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http://www.ionline.pt/conteudo/39215-tolentino-mendonca-o-cristianismo-gracas-deus-venceu-
tentacao-declarar-inimigos
Não são precisas mais palavras, bastam as dele: ninguém as colhe assim, ninguém
as põe deste modo ao nosso serviço, ninguém acerta assim com elas nas almas,
ninguém perfura assim os corações. Por isso a sua luz - e o seu esplendor
espiritual, e o seu fulgor criativo - irradiam em diversos meios. Em todos tem
amigos, seguidores, admiradores, companheiros.
Com a preocupação de levar Deus até eles? "Não. Eu respeito muito os percursos
de cada um. Cada pessoa transporta uma história que é sagrada. Gosto de a
reconhecer como é."
Quem o ler já a seguir também vai reconhecer a humildade luminosa das suas
derivações sobre o homem e o sagrado, o homem e o mundo, o homem e a
esperança. E como se trata dele valeu muito a pena, valeu sobretudo a pena perder
algum tempo a ouvi-lo falar-nos assim de Deus.
Vamos perder um pouco de tempo com Deus. Não tanto devido à quadra
natalícia como devido a si: pode falar-se de José Tolentino de Mendonça
como poeta, homem de cultura, intelectual brilhante, mas não se deve falar
de si sem o ligar a Deus - pois não?
Uma amizade não começa no momento em que é explicitada. Para chegar a ser
explicitada tem primeiro de crescer em silêncio nos corações, de se construir lenta
e misteriosamente em múltiplos encontros, de se consolidar num tráfico íntimo de
sinais... Há uma frase de Blanchot que explica deste modo a forma como todos
experimentamos a amizade: "Já éramos amigos e não sabíamos." A amizade com
Deus é a mesma coisa. Quando é que Ele se tornou obrigatório? Tenho de
responder, para ser verdadeiro: muito antes que eu o soubesse. Vêm-me à cabeça
aqueles versos de Mário Cesariny: "Tu estás em mim como eu estive no
berço./Como a árvore sob a sua crosta./Como o navio no fundo do mar."
Mas como "percebeu" que Deus estava a falar consigo? Nesse "silêncio no
coração" que agora evocou?
"A Deus nunca ninguém o viu", diz-nos S. João. O nosso encontro com Deus é,
nesta nossa condição histórica, um encontro mediado. Eu diria que, no meu caso,
esse encontro foi decididamente mediado pelo espanto. Descubro-me enamorado
de um espanto fundamental. Não consigo mais tirar dali os olhos ou o coração. Não
é só o assombro perante "a espantosa realidade das coisas", de que Fernando
Pessoa falava, e que em si mesmo já é tanto! O maior assombro é pela vocação
divina do homem que está em nós inapagavelmente inscrita. Quando o que
sabemos de Deus nos constrange, nos cerca, nos pressiona, nos compromete, nos
deixa sem saída (e estou a citar palavras de dois grandes crentes, S. Paulo e o
profeta Jeremias), então percebemos que é connosco que Deus está a falar.
O que determina antes de mais a sua relação com Ele? No seu caso
particular, pessoal, é possível definir os laços que tecem essa espécie de
dependência?
Há uma oração que aprendi, e dizem-me que se reza em Taizé: "Senhor, estou aqui
à espera de nada." Com o tempo, esta oração tem-se tornado a paisagem de fundo
do meu caminho espiritual. Acho que posso dizer que vivo na dependência de Deus.
Jesus Cristo é o objecto da minha fé. Com todas as minhas falhas e incertezas,
procuro que a sua humanidade se torne inspiração para a minha. Mas peço a Deus
a liberdade e a gratuidade necessárias ao amor. Eu não creio para que Deus me
facilite a vida ou a resolva por mim. Os místicos ensinam que "a rosa é sem
porquê".
O seu caminho em nome dessa "rosa sem porquê" tem sido, tal como
ocorre com a vida, marcado por etapas, por estações diferentes? E
também, como na vida, por sobressaltos, debilidades, angústias?
Quem lê os meus versos à procura da nomeação de Deus pode até ficar desiludido,
pois a nomeação explícita de Deus é escassa. Sou um poeta profano. Pode parecer
paradoxal, mas essa é também a minha forma de testemunhar o religioso.
Sinto que esse é um dos contributos que sou chamado a dar. A Bíblia é o grande
código para entender imaginação, razão e coração, pelo menos do mundo
ocidental. E é preciso não esquecer que a própria irrupção da modernidade
primeiramente se formulou como reivindicação do acesso à Bíblia. Ela é o sub-texto
necessário para entender a fundo expressões muito diversas da nossa cultura. A
poetisa brasileira Adélia Prado diz com graça e pertinência: "tudo é Bíblia", no
sentido em que ela está por todo o lado na chamada cultura erudita e na cultura
popular. Além desta incomparável valência cultural, a Bíblia é sobretudo um texto
religioso, um marco identitário, uma referência onde o divino e o humano se
encontram, uma palavra peculiar.
