avisara: — lembre-se que
águas correntes são livres da Magia. — A cabeça estava em
movimento na água, algo evidente demais. Assim, pelo
tempo que permanecesse por ali, ninguém poderá danificá-
la ou usá-la para fins errados.
Relutantemente, Will tirou isso da cabeça. A enorme
Câmara dos Comuns se estendia diante dele, iluminada por
si mesma com uma luz tênue e estranha. Nada se movia.
Mesmo o gado que normalmente pastava por lá durante o
ano, surgindo de alto abaixo de vários lugares nos dias
enevoados, como fantasmas sólidos, encontrava-se agora
protegido nas fazendas, retirado da neve. Will continuou
andando cautelosamente. Então, o ruído de águas que há
tempos soava em seus ouvidos começou a mudar, ficando
mais alto e, diante dele, a enxurrada que enchia a Trilha do
Vale do Caçador curvou-se para o lado para se juntar ao
minúsculo riacho local que havia aumentado tornando-se
um rio espumoso que corria pela Câmara e adiante. A
estrada que se tornara um rio fluía desobstruída, sólida e
reluzente; Will achava que o Velho George tivesse partido
por aquele caminho. Ele teria gostado de tomar o rumo
daquela estrada também, mas pressentiu que deveria
permanecer com o rio; por meio do super-sentido dos
Anciãos, ele sabia que aquelas águas lhe mostrariam como
levar a égua branca até o Caçador.
Mas quem era o Caçador e onde estava a égua
branca? Will avançou cautelosamente ao longo do banco de
neve cheio de destroços que margeava o novo riacho que
aumentara de tamanho. Salgueiros enfileiravam-se ao
longo das águas, atarracados e decepados. Então,
repentinamente, fora da fileira escura das árvores do outro
lado do riacho, uma forma branca saltou. Surgiu uma luz
prateada, na escuridão que não estava tão escura, e,
jorrando a neve molhada, a grande égua branca da Luz se
erguia diante de Will; a respiração do animal nublava ao
redor as gotas de chuva. Era alta como uma árvore e sua
crina se agitava de forma indomável com o vento.
Will a tocou, gentilmente. — Vai me carregar? —
perguntou ele, na Linguagem Antiga. — Como já fez antes?
O vento o açoitava enquanto ele falava, e luminosos
relâmpagos cortavam o céu de uma extremidade a outra,
mais próximos do que antes. A égua branca estremeceu,
sacudindo a cabeça para cima. Mas relaxou novamente,
quase no mesmo instante, e Will também sentiu
instintivamente que a tempestade que se formava não era
obra das Trevas. Era esperado. Fazia parte do que deveria
acontecer.
A Luz, estava se rebelando, antes que as Trevas
pudessem se rebelar.
Ele se assegurou de que os Signos estivessem firmes
em seu cinto e, em seguida, assim como antes, estendeu
seus dedos ao vento, alcançando a longa e espessa crina
branca. No mesmo instante, sua cabeça girou atordoada, e
ouviu bem claro, embora distante, a mesma música como
um sino que o tentava, a mesma frase que tocava seu
coração, até que um grande solavanco fez o mundo girar e
a música desapareceu; Will já se encontrava sentado sobre
a égua branca, alto entre os salgueiros.
Agora, os relâmpagos reluziam pelo céu estrondoso.
Os músculos das costas magníficas da égua ficaram tensos
e Will se agarrou à longa crina enquanto o animal cavalgava
pela Câmara, para longe dos outeirinhos e barrancos de
neve; seus cascos esfolavam a superfície para fazer jorrar
as lascas de gelo. Através da velocidade do vento, pensava
Will enquanto se segurava firme no pescoço arqueado da
égua, ele podia ouvir um grito estranho e alto, como o som
de gansos em migração voando nas alturas. O som parecia
arquear ao lado dele e continuar adiante, extinguindo-se
fora de alcance.
A égua branca saltou alto; Will se segurou ainda mais
enquanto eles saltavam sobre as sebes, estradas, muros,
tudo o que surgisse na neve derretida. Em seguida, um
novo ruído soou mais alto que o vento ou trovão em seus
ouvidos, e o menino avistou um espelho de águas agitadas
e cintilantes adiante e soube que haviam chegado ao
Tâmisa.
O rio estava mais largo do que antes. Por mais de
uma semana, suas águas tinham sido canalizadas e
estreitadas pelas paredes de gelo da neve que se
projetavam pelo caminho; mas, naquele momento, ele
havia sido libertado e espumava e rugia com enormes
pedaços de neve e gelo rolando por ele como icebergs. Não
era um rio, era a fúria das águas sibilando e uivando. Aquilo
não era racional. Enquanto olhava, Will foi atemorizado pelo
Tâmisa como nunca havia sido; era tão violento quanto algo
vindo das Trevas, fora de seu conhecimento ou controle.
Porém, ele sabia que não se tratava de algo das Trevas,
mas algo além da Luz e das Trevas, uma das coisas antigas,
do início do Tempo. As coisas antigas: fogo, água, pedra...
madeira e depois, do início dos homens, bronze e ferro. O
rio estava livre, e seu curso prosseguia segundo sua própria
vontade. — O rio deve tomar o vale... — havia dito
Merriman.
A égua branca parou irresoluta às margens das águas
bravias e frias e em seguida irrompeu adiante e saltou.
Somente quando se ergueram do rio agitado foi que Will
avistou a ilha, uma ilha onde ninguém havia ido antes
naquela volumosa enxurrada, dividida por canais estranhos
e reluzentes. Pensou, enquanto o animal se sacudia na terra
novamente entre as pouquíssimas árvores escuras: era de
fato um morro, um pedaço de terra arrancado pela água.
De repente, ele soube claramente que se depararia com um
grande perigo naquele lugar. Tratava-se do lugar de sua
provação, a ilha que não era uma ilha. Mais uma vez, ele
olhou para o céu e em silêncio e desesperadamente clamou
por Merriman, mas Merriman não apareceu, e nenhuma
palavra ou sinal da parte dele surgiu na mente de Will.
A tempestade não tinha começado ainda e o vento
diminuíra um pouco; o barulho do rio soava mais alto do
que todos os outros. A égua branca curvou seu longo
pescoço e Will desceu com dificuldade.
Através da neve amontoada, algumas vezes dura
como gelo e outras vezes macia o suficiente para afundá-lo,
ele partiu para explorar sua estranha ilha. O menino achava
que o morro tinha forma circular, mas seu formato era
como um ovo e seu ponto mais alto ficava naquela
extremidade onde se encontrava a égua branca. Algumas
árvores cresciam em volta do sopé; além delas havia uma
encosta aberta, coberta pela neve, e acima desta alguns
arbustos desbastados dominados por uma única faia antiga
sulcada pelo tempo. Afastado da neve, aos pés de uma
árvore enorme, e principalmente surpreendente, quatro
riachos desciam pela colina da ilha, dividindo-a em quatro
quartos. A égua branca continuava imóvel. Trovões rugiam
pelo céu bruxuleante. Depois, Will subiu até a velha faia e
ficou observando a espuma mais próxima debaixo de um
enorme bloco de neve. Então, o canto começou.
Era sem palavras e soava no vento: um resmungo
fraco e agudo com compassos ou melodia indefinida. Vinha
de muito longe e não era agradável de ouvir. Mas o som o
manteve transfixado, arrancando seus pensamentos da
direção que tomava, tirando sua atenção de tudo, menos
da contemplação daquilo que poderia estar próximo de
acontecer. Will sentia crescer raízes em seus pés, como as
árvores acima dele. Enquanto ouvia o canto, avistou o
graveto de um ramo baixo da faia, perto de sua cabeça que
parecia, sem qualquer razão, totalmente fascinada a ponto
de ser incapaz de fazer qualquer coisa além de olhar para
aquele pedacinho de árvore, como se contivesse o mundo
inteiro. Ele o fitou por muito tempo e seus olhos se moviam
repetida e gradualmente pelo minúsculo graveto, o que o
fazia sentir como se vários meses tivessem passado,
enquanto o canto estranho e alto continuava a soar desde o
início dos céus. Então, repentinamente, parou, e ele foi
deixado, atordoado, quase tocando com seu nariz o graveto
tão comum de uma faia.
Deste modo, ele soube que as Trevas tinham seus
próprios meios para colocar um Ancião fora do Tempo por
algum momento, caso precisassem de algum momento
para concluir sua própria magia. Pois diante dele, perto do
tronco da enorme faia, encontrava-se um homem que
parecia ser Hawkin, embora na idade do Andarilho. Will
sentia que olhava para dois homens em um. Hawkin ainda
estava vestido com seu casaco verde de veludo que ainda
mantinha a aparência de novo, com o toque de uma renda
no pescoço. Mas a figura dentro do casaco não era mais
hábil e ágil; era menor, encurvada e encolhida pela idade. E
o rosto estava enrugado e envelhecido sob os longos e
cacheados cabelos grisalhos; os séculos que açoitaram
Hawkin deixaram apenas seus olhos cintilantes e atentos
inalterados. E aqueles olhos fitavam Will agora com fria
hostilidade, através do monte de neve.
— Sua irmã está aqui — disse Hawkin.
Will não pôde se conter e olhou rapidamente ao redor
da ilha. Mas estava vazia como antes.
Ele disse friamente: — Ela não está aqui. Você não vai
me convencer com truques tolos como este.
Os olhos de Hawkin se estreitaram e ele sibilou: —
Você é arrogante. Você não vê tudo o que deve ser
conhecido no mundo com seu dom, Ancião, nem seus
mestres. Sua irmã Mary está aqui, neste lugar, embora não
tenha permissão para vê-la. Trata-se de um encontro
apenas para a barganha que meu senhor, o Cavaleiro, fará.
Sua irmã pelos Signos. Você não tem muita escolha.
Pessoas como vocês são boas em arriscar a vida dos
outros... — a boca velha e cheia de amargura curvara-se
com desdém — mas eu não acho que Will Stanton
apreciaria a visão da morte de sua irmã.
Will respondeu: — Eu não a vejo. Eu ainda não
acredito que ela esteja aqui.
Olhando-o, Hawkin disse ao ar vazio: — Mestre?
De repente, o canto sem palavras começou a soar
novamente, levando Will de volta à lenta contemplação que
era quente e relaxante como o sol de verão, mas ao mesmo
tempo horrível no controle sutil de sua mente. E o fazia
mudar enquanto ouvia a canção; fazia-o esquecer a tensão
de lutar pela Luz e o submergia, nesta hora, na observação
do modo como as sombras e o vazio desenhavam alguns
traços sobre o caminho de neve perto de seus pés. Ele
continuou leve e relaxado, olhando de um ponto de gelo
branco aqui para um buraco escuro ali, e o canto ressoava
em seus ouvidos como o vento através de tinidos em uma
casa desmoronada.
E novamente parou, e não se ouvia mais nada, e Will
viu com espanto, como um frio repentino, que ele olhava
não para o desenho de meras sombras sobre a neve, mas
para linhas e curvas do rosto de sua irmã Mary. Lã estava
ela sobre a neve, vestida com as mesmas roupas que a viu
pela última vez: viva e ilesa, mas olhando-o lividamente
sem qualquer sinal de que o reconhecia ou sabia onde
estava. De fato, Will pensava com tristeza, ele também não
sabia seu paradeiro, pois embora lhe fosse mostrada a
aparência da menina, era improvável que Mary estivesse ali
deitada sobre a neve. Moveu-se para tocá-la e, conforme já
esperava, ela desapareceu completamente, restando
apenas as sombras pairando na neve como antes.
— Você pode ver — disse Hawkin, imóvel ao lado da
faia. — Existem coisas que as Trevas podem fazer, muitas
coisas, sobre as quais você e seus mestres não têm
nenhum controle.
— Isto é bem óbvio — disse Will. — De outra forma,
não haveria uma coisa como as Trevas, haveria? Antes nós
apenas lhe diríamos para ir embora.
Hawkin sorriu e disse baixinho: — Mas elas nunca irão
embora. Antes que isto aconteça, elas quebrarão toda
resistência até virar nada. E as Trevas sempre virão, meu
caro amigo, e sempre vencerão. Como pode ver, nós temos
sua irmã. Agora, dê-me os Signos.
— Dá-los a você? — disse Will com desprezo. — Para
um verme que se arrastou para o outro lado? Nunca!
Ele viu os punhos do homenzinho se fecharem
brevemente na bainha do casaco verde de veludo. Mas era
o velho, o velho Hawkin que não seria abatido; ele tinha
controle sobre si mesmo agora que não era mais o errante
Andarilho, mas parte das Trevas. Havia apenas um leve
lampejo de fúria na voz. — Garoto, você tratará sim com o
mensageiro das Trevas. Senão, poderá atrair sobre si
mesmo mais do que desejará ver.
O céu reluziu e rugiu, iluminando tenuemente a
crescente água escura ao redor, a árvore enorme situada
no ponto mais alto da minúscula ilha e a figura encurvada
vestida com o casaco verde ao lado de seu tronco. Will
replicou:
— Você é criatura das Trevas. Você optou pela traição.
Você não é nada. Eu não tratarei nada com você.
O rosto de Hawkin se contorcia enquanto ele fitava
venenosamente o menino; em seguida, olhou na direção da
escuridão, para a Câmara dos Comuns ali vazia e gritou:
— Mestre! — Depois novamente, com um grito de
raiva desta vez: — Mestre!
Will permaneceu tranqüilo, aguardando. Enquanto
isso, avistou a égua branca da Luz, na margem da ilha,
quase invisível na neve. Ela ergueu a cabeça e cheirou o ar,
resfolegando suavemente; depois olhou na direção de Will
como se estivesse se comunicando e, em seguida, deu
meia-volta na direção de onde vieram e galopou para longe.
Em segundos, alguma coisa aconteceu. Nada se
ouvia; o silêncio era rompido somente pela correnteza do
rio e o resmungo da iminente tempestade. O que surgiu
veio totalmente silencioso. Era enorme, uma coluna de
névoa negra como um tornado, um rodamoinho em incrível
velocidade emergindo entre a terra e o céu. Em ambas as
extremidades, parecia largo e sólido, mas o centro tremia,
crescia alongado e depois aumentava sua espessura
novamente; ele se agitava de um lado para o outro
conforme a coisa se aproximava em um tipo de dança
macabra. Aquele espectro negro era um buraco no mundo,
uma peça do vazio eterno das Trevas que era visível. Ao
chegar mais perto da ilha, curvando-se e ziguezagueando,
Will não conseguiu evitar e retrocedeu alguns passos; cada
parte de seu corpo gritava silenciosamente em profundo
alarme.
O pilar negro balançava diante dele, cobrindo toda a
ilha. A névoa girando silenciosa não se alterava, mas se
dividia, e dentro dela encontrava-se o Cavaleiro Negro. Ele
permaneceu na névoa agitando os braços e meneando a
cabeça, depois sorriu para Will: um sorriso frio, infeliz,
acompanhado das sinistras sobrancelhas franzidas em sua
face. Ele se vestia novamente de preto, mas as roupas
eram inesperadamente modernas — um pesado casaco
preto de couro de jumento e calças pretas rústicas de brim.
Sem qualquer indício no sorriso gelado, ele se moveu
um pouco para o lado e, saindo de dentro da névoa escura
como serpente da coluna, surgia seu cavalo, a grande besta
negra de olhos ferozes. Montada sobre ele estava Mary.
— Olá, Will — disse Mary alegremente. Will olhou para
a menina. — Olá.
— Suponho que esteja procurando por mim — disse
Mary. — Espero que ninguém tenha ficado preocupado. Eu
apenas saí para cavalgar um pouco, apenas por um ou dois
minutos. Quero dizer, quando fui procurar Max, encontrei o
sr. Mitothin e achei que o papai havia pedido para ele me
procurar; bem, obviamente estaria tudo bem. E foi tão bom
sair para cavalgar. É um cavalo incrível... e faz um dia tão
agradável agora...
O trovão retumbou atrás da massa de nuvem negra
acinzentada. Will se mexeu com tristeza. O Cavaleiro,
olhando-o atentamente, disse em voz alta: — Aqui estão
algumas pedras de açúcar para o cavalo, Mary. Eu acho que
ele merece, não acha? — E estendeu as mãos, vazias.
— Ah, obrigada — disse Mary ansiosamente. Ela se
inclinou sobre o pescoço do animal e pegou a açúcar
imaginário das mãos do Cavaleiro. Em seguida, estendeu
as pedrinhas ao lado da boca do garanhão, e o animal
lambeu rapidamente sua palma. Mary sorriu radiante. —
Isso mesmo — disse ela. — Isso não é bom?
O Cavaleiro Negro ainda perscrutava o menino; seu
sorriso se estendia mais um pouco. Ele abriu a palma da
mão zombando de Mary, e Will avistou uma caixinha
branca, feita de um vidro translúcido de gelo, com símbolos
rúnicos gravados na tampa.
— Aqui eu a tenho, Ancião — disse o Cavaleiro, sua
voz nasal e acentuada soava suavemente triunfante. —
Dominada pelas marcas do Encantamento Antigo de Lir,
que foi escrito há muito tempo em certo anel e depois
perdido. Você deveria ter olhado o anel de sua mãe mais de
perto... você e aquele artesão simplório do seu pai e Lyon,
seu mestre tão relapso. Relapso... sob este encantamento,
eu tenho sua irmã presa por magia totêmica, e você mesmo
preso nela também, impotente para socorrê-la. Veja!
