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CELSO LAFER A IDENTIDADE : INTERNACIONAL DO BRASIL IEA POLITICA EXTERNA BRASILEIRA + | PASSADO, PRESENTE E FUTURO. SAV) EN) [ws ae Sumario Nota Introdutéria L O Significado da Identidade Internacional num. Mundo Globalizado IL. O Brasil como um Pais de Escala Continental: A Relevancia das Origens Histéricas na ‘Construgao da Identidade Internacional Brasileira IIL O Contexto da Vizinhanga: o Brasil na América do Sul — sua Importancia na Construgao, da Identidade Internacional Brasileira IV. OBrasil no Eixo Assimétrico do Sistema Internacional: uma Poténcia Média de Escala Continental e as Constantes Grocianas de sua Atuacdo no Plano Multilateral 13 IS SI 65 V.A Busca do Desenvolvimento do Espago Nacional: Nacionalismo de Fins ea Diplomacia da Inseredio Controlada no Mundo 83 VL O Desafio do Século XXI: 0 Desenvolvimento através da Inser¢do no Mundo 107 Posfacio 123 wa" —— Nota Introdutéria Este livro foi redigido no ano 2000, a convite da Edi- tora Perspectiva. & um balanco de minhas pesquisas e reflexdes de muitos anos sobre a politica externa brasi- leira, adensado pela minha experiéncia diplomética na década de 1990. Neste sentido, combinei metodologica- mente o Angulo externo do estudioso das relagbes inter- nacionais ¢ o Angulo interno de quem viveu, na pritica, os limites e as possibilidades do embate entre os conceitos © as realidades. O seu momento inicial foi um artigo de 1967 sobre © sistema das nossas relagdes internacionais. © seu ante- cedente imediato foi o convite recebido em agosto de 1999 para escrever texto sobre politica externa de um ntimero especial de Daedalus — a revista da Academia Aumericana de Artes e Ciéncias, dedicado ao nosso pais. Esse volume coletivo, intitulado Brazil: The Burden of the Past; the Promise of the Future, publicado na prima- vera norte-americana de 2000 (vol. 129, n. 2) foi conce- bido no contexto reflexivo instigado pelos 500 anos. O presente livro é uma ampliagao elaborada do texto de Daedalus ¢ nele busco interpretar o Brasil a partir da perspectiva da politica externa, com destaque para a rela- Gao continuidade/mudanga do processo hist6rico de in- sergio do nosso pais no mundo. Neste esforgo de interpretagao, busquei também explicitar o “modelo”das relages internacionais do Bra- sil. Para isso procurei, um pouco maneira de Max Weber, construir um “tipo ideal”, vale dizer, uma organizagio de relagSes inteligiveis proprias a uma sucesso de aconte- cimentos, que adquirem significado & luz do nosso pre- sente. Devo ressalvar que, na elaboragio do “modelo”, realcei o que entendo ser sua coeréncia profunda, de dura- cio longa, e nfo suas incoeréncias conjunturais, que evi- dentemente existem e sao uma conseqiiéncia natural das contradigées da vida e da agio politica. Neste infcio de século XI, no qual a interagao Bra- sil/mundo é to importante para a configuragio do desti- no nacional ¢ 0 interesse pelas relagdes internacionais vem crescendo em nosso pais, é minha esperanga que este livro possa contribuir para a discussio e o debate democratico da politica externa como uma importante politica publica. Celso Lafer So Paulo, 15 de janeiro de 2001 14 Capitulo I OSIGNIFICADO DA IDENTIDADE, INTERNACIONAL NUM MUNDO GLOBALIZADO O termo identidade € carregado de problemas. Uma das suas muitas dificuldades é 0 relacionamento com ou- tros termos, tais como alteridade, diferenga, igualdade. Nao obstante essas dificuldades, pode ser entendido, por via de aproximaciio, como um conjunto mais ou menos ordenado de predicados por meio dos quais se responde A pergunta: quem sois? Se a resposta a esta pergunta no plano individual nao é simples, no plano coletivo é sem- pre complexa. O ponto de partida da construgio da identidade cole- tiva, como observa Bovero, é a idéia de um bem ou inte- resse comum que leva pessoas a afirmarem uma identi- dade por semelhanga, lastreada numa visdo compartilhada deste bem ou interesse comum!. Assim, por exemplo, 1. Michelangelo Bovero, “Identita Individuali e Collettive”, Richerche Politique Due — Identita, imeressie scelte colletive, Milano, Il Saggiatori, 1983, pp. 31-57. pode se falar na existéncia de uma identidade politica de esquerda ou uma de identidade religiosa cat6lica. Assim também pode se falar de identidades nacionais, que para- doxalmente se formaram e se formam em fungiio da vida internacional, no contato e na interagdo com o Outro. Anne-Marie Thiesse, ao discutir a criagdo das identida- des nacionais na Europa dos séculos XVIII, XIX e XX aponta que, se a nagdo nasce de um postulado ¢ de uma invengdo, ela s6 vive pela adesdo coletiva a esta inven gio, ou seja, por obra da interiorizagaio, por uma cidada- nia, daquilo que é considerado o repertério comum. Se este repertorio é ou n&o uma realidade, se ele é efetiva- mente comum’; se dele deriva um lastro de solidariedade que sustenta uma convivéncia coletiva apropriada, € ma- téria de recorrente discussao histérica, socioldgica e filo- s6fica no Brasil e nos paises do mundo. Esta proble- maticidade, por assim dizer ontolégica, nao é 0 que caracteriza a politica externa e a atividade diplomitica. Com efeito estas tém, como item permanente na agenda, o defender os interesses de um pais no plano internacio- + nal. Identificar esses interesses e a sua especificidade, diferenciando-os daqueles dos demais atores que ope- ram na vida internacional 6, assim, um problema pratico eum exercicio didrio da representagio da identidade cole- tiva de um pais. raduzir necessidades internas em possibilidades externas para ampliar o poder de controle de uma socie- dade sobre o seu destino, que é no meu entender a tarefa \ da politica-externa, considerada como politica ptiblica, 2, Anne-Maire Thiesse, La création des identites nationales — Europe XVII" = XX siécle, Paris, Seuil, 1999, pp. 11-18; Ernst Gellner, Encounters with Nationalism, Oxford, Blackwell, 1994. 16 passa por uma avaliaco da especificidade desses interes- ses*, Esta avaliago baseia-se numa visio, mais ou me- nos explicita, de como realizar o bem comum da coletivi- dade nacional, o que nao é uma tarefa singela. Num regime democratico, como € 0 caso do Brasil, pressupde proces- sos de consulta e mecanismos de representagio. Requer novos e abrangentes mapas de conhecimento & luz do pro- cesso de globalizagio que, lastreado na inovagio tecno- I6gica, nao sé acelerou o tempo e encurtou os espacos como também diluiu a diferenga entre o “interno” e o “externo”. A diluigio da diferenga entre 0 “interno ¢ 0 “exter- no” vem levando ao questionamento de uma das clissi- cas hipéteses de trabalho da teoria das relacGes interna- cionais: a que conferia & politica externa uma esfera de autonomia em relagio a politica interna. Tal autonomia estava lastreada nas caracterfsticas predominantemente interestatal € intergovernamental do funcionamento do sistema internacional, configurado pela Paz de Vestfélia (1648). Numa configuragdo interestatal, sio 0 diplomata c o soldado que vivem e simbolizam as relagdes internacio- nais, basicamente concentradas na diplomacia e na guer- ra como expressio da soberania, na formulagao de Raymond Aron‘, A expressiva diluigdo entre o “interno” e o “exter- no”, que vem sendo intensificada pelo movimento centrfpeto da Idgica da globalizagao, mudou a dinamica 3. Sobre a politica externa como politica piblica, ef. Marcel Merle, “La Politique étrangére”, Traité de Science Politique — 4 — Les politiques publiques, Madeleine Grawitz et Jean Leca, edit. Pa- ris, PUF, 1985, pp. 467-: 4, Raymond Aron, Paix et guerre entre les nations, 3 ed., Pa- ris, Calmann-Levy, 1962, p. 18. 7 das relag6es internacionais. E por esta razdo que hoje os estudiosos tendem a definir 0 campo como o das comple- xas redes de interacHo governamentais ¢ nflo governamen- tais — que estruturam 0 espaco do planeta e a governanga do mundo. Daf o tema de uma diplomacia global e 0 pro- blema correlato da sua multiplicidade de atores que pas- saram a incluir, rotineiramente, as empresas transnacio- nais, as organizagGes nao-governamentais, a midia ~ € seu papel na estruturagiio da agenda da opinitio publica, 0s partidos politicos, os sindicatos, as agéncias de rating do mercado financeiro etc.> Esta ampliagao do campo nfo elimina, no entanto, a importancia dos estados e das nagées na dinémica da vida internacional. Com efeito, no sé os individuos continu- am a projetar suas expectativas, reivindicagdes e espe- rangas sobre as nagGes a que pertencem, como também o bem-estar da imensa maioria dos seres humanos segue intimamente vinculada ao desempenho dos paises em que vivem. Por isso, a legitimagiio dos governos apéia-se cada vez mais na eficdcia que demonstrem no atendimento das necessidades e aspiracdes dos povos que representam. E por esta razio que no mundo contempor4neo os esta- dos e os governos so e permanecem sendo indispensé- veis instdncias piblicas de intermediagao*. Insténcia in- 5. Cf. Marie-Claude Smouts (ed.), Les Nouvelles Relations Internationales — Pratiques et Théories, Paris, Presses de Science Po., 1998, Introd. p. 14; Luigi Bonanate, “II Secolo delle Relazioni, Internazionali”, Teoria Politica, XV, n. 2-3, 1999, pp. 5-27; Keith Hamilton ¢ Richard Langhorne, The Practice of Diplomacy, its Evolution, Theory and Administration, London/N. York, Routledge, 1995. 6. Cf. Margareth Canovan, Nationhood and Political Theory, Cheltenham, Edward Elgar, 1996; Celso Lafer, discurso de posse, em 4 de janeiro de 1999, no cargo de Ministro do Desenvolvimento, 18 terna de intermediagao das instituiges politicas do esta- do com uma populagao que, num territério, compartilha umi repertério de bens econémicos, de conhecimentos técnicos e cientificos, de informagdo e de cultura; ins- tincia externa de intermediagiio com o mundo. Esta intermediagdo externa parte de uma vi: identidade coletiva, de um nds assinalador de especifici- dades. Entre estas especificidades cabe destacar a loca- lizagdo geografica no mundo, a experiéncia histérica, io da cédigo da lingua da cultura, os niveis de desenvolvi- mento € os dados de estratificagilo social. Tal diferenciactio obedece 4 lgica das identidades que interage com a Idgica da globalizacao no sistema in- ternacional, nele reverberando em novos moldes 0 jogo dialético entre as “Juzes” da objetividade racional da “Ilus- tracio” e a subjetividade da auto-expressao individual e coletiva liberadas pelo Romantismo. E esta interagao que conforma o pluralismo do mundo. Daf a razio de ser da diferenciagio de interesses estratégicos, politicos e eco- nGmicos € de visbes que dio a perspectiva organizadora © as coordenadas da insergao de um pais no mundo. E por este motivo que a diplomacia, como uma politica pabli- ca, se alimenta numa dialética de métua implicacdo e polaridade, tanto da Hist6ria do “eu”, quanto da Historia do “outro”, como aponta Luiz Felipe de Seixas Corréa’. Indtistria e Comércio, em Desenvolvimento, Indiistria e Comércio ~ Debates, Estudos Documentos — 1 (relat6rio de atividades, 1 de Janeiro de 1999 a 16 de julho de 1999, do Ministro Celso Lafer, no MDIC) Sto Paulo, FIESP/CIESP, Instituto Roberto Simonsen, 1999, pp.7-8. : 7. Luiz Felipe de Seixas Corréa, “Politica Externa ¢ Identidade Nacional Brasileira”, Politica Externa, vol. 9, n. 1 (jun./jul./ago.) 2000, p. 29. 19 Ortega y Gasset observou que a perspectiva € um dos componentes da realidade. Ela nfo a deforma, mas a orga- niza®, Esta avaliagio epistemol6gica de cardter geral é, pelos motivos acima expostos, extremamente apropria- lente a expressiio do ponto de’ vista dé tim pais sobre o mundo ¢ seu funcionamento, Este ponto de vista pode tei, como € 0 caso do Brasil, uma dimensio de continuidade, explicé- da para a andlise da politica externa, que é natural vel em fungao do impacto de certos fatores dé persistén- cia da insergao do pais na vida internacional. Tais fatores de persisténcia estao ligados ao que Renouvin e Duro- selle qualificam de “forgas profundas”, que oferecem in- dispensdveis elementos para explicar, de forma mais abrangente, iniciativas, gestos e decisdes governamen- tais’. No caso brasileiro, entre estes fatores cabe desta- car 0 dado geogrifico da América do Sul; a escala conti- nental; 0 relacionamento com os muitos paises vizinhos; aunidade lingiifstica; a menor proximidade, desde a Inde- pendéncia em 1822, dos focos de tensio presentes no centro do cendrio internacional; o tema da estratificagao mundial e 0 desafio do desenvolvimento. Estes fatores de persisténcia contribuem para explicar tragos impor- tantes da identidade internacional do Brasil, ou seja, o conjunto de circunstincias e predicados que diferen- ciam a sua visio € os seus interesses, como ator no siste- ma mundial, dos que caracterizam os demais pafses. Para a construgdo da identidade internacional do Bra- sil muito contribuiu a agao continua no tempo e qualita- tiva na matéria do Ministério das Relagdes Exteriores, 8. José Ortega y Gasset, EI Tema de Nuestro Tiempo, 13 ed., Madrid, Revista de Ocidente, 1958, cap. X. 9. Pierre Renouvin ¢ Jean-Baptiste Duroselle, Introduction & Vhistoire des relations internationales, 44 ed., Paris, Colin, 1991. 20 que logrou afirmar-se, no correr da histéria brasileira, como instituigdo permanente da nagao, apta a represen- tar os seus interesses, porque dotado de autoridade ¢ de memoria. A consciéncia da memoria de uma tradico diplomatica — a existéncia dos antecedentes, na lingua- gem burocratica ~ confere & politica externa brasileira a coeréncia que deriva do amélgama das linhas de conti- nuidade com as de inovagao, numa “obra aberta” voltada para construir o futuro através da asserciio da identidade internacional do pais. Dai um certo estilo de comporta- mento diplomatico que caracteriza o Itamaraty ¢ que 6, como todo estilo, expresstio de uma visio do mundo”. A relagio entre passado e futuro, tradigio e renova- iio, em matéria de politica externa e do papel do Ttama- raty, foi formulado nos seguintes termos por San Tiago Dantas, com aquela limpidez conceitual que foi a marca de sua presenga na vida pablica brasilei A €ontinuidad&¢ requisito indispensdvel a toda politica exterior, pois se em relagdo aos problemas administrativos do pais sfio meno- res os inconvenientes resultantes da r4pida liquidagao de uma expe- rigncia ou da mudanga de um rumo adotado, em relagio & politica exterior é essencial que a projecio da conduta do Estado no seio da sociedade internacional revele um alto grau de estabilidade e assegu- re erédito 20s compromissos assumidos. A politica exterior do Brasil tem respondido aessa necessidade de coeréncia no tempo. Embora os objetivos imediatos se transfor- ‘mem sob a evolugdo histérica de que participamos, a conduta inter- nacional do Brasil tem sido a de um Estado consciente dos préprios fins, gracas 4 tradigdo administrativa de que se tornou depositéria a Chancelaria Brasileira, tradigao que nos tem valido um justo conceito nos cfrculos internacionais'’ 10. Celso Lafer, “A Autoridade do Itamaraty”, A Insergito In- ternacional do Brasil — A Gestao do Ministro Celso Lafer no Hamaraty, Brasflia, M.RE., 1993, pp. 375-387 11, San Tiago Dantas, Politica Externa Independente, Rio de Janeiro, Civilizagao Brasileira, 1962, p. 17. 