Mas, por outro lado, o cristianismo, graças a Deus, venceu a tentação de declarar
inimigos. O cristianismo não tem inimigos. O seus inimigos são a fome, o
sofrimento, as injustiças e desigualdades, a ausência de sentido... Gosto de pensar
no título de um livro de Albert Rouet, antigo bispo de Poitiers: "A chance de um
cristianismo frágil." Estes tempos representam também uma oportunidade para o
cristianismo reencontrar o seu rosto mais autêntico, mais profético. Talvez sejamos
menos, mas temos o dever de ir mais fundo. Talvez sejamos mais pobres, e isso
nos conduza a um estilo mais essencial e evangélico. Talvez tenhamos de deixar de
ser a massa para redescobrirmos que a missão dos cristãos é ser criativo fermento.
Este tempo é muito curioso, Maria João. Os indicadores não vão todos no mesmo
sentido. Há, por exemplo, entre nós um decréscimo da prática ritual, que precisa
ser interpretado de forma não unívoca, porque permanece e reforça-se a
disponibilidade para a procura espiritual. Ao mesmo tempo que algumas paróquias
se debatem com a rarefacção, os caminhos das peregrinações, por décadas e
décadas completamente silenciosos, voltam a encher-se de vozes. E é preciso
distinguir o que são indicadores europeus e a realidade do catolicismo noutras
geografias. Veja-se a Ásia, onde se regista uma vitalidade esperançosamente
primaveril. Nós somos tradicionalmente muito eurocêntricos, mas a verdade é que,
ao longo da história, o centro do mundo se deslocou muitas vezes. Temos muito a
aprender.
A Igreja não deve simplesmente voltar costas à cultura. A cultura, como realidade
vivida, nunca é a idealização que nós queríamos, mas é a realidade em bruto, onde
os limites e as derivas saltam à vista. Os homens não são anjos. Pascal dizia que
estamos a meio caminho entre a besta e o anjo. Seja o que for, é com esta cultura
que a Igreja deve tentar um diálogo criativo. Mantendo um distanciamento crítico e
uma proximidade cordial, afectuosa. As dificuldades não são desarmantes, são
desafiadoras.
Vale a pena ouvi-lo, mas não estranhou que poucas horas após ser
conhecida a notícia do seu prémio ela se tenha quase totalmente sumido
da nossa vista e dos palcos dos media?
O prémio representa uma forte chamada de atenção - é muito importante que o júri
tenha referido a dimensão ética, porque há de facto um sentido profundo dos
valores no pensamento e na acção de D. Manuel - mas claramente a atenção
mediática é precária e circunstancial. Muitas vezes é só a cultura do folhetim, de
que falava Hermann Hesse. Temos de complementá-la com outras formas, mais
persistentes, de interesse e acompanhamento.
A primeira vez que o ouvi, ainda era ele cardeal, foi no Colégio Português em
Roma, onde veio presidir e fazer homilia na missa e estar ao jantar. Lembro-me
que alguns de nós, que preparávamos nas universidades romanas as nossas teses
de doutoramento, lamentámos o dia litúrgico marcado para a visita dele, pois não
coincidia com a festividade de nenhum grande teólogo (Santo Agostinho, S. Basílio,
S. Tomás de Aquino), mas de uns então para nós obscuros santos André Kim, Paulo
Chong Hasang e companheiros, mártires na Coreia. Que iria ele dizer de referências
que nos pareciam tão distantes? A verdade é que, com um verbo luminoso e
cultíssimo, ele uniu Oriente e Ocidente, e mostrou como o contributo apostólico dos
santos de uma Igreja tão jovem como a da Coreia desafiava as igrejas da velha
Europa. Não serei original, mas é isso que mais me marca: a força audaciosa da
palavra de um mestre da fé e da humanidade.
O santo padre faz a sua visita a Portugal sob o signo da esperança. Vem como
testemunha da esperança, em tempos de hesitação e de descrédito, dizer-nos o
que vale a pena. Hoje a Igreja tem uma consciência acrescida de que o campo da
cultura é um espaço privilegiado de procura e construção de sentido. Sabe como
numa época que investe tanto na técnica há um défice grave de humanismo. É
natural que Bento XVI queira dialogar com aquelas e aqueles que, em Portugal, nas
artes, nas universidades, na ciência, no espectáculo, nos media, etc., são
protagonistas da comunicação humana e criadores de cultura, nas suas várias
acepções.
Qual é hoje o maior desafio que se depara aos cristãos? Que lhes dê asas,
mobilizando-lhes a vontade e a convicção nestes tempos que considerou
de "hesitação e descrédito"?