Ele moveu rapidamente a caixinha aberta, e Will viu
em seu interior uma peça de madeira delicadamente
esculpida, enrolada com uma frágil linha de ouro.
Consternado, ele se lembrou do único ornamento que
estivera faltando da coleção talhada pelo fazendeiro
Dawson e presenteada por ele à família Stanton lembrou-se
também do cabelo dourado que o sr. Mitothin, o visitante de
seu pai, tinha por casual delicadeza retirado da manga da
roupa de Mary.
— Um signo de nascimento e um cabelo são totens
excelentes — disse o Cavaleiro. — Nos dias antigos, quando
éramos menos sofisticados, era possível, é claro, trabalhar
a magia mesmo por meio do chão que os pés de um
homem haviam pisado.
— Ou por onde sua sombra tivesse passado —
acrescentou Will.
— Mas as Trevas não perseguem as sombras — disse
o Cavaleiro suavemente.
— E um Ancião não tem signo de nascimento — disse
Will.
Ele viu um lampejo de incerteza sobre o rosto
determinado. O Cavaleiro fechou a caixinha branca e a
guardou em seu bolso. — Bobagem — declarou lacônico.
Will olhou pensativo para ele e disse: — Os mestres
da Luz não fazem nada sem um motivo, Cavaleiro. Embora
o motivo não seja revelado durante anos e anos. Hã onze
anos, o fazendeiro Dawson da Luz esculpiu certo signo para
mim, no meu nascimento... e se ele tivesse feito o signo
com a letra do meu nome, como era a tradição, então
talvez você pudesse usá-lo para me prender em seu seus
poderes. Mas ele o fez no Signo da Luz, um círculo cortado
por uma cruz. E como você sabe muito bem, as Trevas não
podem usar nada naquele formato para seu próprio
benefício. É proibido.
Ele olhava para o Cavaleiro e continuou dizendo: —
Eu acho que você está blefando comigo novamente, sr.
Mitothin. Sr. Mitothin, Cavaleiro Negro do cavalo negro.
O Cavaleiro o olhou com ódio. — Porém, você
continua impotente — afirmou. — Pois eu tenho sua irmã. E
não há nada que possa fazer para salvá-la, exceto
entregando-me os Signos. — A maldade brilhava de novo
em seus olhos. — Seu grande e nobre Livro lhe ensinou que
eu não posso ferir aqueles que têm o sangue de um
Ancião... mas olhe para ela. Ela fará qualquer coisa que eu
sugerir. Mesmo pular neste volumoso Tâmisa. Existem
partes do ofício que pessoas como você negligenciam,
sabe? É tão simples persuadir as pessoas a certas situações
nas quais elas mesmos se acidentam. Como sua mãe, por
exemplo, tão estabanada.
Ele sorriu novamente para Will que o olhou de volta,
com ódio; em seguida, o menino fitou a face semi-acordada
e feliz de Mary e se condoeu por ela se encontrar
naquela posição. Ele pensava: e tudo porque ela é minha
irmã. Tudo por minha causa.
Mas uma voz silenciosa ecoou em sua mente: — Não
por sua causa. Por causa da Luz. Por causa de tudo o que
deve acontecer, para impedir que as Trevas se rebelem. —
E, numa onda de alegria, Will soube que não estava mais
sozinho, e visto que o Cavaleiro estava ali, Merriman estaria
perto novamente, livre para ajudá-lo se fosse necessário.
O Cavaleiro estendeu a mão. — Chegou a hora para a
barganha, Will Stanton. Dê-me os Signos.
Will tomou o fôlego mais profundo de sua vida e o
expirou lentamente, para dizer: — Não.
Assombro era uma emoção que o Cavaleiro Negro
tinha esquecido há muito tempo. Os olhos azuis
penetrantes fitavam Will em total incredulidade. — Mas
você sabe o que eu farei?
— Sim — respondeu Will. — Eu sei. Mas não lhe darei
os Signos.
Por um longo momento, o Cavaleiro olhou-o, agora
longe do enorme pilar negro de névoa no qual havia
permanecido; a incredulidade e a raiva em sua face foram
misturadas com um tipo de respeito maligno. Então, ele se
virou para o cavalo negro e para Mary e clamou algumas
palavras em uma linguagem que Will poderia imaginar, pelo
frio infligido aos seus ossos, e que deveria ser o discurso de
encantamento das Trevas, raramente usado em voz alta. O
cavalo sacudiu a cabeça, revelando dentes brancos, e
correu adiante, com a feliz e descuidada Mary agarrada à
sua crina e gorgolejando numa gargalhada. O animal
cavalgou até o banco de neve que margeava o rio e parou.
Will segurou firmemente os Signos em seu cinto,
agoniado pelo risco que estava assumindo, e com todas as
possibilidades invocou o poder da Luz para que viesse
socorrê-lo.
O cavalo negro relinchou, emitindo um som agudo, e
se ergueu no ar sobre o Tâmisa. Na metade de sua subida,
ele se contorceu estranhamente, empinando no ar, e Mary
grilou aterrorizada, agarrando-se loucamente no pescoço do
animal. Mas logo perdeu o equilíbrio e caiu. Will pensou que
iria desmaiar quando a viu rodopiando no ar: o risco que
assumira acabaria em desastre; mas, em vez de cair no rio,
ela tombou na neve molhada e macia às suas margens. O
Cavaleiro Negro praguejou brutalmente, bufando. Ele nunca
a alcançou. Antes que chegasse a dar meio passo, um
enorme raio de um relâmpago surgiu na tempestade que se
amontoava agora quase no alto, e um estrondo gigantesco
de um trovão se fez ouvir além do raio e do estrondo, um
grande risco luminoso cortou a ilha na direção de Mary,
alcançando a menina de modo que em um instante ela não
se encontrava mais lá: havia sido levada para longe, em
segurança: Will dificilmente conseguiu perceber a forma
esbelta de Merriman, vestido com capa e capuz sobre a
égua branca da Luz, e os cabelos louros de Mary voando
onde ele a havia mantido era segurança. Em seguida, a
tempestade começou, e todo o mundo girou flamejante em
volta de sua cabeça.
A terra balançou. E, por um instante, Will avistou o
Castelo de Windsor delineado em tom escuro contra o céu
limpo. Relâmpagos cegavam seus olhos, os trovões
retumbavam em sua cabeça. Então, através do canto em
seus atordoados ouvidos, escutou um rangido e um estalo
bem próximo dali. O menino se virou. Atrás dele, a enorme
faia estava habilidosamente partida ao meio, queimando
em chamas imensas, e ele percebeu com espanto que a
impetuosa corrente dos quatro riachos da ilha diminuía
cada vez mais, minguando até não haver mais nada. Olhou
temeroso para a coluna negra das Trevas, mas ela já não se
encontrava em lugar nenhum onde pudesse ser vista na
terrível tempestade, e tudo o mais de estranho que estava
acontecendo levou o pensamento em relação às Trevas
para bem longe da mente de Will.
Pois não foi somente as árvores que se partiram e
racharam. A própria ilha estava mudando, despedaçando-se
e afundando no rio. Will olhava sem fala, mantendo-se
agora sobre a borda de uma terra coberta por um monte de
neve deixada pelos riachos desaparecidos, enquanto, à sua
volta, a neve e a terra deslizavam e se embolavam no
revolto Tâmisa. Acima dele, avistou a coisa mais estranha
de todas. Algo estava emergindo da ilha, enquanto a terra e
a neve se desmanchavam. Logo apareceu, do que havia
sido o pico mais alto da ilha, o formato rústico da cabeça de
um cervo, chifres que se erguiam alto. Era dourada,
reluzindo mesmo sob uma luz tênue. Outras partes ficaram
visíveis; Will podia ver todo o cervo agora, uma imagem
dourada e bonita, saltitante. Então, surgiu um curioso
pedestal curvado sobre o qual o objeto ficou, como se para
saltar para longe; depois, atrás dele, uma forma horizontal
muito longa, tão comprida quanto a ilha, ergueu-se no outro
lado em outra altura, um ponto dourado reluzente, erguido
desta vez por um tipo de rolo. De repente, Will
compreendeu que estava olhando para um barco. O
pedestal era sua proa, e o cervo sua carranca.
Estarrecido, o menino avançou naquela direção, e
imperceptivelmente o rio se deslocou, até que não restava
mais nada da ilha além do enorme barco em um último
círculo de terra, com um último monte de neve ao redor.
Will ficou observando. Nunca tinha visto um barco como
aquele. As madeiras das quais foi construído sobrepunham-
se umas às outras como as pranchas de uma cerca,
pesadas e largas; parecia feito de carvalho. Mas não se via
o mastro. No lugar, encontravam-se espaços para as
diversas fileiras de remadores, por todo o comprimento da
embarcação. No centro havia um tipo de cabine que fazia o
barco quase parecer com a Arca de Noé. Não se tratava de
uma estrutura concluída; as laterais pareciam ter sido
removidas, deixando as vigas dos cantos e o teto como um
dossel. E dentro, embaixo do dossel, encontrava-se um rei
deitado.
Will recuou ao avistá-lo. A figura masculina estava
muito quieta, com uma espada e um escudo depositados ao
lado, e mantinha um tesouro empilhado ao redor em
volumosas quantidades reluzentes. O homem não portava
uma coroa. Em vez disso, um elmo enorme com gravações
cobria a cabeça e a maior parte de seu rosto, encrespado
por uma pesada imagem de prata formada pelo longo
focinho de um animal que Will imaginava ser um javali
selvagem. Mas, mesmo sem a coroa, era evidente que se
tratava do corpo de um rei. Nenhum homem inferior
poderia merecer as louças de prata e sacos de jóias, o
grande escudo de bronze e ferro, a ornamentada bainha, os
chifres de beber reluzentes como ouro e as pilhas de
adornos. Num impulso Will se ajoelhou na neve e abaixou a
cabeça em reverência. Quando olhou para cima
novamente, recompondo-se, avistou sobre a amurada do
barco algo que não tinha percebido antes.
O rei segurava alguma coisa em suas mãos, mantidas
tranqüilamente cruzadas sobre seu peito. Era outro
ornamento, pequeno e cintilante. Assim que Will viu o
objeto de mais perto, ficou imóvel como uma pedra,
apoiando-se firmemente na extremidade mais alta do
barco. O ornamento encontrado nas mãos imóveis do rei
tinha o formato de um círculo quartejado por uma cruz,
produzido em vidro iridescente, gravado com serpentes,
enguias e peixes, ondas e nuvens e coisas do mar. E
chamavam silenciosamente por Will. Sem dúvida era o
Signo da Água: o último dos Seis Grandes Signos.
Will cambaleou para o lado do grande barco e
aproximou-se do rei. Precisava saber onde colocava os pés,
ou esmagaria os delicados trabalhos de couro gravados, as
vestes entrelaçadas e as jóias de ouro esmaltadas,
cloasonadas e filigranada. Por um momento, ele continuou
olhando para baixo, para a face pálida parcialmente
ocultada pelo elmo, e então estendeu a mão
reverencialmente para retirar o Signo. Mas ele teria que
tocar a mão do rei falecido, e ela estava mais fria do que
qualquer pedra. Will estremeceu e recuou, hesitante.
A voz de Merriman soou suave e próxima: — Não hã
necessidade de temê-lo.
Will engoliu seco. — Mas... ele está morto.
— Ele ficou aqui em seu solo sepulcral por mil e
quinhentos anos, esperando. Em qualquer outra noite do
ano, ele não estaria aqui, mas seria pó. Sim, Will, a
aparência dele é a da morte. O resto dele já se foi além do
Tempo, desde então.
— Mas ê errado tomar o tributo dos mortos.
— É o Signo. Se não fosse o Signo, e destinado a
você, o Descobridor dos Signos, ele não estaria aqui para
dá-lo a você. Pegue-o.
Assim, Will inclinou-se pelo ataúde e pegou o Signo
da Água das mãos frias, quase apertadas, do morto, e, de
algum lugar distante, um murmúrio da música que lhe era
familiar sussurrou em seus ouvidos e logo desapareceu. O
menino voltou-se para a lateral do barco. Lá, ao lado,
estava Merriman, sentado sobre a égua branca; ele vestia
uma capa azul escura, com seu cabelo branco revolto
descoberto; as cavidades de seu rosto magro estavam
sombrias pela tensão, mas o regozijo brilhava em seus
olhos.
— Muito bem, Will — disse ele.
Will fitava o Signo em suas mãos. O resplendor do
objeto era causado pela iridiscência de uma madrepérola,
de todos os arco-íris; a luz dançava sobre o objeto enquanto
ele dançava sobre a água. — É lindo — disse o menino.
Bastante relutante, ele afrouxou a extremidade do cinto e
deslizou o Signo da Água para guardá-lo, para que
permanecesse próximo ao reluzente Signo de Fogo.
― Este é um dos mais antigos — informou Merriman.
— E o mais poderoso. Agora que o tem, eles perderam o
poder sobre Mary para sempre... o encantamento se foi.
Venha, nos precisamos partir.
A preocupação se acentuava na voz dele; ele havia
visto Will se agarrar bruscamente em uma viga quando o
barco enorme, de repente e inesperadamente, deu um
solavanco para um lado. A embarcação endireitou,
balançou um pouco, em seguida apontou na direção
oposta. Will viu, cambaleando para o lado, que o volume
das águas do Tâmisa tinha aumentado ainda mais enquanto
não estivera observando. A água batia ao redor do barco e
quase o fazia flutuar. O rei morto agora não descansaria
mais por muito tempo na terra que havia sido certa vez
uma ilha.
A égua empinou em sua direção, resfolegando uma
saudação, e, da mesma maneira como acontecia no
momento encantado em que ouvia aquela música
atordoante, Will foi erguido sobre o cavalo branco da Luz e
colocado à frente de Merriman. O barco inclinou e oscilou,
flutuando totalmente agora, e o cavalo branco saiu
rapidamente de seu caminho, permanecendo próximo dali,
observando; a espuma da água do rio rodeava suas pernas
robustas.
Rangendo e chacoalhando, o enorme barco deslizou
pelo volumoso Tâmisa. A embarcação era muito larga para
ser vencida; seu peso a mantinha firme mesmo sobre a
água revolta, pois já tinha encontrado o equilíbrio. Então, o
misterioso rei continuaria na dignidade imutável, entre suas
armas e reluzentes tributos; e Will teria o último lampejo da
face pálida como uma máscara, enquanto o grande barco
se afastava correnteza abaixo.
Will disse sobre os ombros: — Quem era ele?
Percebia-se um profundo respeito no rosto de
Merriman enquanto ele olhava o barco se afastando. — Um
rei inglês, da Era das Trevas. Eu acho que não usaremos seu
nome.
A Era das Trevas, um tempo sombrio para o mundo,
recebeu corretamente este nome quando os Cavaleiros
Negros cavalgavam sem obstáculo por nossa terra.
Somente os Anciãos e alguns poucos homens, nobres e
corajosos como este, mantiveram viva a Luz.
— E ele foi sepultado em um barco, como os Vikings.
— Will observava o brilho da luz do cervo dourado da
proa.
— Ele tinha uma parte Viking — disse Merriman. —
Havia três grandes barcos de sepultamento perto dessa sua
região do Tâmisa, no passado. Um foi escavado no último
século perto de Taplow e destruído no processo. Outro era
este barco da Luz, destinado a nunca ser encontrado pelos
homens. E o último era o maior dos barcos, do maior rei de
todos, e este eles nunca encontraram e talvez nunca
encontrem. Ele permanece em paz. — Merriman se
interrompeu abruptamente e, com um movimento de sua
mão, a égua branca se virou pronta para saltar para longe
do rio em direção ao sul.
Porém Will ainda se esforçava para observar o longo
barco, e alguma coisa de sua tensão parecia afetar tanto o
cavalo quanto o mestre. Eles pararam. Naquele momento,
um facho extraordinário de luz azul surgiu velozmente do
leste; não vinha do céu tempestuoso, mas de algum lugar
atrás da Câmara. E acertou o barco. Silenciosamente,
impetuosas chamas irromperam pelo rio volumoso e por
suas margens brancas e íngremes, e da proa até a popa do
barco do rei via-se delineado o fogo ardente. Will cedeu a
um choro sem palavras pelo choque, e a égua branca
mexeu-se perturbada, passando a pata na neve.
Atrás de Will, a voz profunda e forte de Merriman
dizia:
— Eles descontam o rancor que sentem, pois sabem
que é tarde demais. É muito fácil, agora e novamente,
predizer o que as Trevas farão.
Will disse: — Mas o rei e todas aquelas coisas lindas...
— Se o Cavaleiro parasse para pensar, Will, ele
saberia que seu ímpeto de maldade fez nada mais do que
criar um fim apropriado e digno para aquele grandioso
barco. Quando o pai de seu rei faleceu, ele foi colocado em
uma embarcação da mesma maneira, com seus pertences
mais esplêndidos ao redor, mas a nau não foi enterrada.
Não era assim que se fazia. Os homens do rei lançavam
fogo sobre o barco e o enviava queimando sozinho pelo
mar, uma pira extraordinária velejando. E isso, olhe, é o que
nosso rei do Último Signo está fazendo agora: velejando no
fogo e na água para seu longo descanso, descendo o maior
rio da Inglaterra, em direção ao mar.
— E que descanse em paz — disse Will suavemente,
deixando de olhar finalmente para as chamas ardentes.
Mas por um bom tempo depois disso, onde quer que
estivessem, ainda avistavam o resplendor do barco em
chamas iluminando uma parte do céu escuro e
tempestuoso.
A CAÇADA ARRASADORA