2 Nos capitulos que seguem, examinarei tragos bési- cos da identidade internacional do Brasil a partir destas linhas de raciocinio, voltadas para buscar e apreender as tendéneias inerentes & “duragio longa” da diplomacia bra- tragos da identi- dade e da sua evolugao configuraram a politica externa sileira. Meu objetivo é indicar como do pais no passado; a seguir, como. sio.conformadoras das suas atuais caracterfsticas; finalmente, especular so- bre que. tipo de impacto poderdo ter na elaboragio do futuro da politica externa do Brasil. Ea partir dessa linha de raciocfnio que proporei algu- mas reflexdes sobre a politica exterior brasileira nesta virada do milénio, lastreadas no processo de construgo da nossa identidade internacional. 22 Capitulo II O BRASIL COMO UM PAIS DE ESCALA CONTINENTAL: A RELEVANCIA DAS ORIGENS HISTORICAS NA CONSTRUGAO DA IDENTIDADE INTERNACIONAL BRASILEIRA Brasil tem uma especificidade que lhe confere identidade singular no dmbito do sistema internacional, no século que se inicia. E, pelas suas dimensdes, um pafs continental, como os EUA, a Russia, a China (membros- permanentes do Conselho de Seguranga) e a india. B por esta razio que George F. Kennan, em Around the Cragged Hill, ao pensar sobre o tema das dimensdes na “experiéncia politica norte-americana, inclui o Brasil junto com estes paises na categoria deqonster countrys consi- derando, na construgao desta qualificagiio, além dos da- dos geogrificos e demogréficos, os dados econdmicos ¢ politicos e a magnitude dos problemas e dos desafios'. Com efeito, o Brasil, pelo tamanho de seu territério (8 547 000 km? —o quinto pais do mundo em extensio), de 1. George F. Kennan, Around the Cragged Hill — A Personal and Political Philosophy, N. York, Norton, 1993, p. 143. sua populagaio (170 milhdes de habitantes) e pelo seu PIB (que situa a economia brasileira entre as 10 maio- res do mundo) é, naturalmente, parte da tessitura da or- dem internacional. Tem assim, naturalmente, uma world view, como registra Kissinger ao relatar suas conversas com as autoridades brasileiras na década de 70°. Ele é, evidentemente, muito diferente da China e da india, pafses asidticos de cultura milenar; da Russia, si- tuada entre a Asia e a Europa e presenga relevante desde séculos na cultura e na politica desta; ¢ também dos Esta- dos Unidos, que no inicio do século XX surgem como ator importante na cena mundial. Os Estados Unidos, ape- sar de terem em comum com 0 Brasil o fato de serem parte do “novo mundo” criado pela expansiio européia partir das descobertas do século XVI, singularizam-se inequivocamente por serem hoje no sistema internacio- nal a Gnica superpoténcia mundialmente apta a atuar no p6s-Guerra Fria em todos os campos diplomaticos: 0 estratégico-militar, 0 econdmico e 0 dos valores. Além. desses e de muitos outros aspectos que claramente nos diferenciam dos paises continentais acima mencionados, cabe ressaltar, na reflexao sobre a nossa identidade inter- nacional, que, por situar-se na América do Sul, 0 Brasil nao estd e nunca esteve, em sua histéria, na linha de fren- te das tenses internacionais prevalecentes no campo estratégico-militar da guerra e da paz. Por isso, para vol- tar a Kennan, nao é um monster country assustador e naio freqiienta, com assiduidade, os livros de relagdes inter- nacionais e de Hist6ria Diplomdtica mundial. Se um dos dados da identidade internacional do Bra- sil € a sua escala continental; se o territério € uma das 2. Henry Kissinger, Years of Renewal, London, Weidenfeld and Nicolson, 1999, p. 740. \ 24 : dimensées da nagdo (dimensio que faz da delimitagiio do espago nacional um momento importante da politica ex- terna de qualquer estado), cabe perguntar: como é que se foi configurando a escala continental do pais que € hoje o Brasil? Sua especificidade geogrdfica é resultado de um pro- cesso hist6rico, iniciado ha 500 anos. Navegantes, ban- deirantes ¢ diplomatas foram os trés agentes sociais que no percurso da criagao do Brasil configuraram a esca- la do pais, como mostrou Synésio Sampaio Gées Filho em livro recente sobre a formagio e a delimitagio das fronteiras nacionais. Na andlise desse processo ele subli- nha que a geografia do pais que € hoje o Brasil resultou: ( dos navegantes portugueses que descobriram 0 conti- nente sul-americano (no que pode ser considerada a pri- meira leva da globalizagio); (ii) dos bandeirantes que ocuparam o territdrio e foram muito além dos limites estabelecidos pelo Tratado de Tordesilhas, celebrado em 1494 entre a Coroa Espanhola e Portuguesa, e voltado muito especialmente para a fixagao da linha divisoria das areas de influéncia luso-castelhana no Atlantico e (iii) dos diplomatas que, a partir de uma ago iniciada no sé- culo XVIII, foram consolidando a titulag%o juridica do territ6rio nacional, seja através de negociagao de trata- dos, seja através da arbitragem internacional?. Com efeito, a origem da escala continental do Brasil esta na expansio ultramarina portuguesa, um dos ingre- dientes inaugurais da Idade Moderna. Com os descobri- mentos ¢ as suas conseqiiéncias, Portugal deixou de ser 3. Synésio Sampaio Gées Filho, Navegantes, Bandeirantes, Diplomatas ~ Um Ensaio sobre a Formagéo das Fronteiras do Bra- sil, Sto Paulo, Martins Fontes, 1999. Sobre Tordesilhas, cf. Paulo Roberto de Almeida, Relagdes Internacionais e Politica Externa do Brasil, Porto Alegre, Editora da UFRGS, 1998, pp. 101-120, 25 um pequeno Reino independente da peninsula ibérica e ingressou no seu tempo imperial, numa metamorfose que instalou, como observou Eduardo Lourengo, o pais e a cultura Iusitana num espaco fechado, porém de ambito universal’, A expan uma ago deliberada voltada para o desenvolvimento em ultramarina portuguesa teve como base Portugal, no século XV, da ciéncia da navegacio. Daf os avangos técnicos na construgiio de navios, nos instrumen- tos nduticos, na cartografia e na competéncia de orienta- do no mar pelo conhecimento da astronomi: O lastro da ciéncia de navegagio € indicativo de que as descobertas portuguesas nio foram uma improvisa- ¢ao. Nao deixaram de ter no entanto um fortissimo com- ponente de aventura, pois significavam, nas palavras de Camées, em Os Luséadas, singrar “Por mares nun- ca de antes navegados” (1,1). A aventura de expansio ultramarina portuguesa, lastreada nos conhecimentos da navegagio, teve como um de seus fundamentos a valorizacio de um saber hauri- do na experiéncia. Foi com base no ver e nao no ler que em Portugal se desenvolveram a astronomia de posigio ea geografia fisica*. Esta tradicdo portuguesa de um enten- dimento que repousa na experiéncia é afirmada em Os Lusiadas (VI1,99). No seu poema, a tnica grande epopéia da moderni- dade, Camées — que foi ao mesmo tempo, Poeta, Nave- 4, Eduardo Lourengo, Mitologia da Saudade, Sio Paulo, Com- panhia das Letras, 1999, p. 96. 5. Luis de Albuquerque, “The Art of Astronomical Navigation”, Portugal-Brazil: The Age of Atlantic Discoveries, Max Guedes € Geraldo Lombardi, (org.), Lisbon/Milan/N. York, Bertrand Editora/ Franco Maria Ricci/Brazilian Cultural Foundation, 1990, pp. 23-6: Milton Vargas, “A Ciéneia do Renascimento e a Navegacao Portu- 26 gador e Guerreiro — exprime a identidade e os propési- tos de Portugal, oriundos das grandes navegagées, que estao na origem do Brasil. Exprime os intuitos de dilatar a Fé € 0 Império (1,2), promover o comércio (VII,62), inclusive 0 do pau-brasil, primeira atividade econdmica exportadora do novo pafs, devidamente nomeado pelo Poeta (X,40) que tem em uma das mios a espada (da con- quista) e na outra a pena (da cultura) (VII,79). O saber de experiéncias feito, valorizado por Camdes (IV,94), propiciou-Ihe, como aponta Gilberto Freyre, um olhar antropoldgico, atento ao diferente das culturas, da flora e da fauna e aberto & atragiio das mulheres nao euro- péias®. Esta atragdo, nos seus desdobramentos coletivos, um dos componentes de miscigenaciio, que veio a con- figurar o povo do Brasil; ¢ 0 olhar lusitano aberto ao dife- rente € um dado-chave da ocupagio do que veio a ser 0 nosso territério. Com efeito, segundo Sérgio Buarque de Holanda, para poder percorrer os caminhos — 0 convite ao movi- mento que instigou os bandeirantes paulistas, num pro- cesso que alargou as fronteiras da presenga portuguesa na América do Sul -, era preciso lidar com a sua realida- de. No trato com a realidade sul-americana, a ago coloni- zadora realizou-se por uma continua adaptagao ao meio ambiente, numa flexibilidade aberta a padroes primitivos e rudes dos indigenas, para s6 depois e aos poucos, com base na experiéncia, implantar formas de vida trazidas da Europa. guesa”, Revista Brasileira de Filosofia, vol. XLIV, fase. 190 (abr mai./jun.) 1998, pp. 141-154. 6. Gilberto Freyre, Camaes: Vocagiio de Antropélogo Moder- 1no?, So Paulo, Conselho da Comunidade Portuguesa do Estado de ‘So Paulo, 1984. 21 Esta flexibilidade no trato de um continente desco- nhecido, que tornou exeqtifvel a “atracdo pelo sertio” e impeliu as bandeiras, explica igualmente a especificidade das “mongdes”, que esttio na base da ocupagio do Oeste. E foram esses movimentos pelo territ6rio que levaram & “fronteira conquistada” do Rio Amazonas, assim como impulsionaram a busca da “fronteira desejada” do Rio da Prata’, Nestes movimentos teve um papel decisivo a agao local e a cobiga que a instigava, mas também esteve pre- sente 0 papel diretivo da Coroa Portuguesa. Este foi real- gado por Jaime Cortesio na sua anélise da atuagiio de Raposo Tavares na formagao territorial do Brasil, com destaque para a sua grande e tiltima bandeira de limites. A empreitada de Raposo Tavares reitera em terra, no sécu- lo XVII, a aventura no mar dos séculos XV e XVI. No dizer do Pe. Antonio Vieira, em carta de 1654, citada por Jaime Corteséo, comporta comparagio com os feitos fabulosos dos argonautas ¢ é um exemplo da constancia e valor, deslustrado no entanto pela violéncia dos homict- dios ¢ latrocinios em relac&o aos indios, faceta sombria das bandeiras que nio se pode ignorar’, Os caminhos ¢ o alargamento das fronteiras dos do- minios portugueses na América do Sul dao um dos senti- dos da histéria do Brasil, que é, no entender de José 7. Sérgio Buarque de Holanda, Caminhos e Fronteiras, Rio de Janeito, José Olympio, 1957; Mongées, Sao Paulo, Brasiliense, 1990; 0 Extremo Oeste, Sio Paulo, Brasiliense, 1986; Hana Blaj, “Sérgio Buarque de Holanda: Historiador da Cultura Material”, em Antonio Candido (org.), Sérgio Buarque de Holanda e 0 Brasil, $0 Paulo, Bditora Perseu Abramo, 1998, pp. 29-48; Synésio Sampaio Goes Filho, Navegantes, Bandeirantes, Diplomatas, pp. 89-159, 8, Jaime Cortestio, Raposo Tavares e a Formagéo Territorial do Brasil, Rio de Janeiro, MEC — Servigo de Documentagao, 1958, pp. 379-380, 439-449, 28 Honrio Rodrigues, o do descobrimento, conquista, ocu- paciio efetiva e integracio do espago nacional’. Este sentido da histéria do Brasil obteve confirma- ¢o e reconhecimento através da agio dos diplomatas, que assim complementaram a aco dos navegantes e dos bandeirantes na delimitagao do espaco nacional durante e depois do perfodo colonial. De 1580 a 1640, a época filipina do Brasil, que resultou da unio da Espanha e de Portugal numa monarquia dual, a expansio do territério foi politicamente facilitada, pois nao havia problemas diplomaticos a instigar a diferenciagdo entre possessées portuguesas e espanholas"®. Subseqiientemente, merecem registro, em primeiro lugar, as negociagdes que ocorre- ram de 1641 a 1699 entre Portugal e Holanda, objeto de estudo recente e de superior qualidade por parte de Evaldo Cabral de Mello. Por meio delas, Portugal recriou diplo- maticamente o monolitismo do seu dominio na América do Sul, quebrado por um quarto de século em fungao da presenga holandesa em Pernambuco, durante a época filipina. Este um dado da politica externa que teve gran- de importdncia e veio a ser no futuro um dos fatores da unidade territorial do Brasil". No século XVIII, merece destaque o Tratado de Ma- dri, celebrado em 1750 entre a Coroa Portuguesa e a 9. José Honsrio Rodrigues, Histéria Combatente, Rio de Ja- neiro, Nova Fronteira, 1982, pp. 94-101; Demétrio Magnoli, O Cor- po da Pétria — Imaginagéo Geogréfica e Politica Externa no Bra- sil, S40 Paulo, UNESP/Moderna, 1997, caps. I, Ile VI. 10, Sobre a realidade histérica do Brasil no perfodo filipino cf. Roseli Santaella Stella, O Dominio Espankol no Brasil Durante a Monarquia dos Filipes 1580-1640, Sto Paulo, Unibero, 2000, ¢ 0 importante preficio de Luiz Felipe de Seixas Corréa. 11. Bvaldo Cabral de Mello, O’Negécio do Brasil, Portugal, os Patses Baixos ¢ 0 Nordeste, 24ed., Rio de Janeiro, Top Books, 1998, p. 14. 29 Espanhola, que fixou pela primeira vez os limites das res- pectivas possessdes na América. Este Tratado representa © marco inicial da ago diplomatica voltado para a confi- guragio juridica do territ6rio brasileiro. Negociado pela parte portuguesa por Alexandre de Gusmao, nascido em Santos, no Brasil, seu significado est4 na rentncia a li- nhas imagindrias de demarcagdo, como explicou 0 Bardo do Rio Branco em 1894, ao discutir a questao dos limi- tes entre o Brasil ¢ a Argentina, submetida com sucesso 4 decisao arbitral do Presidente Cleveland dos EUA®. Com efeito, o Tratado foi concebido em torno de dois objetivos concretos, assim expressos na linguagem dire- ta do seu preambulo: O primeiro e mais principal é, que se assinalem os Limites dos dois Dominios, tomando por balizas as paragens mais conhecidas, para que em nenhum tempo se confundam, nem déem ocasiao a disputas, como so a origem, e curso dos rios, e os montes mais notiiveis: O segundo, que cada parte hi de ficar com o que atualmen- te possui, & excegdo das miituas cessdes, que em seu lugar se dirto; as quais se faro por conveniéncia comum, e para que os Confins fiquem, quanto for possivel, menos sujeitos a controvérsias" O Tratado de Madri representou juridicamente a superagio do Tratado de Tordesilhas ¢ consagrou de maneira criativa duas regras basicas para delimitar as imensas éreas coloniais do centro da América do Sul: 0 reconhecimento da ocupagao, que os juristas passaram a 12, Rio Branco, Exposigdo que os Estados Unidos do Brasil Apresentam ao Presidente dos Estados Unidos da América como Arbitro, Segundo as Estipulagées do Tratado de 7 de Setembro de 1889, Concluido entre o Brasil e a Reptiblica Argentina, vol. I, Exposigdo (The Original Statement), New York, 1984, p. 24. 13. 0 texto esté reproduzido em Jaime Cortesto, Alexandre de Gusméo e 0 Tratado de Madrid Parte 1, tomo Il, Rio de Janeiro, Ministério das Relagdes Exteriores/Instituto Rio Branco, 1956, p. 365. 30 qualificar de uti possidetis, e a procura de fronteiras natu- rais. Em fungao da utilizagao dessas duas regras nas posi- gGes defendidas no Império e na Repdblica em disputas territoriais, A. G. de Aradjo Jorge qualificou Alexandre de Gusmio como 0 av6 dos diplomatas brasileiros"* Esta qualificagéo tem a maior procedéncia, uma vez que a heranga portuguesa do Tratado de Madri estabele- ceu uma linha de continuidade que o Brasil Independente subseqilentemente explorou, para transformar “a idéia de limite da era colonial na idéia de fronteira, base da vizi- nhanga, da cooperagio e paz”, nas palavras de Oswaldo Aranha', e assim encaminhar 0 primeiro item de qual- quer agerida diplomatica, que é o da fixagao das frontei- ras, base da especificidade da politica externa que pressu-~ Ge uma diferenga entre o “interno” (0 espago nacional) 0 “externo” (0 mundo). : Territ6rio € um dos componentes de um estado-na- fo no plano internacional. Governo é outro. A criagdo de um governo soberano no Brasil, em 1822, diferencia © nosso processo de independéncia de todos os demais paises das Américas naquilo que foi a primeira leva da descolonizagao. O processo da Independéncia do Brasil é, de fato, tinico, como realgou recentemente Kenneth Maxwell. Representou no dizer de Maria Odila Silva Dias, a “interiorizagiio da metrépole”" 14. A. G. de Araiijo Jorge, Ensaios da Histéria e Critica, Rio de Janeiro, Ministério das Relagdes Exteriores, 1948, pp. 105-142. 