— Venha — disse Merriman —, não podemos perder


mais tempo! — A égua branca deu meia-volta tomando o
caminho do rio e empinou no ar, roçando a espuma da
água, para em seguida cruzar o Tâmisa para o lado onde
Buckinghamshire terminava e Berkshire começava. Saltou
numa velocidade desesperadora e ainda assim Merriman
continuou a instigá-la. Will sabia o motivo. Ele percebeu
num vislumbre através da movimentação da capa azul de
Merriman a grande coluna do tornado das Trevas, porém
maior do que antes, fazendo uma ponte entre o céu e a
terra um rodamoinho silencioso no brilho do barco em
chamas. E os seguia, movendo-se muito rápido.
O vento soprava fortemente do leste e o açoitava; a
capa movia-se ao redor de Will pela ação da ventania,
cercando-os como se ele e Merriman estivessem isolados
em uma grande tenda azul.
— Ele está em seu auge — gritou Merriman em seu
ouvido o mais alto possível, mas ainda quase inaudível em
vista do crescente uivo do vento. — Você tem os Seis
Signos, mas eles ainda não foram unidos uns com os
outros. Se as Trevas o pegarem agora, eles terão tudo de
que precisam para erguer seu poder. Neste momento eles
farão todo esforço para conseguir.
E continuaram galopando, passaram por casas, lojas
e por pessoas inconscientes da presença deles, lutando
contra a enxurrada; passaram por telhados, chaminés,
cercas vivas; cruzaram campos, árvores, mas nunca longe
do solo. A grande coluna negra os perseguia, na velocidade
do vento, e nela e através dela cavalgava o Cavaleiro Negro
montando seu cavalo de mandíbulas como fogo, instigando-
o com a espora atrás deles, e com os Senhores das Trevas
cavalgando ao seu ombro como uma nuvem escura em
rodamoinho.
A égua branca se ergueu novamente, e Will olhou
para baixo. Havia árvores por toda parte abaixo agora;
havia carvalhos e faias isolados e grandiosos nos campos
abertos, e bosques densos se dividiam pelos caminhos
longos e retos. Certamente eles galopavam em um
daqueles caminhos agora, depois dos pinheiros pesados de
neve, e saindo novamente pela terra descampada...
Relâmpagos cortavam o céu a esquerda de Will,
arremessando-se de nuvens enormes, e, em seu clarão, Will
pôde ver a massa escura do Castelo de Windsor surgindo
alto e próximo. Ele pensava: se aquele for o castelo,
devemos estar no Great Park.
Além disso, começava a sentir que não estavam mais
sozinhos. Já, por duas vezes, ouvira aquele grito estranho e
alto no céu, mas agora havia mais. Seres de sua espécie se
encontravam por ali, em algum lugar, no Parque todo
arborizado. E ele sentia ainda que a massa cinzenta do céu
não estava mais vazia e sem vida, mas povoada por
criaturas, nem das Trevas nem da Luz, movendo-se de um
lado para o outro, ajuntando-se e separando-se, detentores
de grande poder... A égua branca trotava sobre a neve
novamente; os cascos pisavam sobre montes de neve, neve
derretida e gelo, de maneira mais deliberada do que antes.
Ao mesmo tempo, Will percebeu que ela não mais
respondia aos comandos de Merriman, mas seguia um
profundo impulso próprio.
Relâmpagos iluminavam ao redor deles novamente, e
o céu rugia. Merriman disse em seus ouvidos: — Você
conhece o Carvalho de Heme?
— Sim, é claro — respondeu Will. Ele conhecia a lenda
local desde sua infância. — É onde estamos? O grande
carvalho no Grande Parque onde...
Ele engoliu seco. Como ele não pensou nisso? Por que
a Magia lhe ensinara tudo menos isto? Ele prosseguiu,
lentamente — onde se espera que Heme, o Caçador,
cavalgue na véspera da Décima Segunda Noite? — Então,
ele virou-se temerosamente para Merriman: — Heme?
— Irei preparar a Caçada — havia dito Velho George.
E Merriman confirmou: — É claro, hoje à noite, a Caçada
começa. E visto que você desempenhou bem sua parte,
hoje à noite, pela primeira vez em mais de mil anos, a
Caçada terá uma presa.
A égua branca diminuiu o passo, cheirando o ar. Os
ventos pareciam partir o céu ao meio; a lua crescente
navegava alta através das nuvens e desaparecia
novamente. Os relâmpagos dançavam em seis lugares ao
mesmo tempo, as nuvens rugiam e troavam. O pilar negro
das Trevas surgiu movendo-se rapidamente na direção
deles, depois parou, rodopiando e pairando entre o céu e a
terra.
Merriman disse: — Uma Velha Estrada cerca o Grande
Parque, o caminho através do Vale do Caçador. Eles levarão
certo tempo para encontrar os rastros depois disto.
Will se esforçava para ver adiante através da
escuridão. Na luz intermitente, conseguia identificar a
forma de um solitário carvalho estendendo os galhos
enormes de seu tronco extraordinariamente pequeno.
Diferente da maioria das árvores à vista, ele carregava a
maior quantidade de neve remanescente, e avistava-se
uma sombra ao lado de seu tronco, do tamanho de um
homem.
A égua branca avistou a sombra ao mesmo tempo.
Ela resfolegou e bateu as patas no chão.
Will disse para si mesmo, bem baixinho: — A égua
branca deve encontrar o Caçador...
Merriman tocou seu ombro e com desembaraço
deslizaram rapidamente para o solo. A égua inclinou a
cabeça, e Will colocou a mão sobre o pescoço firme e
lustroso do animal. - Vá, minha amiga — disse Merriman, e
a égua saiu trotando ansiosamente na direção do enorme e
solitário carvalho e da misteriosa sombra imóvel sob a
árvore frondosa. A criatura a quem pertencia aquela
sombra possuía imenso poder e Will estremeceu ao senti-lo.
A Lua recuou para trás das nuvens e por um tempo não
houve luz; na penumbra, eles não viam nada se mexer
embaixo da árvore. Subitamente, um som surgiu na
escuridão: o resmungo de saudação da égua branca.
Como se sobrepondo a uma melodia, um gemido
profundo soou das árvores ao lado deles; quando Will se
virou ao redor, a Lua surgiu clara novamente, e ele pôde
ver a enorme silhueta de Pollux, o cavalo shire da fazenda
dos Dawson, com Velho George montado sobre suas costas.
— Sua irmã já está em casa, garoto — disse Velho George.
Ela se perdeu, entende, adormeceu em um velho
celeiro e leve um sonho tão curioso que ela já está
esquecendo...
Will aquiesceu com gratidão e sorriu; entretanto,
olhava para a curiosa forma arredondada, escondida sob o
que a embrulhava, que George segurava diante dele. — O
que é isso? — Seu pescoço formigava só de se aproximar
daquilo, seja lá o que fosse.
Velho George não respondeu e se inclinou para baixo
na direção de Merriman. — Está tudo bem?
Tudo vai bem — disse Merriman. Ele estremeceu e
jogou sua capa ao redor do corpo. — Entregue-o para o
garoto.
Olhava atento para o menino com olhos profundos e
inescrutáveis, e Will, indagando-se, foi até a carroça e se
prontificou diante dos joelhos de George, olhando para
cima. Com um sorriso rápido e melancólico que parecia
mascarar uma grande tensão, o velho abaixou-lhe o fardo
misterioso. Era quase tão largo quanto o próprio garoto,
embora não tão pesado; estava embrulhado num saco.
Quando colocou suas mãos sobre o embrulho, soube
instantaneamente o que era. Não podia ser, pensava
incrédulo; qual seria o objetivo?
Um trovão retumbou novamente, ao redor.
Atrás dele, a voz de Merriman soou profunda nas
sombras: — Mas é claro que é. A água o trouxe em
segurança. Então, os Anciãos o retiraram das águas no
tempo apropriado.
— E agora — disse Velho George, sentado altaneiro
sobre o paciente Pollux — você deve levá-lo ao Caçador,
jovem Ancião.
Will engoliu seco, nervoso. Um Ancião não tinha nada
a temer no mundo, nada. Porém havia algo tão estranho e
bárbaro em relação àquela figura embaixo do gigantesco
carvalho, algo que fazia alguém se sentir desnecessário,
insignificante, pequeno...
Ele se endireitou. Desnecessário era a palavra errada,
em todo caso: ele tinha uma tarefa a cumprir. Erguendo seu
fardo como uma coisa normal, ele retirou o que lhe cobria, e
a cabeça sinistra de carnaval que era metade homem
metade animal emergiu tão suave e alegre como se tivesse
acabado de chegar de sua ilha distante. Os chifres
continuavam firmes e imponentes; Will percebeu que eles
tinham o mesmo formato dos chifres do cervo dourado, a
carranca do navio do rei morto. Segurando a máscara
diante de si, ele andou firmemente na direção da sombra
do imenso carvalho. Nas imediações da árvore, ele parou. E
podia ter um vislumbre da cor branca da égua, movendo-se
gentilmente em reconhecimento, e podia ver que ela já
tinha um cavaleiro. Mas era tudo o que avistava.
A figura sobre o animal se curvou na direção de Will.
Ele não via o rosto, apenas sentiu a máscara ser retirada de
suas mãos, que em seguida caíram ao lado do corpo como
se tivessem sido liberadas de um grande peso, embora a
cabeça, desde o começo, parecesse tão leve. Ele recuou.
De repente, a Lua surgiu navegando de trás de uma nuvem,
e por um momento seus olhos foram ofuscados quando
olhou diretamente para a luz fria e branca; logo passou, e a
égua branca se moveu para longe das sombras, mas a
iluminação tênue do céu alterou o perfil da figura montada
sobre seu dorso. Naquele momento, o cavaleiro
apresentava uma cabeça maior que a cabeça de um
homem e possuía os chifres de um cervo. A égua branca,
carregando aquele cervo-homem monstruoso, movia-se
inexoravelmente na direção de Will.
Ele ficou imóvel, esperando, até que o grande animal
se aproximasse; o focinho tocou gentilmente seu ombro,
somente uma vez, e pela última também. A figura do
Caçador se ergueu diante dele. A luz da Lua brilhava agora
clara sobre sua cabeça, e Will descobriu a si mesmo fitando
os olhos estranhos e fulvos, na tonalidade amarelo-
dourado, insondáveis como os olhos de um pássaro gigante.
Fitando os olhos do Caçador, ouviu do céu aquele estranho
grito começar novamente e, com dificuldade para se
lembrar de um encantamento, atraiu seu olhar para o lado
para poder ver adequadamente a cabeça, a enorme
máscara com chifres que acabara de entregar ao Caçador
para que a colocasse.
Mas a cabeça era real.
Os olhos dourados piscaram: um piscar de olhos
proposital dos cílios fortes de uma coruja; o rosto do
homem que os portava estava totalmente voltado para Will,
e a boca esculpida sobre a barba macia se separou em um
rápido sorriso. Aquela boca perturbava o menino; não era a
boca de um Ancião. Ela podia sorrir como um amigo, mas
havia outras expressões ao redor também. Onde no rosto
de Merriman continham marcas de tristeza e raiva, no do
Caçador dizia respeito à crueldade e a um impulso
impiedoso de vingança. De fato, ele era metade animal. Os
chifres negros de Heme se curvaram para cima diante de
Will; a luz da Lua cintilou sobre a textura aveludada, e o
Caçador gargalhou suavemente. Olhava para baixo, para
Will, com os olhos amarelados na face que não era mais
uma máscara, mas algo vivo, e, com a voz semelhante de
um sino tenor, disse: — Os Signos, Ancião, mostre-me os
Signos.
Sem tirar os olhos da figura altaneira, Will se
atrapalhou com a fivela e ergueu os seis círculos no alto sob
a luz do luar. O Caçador os examinou com o olhar e curvou
a cabeça. Quando a ergueu de novo, lentamente, sua voz
suave era quase um canto, quase uma entoação de
palavras que Will já havia ouvido antes.
Quando as Trevas se rebelarem,
seis devem fazê-la recuar,
Três do círculo, três da trilha;
Madeira, bronze, ferro, água, fogo e pedra;
Cinco retornarão, e um deve sozinho continuar.
Ferro para o aniversário, bronze depois de
muito carregar;
Pedra sem a música; madeira das chamas
Água do degelo, fogo no círculo de velas;
Seis Signos formam o círculo, e. o graal não
mais estará.
Mas ele também não parou nos versos que Will
esperava; antes prosseguiu.
A harpa de ouro, o fogo na montanha deverá
encontrar
Tocada para despertar o mais velho dos
velhos,
Aquele que dorme em paz
Perdido embaixo do mar, o poder da Feiticeira
verde jaz
A prata na árvore, a luz no final, todos devem
achar.
Os olhos amarelados fitaram o menino novamente,
mas não o via agora; eles se tornaram frios, abstratos, um
fogo gelado surgindo em seu olhar e trazendo as
expressões cruéis de volta ao seu rosto. No entanto Will
enxergava a crueldade agora como a violência inevitável da
natureza. Não se tratava de maldade o fato de que a Luz e
os servos da Luz sempre perseguiriam as Trevas, mas isto
era a natureza das coisas.
Heme, o Caçador, deu meia-volta com a grande égua
branca, indo para longe de Will e do solitário carvalho, até
que sua silhueta medonha fosse vista sob a Lua e as
nuvens de tempestade silenciosas e baixas. Ele ergueu a
cabeça e com uma trompa clamou ao céu o que deveria ser
o sinal emitido pelo organizador da caçada para chamar os
cães perseguidores. O som para atiçar os cães parecia
aumentar cada vez mais, preencher o céu e surgir de
milhares de gargantas ao mesmo tempo.
E Will viu que era isso mesmo, pois de vários lugares
do Parque, atrás de toda sombra ou árvore e de toda
nuvem, saltando pelo chão e no ar, surgiu um infindável
número de cães de caça, alardeando, balançando os sinos
como os cães farejadores fazem quando estão começando a
rastrear. Eram animais enormes e brancos, como fantasmas
sob a meia-luz, saltando, esbarrando-se e correndo juntos;
eles sequer atentavam para a presença dos Anciãos ou
qualquer outra coisa além de Heme em sua égua branca.
Suas orelhas eram vermelhas; seus olhos eram vermelhos;
eram criaturas horríveis. Will recuou involuntariamente logo
que passaram por ele, quando um cão imenso e prateado
atravessou o caminho a passos largos para olhá-lo de
relance com uma curiosidade tão casual como se o menino
fosse um galho caído. Os olhos vermelhos na cabeça toda
branca eram como chamas, e as orelhas vermelhas ficavam
bem esticadas para cima em um afã terrível, de modo que
Will não tentou imaginar o que seria caçado por cães como
aqueles.
Ao redor de Heme e da égua branca, eles latiam e
chacoalhavam o guizo, como um mar de espuma manchada
de vermelho. Em seguida e ao mesmo tempo o homem de
chifres enrijeceu e seus chifres enormes apontavam o
caminho como fazem os cães de caça. Então ele reuniu
seus cães perseguidores com um toque de recolhimento, o
menée, um som que envia uma matilha atrás de sangue.
Um turbilhão de latidos insistentes se ergueu dos cães
brancos enfurecidos, ressoando por todo o céu e, no mesmo
momento, toda a força da tempestade irrompeu
impetuosamente. Nuvens se separaram troando pelos
relâmpagos resplandecentes que recortavam o céu
enquanto Heme e a égua branca saltavam exultantemente
na arena celeste, com seus cães perseguidores de olhos
avermelhados despejando-se no ar tempestuoso atrás deles
como uma imensa enxurrada branca.
Mas um silêncio terrível e repentino surgiu sufocante,
apagando da mente todo o som da tempestade. No
momento de última oportunidade desesperada, rompendo a
barreira que as mantinham afastadas, as Trevas se
manifestaram para Will. Isolando o céu e a terra, o
tenebroso pilar em espiral caiu sobre ele, terrível em seu
furioso rodamoinho de energia e totalmente silencioso. Não
havia tempo para temer. Will estava sozinho. E a imensa
coluna diante dele se apressava para engolfá-lo com toda a
força monstruosa das Trevas reunida em sua névoa
desfigurada e, em seu centro, o imenso garanhão
espumava erguendo as patas dianteiras com o Cavaleiro
Negro em seu dorso: seus olhos eram dois pontos
brilhantes de fogo azul. Will invocava em vão todo o
encantamento de defesa ao seu comando e sabia que suas
mãos eram incapazes de se mover até os Signos para irem
em seu socorro. Ficou onde estava, desesperado, e fechou
os olhos.
Mas no silêncio abafado do mundo que o envolvia,
surgiu um som muito discretamente, o mesmo relincho alto
e distante que se ouvia do mais alto céu, como a travessia
de muitos gansos migradores em uma noite de outono, e
que ele havia ouvido três vezes naquele dia. Quanto mais
próximo, mais alto ficava, e ele abriu os olhos. E viu uma
cena como nunca havia visto antes e que não voltaria a ver.
Metade do céu estava denso e tenebroso por causa da ira
silenciosa das Trevas e seu tornado de poder; mas, naquele
momento, cavalgando naquela direção, vindo do oeste com
a velocidade das pedras quando caem, emergia Heme e a
Caçada Indômita. No auge de seus poderes agora, em um
estrondoso clamor, eles surgiam rugindo da grande nuvem
negra e tempestuosa, cruzando os riscos cortantes dos
raios e nuvens roxas-acinzentadas, cavalgando sob a
tempestade. O homem de chifres e olhos amarelados
cavalgava rindo aterrorizantemente, gritando o Fora! que
incitava ainda mais os cães perseguidores à caça, e sua
égua reluzente se lançava adiante de modo que sua crina e
cauda voavam também.
E ao redor deles e numa imensidão atrás deles, como
um rio largo e branco que verte a Matilha do Alarido, os
Perseguidores, os Cães da Perdição, com seus olhos
vermelhos queimando com milhares de chamas ardentes. O
céu ficara claro com a presença deles que preenchiam o
horizonte ocidental, e ainda continuavam chegando,
infindáveis. Ao som que emitiam como um sino, milhares de
uivos, a magnificência das Trevas recuou e se esquivou
parecendo tremer. Will avistou o Cavaleiro Negro mais uma
vez, no alto da névoa escura: o seu rosto estava contorcido
pela fúria, temor e maldade implacável e, por trás disso, a
consciência da derrota. Ele instigou seu cavalo com a
espora de maneira tão violenta que seu garanhão negro ao
trotar quase tombou. Enquanto puxava as rédeas, o
Cavaleiro parecia perseguir alguma coisa impacientemente
de sua sela, um objeto pequeno e escuro que caía lânguido
e frouxo no chão, permanecendo lá como um manto
descartado.
Então a tempestade e a impiedosa Caçada Indômita
investiram contra o Cavaleiro. Ele cavalgou para o alto em
seu refúgio negro, em rodamoinho. O fantástico tornado das
Trevas se curvou e se contorceu, sacudindo-se como uma
serpente em agonia, até que finalmente um guincho ecoou
nos céus e a coluna tempestuosa começou a se afastar
numa velocidade furiosa para o norte, fugindo sobre o
Parque, a Câmara e o Vale do Caçador; mas atrás deles
partiu Heme e a Caçada bradando a plenos pulmões, uma
imensa crista branca no rompante da tempestade.
Os uivos dos cães perseguidores esvaeciam com a
distância, desaparecendo o último dos sons da caçada e,
sobre o Carvalho de Heme, a lua crescente prateada foi
deixada flutuando no céu manchado com pequenas nuvens
remanescentes.
Will respirou profundamente e olhou ao redor.
Merriman continuava exatamente como o tinha visto, altivo
e esbelto, vestindo um capuz, como uma estátua escura
sem feições aparentes. Velho George havia recuado para as
árvores junto com Pollux, pois nenhum animal comum
poderia presenciar a Caçada tão de perto e sobreviver.
Will perguntou: — Acabou?
— Mais ou menos — respondeu Merriman, ocultado
pelo capuz. — As Trevas foram... — Ele não ousava usar
aquelas palavras. — As Trevas foram vencidas, finalmente,
neste enfrentamento. Nada pode desafiar a Caçada
Indômita. E Heme e seus cães perseguidores caçam sua
presa até o fim, até os confins da Terra. Portanto, os
Senhores das Trevas devem se esconder agora, nos confins
da Terra, aguardando pela próxima oportunidade. Mas, da
próxima vez, nós estaremos muito mais fortes, pela
totalidade do círculo, dos Seis Signos e do Dom da Magia.
Nós fomos fortalecidos por ter completado sua busca, Will
Stanton, e estamos mais próximos de obter a última vitória,
no definitivo final. — Ele retirou o capuz, os cabelos brancos
e revoltos cintilavam na luz do luar e, por um momento, os
olhos assombreados fixaram os de Will comunicando
orgulho, o que fez o rosto do menino se aquecer de
regozijo. Merriman olhou através do gramado coberto de
neve do Grande Parque.
— Somente resta unir os Signos — disse ele. — Mas,
antes disso, uma... pequena... coisa.
Curiosamente, sua voz falhou. Will seguiu, confuso,
quando ele caminhou a passos largos aproximando-se do
Carvalho de Heme. Então, enxergou sobre a neve, antes da
sombra da árvore, o manto amassado que o Cavaleiro
Negro deixara cair quando se virava para fugir. Merriman se
abaixou, depois se ajoelhou ao lado da veste na neve. Ainda
se perguntando, Will espiou mais de perto e percebeu
chocado que o monte escuro não se tratava de um manto,
mas de um homem. A figura estava com o rosto para cima,
torcido em um ângulo terrível. Era o Andarilho, era Hawkin.
Merriman falou com a voz profunda e sem expressão:
— Aqueles que cavalgam alto com os Senhores das Trevas
devem esperar pela queda. E homens não caem facilmente
de alturas como estas. Acho que a coluna dele está
quebrada.
Ocorreu a Will, olhando para o rosto imóvel, que desta
vez Merriman havia esquecido que Hawkin não era mais um
homem comum. Não, comum talvez não fosse a palavra
certa para um homem que tinha sido usado tanto pela Luz
como pelas Trevas e enviado diversas vezes através do
Tempo para se tornar finalmente o Andarilho abatido pela
vida errante, através de seiscentos anos. Mas um homem,
todavia, e mortal. O rosto pálido tremia, e os olhos se
abriram. A dor estava refletida neles e também a sombra
de uma dor diferente relembrada.
— Ele me jogou — disse Hawkin. Merriman olhava-o,
mas não dizia nada.
— Sim — sussurrou Hawkin amargurado. — Você
sabia que isto aconteceria. — Ofegou com dor quando
tentou mover a cabeça e o pânico se refletiu em seus olhos.
— Somente a minha cabeça... eu sinto a minha cabeça, por
causa da dor. Mas meus braços, minhas pernas, eles
estão... não...
Percebia-se um terrível e desolado desespero na face
enrugada naquele momento. Hawkin olhava para Merriman.
— Estou perdido — dizia ele. — Eu sei. Você fará que eu
continue a viver, com o pior sofrimento de todos agora. O
último direito de um homem é morrer. Você impediu isso
durante todo esse tempo e obrigou-me a viver através dos
séculos quando eu freqüentemente desejava a morte. E
tudo por uma traição na qual caí porque eu não tinha a
sagacidade de um Ancião... — O pesar e o anseio em sua
voz eram intoleráveis; Will virou o rosto para longe.
Mas Merriman replicou: — Você era Hawkin, meu filho
de criação e vassalo, que traiu seu senhor e a Luz. Depois,
tornou-se o Andarilho, para andar sobre a terra pelo tempo
que a Luz exigisse. E assim você viveu, de fato. Mas nós
não o mantivemos desde então, meu amigo. Uma vez que a
tarefa do Andarilho foi cumprida, você estaria livre e
poderia ter descansado para sempre. Em vez disso, você
escolheu ouvir as promessas das Trevas e traiu a Luz pela
segunda vez... eu lhe dei a oportunidade para escolher,
Hawkin, e eu não a retirei. E não posso. Ela ainda lhe
pertence. Nenhum poder das Trevas ou da Luz pode tornar
um homem mais do que um homem, uma vez que qualquer
papel sobrenatural que ele deva desempenhar terá um
determinado fim. E nenhum poder das Trevas ou da Luz
pode tirar seus direitos como homem, também. Se o
Cavaleiro Negro lhe disse isso, ele mentiu.
A face contorcida o fitava agoniado quase
acreditando.
— Eu posso ter meu descanso? Pode haver um fim, se
eu escolher?
— Todas as suas escolhas foram propriamente suas —
disse Merriman com tristeza.
Hawkin aquiesceu com a cabeça; um espasmo de dor
lampejou por seu rosto e desapareceu. Mas aqueles olhos
que se voltavam para Merriman e Will estavam brilhantes,
eram os mesmos olhos alegres do começo, do pequeno e
vaidoso homem vestido num casaco verde de veludo. Seu
olhar voltou-se para Will. E Hawkin disse suavemente; —
Use bem o dom, Ancião.
Em seguida, ele contemplou Merriman, um olhar
particularmente insondável, e falou de forma quase
inaudível: — Mestre... — Então a luz desapareceu dos olhos
brilhantes e já não havia ninguém mais ali.