15. Oswaldo Aranha, “Limite, Fronteira e Paz” (Conferéncia Pronunciada na Universidade de Bucknell, Pensilvania, em 8 de julho de 1937) em Oswaldo Aranha, 1894-1960 — Discursos e Conferén- cias, Brasflia, Fundagio Alexandre de Gusto, 1994, p. 21. 16, Kenneth Maxwell, “Porque o Brasil Foi Diferente? O Con- texto da Independéncia”, em Carlos Guilherme Mota (org.), Viagem Incompleta, A Experiéncia Brasileira (1500-2000) Formagéo: His- 16rias, Sao Paulo, Ed. Senac Sio Paulo, 2000, pp. 179-195; Maria 31 Com efeito, a ruptura que se insere no processo mais amplo, politico e econ6mico, da desagregagao do siste- ma colonial, se dé com importantes componentes de con- tinuidade em relagao a Portugal, singularizando o ingres- so do Brasil no concerto das NagSes. Como € sabido, em 1808 a Corte Portuguesa, com 0 apoio da Gra-Bretanha, lidou com o expansionismo das tropas napoleOnicas na Peninsula Ibérica transplantando-se para 0 Brasil - pro- jeto que nfo era novo em Portugal. A presenga aqui do Principe Regente D. Jodo, que se estende até 1821, tras- ladou a metrépole para a col6nia, cabendo registrar que em 1815, por sugestiio do Congresso de Viena, do qual Portugal participou, o Brasil foi elevado a categoria de Reino-Unido aos de Portugal e Algarves. Em 1822, a Inde- pendéncia foi proclamada pelo filho do j4 entéo rei D. Jodo VI, o principe herdeiro D. Pedro, que ficara no Bra- sil como regente, finalizando-se com apoio inglés o reco- nhecimento internacional do novo império pelo tratado de 1825, celebrado entre pai e filho'’. Este é um dado politico que ajuda a explicar porque o relacionamento entre Portugal e o Brasil, desde a Independéncia, nao é propriamente o de uma ex-metrépole e uma ex-colénia, como freqiientemente aconteceu entre a Espanha e as suas antigas possessdes nas Américas. Odila Silva Dias, “A Interiorizagaio da Metrépole (1808-1853)” em Carlos Guilherme Mota (org.), 1822 — Dimensées, Siio Paulo, Pers- pectiva, 1972, pp. 160-184; Oliveira Lima, D. Jodo VI no Brasil 1808-1821, 2 ed., 3 vols, Rio de Janeiro, José Olympio, 1945. 17. Os textos da Carta da Lei elevando o Brasil & Categoria de Reino (16 de dezembro de 1815) ¢ 0 Tratado de Paz ¢ Alianca entre © Senhor D. Pedro I, Imperador do Brasil © D. Joio VI, Rei de Portugal, de 29 de agosto de 1825 estio reproduzidos em Textos de Direito Internacional e da Histéria Diplomdtica de 1815 a 1949, coligidos ¢ anotados por Rubens Ferreira de Mello, Rio de Janeiro, A. Coelho Branco, 1950, pp. 15-17, 24-27; Hélio Vianna, Historia 32 Bm 1822, 0 que estava em jogo com a afirmagao de jorial € a esta- uma nova soberania era a integridade te: bilidade da monarquia. Foi neste contexto que 0 Imipérfo criou um estado nacional efetivo e logrou manter o Bra- sil unido no Ambito do seu vasto territ6rio, dois dos gran- des objetivos dos seus construtores. Pimenta Bueno, o consolidador constitucional do Império ¢ cuja exegese da Constituigdio de 1824 contri- buiu, no dizer de Miguel Reale, para 0 aperfeigoamento da consciéncia imperial que inspirou os estadistas do Se- gundo Reinado", explicita com clareza estes dois obje- tivos. Realga, compreensivelmente para um pais novo, na sua anéllise do artigo 1°, a importancia da manutengao de uma “existéncia nacional livre e soberana” e afirma que 0 territério do Império é “a sua mais valiosa propriedade”, sublinhando que a sua integridade e indivisibilidade € “nao 86 um direito fundamental, mas um dogma politico”. Dis- cute o poder moderador — competéncia constitucional inspirada pelas idéias de Benjamin Constant — contem- plado na Constituigao de 1824, como delegagao A Coroa (art. 98). Nele vé uma faculdade, voltada para fazer com que os diversos poderes politicos se conservem no seu Ambito, concorrendo harmoniosamente para 0 bem-es- da Reptblica/Histéria Diplomdtica do Brasil, 2 ed., S80 Paulo, Melhoramentos, s/d., pp. 164-173; Amado Luiz Cervo, em Amado Luiz Cervo e José Calvet de Magalhaes, Depois das Caravelas. As Relagdes entre Portugal e o Brasil 1808-2000 (org. ¢ apresent. Dario Moreira de Castro Alves), Lisboa, Ministério de Negécios Estrangei- ros/Instituto Camées, 2000, pp. 53-102. O significado da vinda de D. Joo VI para o Brasil no processo do desenvolvimento politico do Brasil esta muito bem explicitado por Hélio Jaguaribe em Desenvol- vimento Econdmico e Desenvolvimento Politico, 2 ed., Rio de Ja- neiro, Paz e Terra, 1969, pp. 141-149. 18. Miguel Reale, Figuras da Inteligéncia Brasileira, 2% ¢d., Sio Paulo, Siciliano, 1994, p. 50. a anAILZ iq tar nacional e, para isso, impedindo os seus abusos ¢ man- tendo o seu equilibrio. E, em sintese, “o drgio politico mais ativo e mais influente, de todas as instituigdes fun- damentais da nagao”®, O abrasileirado exercicio, por D. Pedro I, do Poder Moderador, como 0 6rgio politico mais ativo da nagdo, é um dos dados chave para entender-se o funcionamento da ordem criada pela monarquia constitucional. Um dos seus aspectos mais importantes € a centralizagio politi- cae administrativa. “Sem a centralizagao nao haveria Im- pério” como dizia o Visconde do Uruguai, que lembrava neste contexto, refletindo sobre as realidades do Brasil no século XIX: “Sem a centralizag&o como ligar o Sul € © Norte do Império, quando tantas dessemelhangas se dao nos climas, territérios, espirito, interesses, comércio, produtos e estado social?” O debate sobre os aspectos positivos e negativos da centralizagdo e sobre as possibilidades do federalismo, que acabou se afirmando com a Repiiblica, foi um dos itens importantes da agenda politica brasileira do século XIX, Na verdade, como afirma José Murilo de Carvalho, este item € parte de uma sociologia da sociedade nacio- nal"! ¢ por isso mesmo, em novos termos, estende-se até 19. J. A, Pimenta Bueno, Direito Pidblico Brasileiro e Andlise da Constituigao do Império, Rio de Janeiro, Ministétio da Justiga ¢ Negécios Interiores/Servigo de Documentagao, 1958, pp. 20-21. 20. Visconde do Uruguai, Ensaio sobre o Direito Administrati- vo, Brasilia, Ministério da Justiga/Série Arquivos do Ministério da Justia, 1997, pp. 355-356, 21. José Murilo de Carvalho, Pontos e Bordados ~ Escritos da Historia e Politica, Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999, pp. 155- 188; cf. também, Afonso Arinos de Melo Franco, O Som do Outro Sino, Um Brevidrio Liberal, Rio de Janeiro,,Civilizagao Brasileira, 1978, pp. 146-171 34 08 nossos dias. Para os propésitos deste livro, no entan- to, 0 que importa realgar é a importancia do papel do Im- pério na elaboragdo da identidade e da insergio internacio- nal do Brasil”, A Monarquia foi a base da identidade internacional sui generis do Brasil.no século XIX, no ambito das Amé- mm Império em meio a Repiblicas; uma grande mas- ricas: sa territorial de fala portuguesa que permaneceu unida num mundo hispanico que se fragmentava, tendo no He-_ misfério Norte os Estados Unidos da América expandin- do-se territorialmente. Por isso, no século XTX, em fun- Gao de nossa insergio na América do Sul, ser brasileiro era ser nao-hispanico. Neste sentido, o Brasil recria em escala continental a singularidade lingiistica e sociolé- gica que, na Europa e na Peninsula Ibérica, caraterizaram historicamente Portugal. Foi a Reptiblica, instaurada em 1889, que sublinhou 0 dado geogréfico da insergio do Brasil nas Américas. Dizia neste sentido o Manifesto Republicano de 1870: “Somos da América e queremos ser americanos”. E por este motivo que o advento da Republica trouxe, como 22.Cf. Arno Webling, A Invengaio da Histéria~ Estudos sobre 0 Historicismo, Rio de Janeiro, Universidade Gama Filho/Editora da Universidade Federal Fluminense, 1994, cap. 9; Arno Wehling, Es- tado, Historia, Meméria: Varnhagen e a Construgdo da Identidade Internacional, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999; José Murilo de Carvalho, A Construgaio da Ordem — A Elite Politica Imperial, Rio de Janeiro, Campus, 1980; Demétrio Magnoli, O Corpo da Patria, cap. III; Carlos Guilherme Mota, “Idéias de Brasil: Formagiio e Pro- blemas (1817-1850)" em Carlos Guilherme Mota (org.), Viagem Incompleta. A Experiéncia Brasileira (1500-2000), Formagao: His- torias, pp. 199-238. 23. Reynaldo Cameiro Pessoa (org.), A Idéia Republicana no Brasil Através dos Documentos, Sio Paulo, Alfa-Omega, 1973, p. 60. 35 mostrou Clodoaldo Bueno, a “americanizagio” das rela- g6es exteriores, Esta “americanizagio” tinha como um dos seus objetivos desfazer a percepgio de que o Brasil era o “diferente” da América em fungao das suas institui- ges mondrquicas e do que isto significava, politica economicamente, em matéria de ligagdes com 0 Con- certo Europeu**. O “ser diferente” tinha suas vantagens. Lembra neste sentido Euclides da Cunha em Contrastes e Confrontos: “A Repiblica tirou-nos do remanso isolador do Império para a perigosa solidariedade sul-americana”, Esta para ele era perigosa porque nos prendia as desordens tradicio- nais dos povos e das teptiblicas da América Espanhola. Mas ao mesmo tempo Euclides reconhecia a importan- cia da fraternidade republicana, como “a garantia supre- ma € talvez tinica de toda a raga latina diante da concor- réncia formidavel de outros povos’”s. E neste sentido que surge, com a Repiiblica, a percepgiio de que ser brasilei- To era também ser latino-americano. Para esta percep- ¢4o contribuiu também muito, na dialética diplomatica da Hist6ria do “eu” e do “outro”, a crescente afirmagio internacional do “destino-manifesto” dos EUA que le- vou diplomatas de peso e intelectuais, como Oliveira Lima, José Verissimo ¢ Manuel Bonfim, a apontar o que temos em comum com “nuestra América”, 24, Clodoaldo Bueno, A Repblica e sua Politica Exterior (1889 1902), Sao Paulo, Brasilia, Editora da UNESP/Fundagio Alexan- dre de Gusmio, 1995, 25. Buclides da Cunha, Contrastes e Confrontos em Obra Cont- pleta, vol-1, Rio de Janeiro, Aguilar, 1966, pp. 166-169. 26. Antonio Candido, Ensayos y Comentdrios, Sio Paulo, Edi- tora da UNICAMP/Fondo de Cultura Econémica de México, 1995, pp. 319-353; Oliveira Lima, Pan Americanismo (Monroe, Bolivar, Roosevelt), 2 ed., Brasilia-Rio de Janeiro, Senado Federal, Casa de 36 Territério e governo s6 tém significado, num esta- do-nagao, em fungiio de seu povo. José Bonifacio, o Pa- triarca da Independéncia, cientista de nomeada e represen- tante da “Ilustrag40” européia, que se formou e viveu na Europa, tondo participado da administragio publica por- tguesa antes de voltar ao Brasil, inaugurou a linhagem dos intelectuais brasileiros que pensaram e propuseram projetos politicos para a conformacao do futuro pats. E dele a metéfora, tipica do experiente metalurgista que era, segundo a qual 0 povo brasileiro deveria resultar de uma nova liga que amalgamasse, em um corpo s6lido politico, o metal heterogéneo de brancos, indios e mula- tos, pretos livres e esctavos que constituiam a populagio do Brasil no inicio do século XIX. Como reformista ilus- trado, atribufa ao legislador sdbio e prudente a funcio do escultor que de pedagos de pedra faz estdtuas. Por isso, com inspiragao radical, propés a integragio do indfgena, io e do trafico de escravos, e a reforma o fim da escravi agraria, uma vez que para ele “a patria nfo é mae que de- vora parte dos filhos para facilitar outro exclusivamente, pelo contrério™”, Neste ingresso no século XI estamos longe de ter equacionado 0 tema da exclusiio, que era parte constitutiva do projeto politico de José Bonifacio. Para isso contri- buiu o fato de sé ter sido extinto em 1850, pela agio legislativa e politica do Império, 0 tréfico maritimo de Ruy Barbosa, 1980; José Verissimo, Cultura, Literatura e Politica na América Latina, selecio e apresentagao de Jotio Alexandre Bar- bosa, Sao Paulo, Brasiliense, 1986; Manuel Bonfim, A América La- tina ~ Males de Origem, 2° ed., Rio de Janeiro, A Noite, s/d, 27. José Bonifacio de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, organizagao de Miriam Dolhnikoff, Sio Paulo, Companhia das Le- tras, 1998, pp. 31, 156, 170. 31 escravos africanos para o Brasil. Igualmente, a abolicao da escraviddo, que José Bonifacio também tinha advoga- do em 1823 no seu projeto 4 Assembléia Geral Consti- tuinte, s6 ocorreu em 1888, 0 que fez do regime servil uma das grandes iniqiiidades que no século XIX permeou aconstrugao da nacionalidade. Aliés, enquanto perdurou, 0 tréfico acarretou problemas diplomaticos para o Bra- sil. Com efeito, a Gra-Bretanha, através de sua esquadra, ao dedicar-se A sua repressio (0 que seus executores hoje qualificariam de “intervengao de humanidade”), esbarrou nas suscetibilidades soberanas do Império, suscitando dificuldades nas relagGes bilaterais entre dois paises”. Se é certo que a exclusio social é um problema pen- dente e recorrente na agenda do Brasil, também é certo que ocorreu 0 amélgama definido por José Bonifacio. O Brasil, como apontou Darcy Ribeiro, é uma confluéncia de variadas matrizes raciais e distintas tradigdes cultu- rais que, na América do Sul, sob a regéncia dos portugue- ses, deu lugar a um povo novo. Este nao € propriamente um povo transplantado, que tenta reconstruir a Europa em novas paragens. Ele contrasta com os povos-teste- munha do México ¢ do altiplano andino — herdeiros das grandes civilizagdes pré-colombianas — que vivem na car- ne € no espirito o drama da dualidade cultural e o proble- ma/dilema da integragdo a cultura ocidental. E um novo mutante, com caracterfsticas préprias, mas inequivoca- 28. Cf. Joaquim Nabuco, O Abolicionismo — Discursos e Con- Jeréncias Abolicionistas, Sa0 Paulo, Instituto Progresso Editorial, 1949; Um Estadista do Império, 5° ed., Rio de Janeiro, Topbooks, 1997, vol. I, Livro Il, cap. V; Carlos Delgado de Carvalho, Histéria Diplomatica do Brasil (ed. fac-similar da 1 edigio de 1959), introd. de Paulo Roberto de Almeida, apresent. de Rubens Ricupero, Brasilia, Senado Federal, 1998, cap. 6, pp. 105-116. 38 _enriguecide mente atado 4 matriz lusitana, em fungo da unidade da lingua no vasto espaco nacional. Este povo novo se exprime através da cultura brasi- leira, que se europeizou nos momentos decisivos da formagio de uma literatura nos séculos XVIII e XIX. Esta constituiu-se num sistema, como ensina Antonio Candido, através da interagao de autores, ptiblico e obras, num processo nacional de adensamento de referéncia miitua®. Este processo consolidou-se no tempo e adqui- niu capilaridade social através do cédigo da lingua, das crengas e dos comportamentos. Neste processo cabe realgar, como fez Barbosa Lima Sobrinho, o papel da lin- gua portuguesa para a unidade do Brasil, _A heranga ocidental lusitana teve o seu repert6rio modulado pelos componentes niio-euro- peus histéricos do Brasil — os indios e os africanos. A. esta matriz cultural e demografica se agregaram, pela flui- dez das correntes imigratorias nos séculos XIX e XX, outros Componentes. curopeus. (por exemplo: italianos; espanhéis, alemies, eslavos) e ndo-europeus (por exem- plo: arabes e japoneses). Dai, apesar do persistente dile- ma da exclusio social, o Brasil permanece um pais no pluralismo de sua escala continental ¢ de sua composi- ¢4o multiétnica, lingitisticamente homogéneo, propen- 29. Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro—A Formagdo e o Senti- do do Brasil, Sio Paulo, Companhia das Letras, 1995, pp. 19-22, 441-449, 30. Antonio Candido, Formagao da Literatura Brasileira (Mo- mentos Decisivos), 2 vols., Sio Paulo, Martins, 1959; Roberto Schwarz, Seqiiéncias Brasileiras, So Paulo, Companhia das Le- tras, 1999, pp, 46-58, 31. Barbosa Lima Sobrinho, A Lingua Portuguesa e a Unidade do Brasil, 2 ed., apresentacio de Leodegério A. de Azevedo Filho, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000. 39 so a integracao cultural e razoavelmente aberto ao sincre- tismo da diversidade. Por isso é, para valer-me de uma formulagiio de José Guilherme Merquior, um Outro Oci- dente, mais pobre, mais enigmatico, mais problematico, mas menos Ocidente®. Estes dados da realidade brasileira e a sua elabora- cdo-reflexiva tém_projegfo externa e sia componentes ‘da identidade internacional.do Brasil. O povo novo, fru- to da primeira leva da descolonizagio, levou a afinidades que fizeram o Brasil, na ONU, a partir de 1953, com maior preciso em 1960 e com inequivoca assertividade em 1961 e 1962, sustentar a liquidagdo do colonialismo. Dizia em 1961, na Assembléia Geral, o Chanceler Afon- so Arinos: © movimento de libertagao dos antigos povos coloniais nao retrocederé. O Brasil, antiga col6nia, est4 construindo uma nova civilizagao, em territ6rio largamente tropical, habitado por homens de todas as ragas. Seu destino Ihe impde, assim, uma conduta firme- mente anticofonialista e anti-racista”® 32. José Guilherme Merquior, “El Otro Occidente”, em Felipe Arocena ¢ Eduardo de Le6n (org.), El Complejo de Prospero - Ensayos sobre Cultura, Modernidad y Modernizaci6n en America Latina, Montevideo, Vintén Editora (1993), pp. 109-110. Sobre a dimens&o da complexidade inerente ao tema do povo brasileiro, ver Jodo Baptista Borges Pereira, “Os Imigrantes na Construcao Histori- ca da Pluralidade Etnica Brasileira” e Francisco J. Calazans Falcon, “O Povo Brasileiro: Ensaio Historiogréfico”, ambos em Revista USP, 46 (jun.fjul /ago.), 2000, dossié “Depois de Cabral: A Formagiio do Brasil”, respectivamente pp. 6-29 30-41 33.4 Palavra do Brasil nas Nagaes Unidas ~ 1946-1995, org. Luiz Felipe de Seixas Corréa, Brasilia, FUNAG, 1995 — Discurso do Ministro Afonso Arinos de Mello Franco, na XVI sesso ordindria da A. G, (22 set. 1961), p. 144. Cf. Celso Lafer, “Relagdes Brasil- Africa”, Encontro Brasil-Africa ~ Anticomemoracao da Aboligéio — Revista do PMDB (12 nov. 1988), pp. 59-65. 40 Em 1963, 0 Chanceler Aratijo Castro, também na ONU, em seu famoso discurso dos trés “D” — descolo- nizagdo, desenvolvimento, desarmamento — acrescenta as razdes econdmicas que sustentavam igualmente a erradicagio do arcaismo histérico e sociolégico do colo- nialismo. Trata-se de “processo que representa medida de alto interesse defensivo das economias de todas as antigas coldnias, quaisquer que sejam as fases de sua li- bertagdo politica e quaisquer que sejam os continentes em que se localizam”™*, A dimensio econ6mica do anticolonialismo, mencio- nada pi ‘Terceiro Mundo. Este conceito, como é sabido, adguiriu densidadé com a descolonizagio e consisténcia politica quando, no sistema internacional, a clivagem Norte/Sul encontrou espaco nas brechas da bipolaridade Leste/Oes- te. No Ambito do Terceiro Mundo, no entanto, cabe des- tacar que o Brasil singularizou a sua posigaio em fungao de sua identidade. Obser- vava assim, na época, o Chanceler Saraiva Guerreiro, que ‘alijo Castro, é parte integrante do conceito de do elemento “Outro Ocideni o Brasil € um pafs-de contrastes, com miiltiplas dimen- ses. Por isso participa naturalmente de numerosas es- feras do convivio internacional. 6 um pats ocidental no campo dos valores, em fungdo da sua formagio histéri- ca, realidade que no exclufa a sua insergio entre os paf- ses do Terceiro Mundo, com os quais tinha posigdes afins no quadro das agdes especfficas voltadas para o desen- volvimento, que respondiam ao interesse nacional. Como res a — se V6, a idéia.daWdupla insercio® representa a especifi- 34. A Palavra do Brasil nas Nagdes Unidas ~ 1946-1995, cit. Discurso do Ministro Joao Augusto de Aratjo Castro na XVIII ses- sto ordindria da A. G. (19 set. 1963), p. 174. 41 cidade brasileira de um Outro Ocidente. E uma especi- ficidade compartilhada com boa parte da América Latina no mbito do Terceiro Mundo, que também abrange, na sua diversidade, pafses africanos ¢ asidticos, cujas matri- zes culturais e demogrdficas tém caracterfsticas muito diferentes das nossas*, Por isso o Brasil integrou e inte- gra o Grupo dos 77, que exprime a dimensiio da pobreza € dos problemas econémicos do Terceiro Mundo, m: sempre foi, mesmo no auge da capacidade de influéncia Politica internacional dos paises em desenvolvimento, apenas um observador do Movimento Nio-Alinhado. Como pais de escala continental, que foi construin- do no século XIX uma identidade que, como vimos, se projeta no século XX a luz do tema da “dupla insergaio” de um “Outro Ocidente”, o Brasil, em’seu primeiro mo- mento no Concerto das Nagdes, pode dedicar-se, por estar distante das tens6es internacionais, a0 que Luiz Felipe de Seixas Corréa qualifica de “busca da consolidagiio do espago nacional”, Esta busca corresponde a um dos tidos da histéria do Brasil e foi o priméiro vetor da poli-_ tica externa brasileira — vetor que prevaleceu no periodo monérquico e se estendeu, na Republica, até Rio Branco. O tema basico € a ocupagio efetiva do territério, a sua defesa, em especial na vertente platina dentro da qual se insere a Guerra do Paraguai. Este perfodo culmina com a 35. Ramiro Saraiva Guerreiro, O lamaraty e 0 Congresso Na- cionat, Brasilia, Senado Federal/MRE, 1985, exposicao na Camara dos Deputados, na Abertura do Simpésio o “Brasil na Antértida” em 23-8-83, pp. 169-171; Celso Lafer, O Brasil e a Crise Mundial, Sto Paulo, Perspectiva, 1984, cap. 5 — “O Brasil entre 0 Ocidente e o ‘Terceiro Mundo”, pp. 121-128. 36. Luiz Felipe de Seixas Coméa, “Politica Externae Identidade Nacional Brasileira”, loc. cit, p. 28. 42 obra de Rio Branco que, com sua ago, equacionou a con- figuracdo definitiva das nossas fronteiras’”, A fixagio de fronteiras é sempre um problema-cha- ve para a politica exterior de qualquer pais. Rtissia, China e India, que so como 0 Brasil paises de escala continen- tal, tém até hoje dificuldades a respeito e, por conta dis- so, guerrearam ¢ foram guerreados no correr de sua his- toria. Os Estados Unidos tém apenas dois vizinhos — 0 Canada e 0 México ~e seguindo o seu “destino-manifes- to” alargaram no século XIX os seus limites a expensas do vizinho do sul. Nao é preciso recordar quantos confli- tos bélicos de fronteiras caracterizam, por exemplo, a historia diplomética da Franga ou da Alemanha. O Cana- da s6 tem um vizinho e a Austrdlia é um pais continental que no os possui. Ora, o Brasil tem dez, (no mundo sé Raissia e China os tém em maior ntimero) e foi o Baro do Rio Branco que, pela sua aco, fixou-lhe pacificamente © mapa, primeiro como seu representante e advogado em arbitragens internacionais (Argentina,1895; Franca — Guiana Francesa, 1900) e, depois, de 1902 a 1912, como Ministro das Relagdes Exteriores em negociacdes de tra- tados de limites com pafses vizinhos (Bolivia, Tratado de Petrépolis, 1903; Peru, 1904/1909; Gra-Bretanha — Guiana Inglesa, aceitagio do laudo arbitral de 1904; Venezuela — 1905; Holanda - Guiana Holandesa, 1906; Colémbia, 1907 e Uruguai, Tratado retificatério de 1909). A envergadura da obra diplomitica de Rio Branco é indiscutivel. Como avalia Rubens Ricupero, é dificil 37. A. G. de Araiijo Jorge, Introdug@to as Obras do Bardo do Rio Branco, Rio de Janeiro, Ministério das Relagdes Exteriores, 1945; Jofio Hermes Pereira de Aratijo, “O Bardo do Rio Branco”, Trés En- saios sobre Diptomacia Brasileira, Brasflia, Ministério das Relagdes 43 encontrar, na histéria das relagGes internacionais, um_ esempenho negociador e um padrao exclusivamente Pacifico, préximo do brasileiro, na fixagdo de fronteiras nacionais. Este desempenho se caracterizou pela “con- Centragio metédica sistematica, de todos os recursos di- plomiticos € do uso legitimo, nao violento, do poder, sem chegar ao conflito militar, para a solucaio com éxito do conjunto dos problemas fronteirigos”®. © ponto culminante, revelador da qualidade deste desempenho diplomitico, foi a questiio do Acre, a mais complexa, solucionada por Rio Branco mediante uma negociacao que consistiu em permuta de territ6rios e pa- gamento de compensacio. Este litigio, como lembra tam- bém Ricupero, tinha como atores no contexto da vizi- nhanga, além do governo da Bolivia, o do Peru, com suas pretensGes na regido, e até um ator transnacional, o Bolivian Syndicate. Este buscou mobilizar os governos dos paises de origem de seus acionistas, em especial os Estados Unidos e a Gri-Bretanha, para salvaguardar seus interesses na exploragao da borracha. Neste contexto, His- toria ¢ Direito nao eram, como nas outras questes de limites, meios suficientes de ago. Foi por isso que, no encaminhamento da questo, 0 Bardio soube dosar o uso legitimo da forca ao confirmar a decisio do governo de Campos Salles de proibir a livre navegacao do Amazonas em diregao ao Acre. Enfrentou assim os protestos da Gra- Bretanha, da Franga, da Alemanha e dos Estados Unidos, € tornou a concessio do Bolivian Syndicate sem valor Exteriores, 1989, pp. 91-154; Demétrio Magnoli, O Corpo da Pé- tria, cap. VI. 38. Rubens Ricupero, em Bardo do Rio Branco — Uma Bio- grafia Fotografica — 1845-1995, Brasilia, Fundagio Alexandre de Gusmio, 1995, p. 83, efetivo, propondo no entanto com habilidade aos seus acionistas uma indenizagao através do Departamento de Estado norte-americano. Pode assim, evitando igualmente Por meios diplomaticos os riscos de uma negociagio Conjunta com o Peru, tratar em separado com o governo da Bolivia o problema da crescente populacio brasileira No territétio em relagéo ao qual os titulos juridicos do Brasil cram mais frégeis do que nas outras questdes de limites. Na negociagao com 0 governo boliviano, Rio Branco também mesclou poder e transigéncia, o que per- mitiu a solugdo consagrada pelo Tratado de Petrépolis, que contemplou, como mencionado, permuta de territ6- rio, compensago financeira € © compromisso brasilei- ro de construir a estrada de ferro Madeira-Mamoré”, O Bardo do Rio Branco, atuando no Brasil Republi- cano, foi o ultimo grande representante da obra dos emi- nentes estadistas e diplomatas do Império, em especial 0 Visconde do Rio Branco, seu pai, com o qual se identifi- cava e de quem se considerava continuador no campo da politica externa. Os seus excepcionais conhecimentos de Hist6ria e Geografia eram recursos intelectuais mui- to pertinentes para os problemas que deslindou. Ele os colocou a servigo de sua politica, pois, como apontou Alvaro Lins: “Do estilo de Rio Branco no se podia dizer que fosse literdrio ou artistico, mas um estilo de aco”. © que 0 caracteriza é “decisao, propriedade, justeza e espfrito de sintese”. A sua linguagem “era o proprio pen- Samento em ado” e as suas obras escritas, “no so pro- priamente livros mas atos. Atos foram as suas “memé- rias”, as suas Exposigdes de Motivos, os seus discursos, ©8 seus artigos, os seus documentos diplomaticos. Um 39. Rubens Ricupero, Rio Branco. O Brasil no Mundo, Rio de Janeiro, Contraponto/Petrobras, 2000, pp. 28-31 45 estilo da ago a exprimir uma figura de homem de Es- tado”™”, Rio Branco, pelas suas caracteristicas de homem de Estado, é um elo de continuidade e ao mesmo tempo uma expresso do potencial de mudanga, importante para_a compreensio da.identidade internacional. do Brasil. De_ fato, ao equacionar com. virtit e fortuna o problema das fronteiras, consolidando juridicamente a escala continen- tal do pats, ele permitiu que seus sucessores pudessem dedicar-se ao vetor da diplomacia brasileira que, prolo _-x> gatid6-se até hoje, passou a ser, com as modulagées d conjuntura interna e internacional, a nota singularizadora ™ da politica externa do Brasil: a do “desenvolvimento do espago nacional”, para valer-me da formulagao de Luiz Felipe de Seixas Corréa"', Além de ter, por meios pacificos, legado ao Brasil 0 seu mapa de pais de escala continental, Rio Branco foi © grande institution-builder do Itamaraty — que até hoje de sua autoridade, da aura do Bardo como uma grande figura brasileira” Observe-se que 6 raro ver na histéria dos pafses um di- plomata ser consagrado como heréi nacional. No caso de Rio Branco, isto se deve ao reconhecimento generali- se vale ¢ se beneficia, na construc importincia do seu legado e a pertinéncia da sua - “idgia” de] Brasil Esta “idéia”, no plano extemno era, como X sponta Rubens Ricupero, a de um pais “‘fiel aos compro. missos juridicos, cioso da defesa de direitos. herdados, 40. Alvaro Lins, Rio Branco, 3* ed., S40 Paulo, Alfa Omega, 1966, p. 408. 41. Luiz Felipe de Seixas Corréa, “Politica Externae Identidade Nacional”, loc. cit,, p. 28 42. Cf. Cristina Patriota de Moura, “Heranga e Metamorfose: a Construgtio Social de Dois Rio Branco”, Estudos Histéricos, vol. 14, 1n. 25, 2000, pp. 81-101, se situar a meio caminho — que era o bom caminho_ Brasil — entre o juridicismo radical irrealista, que caracterizou muitos dos seus contempordneos latino- americanos, e a pura polftica do poder de Teddy Roo- sevelt®. Por esta raz4o, Rio Branco é, no meu entender, 0 inspirador do estilo de comportamento diplomatico que caracteriza o Brasil, & luz de suas circunstincias e de sua histéria. Este estilo configura-se por uma moderagio construtiva, que, segundo Gelson Fonseca Jr., se expres- sa na capacidade “de desdramatizar a agenda da politica externa, ou seja, de reduzir os conflitos, crises e dificul- dades ao leito diplomatico™*, Esta moderagao construti- va esté permeada por uma leitura grociana da realidade internacional, nela podendo identificar-se um ingredien- te positivo de sociabilidade que permite lidar, mediante a Diplomacia ¢ 0 Direito, com 0 conflito e a cooperagio e, desta maneira, reduzir o impeto | da “politica do poder”. _ Pauta-se com bom senso pelo “realismo” na avaliagao dos condicionantes do poder. na vida internacional, E a partir da informaciio haurida nos fatos do poder, mas sem imobilismos paralisantes nem impulsos maquiavélico- hobbesianos, busca construir novas soluges diplomati- cas e/ou juridicas no encaminhamento dos temas relacio- nados & insergdo internacional do Brasil**. 43. Rubens Ricupero, Rio Branco, O Brasil no Mundo, pp. 51 53. 44, Gelson Fonseca Jr., A Legitimidade e Outras Questdes In- ternacionais — Poder e Etica entre as Nagdes, Sa0 Paulo: 1998, p. 356. 