UNINDO OS SIGNOS

Na ferraria de teto baixo, Will se encontrava de costas


para a entrada olhando o fogo. As chamas apresentavam a
coloração laranja-avermelhada mescladas com um forte
branco-amarelado quando John Smith pressionava o fole; o
calor fazia Will se sentir à vontade pela primeira vez
naquele dia. Não era tão ruim assim o fato de um Ancião
ficar molhado como um peixe em um rio gelado, mas,
naquele momento, ele estava contente de sentir o calor em
seus ossos novamente. E o fogo revigorava seus ânimos,
enquanto iluminava todo o aposento.
Porém a luz não atingia apropriadamente todo o
aposento, pois nada do que Will podia ver parecia sólido.
Havia certo tremor no ar. Somente o fogo dava a impressão
de ser real, o resto poderia ser apenas uma miragem.
Ele percebeu que Merriman lhe observava com um
meio sorriso.
— É a sensação daquele mundo parcial novamente —
disse Will, perplexo. — A mesma sensação daquele dia no
Solar quando estávamos em dois Tempos diferentes no
mesmo instante.
— É. A mesma. E estamos novamente.
— Mas estamos no tempo do ferreiro — disse Will.
— Nós passamos pelos Portais.
Sim, eles passaram; ele, Merriman, Velho George e n
enorme cavalo Pollux. Do lado de fora da Câmara dos
Comuns, escura e molhada, quando a Caçada Indômita
rechaçou as Trevas pelos céus, eles atravessaram os Portais
entrando no tempo de seiscentos anos antes, do qual
Hawkin havia surgido e no qual Will havia caminhado na
tranqüila manhã enevoada de seu aniversário. Eles
trouxeram Hawkin de volta ao seu século pela última vez,
acomodado sobre o dorso de Pollux; quando Iodos eles
cruzaram os Portais, Velho George afastou-se com o cavalo,
carregando o corpo de Hawkin na direção da Igreja. E Will
soube que no seu próprio tempo, em algum lugar do
cemitério do vilarejo, coberto por outros sepulcros mais
recentes ou por uma pedra desgastada quase ilegível em
seus dizeres, estaria o túmulo de um homem chamado
Hawkin, que morrera há muitos anos, no século 13, e
descansava em paz naquele lugar desde então.
Merriman o levou para a frente da ferraria, onde
contemplaram a trilha estreita e pedregosa através do Vale
do Caçador, a Velha Estrada. — Ouça — disse ele.
Will olhava para a trilha acidentada, as árvores
frondosas do outro lado, a faixa fria acinzentada do céu
quase amanhecendo. — Eu posso ouvir o rio! — falou ele,
confuso.
— Ah — disse Merriman.
— Mas o rio está a quilômetros daqui, do outro lado
da Câmara.
Merriman inclinou a cabeça para o som impetuoso e
agitado das águas. Era o som de um rio cheio, mas não
transbordando, um rio correndo depois de muita chuva. —
O que estamos ouvindo — falou ele — não é o Tâmisa, mas
o som do século 21. Perceba, Will, os Signos devem ser
unidos por John Wayland Smith nesta ferraria, neste tempo,
pois não vai demorar para que esta ferraria seja destruída.
Porém os Signos não podiam ser reunidos até o fim de sua
busca, que foi cumprida dentro de seu tempo. Assim, a
união deve ser realizada era uma bolha do Tempo entre as
duas épocas, as quais os olhos e ouvidos de um Ancião
podem perceber. Não é um rio de verdade que ouvimos. É a
água correndo no seu tempo pela Trilha do Vale do Caçador,
devido ao derretimento da neve.
Will pensava na neve e em sua família sitiada pela
enxurrada e repentinamente voltara a ser o garotinho que
desejava muito voltar para casa. Os olhos escuros de
Merriman o contemplaram solidariamente. — Não vai
demorar — disse ele.
O som de marteladas ecoou atrás deles e eles se
viraram. John Smith terminava de encher os foles de seu
aro branco e vermelho; estava trabalhando na bigorna,
enquanto as longas pinças esperavam prontas diante do
brilho do fogo. O ferreiro não utilizava seu costumeiro
martelo pesado, mas outro que parecia ridiculamente
pequeno em seu punho largo: era uma ferramenta delicada
que se assemelhava mais àquelas que tinham visto seu pai
usar na joalheria. Mas, o objeto sobre o qual trabalhava se
mostrou de longe mais delicado ainda que ferraduras: uma
corrente dourada, ligada em toda a sua extensão, na qual
os Seis Signos seriam pendurados. Os elos se encontravam
em uma fileira ao lado da mão de John.
Ele olhou para cima, seu rosto estava corado pelo
calor do fogo. — Estou quase terminando.
— Muito bem. — Merriman os deixou e caminhou até
a estrada, permanecendo lá sozinho, alto e imponente em
seu longo casaco azul. Não usava o capuz, desse modo seu
cabelo branco cintilava como a neve. Mas não havia neve
naquele lugar e, embora Will pudesse ainda ouvir o som de
água corrente, não havia água também...
Então a mudança começou. Merriman parecia não ter
se movido. Continuava de costas para eles, com as mãos de
cada lado do corpo, muito quieto, sem fazer o menor
movimento. Mas tudo ao seu redor, o mundo, começou a se
mover. O ar tremeu e estremeceu, o contorno das
árvores, a terra e o céu tremularam, ficaram borrados, e
todas as coisas visíveis davam a impressão de girar e de se
misturar. Will ficou olhando para este mundo hesitante,
sentindo-se um pouco atordoado, e pouco a pouco começou
a ouvir, sobrepondo-se ao som do rio de águas correntes
invisível, o murmúrio de muitas vozes. Como um lugar visto
através de bruma crepitante de calor, o mundo trêmulo
começava a se recompor na perspectiva de coisas visíveis,
e ele contemplou uma grande multidão indistinguível
enchendo a estrada e os espaços entre todas as árvores e
toda a clareira diante da ferraria. Elas não pareciam reais,
nem muito firmes; tinham uma característica
fantasmagórica como se pudessem desaparecer logo que
tocadas. Elas sorriam e cumprimentavam Merriman de onde
ele estava. O rosto dele já não olhava mais para Will.
Agrupando-se ao seu redor, as pessoas dirigiam o olhar,
ansiosas, para a ferraria, assim como espectadores prestes
a assistir uma peça; mas, até aquele momento, ninguém
parecia reparar em Will ou no ferreiro.
Havia uma variedade infinita de rostos: alegres,
sisudos, velhos, jovens, brancos como papel, negros como
tinta, e toda tonalidade e nuanças de rosa e marrom,
vagamente reconhecível ou totalmente estranha. Will
achava que reconhecia alguns rostos da festa promovida no
Solar da srta. (Greythorne, a festa realizada em um Natal do
século 19 que levou Hawkin ao desastre e ele ao Livro da
Magia — e então ele soube: todas aquelas pessoas, essa
multidão inumerável que Merriman tinha de alguma
maneira invocado, eram Anciãos, de toda a Terra, de toda
parte do mundo, e ali estavam eles, para testemunhar a
união dos Signos. Will estava aterrorizado, louco para entrar
em um buraco e escapar dos olhares deste novo e
grandioso mundo encantado.
Ele pensava: este é o meu povo. Esta é a minha
família, da mesma forma como minha família de verdade.
Os Anciãos. Cada um de nós está ligado para cumprir um
propósito grandioso no mundo. Então ele percebeu um
alvoroço na multidão, emergindo como uma agitação ao
longo da estrada, e algumas pessoas começaram a se
mexer e mover como se fossem em direção a algo. Depois
ouviu a música: o som sereno e monótono, quase cômico
em sua simplicidade, de pífaros e tambores, que havia
ouvido em seu sonho que poderia não ter sido um sonho.
Will ficou tenso, com os punhos cerrados, esperando, e
Merriman moveu-se ao redor e atravessou o caminho a
passos largos para ficar ao seu lado, enquanto uma
pequena procissão de pessoas da multidão vinha naquela
direção, do mesmo modo como tinha sido antes.
Através do aglomerado de gente, e curiosamente
mais consistentes do que os outros, emergia uma pequena
procissão de garotos, vestidos com túnicas e calças fuso
rústicas, os cabelos nos ombros e gorros estranhos. De
novo, aqueles que estavam na frente carregavam varas e
feixes de gravetos de vidoeiro, enquanto aqueles que se
posicionavam atrás tocavam sua única, repetitiva e
melancólica música, em flautas e tambores. Novamente,
entre esses dois grupos surgiram seis garotos carregando
sobre os ombros um ataúde entrelaçado de galhos e junco
com um ramo de azevinho em cada canto.
Merriman disse, de forma bem reservada: — Primeiro,
no Dia de São Estevão, o dia depois do Natal. Então, na
Décima Segunda Noite. Duas vezes ao ano, se for um ano
especial, promove-se a Caça ao Uirapuru .
Mas agora Will conseguia enxergar claramente o
ataúde mesmo já no início, desta vez, não havia um
uirapuru. Em vez disso, aquela outra forma delicada
permanecia deitada ali, a velha senhora, com vestes azuis e
um enorme anel de rosa em uma mão. Os garotos
marchavam rumo à ferraria onde gentilmente colocaram o
ataúde sobre o chão. Merriman se inclinou sobre ele
estendendo a mão, e a Dama abriu os olhos e sorriu. Ele a
ajudou a se levantar e estando ela de pé virou-se para Will,
tomou-lhe as mãos nas suas e disse: — Muito bem, Will
Stanton — e através da multidão de Anciãos aglomerando-
se na trilha, um murmúrio de aprovação foi ouvido
semelhante ao vento cantando nas árvores.
A Dama virou-se para ficar diante da ferraria onde
John estava esperando e disse: — Em carvalho e em ferro,
sejam os Signos unificados.
— Venha, Will — chamou John Smith. Juntos eles
foram até a bigorna. Will se desfez do cinto que carregara
os Signos durante toda a sua jornada. — Em carvalho e em
ferro? — sussurrou ele.
― Ferro para a bigorna — disse o ferreiro calmamente.
― Carvalho para a base. Esta grande base da
madeira da bigorna sempre é feita de carvalho, da raiz de
um carvalho, n parte mais forte da árvore. Eu não ouvi
alguém contar a você sobre a natureza da madeira algum
tempo atrás? ― seus olhos azuis piscaram para Will, e então
voltou a se concentrar no trabalho. Ele pegou um por um
dos Signos e os juntou com os círculos de ouro. No centro,
colocou os Signos do Fogo e da Água; ao lado de cada um
destes os Signos do Ferro e do Bronze e, ao lado desses, os
Signos da Madeira e da Pedra. Em cada extremidade, ele
prendeu uma extensão da resistente corrente de ouro. Em
seguida, trabalhou rápido e delicadamente, enquanto Will
observava. Do lado de fora, a grande multidão de Anciãos
permanecia em silêncio como grama crescendo. Por trás da
batida do martelo do ferreiro e dos silvos ocasionais dos
foles, nenhum som era ouvido de qualquer lugar a não ser o
som das águas correntes do rio-estrada invisível, há séculos
dali - do futuro e tão ao alcance.
— Está feito — disse John finalmente.
Cerimonialmente, ele estendeu para Will a brilhante
corrente de ligação dos Signos, e o menino perdeu o fôlego
ao contemplar tamanha beleza. Repentinamente, ao
segurar os Signos, o menino foi acometido por uma
sensação impetuosa e estranha como um choque elétrico:
uma reafirmação forte e arrogante de poder. Will se via
confuso: o perigo passou, as Trevas fugiram, então qual o
propósito disto? Em seguida, caminhou até a Dama, ainda
se perguntando, colocou os Signos nas mãos dela e
ajoelhou-se diante da senhora.
Ela declarou: — Mas isto é para o futuro, Will, não
percebe? É para isso que os Signos existem. Eles são a
segunda das quatro Coisas de Poder que estiveram
adormecidas em todos estes séculos e são grande parte da
nossa força. Cada um dos Artefatos de Poder foi feito era
um momento diferente no Tempo por um artesão da Luz,
para aguardar o dia quando seriam necessários. Há um
cálice dourado, conhecido como graal; há o Círculo dos
Signos; há a espada de cristal e a harpa de ouro. O graal,
como os Signos, foi encontrado e está seguro. Os outros
dois devem ser encontrados, outra busca para outro tempo.
Mas uma vez que acrescentarmos aqueles a estes, e as
Trevas se levantarem para seu ataque final e o mais terrível
contra o mundo, teremos esperança e convicção de que
poderemos vencê-los.
Ela ergueu a cabeça, olhando sobre a incontável
multidão fantasmagórica de Anciãos. — Quando as Trevas
se rebelarem — disse ela, sem expressão, e as vozes a
complementaram em um rumor sinistro e baixo — seis
devem fazê-la recuar.
Ela olhou novamente para Will, as rugas ao redor dos
olhos envelhecidos se curvavam em afeto. — Descobridor
dos Signos — disse ela —, pelo nascimento e pelo
aniversário você conheceu a si mesmo, e o círculo dos
Anciãos se completou, para agora e para sempre. E pelo
seu bom uso do Dom da Magia, você cumpriu uma grande
busca e provou ser mais forte do que a provação. Até que
nos encontremos de novo, e certamente nos
encontraremos, nós nos lembraremos de você com orgulho.
A multidão imensurável murmurou novamente, uma
resposta diferente e calorosa; e com a pequena e delicada
mão do grande anel rosa reluzente, a Dama se inclinou e
colocou a corrente da união dos Signos ao redor do pescoço
de Will. Em seguida o beijou levemente sobre a fronte,
como um roçar gentil da asa de um pássaro, e disse: —
Adeus, Will Stanton.
O murmúrio de vozes aumentou e o mundo girou em
volta do menino em uma onda de chamas e árvores e,
emergindo de tudo isso, soou bem alta a música cujas
frases eram entoadas como o sino, mais alegre do que
nunca. Ela repicava e vibrava em sua cabeça, envolvendo
todo o seu ser com tanto regozijo que ele fechou os olhos e
deixou-se fluir na beleza da canção. Will soube em uma
fração de segundo que se tratava da essência e do espírito
da Luz. Mas, em seguida, pouco a pouco começou a
diminuir, ficando cada vez mais distante, um leve ressoar e
um pouco melancólica, como sempre havia sido, sumindo,
sumindo, correndo o risco do som das águas correntes
tomarem seu lugar. Will gritou de tristeza e abriu os olhos.
Viu-se ajoelhado sobre a fria neve batida, sob a luz
cinzenta do amanhecer, em um lugar que ele não
reconhecia quando o comparava à Trilha do Vale do
Caçador. Árvores desfolhadas apareciam da neve derretida
do outro lado da estrada. Através do Caminho onde se
encontrava, na estrada que já foi certa vez pavimentada, as
águas corriam furiosamente pelas calhas emitindo o som de
um riacho, ou mesmo de um rio... A estrada estava vazia;
ninguém estava ali visivelmente entre as árvores. Will
poderia ter chorado pela sensação de perda; toda aquela
calorosa multidão de amigos, o brilho, a luz, a celebração e
a Dama: tudo se foi, todos partiram, deixando-o sozinho.
Colocou a mão no pescoço. Os Signos ainda estavam
lá. Atrás dele, a voz de Merriman soou profunda: — Hora de
ir para casa, Will.
— Ah — disse ele com tristeza, sem se virar. — Estou
feliz que ainda esteja aqui.
— Você já deu a impressão de estar mais contente —
disse Merriman sarcasticamente. — Contenha seu êxtase,
eu lhe peço.
Sentando sobre os calcanhares, Will olhava-o sobre os
ombros. Merriman o fitava seriamente com seus olhos
escuros semelhantes aos da coruja, e repentinamente as
emoções que foram contidas em um nó apertado e
insuportável se romperam e partiram, e o menino caiu
numa gargalhada. A boca de Merriman se mexeu
levemente. Ele estendeu a mão, e Will se colocou de pé
com esforço, ainda gaguejando.
— É que... — começou ele a falar e parou, não muito
certo se estava rindo ou chorando.
— Isso foi... uma alteração — disse Merriman com
gentileza. — Consegue andar agora?
— É claro que posso andar — respondeu ele,
indignado. Olhava ao redor. Onde a ferraria deveria estar,
havia uma construção de tijolos demolida, como uma
garagem, e em volta dela era possível reconhecer os traços
da estrutura fria e dos canteiros de vegetais na neve
derretida. Rapidamente voltou-se para cima e viu o
contorno de uma casa conhecida. — É o Solar! — disse ele.
— A entrada dos fundos — informou Merriman. —
Perto do vilarejo. Usada principalmente pelos negociantes...
e mordomos. — E sorriu para Will.
— É realmente aqui onde a ferraria costumava ficar?
— Nas plantas antigas da casa, chamava-se o Portão
do Ferreiro — disse Merriman. — Os historiadores que
escrevem sobre Buckinghamshire a respeito do Vale do
Caçador gostam muito de especular sobre essa perspectiva.
Eles sempre erraram.
Will olhou através das árvores para as altas chaminés
em estilo Tudor do Solar e seus telhados inclinados. — A
srta. Greythorne está lá?
― Sim, ela está lá agora. Mas você não a viu na
multidão?
― Na multidão? — Will tomou conhecimento de que
sua boca estava tolamente aberta e a fechou. Imagens
conflitantes se misturavam em sua cabeça. — Você quer
dizer que ela é uma dos Anciãos?
Merriman ergueu uma sobrancelha. — Venha agora,
Will, seus sentidos já lhe disseram isso há muito tempo.
― Bem... sim, eles disseram. Mas eu nunca soube
muito bem qual srta. Greythorne era a que pertencia ao
nosso povo, aquela de hoje ou a da festa de Natal. Bem,
sim, sim. Eu suponho que eu saiba isso também. — Fixava
Merriman hesitantemente. — Trata-se da mesma pessoa,
não é?
— Assim está melhor — respondeu Merriman. — E a
srta. Greythorne me deu, enquanto você e Wayland Smith
estavam absortos em seu serviço, dois presentes para a
Décima Segunda Noite. Um é para seu irmão, Paul, e o
outro para você. — Então, mostrou dois embrulhos
pequenos e sem forma embalados no que parecia ser seda;
em seguida, os colocou novamente embaixo de sua capa.
— O presente de Paul é algo comum, penso eu. Mais ou
menos. O seu é algo para ser usado somente no futuro, em
algum momento quando seu julgamento lhe disser que irá
precisar dele.
— Décima Segunda Noite — disse Will. — Será hoje?
Ele olhava para o céu cinzento do início da manhã.
— Merriman, como você conseguiu que minha família
parasse de se perguntar onde eu estava? Minha mãe está
realmente bem?
— É claro que ela está — respondeu Merriman. — E
você passou a noite no Solar, adormecido... Venha agora,
estas questões são coisas muito pequenas. Eu sei todas as
perguntas. E você terá todas as respostas, quando estiver
finalmente em casa, e de qualquer maneira você já as sabe.
— Voltou a cabeça para baixo na direção de Will, os olhos
escuros e profundos o fitaram persuasivos como um
basilisco. — Venha, Ancião — disse ele suavemente —,
lembre-se. Você não é mais um garotinho.
— Não — confirmou Will. — Eu sei.
Merriman acrescentou: — Mas, algumas vezes, você
sentirá como seria muito mais agradável se você fosse.
— Algumas vezes — repetiu Will. E sorriu. — Mas não
sempre. — Eles se viraram e atravessaram a passos largos
a pequena margem do riacho da estrada para caminharem
juntos até a casa dos Stanton ao longo da Trilha do Vale do
Caçador.

***

O dia ficava cada vez mais claro e a luz começava a


se difundir no horizonte do céu diante deles, onde o Sol
logo despontaria. Uma névoa bem tênue ainda pairava
sobre a neve dos dois lados da estrada, circulando pelas
árvores desfolhadas e pequenos riachos. Era uma manhã
cheia de promessas, com um céu limpo de tonalidade azul
clara, o tipo de céu que o Vale do Caçador não via há
muitos dias. Eles caminhavam como velhos amigos
caminham, sem muita conversa, compartilhando o tipo de
silêncio que não é de fato um silêncio quando visto como
um tipo de comunicação calada. Seus passos marcavam a
estrada molhada, emitindo o único ruído do vilarejo, exceto
pelo som de um pássaro preto e, de algum outro lugar
adiante, o som de alguém removendo algo com uma pá. De
um lado da estrada, as árvores surgiam eminentes, escuras
e sem folhagens, e Will percebeu que elas estavam na
curva que passava pelo Bosque das Gralhas. Ele olhou para
cima. Nenhum som se ouvia das arvores ou dos ninhos
desordenados instalados lá no alto nos galhos cobertos pela
neblina.
— As gralhas estão muito quietas — disse ele.
Merriman falou: — Elas não estão lá.
— Não estão lá? Por que não? Onde elas estão?
Merriman sorriu, um pequeno sorriso desalentador. —
Quando a Matilha do Alarido está caçando através do céu,
nenhum animal ou pássaro pode ficar visível a eles para
não ser tomado violentamente pelo terror. Todos através
deste reino, ao longo do trajeto de Heme e da Caçada,
serão Incapazes de encontrar qualquer criatura deixada
solta na noite passada. Isso era bem conhecido nos dias
antigos. Os camponeses de todo lugar costumavam trancar
seus animais na véspera da Décima Segunda Noite, no caso
da Caçada passar por ali.
— Mas o que acontece? Eles são mortos? — Will
achava que apesar de tudo o que as gralhas tinham feito
pelas Trevas, ele não queria pensar no extermínio de todas
elas.
— Ah, não — disse Merriman. — Espalhadas. Levadas
por bem ou por mal pelo céu até que o cão perseguidor
mais próximo opte por liberá-las. Os Cães da Perdição não
são uma espécie que mata seres viventes ou come carne...
As gralhas voltarão um dia. Uma por uma, sujas, cansadas,
com pena de si mesmas. Pássaros mais prudentes que não
lidam com as Trevas devem ter se escondido na noite
passada, embaixo de galhos ou no beirai das casas, fora de
vista. Aqueles que agiram assim estão por aqui ilesos. Mas
demorará um pouco para nossas amigas, as gralhas, se
recuperem. Eu acho que você não terá problemas com elas
novamente, Will, embora eu nunca confiaria em uma se eu
fosse você.
— Olhe — disse Will indicando adiante. — Lá estão
dois em quem se pode confiar. — O orgulho soava firme em
sua voz, enquanto subindo a estrada na direção deles,
surgiam correndo e saltando os dois cães dos Stanton, Raq
e Ci. Eles saltaram para ele, latindo e gemendo de
contentamento, lambendo suas mãos numa saudação tão
calorosa como se ele tivesse fora por um mês. Will parou
para falar com eles e foi cercado por rabos acenando,
cabeças ofegantes e pés enormes molhados. — Saiam
daqui, seus bobos — dizia ele alegremente.
Merriman falou muito baixinho: — Quietos agora. —
Instantaneamente, os cães se acalmaram e ficaram em
silêncio, somente seus rabos abanavam entusiasticamente;
ambos se viraram para Merriman e o olharam por um
momento e em seguida trotavam amigavelmente em
silêncio ao lado de Will. Então, a entrada da garagem dos
Stanton apareceu adiante, e, o ruído de pás ficou mais alto
ao virar a esquina, eles encontraram Paul e o sr. Stanton,
agasalhados contra o frio, limpando a neve, as folhas e os
gravetos do bueiro.
— Ora, ora — disse o sr. Stanton, apoiando-se em sua
pá.
— Olá, pai — disse Will animado e correu para abraçá-
lo. Merriman cumprimentou: — Bom-dia.
— Velho George disse que você viria bem de manhã
— disse o sr. Stanton —, mas eu não achei que ele queria
dizer tão cedo. No entanto, você conseguiu acordá-lo?
— Eu acordei sozinho — disse Will. — Sim, eu virei
uma folha nova para o Ano-novo. O que estão fazendo?
— Virando as folhas velhas — disse Paul. — Ha, ha,
ha.
— Estamos mesmo. O degelo aconteceu tão
repentinamente que o solo ainda estava congelado e nada
conseguia drenar a neve derretida. E agora que os bueiros
estão começando a degelar também, a enxurrada trouxe de
tudo misturado com o lixo arrastado pelo caminho. Como
isto. — Ele ergueu uma trouxa pingando.
Will disse: — Eu vou pegar outra pá e ajudar.
— Não gostaria de tomar o café-da-manhã primeiro?
perguntou Paul.
— Mary está preparando algo para nós, acredite se
quiser.Tem um monte de "folha virada" por aqui, enquanto o
ano ainda é novo.
Will percebeu que se passara muito tempo desde que
comera pela última vez e sentiu-se faminto. — Humm —
murmurou ele.
— Vamos entrar e tomar o café ou um copo de chá ou
outra coisa — disse o sr. Stanton para Merriman. — É uma
caminhada gelada do Solar até aqui, nesta hora da manhã.
Eu sou realmente grato a você por trazê-lo para casa, sem
mencionar o fato de ter cuidado dele à noite.
Merriman balançou a cabeça, sorrindo, e puxou o
colarinho do que Will viu sutilmente transformado de um
casaco em um pesado sobretudo do século 21. — Obrigado.
Mas eu preciso voltar.
― Will! — soou uma voz esganiçada e Mary veio
correndo pela entrada dos carros. Will foi ao seu encontro; a
menina escorregou até ele e o socou no estômago. — Foi
divertido lá no Solar? Você dormiu num dossel?
— Não exatamente — disse Will. — Você está bem?
— Bem, é claro. Eu fiz um super passeio no cavalo do
Velho George, era um daqueles enormes do sr. Dawson, os
cavalos de apresentação. Ele me pegou na Trilha do Vale do
Caçador, logo depois que eu saí. Parece que foi há anos isso
c não na noite passada. — Ela olhava para Will bastante
encabulada. — Suponho que eu não deveria ter ido atrás de
Max daquele jeito, mas tudo estava acontecendo tão rápido
c eu fiquei preocupada de a mamãe não conseguir ajuda.
— Ela está mesmo bem?
— O doutor disse que ela ficará bem. Foi apenas uma
torção e não uma perna quebrada. Ela realmente se
surpreendeu, por isso deverá ficar de repouso durante uma
ou duas semanas. Mas está tão animada quanto pode ficar,
você vai ver.
Will olhou por cima da entrada dos carros. Paul,
Merriman e seu pai conversavam e riam. Ele pensou que
talvez seu pai tivesse decidido que Lyon, o mordomo, era
um bom camarada afinal e não simplesmente um ajudante
senhorial.
Mary acrescentou: — Sinto muito por você ter se
perdido no bosque. É tudo culpa minha. Você e Paul deviam
estar logo atrás de mim. Ainda bem que Velho George
descobriu por fim onde todos estavam. Pobre Paul,
preocupado por estarmos perdidos, em vez de apenas
comigo. — Ela riu nervosa, tentando parecer penitente, sem
muito esforço.
— Will! — Paul se afastou do grupo, correndo em sua
direção. — Olhe isto! A srta. Greythorne chama isto de
empréstimo permanente, que Deus a abençoe, olhe! — O
rosto dele estava corado de alegria. E estendia o embrulho
que Merriman estava carregando, agora aberto, e Will viu a
velha flauta do Solar.
Sentindo o rosto irromper num longo e lento sorriso,
olhou para Merriman. O olhar de Merriman cruzou com o
dele seriamente e o mordomo lhe entregou o segundo
pacote. — Este, a Senhora do Solar mandou para você.
Will abriu-o. Dentro havia uma pequena trompa de
caça, brilhando e afinada pelo tempo. Olhou brevemente
Merriman e para baixo novamente.
Mary saltitava ao redor, rindo. — Vamos lá, Will,
sopre-o. Você poderia fazer barulho por todo o caminho até
chegar a Windsor. Vamos lá!
— Mais tarde — disse ele. — Eu preciso aprender
como. Poderia agradecê-la por mim? — pediu ele a
Merriman.
Merriman aquiesceu com a cabeça. — Agora preciso ir
— disse ele.
Roger Stanton falou: — Não tenho palavras para
expressar nossa gratidão por sua ajuda. Por tudo, durante
esse tempo maluco, as crianças... você realmente foi
tremendamente... — ele perdeu as palavras, mas estendeu
o braço e sacudiu a mão de Merriman para cima e para
baixo com tanto entusiasmo que Will pensou que ele nunca
Iria parar.
O rosto intensamente marcado suavizou-se; Merriman
olhava contente e um pouco surpreso. Sorriu e aquiesceu,
mas não disse nada. Paul deu-lhe um aperto de mãos e
Mary também. Depois, as mãos de Will foram tomadas por
uma garra potente, e havia uma pressão rápida no
cumprimento e um breve olhar intencional, escuro e
profundo. Merriman disse: — Au revoir, Will.
Acenou-lhes e partiu descendo a Trilha. Will moveu-se
lentamente atrás dele. Mary disse, saltando ao seu lado: —
Você ouviu os gansos selvagens na noite passada?
— Gansos? — perguntou Will bruscamente. Ele não
estava escutando de fato. — Gansos? Em toda aquela
tempestade?
— Que tempestade? — disse Mary e continuou
falando antes que ele pudesse até piscar. — Gansos
selvagens, devia haver uns milhares deles. Migrando, eu
acho. Nós não os vimos... só ouvíamos aquele ruído
suntuoso; primeiro, um monte de crocitos daquelas gralhas
idiotas do bosque e depois um longo, longo ruído de alarido
no céu, muito alto mesmo. Foi emocionante.
— Sim — disse Will. — Sim, deve ter sido.
— Eu não acredito que você estava mais do que semi-
acordado — disse Mary desgostosa e saiu saltitando até o
fim da entrada da garagem. Depois ela parou
repentinamente e ficou muito quieta. — Meu Deus! Will!
Olhe!
Ela estava prestando atenção em alguma coisa atrás
de uma árvore, ocultada pelos montes de neve
remanescentes. Will se aproximou para olhar e viu a
grande cabeça de carnaval com os olhos de uma coruja, a
face de um homem e os chifres de um cervo deitada no
mato molhado. Sequer uma palavra saía de sua garganta. A
cabeça estava viçosa, reluzente e seca, como sempre foi e
sempre seria. Parecia o perfil de Heme, o Caçador, que ele
havia visto no céu e ao mesmo tempo não tão parecida
assim.
Ele ainda olhava sem dizer nada.
— Bem, eu nunca pensei... — disse Mary radiante. —
Não foi sorte que isso foi se emperrar ali? A mamãe ficará
contente. Ela acordou quando a enxurrada surgiu
carregando tudo de repente. Você não estava lá, é claro; a
água veio sobre todo o chão e um monte de coisas foi
arrastado da sala de estar antes mesmo que
percebêssemos. Aquela cabeça foi uma delas... a mamãe
ficou chateada porque sabia que você ficaria. Bom, olha
para isso, estranho que...
Ela espiou a cabeça de perto, ainda tagarelando
alegremente, mas Will não estava mais escutando. A
cabeça encontrava-se bem próxima do muro do jardim,
ainda soterrada, mas começando a romper os montes de
neve dos dois lados. E sobre um monte na outra
extremidade, cobrindo a borda do gramado da rua e
mantendo a água corrente na calha, havia uma quantidade
de marcas. Eram marcas de cascos, feitas por um cavalo
parando, fazendo meia-volta e saltando sobre a neve. Mas
nenhuma delas tinha o formato de uma ferradura. Eram
círculos quartejados por uma cruz: as pegadas das
ferraduras especiais que John Wayland Smith, certa vez no
começo, colocou na égua branca da Luz.
Will olhou para as pegadas e para a cabeça de
carnaval, e engoliu seco. Deu alguns passos até o fim da
entrada, observando a Trilha do Vale do Caçador; ele podia
ver as costas de Merriman, enquanto a silhueta alta e
vestida de preto partia a passos largos. Seus cabelos se
arrepiaram e seu pulso ficou calmo, pois detrás dele ouviu-
se um som mais agradável do que parecia possível no ar
gelado daquela manhã cinzenta. Era o tom suave, lindo e
desejoso da velha flauta do Solar; Paul, irresistivelmente,
deve ter preparado o instrumento e começado a tocá-lo. Ele
estava tocando Greensleeves mais uma vez. A cadência
inquietante e encantada fluía pelo ar calmo da manhã; Will
avistou Merriman erguer a cabeça branca enquanto ouvia a
música, embora ele não tivesse interrompido os passos.