45. CE. Martin Wight, International Theory — The Three Traditions (edited by Gabriele Wight and Brian Porter), Leicester, 47 Este estilo marcou e continua marcando a vida nacio- nal, e por esse motivo foi incorporado a experiéncia da Replica, que constitucionalizou principios de politica internacional. Tais princfpios sio um marco normativo que tem como fungio estabelecer limites e promover estimulos 4 acio externa do Estado“ em consonancia com aquele estilo de comportamento diplomatico. Sao exem- plos de limites a proibicdio de guerra de conquista (Cons- titui¢do de 1891, art. 88; Constituigaéo de 1934, art. 4°; Constituigao de 1946, art. 4°; Constituigdo de 1967 art. 7° © Emenda Constitucional n. 1, de 1969, art. 72) ea delimitagao da atividade nuclear em territério brasileiro para fins exclusivamente pacificos (Constituicio de 1988, art. 21, XXII, conjugado com o art. 4%,VI, que contem- pla o principio da defesa da paz). Sao exemplos de esti- mulos 0 reconhecimento do valor da arbitragem como meio pacifico de solugio de contenciosos internacio- nais (Constituigdo de 1891, art. 34; Constituigao de 1934, art. 4*), aos quais a Constituigio de 1946 acrescentou outros meios pacificos de solugao de conflitos, fazendo também referéncia a “6rgao internacional de seguranca” de que o Brasil participe — mengdo implicita ao papel da ent&éo recém criada ONU. A Constituigdo de 1967 e a Leicester University Press, 1991; Pier Paolo Portinaro, .Realisimo Politico, Roma-Bati, Laterza, 1999; Hugo Grotius and International Relations, (ed. by Hedley Bull, Benedict Kingsbury, Adam Roberts) Oxford, Clarendon Press, 1992; Celso Lafer, “Discurso de Posse no Cargo de Ministro das Relacées Exteriores”, em 13 de abril de 1992; “A Insergiio Internacional do Brasil” (artigo de 23 de maio de 1992); “A Autoridade do Itamaraty”, em A Insergao Internacional do Bra- sil—A Gestio do Ministro Celso Lafer no Hamaraty, cit. respectiva- mente pp. 33, 286, 381. 46. Cf. Antonio Remiro Brotons, La Accién Exterior del Esta- do, Madrid, Tecnos, 1984, pp. 93-115. 48 Emenda Constitucional n. 1, de 1969, levando em conta a evolugio das realidades internacionais, no art. 7%, in- cluiu além da arbitragem e outros meios pacificos, uma referéncia explicita a negociagoes diretas, indicando tam- bém de maneira mais apropriada a cooperagiio com orga- nismos internacionais, de que o Brasil participe, na solu- cdo de conflitos internacionais. A Constituigio de 1988 estabelece no seu preambulo 6 compromisso do Brasil, na ordem interna ¢ internacional, com a solugo pacifica de controvérsias, e, no artigo 4°, enumera como princi- ios que devem reger as relagdes internacionais do Bra- ‘sil: independéncia nacional; prevaléncia dos direitos hu- anos; autodeterminagao dos povos; nao intervengao; mai igualdade entre Estados; defesa da paz; solugio pacffica dos conflitos; reptidio ao terrorismo e a0 racismo; coope- entre os povos para o progresso da humanidade; ~concessio de asilo politico. O pardgrafo Unico do artigo 42 cristaliza como norma programitica, vale dizer como estimulo, a busca da integragdo econémica, politica, so- cial ¢ cultural dos povos da América Latina, que é uma faceta da “tepublicanizagao” das relacées internacionais do Brasil, explicitadora da nossa vinculagao, acima men- cionada, com “nuestra América”. 47. Sobre a experiéncia brasileira com a constitucionalizagio de principio de relagées internacionais cf. a importante monogra- fia de Pedro Dallari, Constituigdo e Relagdes Internacionais, S30 Paulo, Saraiva, 1994. No prefiicio que fiz para este excelente livro procurei também mostrar como foram aplicados na ago exterior do Estado os princfpios do art. 4 € o art. 21, XXIII a, da Constituigao de 1988 durante a minha gestio, em 1992, como Ministro das Rela- gGes Exteriores, cf. igualmente, Paulo Roberto de Almeida, O Estu- do das Relagées Internacionais do Brasil, S40 Paulo, Editora Unimares, 1999 - 3 - A Estrutura Constitucional das Relagées Inter- nacionais do Brasil, pp. 77-114. 49 Capitulo III OCONTEXTO DA VIZINHANGA: O BRASIL NA AMERICA DO SUL-SUA IMPORTANCIA NA CONSTRUGAO DA IDENTIDADE INTERNACIONAL BRASILEIRA Rio Branco, ao avaliar os resultados da sua obra de consolidagio do mapa do Brasil, comentou com o diplo- mata e politico argentino Ramén F. Carcano que a pr6xi- ma etapa de seu programa de trabalho seria a “de contribuir para a unio ¢ a amizade entre os pafses sul- americanos. Uma das colunas dessa obra deverd ser 0 ABC”. Neste sentido 0 artigo 1° do projeto do tratado “de cordial inteligéncia e de arbitramento” entre Argen- tina, Brasil e Chile, que Rio Branco redigiu em 1909, estipulava que as trés altas partes-contratantes procura- riam “proceder sempre de acordo entre si em todas as questdes que se relacionem com seus interesses € aspi- rages comuns € nas que se encaminhem a assegurar a paz e a estimular 0 progresso da América do Sul” (grifos meus). ‘A linha da politica externa ¢ 0 programa de trabalho, preconizados por Rio Branco —e que ele mesmo iniciou, com tato e seguranga, no exercicio de uma acdo diplo- matica continental, como relata Alvaro Lins, mencionando um litigio entre Peru e Bolivia e uma questio entre o Chile e os Estados Unidos, — era de grande coeréncia!. Com efeito, para o Brasil a América do Sul nao é uma : falar com Ortega y Gasset, a “circuns- incia” do nosso ew diplomético. Por conseguinte, desa- fogado o pais do tema das fronteiras, trabalhar para a unio ea amizade entre os paises sul-americanos, - 0 que signi- fica, em primeiro lugar, empenha paz na América do Sul, ~ p: uma “forga profunda”, da politica externa brasileira Além de todas as motivagdes em prol de uma “paz perpé- , de inspiragao kantiana, a sustentar esta constante, ae mencionar que um clima pacifico na América do Sul 6 condicao importante para favorecer o desenvolvi-, mento do éspiigo nacional, o vetor predominante da p da poli- tica externa do Brasil pés-Rio Branco. Dizia neste senti- do 0 préprio Rio Branco em discurso pronunciado em 20 de abril de 1909, no Palacio do Itamaraty, por ocasiio da homenagem que Ihe foi prestada pelo seu sexagésimo aniversério: Se a paz € uma condigéo essencial ao desenvolvimento dos povos, mais ainda devem sentir-the a necessidade as nagdes novas como as do nosso continente sul-americano, que precisam de cres- cer ¢ prosperar rapidamente’. 1, Alvaro Lins, Rio Branco, pp. 432-435-489; Fernando Reis, “O Brasil ea América Latina”, Temas de Politica Externa —II, vol. Il, Gelson Fonseca Jr. e Sérgio Henrique Nabuco de Castro (org.), Brasflia, FUNAG, Sao Paulo, Paz Terra, 1994, pp. 9-42; Demétrio Magnoli, O Corpo da Patria, pp. 216-237. 2. Obras do Bardo do Rio Branco, vol. IX, Discursos, Rio de Janeiro, Ministério das Relagdes Exteriores, 1948, p. 190, 52 A agiio brasileira, na década de 1930, & busca de solu- gGes conciliatérias, seja na questo de Leticia, que pro- vocou conflito armado entre Colémbia ¢ Peru, seja na Guerra do Chaco, entre Paraguai e Bolivia, insere-se nesta linha do programa tragado por Rio Branco. Na constru- do de soluges, que foram bem sucedidas, empenharam- se nfo apenas os Chanceleres Afranio de Mello Franco ¢ José Carlos de Macedo Soares, mas também o proprio Presidente Gettilio Vargas, cujo Didrio, recentemente publicado, registra varias entradas que indicam claramente asua preocupaciio pessoal com o tema’. E dentro do mes- mo programa que se inserem, na década de 1990, as ages do Brasil como um dos garantes do Protocolo do Rio de Janeiro de 1942, para equacionar criativamente o contencioso territorial entre o Equador e o Peru. A solu- 0 encontrada — que levou a bom termo 0 Protocolo de 1942, para a qual, na época muito trabalhou o Chanceler Oswaldo Aranha‘ — foi uma importante realizagio diplo- méatica do primeiro mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso e do seu Chanceler, Luiz Felipe 3. Cf. Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno, Histéria da Poli- tica Exterior do Brasil, S20 Paulo, Atica, 1992, pp. 220-225; Carlos Delgado de Carvalho, Histéria Diplomatica do Brasil, pp. 264-266, 318-327; Afonso Arinos de Mello Franco, Um Estadista da Repti- blica — Afréinio de Melo Franco ¢ seu Tempo, 23ed., Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1976, pp. 1027-1042, 1070-1094, 1108-1119; Getilio Vargas, Didrio —vol. I, 1930-1936; vol.Il, 1937-1942; apresentagao de Celina Vargas do Amaral Peixoto, edigdo de Leda Soares, Sao Paulo, Siciliano; Rio de Janeiro, Fundagao Getilio Vargas, 1995. 4, Joo Hermes Pereira de Araijo, “Oswaldo Aranha ea Diplo- macia”, em Aspasia Camargo, Joao Hermes Pereira de Aratijo, M rio Henrique Simonsen, Oswaldo Aranka—A Estrela da Revolugao, Sao Paulo, Mandarin, 1996, pp. 283-285, 307-310. 33 Lampreia, que se envolveram, pessoalmente, em todas as fases da negociacao’. A linha da politica externa, preconizada por Rio Bran- co, voltada para a unitio e a amizade entre os paises sul- americanos, se enquadra, como diz Rubens Ricupero, no campo do eixo da relativa igualdade entre os parceiros®. E, no Ambito deste eixo, uma linha representativa de um conceito cléssico de aco diplomética: os pafses devem_ procurar fazer a melhor politica de sua_geografia. Esta ditétriz, em tempos mais recentes, foi aprofundada para favorecer e estimular 0 vetor de desenvolvimento, que & a expresso moderna do conceito de progresso, regis- trado por Rio Branco no artigo 1° do projeto do Tratado do ABC. Com efeito, num mundo que simultaneamente se regionaliza e se globaliza, convém fazer nfo apenas a melhor politica, mas também a melhor economia de uma geografia — como, por exemplo, vém fazendo os euro- peus, desde a década de 1950, no seu processo de inte- gracdo. Daf uma linha de agao voltada para transformar as fronteiras brasileiras de classicas:frontetras-Separagio es oe CESS dpcomo ja antecipi va 0 Chanceler José Cail6s de Macedo Soares em 1957. Esta linha de inspiragio grociana tem como ponto de par- tida 0 fato de a América do Sul constituir uma unidade fisica contfgua, propiciadora de oportunidades de coope- ragdo econdmica. Esta pode ampliar vantagens compara- 5. Luiz Felipe Lampreia, Diplomacia Brasileira - Palavras, Contextos e Razées, Rio de Janeiro, Lacerda Editora, 1999, pp, 216- 220; David Scott Palmer, “El Conflicto Ecuador-Pert: El Papel dos Jos Garantes”, em Adrian Bonilla (org.), Ecuador-Peré —Horizontes de la Negociacién y el Conficto, Quito, Flacso, 1999, pp. 31-59. 6. Rubens Ricupero, “A Diplomacia do Desenvolvimento”, Trés Ensaios sobre Diplomacia Brasileira, pp. 193-194. 34 tivas em um processo de insergiio competitiva na econo- mia mundial, a medida que os vetores logistica/transpor- te, telecomunicagao/energia forem desenvolvidos para adicionar valor e reduzir custos, estimulando, num clima de paz, os elos do comércio do investimento. A isto cabe acrescentar que nesta virada do século a economia da geografia aconselha a um novo enfoque para o concei- to de América Latina. De fato, hd de ter em conta que 0 México, em funciio de sua participagdo no NAFTA e a América Central e @ Caribe, por obra da atragio centrfpeta da economia norte-americana, viram o seu grau de interdependéncia com o Norte aumentar ainda mais signi- ficativamente nos tiltimos anos, Por esse motivo, o futu- ro dessa parte da América Latina esté cada vez mais vincu- lado ao que acontece nos Estados Unidos. A América do Sul, em contraste, tem relagdes regionais e internacio- nais mais diversificadas, tanto no plano econ6mico quanto no politico. Este € um dado da realidade contempordnea que the confere uma especificidade propria no contexto da América Latina, da qual cabe extrair as apropriadas conseqiiéncias em matéria de politica externa’. 7. José Carlos de Macedo Soares, Conceitos de Solidariedade Continental, Rio de Janeiro, Ministério das Relagbes Exteriores, 1959, pp. 46-47; Paul Krugman, Geography and Trade, Leuven, Belgica! Cambridge, Mass., Leuven University Press, The MIT Press, 1991; Eliczer Batista da Silva, Infrastructure for Sustainable Development and Integration of South America, Relatério para o Business Council for Sustainable Development Latin America (BCSD-LA), Corpora- cién Andina de Fomento, Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), Bank of America, Companhia Auxiliar de Empresas de Mineragao (CAEMD, agosto 1996; Abraham F, Lowenthal, “Latin America at the Century's Turn”, Journal of Democracy, vol. I, n. 2 (April 2000), pp. 49-55; Abraham F. Lowenthal, “Estados Unidos e Amé- rica Latina”, Politica Externa, vol. 9, n. 3 (dez./jan/fev. 2000/2001), pp. 5:24, 55. E nesta moldura que também se insere a constante idéia-forgada politica externa brasileira, voltada para as- desenvolvimento » da América segurar a s estimular, do Sul. Henrique Cardoso. Refiro-me a inédita e inovadora Reu- nigio de Presidentes da América do Sul, realizada em Brasilia nos dias 30 de agosto ¢ 1¢ de setembro de 2000. O objetivo da reunidio foi o de aprofundar a cooperagio J4 existente em nosso espago comum, convertendo tal espago num projeto. Este, voltado para organizar em outro patamar a convivéncia sul-americana, tem como prop6- sito ampliar a capacidade dos paises da regitio no encami- nhamento do desafio do Gesenvolvimento}- tema comum ¢ prioritério das agendas da pol cterna de todos, A meta € encontrar melhores caminhos no trato dos desa- fios e oportunidades da global conjunta voltada para a consolidag&o da democracia e da Jo através de uma ago paz, € a concomitante promogao dos direitos humanos; para 0 estimulo do coméreio através de novos enlaces nos processos de integrago econémica ja existentes na tegido, a serem trabalhados numa perspectiva de “regio- nalismo aberto”; para a cooperaciio tanto no campo do combate a drogas ilicitas delitos conexos, quanto no Ambito da ciéncia e tecnologia, pois a ampliagao e apli- cagao do conhecimento é um ingrediente critico da competitividade dos processos produtivos da regitio. Uma outra ago conjunta contemplada na reunitio de Brasilia & a dos eixos sinérgicos da integrago da América do Sul, vale dizer 0 leque de projetos de integragto fisica, dota- dos de Wustentabi dade no seu sentido amplo (ambiental, social, de efi pectiva geoeconémica do espago regional. Estes proje- iénci ‘con6mica) e baseados numa pers- tos de infra-estrutura de integragaio sio um inequivoco 56 exemplo do processo de transformagio de fronteiras- separacao em fronteiras-cooperagdo, e poderao ter um cfeito multiplicador sobre o desenvolvimento e ampliar a integrago econémica da regido*. Converter um espago—0 espaco configurador do nos- so contexto de vizinhanga — num projeto € um desafio, até mesmo em funcio das restrigdes e limites que os problemas internos geram para cada um dos pafses da regido sul-americana. E no entanto a conseqiiéncia légi- ca de uma linha e de ages de politica externa voltadas para adensar as oportunidades de cooperagao ensejadas pelo alcance econémico da geografia do Brasil. Sio antecedentes e marcos deste programa de traba- tho, representativos de uma “forca-profunda” de “dura- go longa” que vem norteando a acio diplomatica brasi- leira: a ALALC (Associacao Latino-Americana de Livre Comércio) de 1960, sucedida em 1980 pela ALADI (As- sociagao Latino-Americana de Desenvolvimento)’; o Tra- tado da Bacia do Prata de 1969; 0 Tratado de 1973 com o Paraguai, que levou A construgio da hidrelétrica de Itaipu; 0 acordo tripartite Argentina, Paraguai e Brasil, de outu- bro de 1979, compatibilizando as usinas hidrelétricas de 8. Cf. o “Comunicado de Brasilia”, reproduzido em Politica Externa, vol. 9, n. 2 (setJout/nov.) 2000, pp. 125-135, Gilberto Dupas, “Assimetrias Econdmicas, Légica das Cadeias Produtivas e Politicas de Bloco no Continente Americano, Politica Externa, vol. 9, n. 2 (set /out./nov.) 2000, pp. 18-29; Jacques Marcovitch, “América do Sul: Democracia e Valores”, Politica Externa, vol. 9, a. 2 (set fout/nov.) 2000, pp. 30-40. 