Enquanto olhava a estrada calma abaixo, com a
música soando em seus ouvidos, Will percebeu que, bem
adiante de Merriman, as árvores, a névoa e o trecho da
estrada pareciam abalados, trêmulos, de uma maneira que
ele conhecia muito bem. E então, pouco a pouco, do outro
lado, contemplou os grandes Portais tomando forma. E lá
eles ficaram, como os tinha visto na colina descampada e
no Solar: os portais altos e talhados que conduziam para
fora do Tempo, permanecendo sozinhos e verticais na Velha
Estrada que era conhecida como Trilha do Vale do Caçador.
Muito lentamente eles começaram a se abrir. Em algum
lugar atrás de Will, a música Greensleeves foi interrompida
por uma risada e algumas palavras abafadas de Paul, mas
não houve interrupção na música que soava na mente de
Will, pois agora ela tinha mudado para aquela frase
envolvente como um sino que sempre surgia na abertura
dos Portais ou em grandes mudanças que poderiam alterar
a vida dos Anciãos. Will cerrou os punhos enquanto ouvia,
sentindo-se atraído pelo som doce e atraente que simulava
o espaço entre o acordar e sonhar, o ontem e o amanhã, a
lembrança e a imaginação. A melodia fluía agradavelmente
em sua mente; depois gradualmente foi se tornando
distante, sumindo, assim como a alta silhueta de Merriman
na Velha Estrada, agasalhado novamente, agora pela capa
azul, e atravessando os Portais abertos. Atrás dele, as
enormes placas de carvalho talhadas se moviam
lentamente ao mesmo tempo, até que se fecharam no mais
completo silêncio. Então, enquanto o último eco da música
encantada se extinguia, os portais desapareceram.
E num grande esplendor de luz branca-amarelada, o
Sol se ergueu sobre o Vale do Caçador e sobre o vale do
Tâmisa.
Aqui termina Os Seis Signos da Luz. O próximo livro
da série "Rebelião das Trevas" é A Feiticeira Verde.

DESCUBRA PARTE DO QUE IRA ACONTECER NO


PRÓXIMO E FASCINANTE CAPÍTULO DA SÉRIE "REBELIÃO
DAS TREVAS”
A FEITICEIRA VERDE
CAPÍTULO I
Somente um jornal relatou a história com detalhes,
sob o titulo "Tesouros roubados do Museu":
Diversas obras de arte celta foram roubadas do
Museu Britânico ontem; uma delas vale mais de £ 50.000. A
polícia diz que o roubo aparentemente é o resultado de um
intricado e até agora intrigante plano. Nenhum alarme
contra ladrões foi acionado, as vitrines envolvidas não
sofreram qualquer dano e não há sinais de um possível
arrombamento.
Os objetos desaparecidos incluem um cálice de ouro,
três broches de pedras preciosas e uma fivela de bronze. O
cálice, conhecido como o Graal de Trewissick, foi adquirido
pelo museu exatamente no verão passado, após sua
dramática descoberta em uma gruta de Cornish por três
crianças. E tem sido estimado em £ 50.000, mas um porta-
voz do museu disse na noite passada que seu valor real é
"inestimável", devido às inscrições excepcionais
encontradas em suas laterais, as quais os pesquisadores
até agora não foram capazes de decifrar.
O porta-voz ainda acrescentou que o museu faz um
apelo aos assaltantes para que não danifiquem o cálice em
hipótese alguma e estaria oferecendo uma recompensa
substancial por sua devolução. "O graal é uma peça
extraordinária, de evidência histórica sem precedentes em
todo o campo dos estudos célticos", disse o porta-voz, "e
sua importância para os pesquisadores excede de longe seu
valor intrínseco". Lorde Clare, que é membro da
administração do Museu Britânico, disse na noite passada
que o cálice...
— Oh! Diga algo surpreendente desse jornal, Barney
— disse Simon irritadamente. — Você já o leu umas
cinqüenta vezes e de todo jeito não ajudou nada.
— Nunca se sabe — disse o irmão mais jovem,
dobrando o jornal e enfiando-o dentro do bolso. — Pode
haver uma pista oculta.
— Nada está oculto — falou Jane com tristeza. — Tudo
é muito óbvio. — Eles se encontravam desanimados sobre o
lustroso piso da galeria do museu, diante de uma vitrine
central mais alta que as idênticas estruturas de vidro ao
redor. Estava vazia, exceto por um pedestal negro de
madeira no qual, claramente, alguma coisa foi certa vez
exibida. Uma placa quadrada de prata impecável sobre a
madeira revelava gravadas as palavras: Cálice de ouro de
um artesão celta desconhecido. Data estimada: séc. 6.
Encontrado em Trewissick, sul da Cornualha, e entregue por
Simon, Jane e Bamabas Drew.
— Todo aquele trabalho que tivemos, chegando lá
primeiro — lamentava Simon. — E agora eles simplesmente
vêm aqui e o levam. Sabe, eu sempre achei que pudessem
fazer isso.
Barney disse: — A pior parte é não ser capaz de dizer
às pessoas quem fez isso.
— Nós poderíamos tentar — disse Jane.
Simon olhou-a com a cabeça inclinada para um lado.
— Por favor, senhor, nós podemos lhe dizer quem levou o
graal e em plena luz do dia sem quebrar nenhuma tranca.
Foram os Poderes das Trevas.
— Sai fora, Sonny — disse Barney. — E leve seus
contos de Fada com você.
— Eu suponho que esteja certo — falou Jane. Ela
puxava distraidamente o rabo-de-cavalo. — Mas se foram
os mesmos, alguém ao menos deve tê-los visto. Aquele
horrível sr. Hastings...
— Sem chance. Hastings muda, o tio Merry disse. Não
se lembra? Ele não usaria o mesmo nome ou o mesmo
rosto. Ele pode ser pessoas diferentes, em momentos
diferentes.
Eu me pergunto se o tio-avô Merry sabe — disse
Barney — sobre isso. — Ele olhava para a caixa de vidro e
para o pequeno e solitário pedestal preto em seu interior.
Duas senhoras idosas de chapéu surgiram ao seu
lado. Uma usava um modelo flowerpot amarelo e a outra
um em formato piramidal de flores cor-de-rosa. — Este é o
lugar de onde eles o afanaram, conforme a atendente disse
— uma disse para a outra. — Imagine só! As outras caixas
estavam por aqui.
― Tss-tss-tss-tss — resmungou a outra senhora com
prazer e elas se foram. Absorto, Barney as observou partir,
os passos ressoando pela galeria. Elas pararam em uma
vitrine sobre a qual uma figura de pernas longas estava
curvada. Barney se enrijeceu. E espiou aquela pessoa.
— Precisamos fazer alguma coisa — disse Simon.
— Temos que fazer — enfatizou Jane. — Mas por onde
começamos?
A figura alta se endireitou para deixar as senhoras de
chapéu se aproximarem do vidro. Ele inclinou a cabeça
gentilmente e uma massa de cabelos brancos revoltos
refletiu a luz.
Simon disse: — Eu não vejo como o tio-avô Merry
poderia saber... quero dizer, ele nem mesmo está na Grã-
Bretanha, não é? Tirando aquele ano de férias de Oxford.
Sa... batico.
— Sabático — corrigiu Jane. — Em Antenas. E sequer
mandou um cartão de Natal.
Barney segurou o fôlego. Do outro lado da galeria,
quando as senhoras amantes do crime se afastaram, o
homem alto de cabelos brancos virou-se em direção à
janela; seu nariz bicudo e seu perfil de olhos profundos
eram inconfundíveis. Barney deixou escapar um grito: —
Gumerry!
Simon e Jane o seguiram pisando em seu rastro,
enquanto o menino escorregava pelo chão.
— Tio Merry!
— Bom-dia — disse o homem alto amavelmente.
— Mas a mamãe disse que o senhor estava na Grécia!
— Eu voltei.
— O senhor sabia que alguém iria roubar o graal? —
perguntou Jane.
O tio da menina arqueou uma sobrancelha de pêlos
brancos, mas não disse nada.
Barney simplesmente falou: — O que vamos fazer?
— Recuperá-lo — disse tio Merry.
— Eu suponho que tenham sido eles. — disse Simon
discreto. — O outro lado? As Trevas?
— É claro.
— Por que eles levaram as outras coisas, os broches e
outros objetos?
— Para dar a impressão de certo — disse Jane.
Tio Merry aquiesceu. — Foi eficiente o bastante. Eles
pegaram as peças mais valiosas. A polícia pensa que eles
estavam simplesmente atrás de ouro. — Ele olhava para
baixo, para a vitrine vazia; então seu olhar se moveu
rapidamente, e cada um dos três se sentiu impelido a fitar
imóveis dentro dos olhos escuros e profundos, com a luz
que refletia semelhante a um fogo frio que nunca se apaga.
— Mas eu sei que eles só queriam o graal — disse o
tio Merry — para ajudá-los a conseguir alguma outra coisa.
Eu sei o que intentavam fazer e sei que eles devem a todo
custo ser impedidos. E tenho muito medo de que vocês
três, ........ os descobridores, sejam necessários mais uma
vez para ajudar... bem mais breve do que eu esperava.
― Seremos? — disse Jane lentamente.
― Legal — disse Simon, Barney falou: — Por que eles
deveriam levar o graal agora? Será que isto significa que
eles acharam o manuscrito perdido, aquele que explica a
cifra escrita dos lados do graal?
― Não — disse tio Merry. — Não ainda.
― Então por quê?
— Eu não posso explicar, Barney. — Ele enfiou as
mãos nos bolsos e encurvou os ombros magros. — Este
assunto envolve Trewissick, e isso envolve aquele
manuscrito. Mas trata-se de algo muito maior também, algo
que não posso explicar. Só posso pedir que confiem em
mim, como sempre confiaram antes, em outra parte da
longa batalha entre a Luz e as Trevas. E que ajudem, se
vocês estiverem certos de que desejam ajudar sem talvez
nunca compreender totalmente o que estão prestes a fazer.
Barney respondeu calmamente, afastando o topete
colorido de seus olhos: — Tudo bem.
— É claro que queremos ajudar — disse Simon
ansioso.
Jane não disse nada. O tio da menina colocou um
dedo embaixo de seu queixo, inclinando a cabeça dela para
cima e dirigindo-lhe o olhar. — Jane — disse ele gentilmente
—, não hã absolutamente uma razão para envolver um de
vocês nisto se não estiverem contentes em participar.
Jane olhava para o rosto fortemente marcado,
pensando o quanto ele se parecia com uma daquelas
estátuas rígidas que eles cruzaram no caminho pelo museu.
— Você sabe que eu não estou com medo — disse ela. —
Bem, quero dizer, estou um pouco, mas animada. Só me
preocupo se poderá haver algum perigo em relação ao
Barney... eu acho... quero dizer, ele vai gritar comigo, mas é
o mais jovem entre nos e não deveríamos...
O rosto de Barney estava escarlate. — Jane!
— Não é bom gritar — disse ela espirituosa. — Se
alguma coisa acontecesse a você, nós seríamos os
responsáveis. Simon e eu.
— As Trevas não tocarão em nenhum de vocês —
disse o tio Merry calmamente. — Haverá proteção. Não se
preocupem. Prometo uma coisa: nada que possa acontecer
a Barney lhe causará algum mal.
Sorriam um para o outro.
— Eu não sou um bebê! — Barney bateu o pé furioso.
— Pare com isso — disse Simon. — Ninguém disse
que você é.
E o tio Merry perguntou — Quando serão as férias da
Páscoa, Barney?
Houve uma pequena pausa.
— No dia quinze, eu acho — respondeu Barney ainda
ranzinza.
— É isso mesmo — confirmou Jane. — As férias de
Simon começam um pouco antes disso, mas nós sempre
coincidimos pelo menos uma semana.
— Está muito longe — falou tio Merry.
— Tarde demais? — Eles olhavam para ele ansiosos.
— Não, acho que não... Hã alguma coisa que possa
impedir os três de passarem aquela semana comigo em
Trewissick?
— Não! —- Nada!
— Não exatamente. Eu iria para um tipo de
conferência ecológica, mas posso sair disso... — a voz de
Simon falhou, enquanto ele pensava sobre o pequeno
vilarejo de Cornish onde encontraram o graal. Seja lá qual
fosse a aventura que se seguisse, ela tinha começado lá,
bem no fundo de uma gruta nos penhascos, sobre o mar e
sob a pedra. E no âmago das coisas agora, como sempre
foi, sempre haveria o tio Merry, Professor Merriman Lyon, a
figura mais misteriosa da vida deles, que de maneira
incompreensível estava envolvido com a longa luta pelo
controle do mundo entre a Luz e as Trevas.
— Eu falarei com seus pais — disse o tio-avô.
— Por que Trewissick de novo? — perguntou Jane. —
Os ladrões levarão o graal para lá?
— Eu acredito que seja possível.
— Só uma semana — disse Barney, olhando
pensativamente para a vitrine vazia diante dele. — Não é
muito para uma busca. Será mesmo suficiente?
— Não é muito tempo — disse tio Merry. — Mas terá
que dar.

***

Will arrancou delicadamente a haste da grama e


sentou-se sobre uma pedra perto do portão frontal,
mordiscando-a de forma desanimadora. O sol de abril
reluzia sobre as novas folhas verdes dos limoeiros; um
sabiá, de algum lugar, entoava seu canto feliz e auto-
revelador. lilases e goivos-amarelos perfumavam a manhã.
Will suspirava. Todos estavam bem, aquelas belezas da
primavera de Buckinghamshire, mas ele as apreciaria muito
mais se tivesse alguém ali para compartilhar as férias de
Páscoa. Metade de sua grande família ainda vivia em casa,
mas o irmão mais próximo de sua idade, James, estava fora,
em um acampamento para escoteiros por uma semana, e a
próxima da fila, Mary, tinha desaparecido de vista, indo
para a casa de algum parente galês para se recuperar de
uma caxumba. O restante se mantinha ocupado com
preocupações entediantes de gente mais velha. Este era o
problema de ser o mais novo entre oito; todos os outros
pareciam ter crescido rápido demais.
Havia um aspecto no qual ele, Will Stanton, era mais
velho do que todos, ou que toda criatura humana. Mas só
ele sabia da grande aventura que lhe revelaram, em seu
aniversário de onze anos, pelo fato de ele ter nascido e
ser um tal de complexo Anglo-Americano. Ele ouviu tudo
sobre seus dois primos adultos que pareciam ser
contemporâneos de seu irmão mais velho, Stephen, e
contaram-lhe bem mais do que realmente gostaria de saber
sobre o estado de Ohio e o jeito chinês de negociar. Tio Bill
era evidentemente próspero, mas essa parecia ser sua
segunda viagem ao Reino Unido desde que emigrara há
mais de vinte anos. Will gostava de seus olhos redondos e
brilhantes e da voz rouca e lacônica. O menino começava a
sentir que as perspectivas para sua semana de férias
estavam melhorando consideravelmente quando descobriu
que seu tio Bill ficaria com eles apenas uma noite, pois
deveria partir para uma viagem de negócios em Londres e
no outro dia para a Cornualha a fim de se juntar à esposa.
Assim, seus ânimos se abateram novamente.
— Um amigo meu me buscará, e desceremos de
carro. Mas, digo uma coisa para vocês, Frannie e eu
voltaremos e passaremos alguns dias antes de nosso
retorno aos Estados Unidos. Se puderem hospedar a todos
nós.
— Eu espero que sim — disse a mãe de Will. — Depois
de dez anos e algumas três cartas, meu rapaz, você não
escapará com umas míseras vinte e quatro horas.
— Ele me enviou presentes — disse Will. — Todo
Natal. Tio Bill sorriu-lhe. — Alice — chamou de repente a
sra.
Stanton —, visto que Will está de férias da escola
nesta semana e não está muito ocupado, por que não me
deixa levá-lo para a Cornualha durante as férias? Eu
poderia colocá-lo no trem no final da semana. Nós
alugamos um lugar com mais espaço do que precisamos. E
esse meu amigo tem alguns sobrinhos que estarão conosco
também e acredito que são praticamente da mesma idade
de Will.
Will deixou escapar um grito estrangulado de alegria
e olhou ansiosamente para seus pais que, franzindo a testa
seriamente, deram início a um dueto previsível.
— Bem, é muito gentil de...
— Se tiver certeza de que ele não...
— Ele certamente gostaria de...
— Se Frannie não...
Tio Bill piscou para Will. O menino subiu para o quarto
e começou a arrumar sua bagagem era sua mochila.
Colocou dentro dela cinco pares de meias, quatro trocas de
roupas de baixo, seis camisetas, um pulôver e um suéter,
dois pares de shorts e uma lanterna. Depois, lembrou-se de
que seu tio só partiria no dia seguinte, mas mesmo assim
não havia razão para não preparar a bagagem. Ele desceu,
a mochila quicando em suas costas como uma bola de
futebol inchada.
Sua mãe começou a dizer: — Bem, Will, se você
realmente quiser... ah.
— Até breve, Will — disse seu pai.
Tio Bill riu baixinho. — Desculpem-me — disse ele. —
Eu poderia usar o telefone...
— Eu levo o senhor. — Will conduziu seu padrinho até
a sala. — Não é muita coisa, é?— perguntou ele, olhando
em dúvida para a protuberante mochila.
— Está bom — disse seu tio enquanto discava. — Olá?
Olá, Merry. Está tudo certo? Bom. Só uma coisa. Estou
levando meu sobrinho mais novo comigo por uma semana.
Ele não tem muita bagagem... — disse sorrindo para
Will mas eu achei que deveria me assegurar de que não
estaríamos dirigindo algum carrinho bonitinho de dois
lugares... ah, ah. Não, não de fato em figura... bom, ótimo,
vejo você amanhã. — E desligou.
— Tudo certo, amigão — disse ele para Will. —
Sairemos amanhã às nove da manhã. Está bom pra você,
Alice? — A sra. Stanton estava atravessando a sala com
uma bandeja de chá.
— Esplêndido — disse ela.
Desde o início do telefonema, Will permaneceu bem
quieto. — Merry? — disse ele lentamente. — Este é um
nome incomum.
— É sim, não é mesmo? — disse seu tio. — Um cara
incomum também. É professor em Oxford. Um cérebro
brilhante, mas eu penso que você o achará um tipo
estranho e muito tímido que odeia conhecer pessoas. Ele é
muito confiável, no entanto. — E acrescentou rapidamente
para a sra. Stanton: — E um ótimo motorista.
— Qual é o problema, Will? — perguntou sua mãe. —
Você parece que viu um fantasma. Há algo errado?
— Nada — disse Will. — Ah, não. De jeito nenhum.
***
Simon, Jane e Barney se esforçavam para sair da
Estação de St. Austell carregando um emaranhado de
malas, sacolas de papel, capas de chuva e brochuras. A
multidão do trem de Londres estava se reduzindo em volta
deles, engolida por carros, ônibus e táxis.
— Ele disse que nos encontraria aqui, não disse?
— É claro que sim.
— Eu não consigo vê-lo.
— Ele está um pouco atrasado, é só isso.
— Tio Merry nunca se atrasa.
— Nós deveríamos descobrir de onde vem o ônibus
de Trewissick, para garantir.
— Não, lá está ele, eu o vejo. Eu disse que ele nunca
se atrasa.
Barney saltava para cima e para baixo, acenando.
Depois parou. — Mas ele não está sozinho. Tem um homem
com ele. — Um leve tom de indignação soou em sua voz. —
É um garoto.
***
Um carro buzinou imperativamente uma, duas, três
vezes do lado de fora da casa dos Stanton.
― Lá vamos nós — disse o tio Bill, segurando sua
sacola e a mochila de Will.
O menino deu um beijo rápido de adeus em seus pais,
cambaleando com a enorme sacola de sanduíches, garrafas
térmicas e bebidas frias que sua mãe despejou em seus
braços.
— Comporte-se — disse ela.
— Eu não acho que Merry sairá do carro — disse Bill
para ela enquanto saíam em bando pela entrada de
veículos. — É uma pessoa muito tímida, não o levem a mal.
Mas é um bom amigo. Você vai gostar dele, Will.
― Ele respondeu: — Tenho certeza que sim. No final
da entrada, encontrava-se um antiqüíssimo e enorme
Daimler parado esperando.
― Ora, ora — disse o pai de Will respeitosamente.
― E eu estava me preocupando com lugar! — disse
Bill. Eu deveria saber que ele dirigiria algo assim. Bem,
adeus, pessoal. Aqui, Will, você pode entrar na frente.
Numa onda de despedidas, entraram no digníssimo
veiculo; uma figura enorme e bem agasalhada encontrava-
se sentada curvada sobre o volante, coberto por um boné
marrom e peludo, horroroso.
— Merry — disse tio Bill enquanto eles partiam —,
este é meu sobrinho e afilhado. Will Stanton, Merriman
Lyon.
O motorista jogou para o lado o terrível boné e um
volumoso cabelo branco apareceu em desgrenhada
liberdade. Os olhos escuros e assombreados olharam de
soslaio para Will de um perfil arrogante, revelando um nariz
de falcão.
— Saudações, Ancião — disse a voz conhecida na
mente de Will.
— É maravilhoso vê-lo — cumprimentou Will
silenciosamente e feliz.
— Bom dia, Will Stanton — falou Merriman.
— Como tem passado? — perguntou Will.

***
Eles conversaram consideravelmente durante o
percurso de Buckinghamshire até a Cornualha,
particularmente depois do piquenique de almoço, quando
seu tio Bill adormeceu e continuou dormindo
tranqüilamente pelo resto do caminho.
Will disse finalmente: — E Simon, Jane e Barney não
fazem idéia de que as Trevas programaram esse roubo do
graal para coincidir com a consagração da Feiticeira Verde ?
— Eles nunca ouviram falar da Feiticeira Verde —
disse Merriman. — Você terá o privilégio de contar para
eles. Informalmente, é claro.
— Hum — disse Will. Ele estava pensando em outra
coisa. — Eu me sentiria muito mais feliz se soubéssemos
pelo menos que forma as Trevas irão assumir.
— Um velho problema. Sem solução. — Merriman o
olhou de relance, com uma sobrancelha grossa levantada.
— Só temos que esperar e ver. E eu acho que não
esperaremos muito...
Já quase no final da tarde, o Daimler entrou roncando
nobremente dentro do pátio frontal da estação ferroviária
de St. Austell, na Cornualha. Em pé, dentre uma pequena
piscina de bagagens, Will avistou um garoto um pouco mais
velho que ele, vestindo um casaco escolar e com um ar
consciente de autoridade; uma garota quase da mesma
altura, com os cabelos longos amarrados num rabo-de-
cavalo, revelava em seu rosto uma expressão de
preocupação; e um garotinho com um volumoso cabelo
loiro, quase branco, sentado placidamente sobre uma mala,
observava a aproximação deles.
— Se eles não devem saber nada a meu respeito —
comentou ele com Merriman na linguagem dos Anciãos,
através da mente — acho que eles não gostarão de mim
nem um pouco.
― Isso pode certamente ser verdade — falou
Merriman.Mas nenhum de nós tem qualquer sensação sobre
isso, pois esta é a menor conseqüência quando comparada
à urgência desta busca.
Will suspirou. — A busca pela Feiticeira Verde — disse
ele.

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