9. Cf. Rubens Barbosa, “O Brasil ¢ a Integragao Regional: a ALALC © 2 ALADI (1960-1990)” em José Augusto Guilhon Albuquerque (org.), Sessenta Anos de Politica Externa Brasileira — 1930-1990, vol. II, Diplomacia para o Desenvolvimento, S80 Pai Jo, Cultura Bditores Associados/Nticleo de Pesquisa deRelagbes Inter- nacionais da USP, 1996, pp. 135-168. 37 Itaipu e Corpus"; o Tratado de Cooperagiio da Amazénia, de 1978"; 0 gasoduto Bolivia-Brasil inaugurado no pri- meiro semestre de 1999 — desfecho positivo de iniciati- vas que, entre avangos e recuos, remontam a década de 1930", O paradigma do proceso de transformagao do papel das fronteiras na América do Sul é 0 Mercosul, resultado de uma efetiva reestruturacdo, de natureza estratégica, do relacionamento Brasil-Argentina. Este relacionamen- to carregou na origem 0 peso da heranga colonial, pois 0 que houve de rivalidade entre as Coroas de Portugal Espanha teve no Prata o seu foco principal. Na historia, as relagdes dos dois paises foram influenciadas por essa heranga, tendo-se caracterizado por momentos de gran- des convergéncias, entremeados por perfodos de distan- ciamentos e descontiangas. Depois do equacionamento, em 1979, do problema da utilizagio das Aguas para fins energéticos que caracte- 10. Cf, Jodo Hermes Pereira de Araiijo; José Costa Cavalcanti & Bacia do Prata, Valores e Rumos do Mundo Ocidental, Brasilia, Camara dos Deputados, Comissiio de Relagdes Exteriores, pp. 249- 290; Laércio Betiol, Itaipu-Modelo Avangado de Cooperagio Inter- nacional na Bacia do Prata, Rio de Janeiro, Editora da Fundagio Gettlio Vargas, 1983; Christian G. Caubet, As Grandes Manobras de Traipu, Sao Paulo, Editora Académica, 1991; R. Saraiva Guerreiro, Lembrancas de um Empregado do ltamaraty, So Paulo, Siciliano, 1992, pp. 91-97; Mario Gibson Barboza, Na Diplomacia, 0 Traco Todo da Vida, Rio de Janeiro, Record, 1992, pp. 107-124. 11. Rubens Ricupero, Visdes do Brasil - Ensaios sobre a Histé- ria ¢ a Inseredo Internacional do Brasil, Rio de Janeiro, Record, 1995, pp. 358-368, 386-396. 12. Luiz Felipe Lampreia, Diplomacia Brasileira, Palavras, Contextos e Razdes, pp. 148-208; Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno, Historia Politica Exterior do Brasil, pp. 269-273; Carlos Delgado de Carvalho, Histéria Diplomatica do Brasil, pp. 327-335. 58 rizou © contencioso de Itaipu, a etapa mais significativa na preparacio do Mercosul se situa apés 0 término dos tegimes militares, nos anos 80. Ela se deve As iniciativas dos Presidentes Sarney e Alfonsin que, lastreados nos precedentes de convergéncia, elevaram a um novo pata- mar 0 entendimento entre os dois paises. O marco deste novo patamar foi o,Tratado de Integracdo, Cooperagio € Desenvolvimento de 1988. A sua moldura mais abran- gente, de natureza politica, compreendia a consolidagio de valores democraticos e 0 respeito aos direitos huma- nos, passando por confidence building measures desti- nadas a reduzir tensdes na érea estratégico-militar, em especial no campo nuclear. Sobre esta base, o Tratado procurou estimular o desenvolvimento na dificil década econémica para a América Latina que foram os anos 80. O Mercosul € obra, na década de 1990, dos Presiden- tes Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, do lado brasileiro, ¢ do Presidente Carlos Saul Menem, do lado argentino. Iniciado pelo Tratado de As- sungio de 1991, com os avangos gerados em 1995, trazi- dos pelo processo de implementagao da unio aduaneira, 0 Mercosul nao sé incorporou o Paraguai eo Uruguai no processo de integraciio, mas criou um lago associativo com 0 Chile e a Bolivia. OMercosul exprime uma visdo de regionalismo aber- to, trabalha a compatibilidade da agenda interna e exter- na da modernizagio (necesséria para a Argentina e o Bra- sil da década de 1990, com o esgotamento do modelo do Estado e da economia baseado na substitui¢do de impor- | tagGes) e é um marco de referéncia democratica dos pai- ses que o integram. Se é verdade que surgiram dificul- dades relevantes de conjuntura em 1999 e em 2000, inevit4veis em qualquer processo de integragiio e muitas delas ligadas aos problemas de harmonizagio de politi- 59 cas macroeconémicas, que no-momento atual se pren- dem aos dilemas da insergio assimétrica de economias emergentes no sistema internacional, € certo que 0~ Mercosul tem a naiureza de um imperativo comum para © Brasil, a Argentina e os seus parceiros. Com efeito, ele exprime ¢ simboliza uma nova presenga da América do Sul no mundo pés-Guerra Fria e é fator importante, para nao dizer crucial, em negociagdes econémicas inter- americanas, como as do projeto ALCA, e as que se ini- ciaram com a Unido Européia". O multifacetado entendimento, argentino-brasileiro que esté na base do Mercosul, assim como 0 entendimen- to entre a Franca e a Alemanha esteve na base da constru- cdo da Comunidade Européia, tem também um alcance —— 13. Celso Lafer e Felix Pefla, Argentina e Brasil no Sistema das Relagées Internacionais, St Paulo, Duas Cidades, 1973; Celso Lafer, O Brasil e a Crise Mundial, cap. 8, “A Bacia do Prata nas Relagdes Internacionais: Argentina e Brasil sob o Signo da Cooperagao”, pp. 153-162; “Relagdes Brasil-Argentina: Alcance e Significado de uma Parceria Estratégica”, Contexto Internacional, vol. 19, n. 2 (jul! dez.) 1997, pp. 249-265; A OMC e a Regulamentagdo do Comércio Internacional, Porto Alegre, Livraria/Editora do Advogado, 1998, cap. 4 “Multilateralismo e Regionalismo na Ordem Econ6mica Mun- dial, OMC, MERCOSUL, ALCA”, pp. 83-97; Francisco Thompson. Flores Neto, “Integracfo Brasil-Argentina: Origem, Processo ¢ Pers: pectiva”, Temas de Politica Externa, org. de Gelson Fonseca Jr. ¢ Valdemar Carneiro Letio, Brasilia, FUNAG/Atica, 1989, pp. 129-134; Marcos Castriota de Azambuja, “O Relacionamento Brasil-Argen- tina: de Rivais a Sécios”, Temas da Politica Externa Brasileira It, vol. II, org. de Gelson Fonseca Jr. ¢ Sérgio Henrique Nabuco de Castro, Brasilia, FUNAG/Sao Paulo, Paz,¢ Terra, 1994, pp. 65-71; Monica Hirst (org.), Argentina-Brasil — Perspectivas Comparativas y Ejes de Integracion, Buenos Aires, Tesis, 1990; Felix Pefia, “La Construcién del Mercosur —Leciones de una Experiéncia”, Archivos del Presente, ano 2, n. 4, 1996, pp. 113-133; Luiz Felipe Lampreia, Diplomacia Brasileira, Palavras, Contextos e Razées, pp. 161-178, 60 no plano da seguranga internacional, no campo nuclear, que transcende a América do Sul. Com efeito, as confidence building measures dos anos 80 culminaram "nos anos 90 na criagao de um mecanismo formal de inspe- Ges miituas, abriram as instalagoes nucleares dos dois paises & supervistio internacional, e permitiram a plena vigéncia do Tratado de Tlatelolco, de 1967, que protbe as armas nucleares na América Latina, Com esses compro- missos, o Brasil deu plena expresso internacional & nor- ma estabelecida na Constituigio de 1988 relativa ao uso exclusivamente pacifico da energia nuclear em territé- rio nacional. Brasil ¢ Argentina deixaram de ser conside- rados “threshold States”, ou seja, Estados no limiur da possibilidade de fabricagio de artefatos nucleares explo- “Sivos-Em 1998, o Brasil aderiu ao Tratado de nao-proli- feragdio de armas nucleares (TNP), culminando seu pro- cesso de incorporagao aos mecanismos internacionais de niio-proliferagio nuclear. Com a adesio brasileira, 0 TTNP passou a incorporar todos os paises & excecio de Cuba e de trés paises nao previstos no Tratado na catego- | ria de Estados nuclearmente armados, porém detentores de fato de capacidade nuclear com finalidade militar, quer 311-322; Moniz Bandeira, Estado Nacional e Politica Internacional na América Latina ~ 0 Continente nas Relagées Argentina-Brasil (1930-1992), Si Paulo, Ensaio, 1993; Luis Augusto de Castro Ne- ves, “A Cimeira do Rio de Janeiro”, Politica Externa, vol. 8, n. 2 (set/nov.) 1999, pp. 15-23; Aldo Ferrer, “A Relagio Argentina-Bra- sil no Contexto Mercosul e a Integragio Sul-americana”, Politica Externa, vol. 9, n. 2 (set.-out29v.) 2000, pp. 5-17; José Maria Lladés e Samuel Pinheiro Guimaries, Perspectivas Brasil y Argenti- na, Buenos Aires, IPRICARI, 1999; Jorge Catrera y Frederico Sturzenegger (org.), Coordinacién de Politicas Macro Economicas en el Mercosur, Buenos Aires, Fondo de Cultura Econémica/ Fundacién Gobierno y Sociedad, 2000. 61 explicitamente admitida (India e Paquistio), quer delibe- radamente omitida (Israel)"*. Sintetizando: em fungo da sua geografia, de sua ex- periéncia hist6rica € da linha de continuidade de sua ago diplomatica, ° Brasil esta Avontade ¢ em casa com 0 com- ponente sul-americano.de.sua identidade internacional, que € uma “forca profunda”, de natureza posi : fay Na sua politica externa. O contexto da vizinhanca, em contraste, por exemplo, com os da China, da india e da Russia, — como o Brasil pafses de escala continental — é um con- texto favordvel para a organiza¢ao do espago da América do Sul's, e foi por esta razo que 0 governo brasileiro promoveu a reuniio de Brasilia, acima discutida. Nesta virada do milénio, a sombra de preocupagiio em tomo do futuro da organizag3o deste espago, como um ambiente favordvel 4 paz ¢ ao desenvolvimento, resi- de num aspecto de seguranga internacional que se alte- . Este trouxe, entre tantas outras conseqiiéncias, uma significativa diminuig&io dos riscos de confrontagao bélica global com armas atémi- cas, pois ensejou a superagdo da doutrina da dissuasio nuclear baseada em conceitos como o da “destrui rou no mundo pés-Guerra Fri miitua_assegurada” e do “equilibrio do terror”. O novo ambiente internacional e seus cendrios de conflito tor- 14. Celso Lafer, Comércio, Desarmamento, Direitos Humanos ~ Reflexdes sobre uma Experiéncia Diplomética, Sio Paulo, Paz. ¢ Terra, 1999, cap. 7, “As Novas DimensGes do Desarmamento: Os Regimes de Controle das Armas de Destruigao de Massa ¢ as Pers- pectivas para Eliminagao de Armas Nucleares”, pp. 104-137, Carlos Escudé, Estado del Mundo — Las Nuevas Reglas de la Politica In- ternacional vistas desde el Cone Sur, Buenos Aires, Ariel, 1999, pp. 11-21 15. O Presidente Segundo 0 Sociélogo— Entrevista de Fernando Henrique Cardoso a Roberto Pompeu de Toledo, Sio Paulo, Compa- nhia das Letras, 1998, p. 127. 02 naram tais doutrinas obsoletas, e por isso mesmo mais descabidos a retengdio e o desenvolvimento de arsenais nucleares. Se aparentemente amainaram os riscos de uma conflagragdo at6mica na escala contemplada na época da Guerra Fria, seguramente aumentaram os perigos difusos da violéncia de natureza descontrolada"®, Tais perigos aumentaram em fungdo de uma faceta da globalizacio, que faz funcionar 0 mundo através de diversos tipos de redes. Entre estas esto as das finangas, que possibili- tam, além dos movimentos répidos dos fluxos de capital, a“lavagem’” do dinheiro; as da criminalidade organizada; as do trfico ilfcito de armamentos; as da producao, distri- \ buicio e proliferagdo das drogas; as do terrorismo; as das migragées ndo regulamentadas de pessoas, causadas pelas guerras civis e pelas perseguigées. A combinagio deste tipo de redes, instrumentada pe- los meios de comunicagio eletrénica, escapa aos con- troles dos estados ¢ das instituigdes internacionais e, como aponta Pierre Hassner, colocam em questio a racionalidade dos mecanismos tradicionais da economia, da diplomacia e da guerra, multiplicando os riscos difusos da violéncia anémica. No caso do Brasil, inserido na América do Sul, estes riscos provém, em parte, do im- pacto interno, no territério nacional, em fungéo da poro- sidade das fronteiras, do “externo”, a saber, o crime orga- nizado, a droga e 0 terrorismo como expressiio de uma 16. Pierre Hassner, “De la crise d’une discipline & celle d'une epoque”, em Marie-Claude Smouts (ed.), Les Nouvelles Relations Internationales ~ Pratiques et theories, pp. 377-396; Thérése Delpech, La guerre parfaite, Paris, Flammarion, 1988; Hannah Arendt, On Violence, N. York, Harcourt, Brace and World, 1979; Octavio Paz, Tiempo Nublado, Barcelona, Seix Barral, 1983; Pequena Crd- nica de Grandes Dias, México, Fondo de Cultura Econémica, 1990. 63 “sublevagdo dos particularismos”. E nesta tematica que reside a sombra de preocupagiio em toro da organiza- Ho do espaco sul-americano como ambiente favordvel & “paz e ao desenvolvimento que tem sido, desde Rio Bran- co, uma constante da politica externa brasileira, ¢ um componente. forte da identidade internacional do Brasil. 64 Capitulo IV OBRASIL NO FIXO ASSIMETRICO DO SISTEMA INTERNACIONAL: UMA POTENCIA MEDIA DEESCALA CONTINENTALE AS CONSTANTES GROCIANAS DE SUA ATUAGAO NO PLANO MULTILATERAL Ac americano de identidade internacional do Brasil deu-se strucio, no século XX, do componente sul- por meio de uma ago de politica externa, trabalhada no eixo das relagdes de relativa igualdade entre os estados. Evidentemente, este eixo, que constitui um subsistema com a sua dinamica prépria, coexiste com as correla Ges de forga entre os Estados — qualificado por Rubens Ricupero como 0 eixo das relagdes de assimetria — que se manifestam no Ambito mundial sobretudo_ nos plans politico, militar, econdmico-comercial, tecnoldgico, entre outros. Assim, por mais distante que estivesse a América do Sul da dinamica de funcionamento do centro politico e econémico do sistema internacional, as interagdes do Brasil ¢ dos demais paises sul-americanos com os estados dos quais nos separam “um diferencial aprecidvel de poderio politico e econémico” nfo deixa- ram de ter um forte impacto! No inicio do século XX, a propria “alianca nao es- crita” com os Estados Unidos que Rio Branco construiu, na formulagio de Bradford Burns, levava isso em conta. Com efeito, na perspectiva brasileira, essa alianga tinha dois objetivos: no eixo da assimetria, desafogar o Brasil da preponderancia econémica e politica dos seus pré- vios relacionamentos.com as poténcias européias; no eixo da relativa simetria, preservé-lo como tal, sem vé-lo conta- minado pelo eixo assimétrico, o que era um risco latente pois, na avaliagao de Rio Branco, “Washington foi sem- pre o principal centro das intrigas e dos pedidos de inter- vengao contra o Brasil por parte de alguns d espaco. degautonomia}é também que tiveram Rio Branco € WiéSmo Joaquim an-am\ Nabuco na construgao da visio brasile! ica- nismo — cuidado que marcaré, no correr do século XX, a_ identidade do Brasil no ambito do multilateralismo e no eixo da assimetria, Um exemplo deste cuidado é a inter- pretagao dada A Doutrina Monroe, que na visio brasileira no deveria ser tomada como declaragio unilateral dos Estados Unidos, mas como parte do Direito Internacio- 1. Rubens Ricupero, “A Diplomaciado Desenvolvimento”, Tres Ensaios sobre Diplomacia Brasileira, pp. 193-194. 2. “O Brasil, 08 Estados Unidos e o Monroismo”, em Obras do Bardo do Rio Branco, vol. VII; Estudos Histéricos, Rio de Janeiro, Ministério das Relagdes Exteriores, 1948, p. 151;E. Bradford Burns; The Unwritten Alliance — Rio Branco and Brazilian American Relations, N. York, Columbia University Press, 1966, cap. VII; Rubens Ricupero, em Bariio do Rio Branco ~ Uma Biografia Foto- grdfica, pp. 85-92; Celso Lafer ¢ Felix Peita, Argentina e Brasil no Sistema das Relagoes Inernacionais, pp. 86-87. 66 nal das Américas, aplicével pela ago cooperativa e con- junta de suas principais repiblicas. Em outras palavras, a interpretagao multilateral do monrofsmo, como parte constitutiva da doutrina da politica externa brasileira, re- presentou um empenho no controle da ingeréncia unila- teral dos Estados Unidos, baseado nos pressupostos do seu “destino manifesto”. Este empenho é parte do que veio a ser, no século XX, a world-view do Brasil em relago ao tema da estra- tificagdo intemacional. Esta visio nfl surge com nitidez no século XIX, quando.o vetor principal da pelitica exter- na foi o.da consolidacio do espago.nacional. Com efei- to, situado na periferia geogrifica, politica e econdmica do Concerto Europeu, 0 Brasil nfo tinha como se con- trapor a um sistema de funcionamento da politica inter- nacional em que o poder de gestfo da ordem mundial era atribuido, com exclusividade, ao equilibrio entre as gran- des poténcias. O Brasil, no entanto, no estava & vontade nesse sistema. Um exemplo disso, no Império, é a ques- t30 Christie, provocada pela prepoténcia imperial de um ultimatum, acompanhado de bloqueio naval durante seis dias do porto do Rio de Janeiro, por meio do qual 0 Mi- nistro-Plenipotencidrio da Gra-Bretanha tratou dois inci- dentes com navios ingleses, ocorridos no Brasil no ini- cio da década de 1860, Disto resultou, em 1863, a ruptura 3. Donald Marquand Dozer, The Monroe Doctrine = Its Modern Significance, N. York, Knopf, 1965, p. 21; E. Bradford Burns, The Unwritten Alliance, Rio Branco and Brazilian-American Relations, cap. VI; Pandid Calégeras, Res Nostra..., Sdo Paulo, Inmios Ferraz, 1930, p. 1105 Jotio Frank da Costa, Joaquim Nabuco e a Politica Exterior do Brasil, Rio de Janeiro, Record, 1968, p. 109; Carlos Daghlian, Os Discursos Americanos de Joaquim Nabuco, Recife, Fundagiio Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 1988, p. 41; Alva- ro Lins, Rio Branco, p.138 € p. 322. 67 das relagdes diplomiticas, posteriormente reatadas em 1866, em fung&o do equacionamento do problema por um laudo arbitral do Rei dos Belgas e a mediagio de Por- tugalt. O niio estar & vontade com o indiscutfvel poder de gestio da ordem mundial atribuido e exercido pelas gran- des poténcias segundo a I6gica diplomatica do Concerto Europeu, pode comecar a expressar-se depois da conso- lidago juridica do espago nacional. Este € 0 significado da ago diplomética de Ruy Barbosa como 0 delegado do Brasil na Haia, em 1907. Com efeito, na II Conferéncia de Paz, que assinala 0 momento inaugural da presenga brasileira em foros internacionais, o Brasil republicano, pela voz de Ruy Barbosa, com 0 apoio de Rio Branco, reivindicou, fundamentado na igualdade juridica dos esta- dos, um papel na elaboragio e aplicago das normas que deveriam reger os grat acionais da ides problemas i época, questionando, assim, ci ica das grandes potén- . Na Haia e levando em conta a idéia da promocao da paz que inspirou a convocagao da Conferéncia, Ruy Bar- bosa também sugeriu, na linha da Constituigao de 1891, © recurso & arbitragem como meio de evitar a guerra e propés que se considerasse juridicamente invélida a alie- nagio de territdrio imposta pelas armas’. 4, José Hon6rio Rodrigues, Ricardo A. S. Seitenfus, org. de Leda Boechat Rodrigues, Uma Histéria Diplomética do Brasil, 1531- 1945, Rio de Janeiro, Civilizago Brasileira, 1995, pp. 173-183; Hélio Vianna, Historia da Repiblica/Historia Diplomética do Brasil, pp. 185-186; Carlos Delgado de Carvalho, Historia Diplomdtica do Brasil, pp. 117-125; José Calvet de Magalhies, Breve Histéria das Relagdes Diplométicas enive Brasil e Portugal, Sio Paulo, FUNAG/Paz ¢ Ter- ra, 1999, pp. 57-59. 5, Pedro Penner da Cunha, A Diplomacia da Paz— Ruy Barbo- sa em Haia, Rio de Janeiro, MEC/Fundacao Casa de Ruy Barbosa, 68 Sua aciio na 2# Conferéncia de Paz é um antecedente representativo, no ambito do multilateralismo, da con- duta diplomética brasileira no eixo assimétrico. Merece por isso mesmo algumas consideragGes adicionais, até mesmo porque jé foi tida como expressiio de uma pers- pectiva jurfdica “idealista”, pouco apta para lidar com as realidades da vida internacional ‘Afonso Arinos, ao refletir sobre o papel dos advoga- dos na vida piblica brasileira, estabeleceu uma distingo entre os juristas, com vocagio tedrica e pouca aptidao para a vida politica — como € 0 caso de Teixeira de Freitas ¢ Clovis Bevilacqua — ¢ os bacharéis. Estes se valeram da técnica juridica como instrumento da ago politica. E © caso, por exemplo de Epiticio Pessoa, de Afranio de Mello Franco e de Ruy Barbosa — inquestionavelmente 0 maior de todos os bacharéis da Primeira Reptiblica’. Em livro recente, mostrou Bolivar Lamounier que a caracteristica da ago politica de Ruy Barbosa foi uma prética institucional, voltada para a construgao de um es- paco democritico, superador dos males imperfeicoes da Primeira Republica. A importancia da sua ago foi pos- ta em questo nos anos 30, em nosso pais, através da cri- tica ao “bacharelismo” pelo pensamento autoritério de direita, com base na dicotomia pais real/pais formal, ¢ pelo de esquerda, com fundamento no primado da eco- nomia sobre a politica. Atualmente, aponta Bolivar Lamounier, 0 Direito como meio para um fazer politico- 1977; Hildebrando Accioly, prefaicio a Obras Completas de Ruy Bar- bosa, vol. XXXIV, 1907, tomo Il; A Segunda Conferéncia da Paz, Rio de Janeiro, Ministério da Educagio ¢ Cultura, 1966, pp. IX- XXVL 6. Afonso Arinos de Melo Franco, A Escalada (Memérias), Rio de Janeiro, José Olyinpio, 1965, pp. 48-49. ) institucional — perseverante ¢ progressivo — 6, reconhe- cidamente, ingrediente indispensdvel para a construgio de democracias estveis, dat advindo um significado im- portante do legado de Ruy Barbosa’. A agio de Ruy na Haia~€ este 6 o meu ponto~é niio 86 congruente com a sua pritica politica e a relevancia de seu legado no plano interno, como também represen- tou, no plano externo, um fazer diplomético precursor do tema e do processo da demoeratizagao do sistema internacional. E por este motivo que 0 aleance da Haia, em matéria de conduta diplomética, transcende a dico- tomia idealismo/realismo e se insere no ambito do esti- lo de aco grociana, que a meu ver inspira a politica exter- na brasileira no século XX, conforme exposto no fecho do Capitulo II do presente livro. Faco esta observacao porque a Haia nao foi o fruto de uma atuacio solitdria de Ruy —como aconteceu freqientemente na sua vida —, mas sim, 0 de uma parceria com Joaquim Nabuco ¢ Rio Bran- co. Este acompanhou de perto, como Ministro das Rela- ges Exteriores, com o senso de realismo e conheci- mento da vida internacional que tinha, mas também com © vigor intimorato que permeava a sua “idéia” do Brasil, © que estava se passando na Haia, Como lembra Américo Jacobina Lacombe, os 150 despachos telegraficos de Ruy e as respectivas 150 respostas de Rio Branco sao revela- dores da presenga diretiva do Chanceler num foro propi- cio para a ago de Ruy. O foro era propicio porque a Haia assinala o que veio a ser, com o multilatéralismo, a préti- cada diplomacia parlamiéitat, no ambito da qual acomba- tividadé de advogado, a experiéncia de parlamentar ¢ 0 amplo domifiiio dos “dossiés® que caracterizavam a perso- 7. Bolivar Lamounier, Ruy Barbosa, Rio de Janeiro, Nova Fron- teira, 1999. 70 nalidade de Ruy Barbosa, eram (¢ continuam sendo) re- cursos de poder*. Estes siio meios apropriados nas situa- Ges em que o sistema internacional esta aberto para uma postura grociana diante da realidade internacional. A relagio entre a técnica juridica e a ago politica, na construgio de um espago mais democratico no plano internacional, foi explicitado na Haia por Ruy Barbosa, na sua condigdo de “bacharel”, com a seguinte resposta ao Presidente da Sessio, que o questionou sobre a interagio que propunha entre Politica e Direito: “Eis a politica, eis 0 direito internacional. Como separd-los? A politica transformou o direito privado, revolucionou o direito penal, fez o direito constitucional, criou o direito internacional. Ela é a vida dos povos; ou é a forga ou o direito, a civilizacio ou a barbirie, a guerra ou a paz’. Na avaliagiio que fez dos resultados para o Brasil da ago na Haia, Ruy Barbosa observou que a Segunda Confe- réncia, quando comparada & Primeira, “mostrou aos for- fracos na elaboragio dos di- ‘revelou politicamente ao mundo 9 das gentes” ¢ antigo 0 novo mundo, mal conhecido a si proprio, com a sua fisionomia, a sua independéncia, a sua_vocagao no. direito das gentes”. Isto tudo, num cenério no qual “a vida assim moral, como econémica das nagGes 6 cada vez mais internacional. Mais do que nunca, em nossos dias, os povos subsistem da sua reputagdo no exterior”. 8. Américo Jacobina Lacombe, Rio Branco ¢ Ruy Barbosa, Rio de Janeiro, Ministério das Relagdes Exteriores, 1948, pp. 85-86; Rubens Ricupero, Rio Branco. O Brasil no Mundo, p. 55. 9. Ruy Barbosa, Actes er Discours, Haia, W. P. Van Stockum €t Fils, 1907, 5* sesso, 12 de julho de 1907, p. 49 (tradugao é minha). 10. Discurso de Ruy Barbosa em Paris, em 31 de outubro de 1907, agradecendo a homenagem que os brasileiros The prestaram n O questionamento do papel da gestio exclusiva da ordem mundial pelas grandes poténcias, iniciado na Haia em 1907, adquiriu clareza conceitual na perspectiva brasi- leira por ocasiao da Conferéncia de Paz de Paris, de 1919, a qual o Brasil compareceu em fungio de sua participa- fo, ainda que modesta, na Primeira Guerra Mundial. Na discussao do seu regimento, a conferéncia, que levou a0 Tratado de Versailles e ao Pacto da Sociedade das Na- gGes, colocou o tema, ao propor e fazer, no seu artigo 14, uma distingfo entre as poténcias beligerantes com inte- resses gerais (Estados Unidos, Franga, Inglaterra, Italia e Japiio) — que participariam de todas as Sessdes e Comis- sdes — das demais poténcias beligerantes, com interes- ses limitados, que por isso mesmo s6 tomariam parte nas sessdes em que seriam discutidas questdes que as interessassem diretamente. Martin Wight avalia que esta distingdo € a melhor definig&o de grandes poténcias, pois estas consideram que ter “intere: s gerais” significa ter interesses que so téo vastos quanto 0 prdprio sistema interestatal, lidade de inte- resses ¢ ambicdes ~ o aspirar, nas cldssicas palavras de que no século XX é mundial. Esta univer: Campanella citadas por Martin Wight: “alla somma delle cose unane™ —, era ilégica para Cal6geras, delegado do Brasil. Era il6gica porque 0 novo prinefpio inspirador da em fungéio de sua participag’io em Haia, Obras Compleras de Ruy Barbosa, vol. XXXIV, 1907, Tomo I; Discursos Parlamentares, Rio de Janeiro, Ministério da Educagao e Cultura, 1962, pp. 128, 134- 135. 11. Martin Wight, Power Politics (edited by Hedley Bull and Carsten Holbraad), N. York, Holmes and Meir, 1979, p. 50; System of States (edited with an introduction by Hedley Bull), Leicester, Leicester University Press, 1977, pp. 136-141; cf. igualmente, Hedley Bull, The Anarchical Society — A Study of Order in World Politics, 2 Liga das NacGes, baseado nos 14 Pontos de Wilson, se contrapunha a velha ldgica do Concerto Europeu, ao afir- mar 0 conceito de igualdade das nagées perante 0 Direi- to. Na sua aplicagio, o regimento negaria este conceito “relegando para plano inferior como satélites de outros maiores as que nio fossem” grandes poténcias. Na pers- pectiva do Brasil, a conseqiiéncia, ressaltava Caldgeras em telegrama ao Itamaraty e nos apontamentos do seu Diério, seria dar as grandes nagdes o papel de tribunais de julgamento dos interesses das pequenas””, Movida por esta avaliagao, a Delegagao brasileira tomou a iniciativa de atuar em conjunto com os demais paises de “interesses limitados”, realizando gestdes que levaram as grandes poténcias a aceitar a presenga das poténcias menores nas diversas Comissdes da Conferén- cia. O sucesso destas gest5es permitiu que a delegagio brasileira, chefiada pelo futuro presidente Epiticio Pes- soa, cuidasse, na Conferéncia de Paz, nao apenas dos inte- resses especificos do Brasil (pagamentos de vendas de café e regularizago da propriedade de navios mercan- tes), mas igualmente dos “interesses gerais” inerentes & criago da nova ordem internacional pés-Primeira Guer- ra Mundial. De “interesses gerais” também o Brasil tra- tou subseqiientemente, como membro-temporario do Conselho da Liga das Nagées, condig&io na qual perma- neceu até 1926 quando, na ocasifio da entrada da Alema- London, Mac Millan Press, 1977, cap. 9; Stanley Hoffmann, Organisations Internationales et Pouvoirs Politiques des Etats, Pa ris, Colin, 1954, 12. Pandia Cal6geras, “Conferéncia da Paz, Diério - Entradas 13 de janeiro de 1919 ¢ 18 de janeiro de 1919”, Caldgeras na Opi- nido de seus Contemporéneos, org. de Roberto Simonsen, Antonio Gontijo de Carvalho Francisco de Salles Oliveira, S40 Paulo, Siqueira, 1934, pp. 66, 68-69. 13 nha, se retirou da Liga, por nio ter obtido o status de membro-permanente do Conselho, objetivo diplomatic estabelecido pelo Presidente Artur Bernardes!?, A afirmagio de que o Brasil tem “interesses gerais”, io sobre o mundo e o seu funcionameén- ou seja, uma vi to, e de que esta visio € importante para resguardar e enca- minhar os interesses especificos do pats, explicitada no pés-Primeira Guerra Mundial, sera uma constante da identidade internacional brasileira no correr do século XX. O locus standi para esta afirmagio vem residindo na competéncia diplomética com a qual o Brasil, com visio € estilo grocianos, tem operado de maneira conifnua a sua presenga na vida internacional. como poténcia média de escala continental e relevancia regional. Nio € fécil, como se sabe, conceituar 0 que € uma poténcia média, nem é simples operar diplomaticamente como poténcia média, Destas dificuldades operacionais tratou Ruy Barbosa na sua avaliagdo do que significou a tarefa de representar o Brasil na Haia: Entre os que imperavam na majestade da sua grandeza eos que se encolhiam no receio da sua pequenez, cabia inegavelmente, a gran- de repiiblica da América do Sul um lugar intermédio, tao distante da soberania de uns como da humildade de outros. Era essa posigdio de meio termo que nos cabia manter, com discrigio, com delicadeza e comdignidade. 13. Carlos Delgado de Carvalho, Histéria Diplomdtica do Bra- sil, pp. 381-389; Amado Luiz Cervo ¢ Clodoaldo Bueno, Histéria da Politica Exterior do Brasil, pp. 190-208; Eugenio Vargas Garcia, O Brasil ¢ a Liga das Nagdes (1919-1926): Vencer ou néo Perder, Porto Alegre/Brasilia, Editora da UFRGS, FUNAG, 2000, caps. 3,4, 5. No prefiicio que redigi para este excelente livro, examinei os des- dobramentos no tempo e as suas dificuldades, da aspiragio brasilei- ra, que remonta a Liga das NagGes, de ter um assento permanente no Conselho de Seguranga da ONU. 4 Na sua anilise, apontava 0 qualitativo da ago diplo- matica, mas reconhecia as realidades da “fraqueza mili- far” que “nos punha a uma distancia mui longa” das “potestades armadas”. Nesta situago de “extrema deli- cadeza” devia o Brasil ter “uma linguagem sua, moderada circunspecta, mas firme e altiva quando necessério. Tra- tava-se de aché-la e de a falar naturalmente, com segu- ranga, com calma, com desassombro, com tenacidade. Nao era facil; mas nao era impossivel””*, Giovanni Botero, no seu livro de 1589 sobre a ra- 240-de-estado, ao tratar conceitualmente-de.poténcias mé- dias ¢ de suas possibilidades de aio diplomatica, aponta que elas teriam como caracteristica nio serem tio dé- beis © por isso to expostas & violéncia como as peque- has, e simultaneamente nao provocarem, por sua grande-_ za, a inveja alheia, como as grandes. Além disso, porque os do meio participam dos extremos, tém, em principio, a sensibilidade para exercitar a virtude aristotélica da equilibrada busca do meio-termo!’. O meio-termo aris- totélico é uma das formulas de justica'® e pode, por isso mesmo, dependendo das conjunturas diplomaticas, trans- formar-se num argumento de legitimidade, apto a alcan- gar uma abrangéncia generalizadora e interessar aos de- mais protagonistas da vida mundial. Nestas circunstncias, 14, Martin Wight, Power Politics, pp. 61-67; Carsten Holbraad, “El Papel de las Potencias Medias en laPolitica Internacional”, Estudios Internacionales, ano V, n. 17, (enero-marzo) 1972, pp. 53-75; dis- curso de Ruy Barbosa em Paris, em 31 de outubro de 1907, loc. cit, pp. 130-131 15, Giovanni Botero, La Razon de Estadoly Otros Escritos trad, notas y bibliograffa, Luciana de Stefano, sel, y estudo preliminar, Manuel Garcia-Pelayo), Caracas, Universidad Central de Venezuela, 1962, Livro I, 5, pp. 96-97; Livro 2, 5, p. 113. 16. Hans Kelsen, i! Problema della Giustizia (a cura di Mario G. Losano), Torino, Einaudi, 1998, pp. 29-31. 15 a poténcia média i © que Gelson Fonseca Jr. consideraria um espago politicamente viével de proposi gies diplomiaticas, permitindo-the ser um articulador de consensos'’. : © Brasil tem revelado capacidade de articular con- sensos. Vem sendo, com freqiténcia, um tertius-inter- Partes, mediando posi¢gdes entre grandes € > pequenos no plano multilateral. © locus standi para o exercicio d papel ~ que é o de trabaihar pela “possibilidade de har- monia” — provém do fato de nio ser ele um monster country assustador, para voltar-a Kennan. Nio um monster country assustador, em primeiro lugar porque no tem, nas palavras do Chanceler Saraiva Guerreiro, “um excedente.de_poder, nem excedente de atragio cul- tural, econdmica.ou politica”, Por isso precisa construir sua presenga internacional com base na confianga, que se expressa pela coeréncia. Se, pela limit meios € uma poténcia média no sistema internacional, nental, condigio que Ihe confere, naturaimente. pel na tessitura ‘da orden mundial. No exercicio deste papel, que tem a ver com a sua escala, nao € também um monster country assustador porque se comporta, em fun- cio de sua Hist6ria e de sua experiéncia de insereZo no mundo, quer no eixo da simetria, quer no da assimetria, segundo uma leitura grociana da realidade internacional. E este conjunto de fatores que da a0 Brasil, em princi- pio, a credibilidade do sof power ~ para falar com Nye 17. Gelson Fonseca Jr., A Legitimidade e Outras Questées In- ternacionais, pp. 137-248, p. 358; Celso Lafer, Paradoxos e Possi- bilidades ~ Estudos sobre a Ordem Mundial e sobre a Politica Exte- rior do Brasil num Sistema Internacional em Transformacao, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982, pp. 95-148. 76 = necesséria para 0 exercicio da virtude aristotélica da io competente des- Justiga do meio-termo. Para 0 exerci ta virtude também contribui um razodvel repertério de compreensio do mundo, que provém tanto de um amplo acervo de relagdes diplométicas que o Itamaraty vem construindo e cultivando no correr dos tempos, quanto da vivéncia de um pafs com mercados diversificados no campo do comércio ¢ investimentos estrangeiros de mil- tiplas procedéncias na economia nacional’*. apel de mediagaio, no ambito da diplomacia tura diplomatica. O sucesso ou nao diante deste desafio depende da maior ou menor intensidade das tensoes € controvérsias existentes no plano internacional, num dado momento. Depende, igualmente, do talento dos delega- dos que, em foros internacionais e & luz do quadro parla- mentar, precisam explorar oportunidades de ago. No pla- no bilateral elas raramente afloram no eixo assimétrico, porque este é naturalmente propicio ao emprego e apli- cago do poder. Jé 0 plano multilateral € favordvel, como diria Hannah Arendt, para a geragdo de poder. Com efei- to, este pode surgir quando existe um espaco para a capaci- dade de iniciativas, aptas a terem conseqliéncias quando um grupo concorda com um curso comum de aco". A 18, Conferéncia do Chanceler Saraiva Guerreiro na Escola Su- perior de Guerra no Rio de Janeiro em 3 de setembro de 1982, Rese- nha da Politica Exterior do Brasil, n. 34, (jul./ago./set.) 1982, pp. 80, 81, 82; Joseph Nye, Jr., Bound to Lead ~ the Changing Nature of American Power, N. York, Basic Books, 1990, cap. 6; Norberto Bobbio, Teoria Generale della Politica, Torino, Einaudi, 1999, pp. 499-502; Gelson Fonseca Jn, A Legitimidade ¢ Outras Questées Internacionais, pp. 355-359. 19. Hannah Arendt, The Human Condition, Chicago, Chicago University Press, 1958, V, Action. 1 diplomacia brasileira yem.cxercitando 0 potencial de ~Betacgdo de poder, inerente ao papel deoft-power Dpla- ng internacional, com o objetivo de assegurar espago para A defesa dos interesses nacionais, © exercicio deste pa- , Pel gerador de soft-power é,"assim, um componente da identidade internacional voltado para o tema da tificago internacional, que vem sendo construfdo _vida-maundial. O paradigma que inaugura esta modalidade de atua- ¢40 pode ser exemplificado pelo papel desempenhado por Raul Fernandes nos trabalhos de organizagio da Cor- te Permanente de Justiga Internacional, 6rgio juridico criado pelo sistema da Liga das Nacoes. £ de autoria dele a formula da cléusula facultativa de jurisdi¢&o obrigaté- tia, até hoje vigente na Corte Internacional de Justiga, Sucessora, no sistema das Nagdes Unidas, da Corte da Liga. Esta cléusula tornou possivel, mediante declaraciio soberana dos estados, a jurisdigdo obrigatéria da Corte, incondicionalmente ou sob condigdo de reciprocidade. Desta maneira, preservou-se o princfpio da igualdade ju- ridica de todos os estados, ressalvando-se, na pratica, os interesses de todos ~ grandes ou pequenos. A formula encontrada por Raul Fernandes 6 um exemplo do cons- trutivo papel de mediagio que teve o Brasil para deslindar © impasse entre as grandes poténcias, membros perma- nentes do Conselho, e as poténcias menores, em maioria na Assembléia da Liga”, 20. Raul Fernandes, “Le principe de l’egalité juridique des etats dans l'activité internationale de ’aprés guerre (1921)” em Raul Fernandes ~ Nonagésimo Aniversério, vol. 1 Conferéncias e Tra- balhos Esparsos, Rio de Janeiro, Ministério das Relages Exteriores, 1967, pp. 165-186; Antonio Gontijo de Carvalho, Raul Fernandes — 8 O papel deste componente da identidade internacio- nal brasileira tem-se ajustado As possibilidades ¢ as va- ridveis oferecidas pelas circunstincias internas ¢ exter- nas. Na década de 1990 foi ele um dado relevante, no campo econémico, na conclustio da Rodada Uruguai do GATT, que levou a criag’io da OMC. No campo dos valo- res estava presente no bem sucedido encaminhamento da Conferéncia de Viena de 1993, sobre Direitos Humanos. Esta ensejou ndo s6 um reconhecimento internacional de universalidade, indivisibilidade, interdependéncia ¢ inter-relacionamento das varias geragdes de Direitos Hu- Maiios (direitos Civis e politicos; direitos econdmicos € sociais; direitos de titularidade coletiva), como, também legitimidade do interesse internacional com a sua pro- mogio e protecio, Sobre o exercicio deste papel de tertius-inter-partes permito-me dar o testemunho da minha experiéncia pessoal como Chanceler, em 1992, no trato e encaminhamento da Conferéncia da ONU so- bre Meio- Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro. O Brasil, como pafs de contrastes, como um “Outro Ocidente”, com insergdo no Terceiro Mundo, vive tanto os problemas de meio-ambiente derivados da po- breza, quanto os da produgdo industrial moderna. Por isso péde contribuir para trabalhar a idéia de desenvolvimen- to sustentivel como idéia heuristica, que relegitimou conceitualmente o tema do desenvolvimento dentro de uma visio de “tema global”, reposicionando sob o signo Um Servidor do Brasil, Rio de Janeiro, Agir, 1956, pp. 159-174; Eugenio Vargas Garcia, O Brasil e a Liga das Nagdes (1919-1926), cap. Il; Celso Lafer, “A Condigao da Reciprocidade na Clausula Fa- cultativa de Jurisdi¢io Obrigatéria da Corte Internacional de Jus- liga’, Revista de Direito Piblico, ano 1, vol. 3, (janJmar.) 1968, pp. 195-208. 9 da cooperagio esses aspectos das relagdes Norte/Sul, no mundo pés-Guerra Fria?! Um ultimo exemplo, para arrematar esia'linha de ra- Ciocinio que diz respeito & “duragao longa” da diploma- cia brasileira no eixo assimétrico, é o sentido da nossa Participagao no foro da governanga Progressiva, seja na primeira reuniao realizada em Florenga, em novembro de 1999, seja na segunda que ocorreu em Berlim, em junho de 2000. O formato deste foro é o de um espaco para livre troca de idéias entre chefes de estado e de go- verno, representativos do que pode ser qualificado de “nova centro-esquerda”, que por sua vez é um esforgo de lidar, simultaneamente, com a equidade social ea eficién- cia econémica nas atuais condigdes do processo de globalizagao. Na reunido de Florenca, & qual compareceram Blair (Gra-Bretanha), Clinton (EUA), Jospin (Franca), D’ Alema (Itélia) e Schroeder (Alemanha), Fernando Henrique Car- doso foi a tinica presenga de um pais em desenvolvimen- to. Em Florenga, o presidente brasileiro apontou que, numa era de globalizacdo, “impoc-se o enfoque progressista também no plano internacional”, pois-existe-um.déficit de governanga no plano mundial, Este déficit, que.tem a sua raiz numa economia mundial sem governo mundial, 21. Rubens Ricupero, Visdes do Brasil, pp. 300-321; Luiz Felipe Lampreia, Diplomacia Brasileira, Palavras, Contextos, Razbes, pp. 263-273; Celso Lafer, A OMC ¢ a Regulamentagéio do Comércio Internacional, passim; Gilberto Vergne Sabéia, “Um Improvavel Consenso: A Conferéncia Mundial de Direitos Humanos eo Brasil”, Politica Externa, vol. 2, n. 3, (dez.) 1993, pp. 3-18; J. A. Lindgren Alves, Os Direitos Humanos como Tema Global, Sio Paulo, Pers- pectiva, 1994, passim; Celso Later, Desafios: Etica e Politica, Sio Paulo, Siciliano, 1995, pp. 181-198, pp. 201-243; A Insergao Inter- nacional do Brasil —a Gestiio do Ministro Celso Lafer no ltamaraty, PP. 295-304, 309-312, 323-344, 357-365. 80 “(@) a corregdo das assi- coloca dois desafios essenciai metrias de ganhos e vantagens que sistema internacional; e (ii) elaboracao de politicas v¢ tadas para a consirugia.de uma globalizagéo-solidaria”. Daf a importincia do aprimoramento de ordem intema- caracterizam_o al eno plano comercial e o impe- gurar adequada relagao entre a Igica do mercado internacional e as necessidades sociais inter- nas de cada pais”. Em Florenga, o Brasil fez “ouvir entre 0s ricos a voz dos pobres”, ¢ 0 seu objetivo, lastreado no locus standi de uma poténcia média de escala continen-_ lal, foi o de trabalhar a insereao na agenda internacional, dos sérios problemas derivados do “fundamentalismo do mercado”, ~Arewi ram 14 liderangas sendo 4 de pafses em desenvolvimen- de Berlim foi mais ampla. Dela participa- to, entre eles cabendo mencionar o presidente Fernando deLa Ria da Argentina, nosso pais parceiro do Mercosul. Berlim; com a ativa participacio do presidente brasilei- ro, deu seqléncia a este processo voltado para recolocar de um tratamento em termos atualizados a importanci coletivo dos grandes problemas internacionais, que foi uma das aspiragdes contempladas no didlogo Norte-Sul das décadas de 1960 e 1970%. 22. Fernando Henrique Cardoso, “O Modo Progressista de Go- vernar” e apresentagio & Globalizagdo e Governo Progressista ~ Novos Caminhos ~ Reunido de Florenca - 1999, org. de Licio AlcGntara, Vilmar Faria ¢ Carlos H. Candim, Brasilia Instituto Teotonio Vilela, 2000, p. 10, 196, 197, 199, 200. Neste mesmo volume, ver Liicio Alcantara, A Reunido de Florenga, pp. 211-215 ¢ Luis Carlos Bresser Pereira, A Nova Centro-Esquerda, pp. 277-288. 23. Roberto Abdenur, “Governanca Progressiva e Papel do Es- tado; ConsideragGes sobre 0 ‘Comunicado de Berlim’™, Politica Ex- terna, vol. 9, n. 2 (set/out./nov,) 2000, pp. 98-103. 81 Este processo, em Florenca e Berlim, se coloca no campo dos valores. O campo dos valores diz respeito as afinidades ou dissondncias que resultam das distintas for- mas de conceber a vida em sociedade. Ele 6 relevante, pois a conduta dos distintos protagonistas da vida inter. nacional ndo € apenas comandada pelas relagdes de forga © dos interesses militares ou econdmicos. Com efeito, idéias, sentimentos, percepgio também influenciam as decisdes no sistema internacional. So mapas do conhe- cimento e da sensibilidade nos quais estd presente o po- der qualitativo € organizador do saber, necessério para dar as razGes de uma ago coletiva, que no plano interna- Cional, requer a forga de persuasiio. Dat o sentido, em Florenca ¢ Berlim, da linguagem do Brasil que ecoa a vis directiva inaugurada em Haia em 1907. 24. Judith Goldstein and Robert O. Keohane, “Ideas and Foreign Policy: An Analytical Framework”, em Ideas and Foreign Policy ~ Beliefs, Instinutions and Political Change, ed. by Judith Goldstein and Robert Keohane, Ithaca, Cornell University Press, 1993, pp. 3- 30; Norberto Bobbio, i Dubbio e fa Scelta ~ Intelletuali ¢ Potere nelle Societa Contemporanea, Roma, La Nuova Italia Scientifica, 1993, 82 Capitulo V ABUSCA DO DESENVOLVIMENTO DO ESPACO NACIONAL: O NACIONALISMO DE FINS E A DIPLOMACIA DA INSERCAO CONTROLADA NO MUNDO O desenvolvimento do espago nacional, como nota singularizadora da politica externa brasileira pés-Rio Branco, viu-se permeado, nas suas formulages, por and- al. Estas foram, em parte, induzidas pelo tema da estratificaco internacio- nal, ou seja, pela percepgdo do Outro, derivada das assimetrias de poder entre as nacées. A nota forte, no entanto, foi dada pela discussao do contraste entre o po- tencial ¢ as realidades de um pais de escala continental, como € 0 Brasil. B neste contexto que,cabe examinar, na construgiio da sua identidade internacional, o papel dO ona Este, na linha de um dos sentidos da His- t6ria brasileira, tem a caracteristica de ser voltado para a integragio interna do grande espago nacional, Nao é, por- tanto, como outros, um nacionalismo expansionista. Dizia neste sentido com clareza Rio Branco em dis- curso pronunciado no Rio de Janeiro em 1905, por oca- siéio do III Congresso Cientifico Latino Americano: a Nagao brasileira s6 ambiciona engrandecer-se pelas obras fecundas da paz, com os seus préprios elementos, dentro das fron- teiras em que se fala a lingua dos seus maiores, e quer vir a ser forte entre vizinhos grandes e fortes, por honra de todos nés € por segu- ranga do nosso continente que talvez outros possam vir a julgar ‘menos ocupado. E indispensavel, (continuava ele] que antes de meio século, quatro ou cinco, pelos menos das maiores nagbes da América Lati- na, por nobre emulagdio, cheguem, como a nossa grande e querida irma do Norte, a competir em recursos com os mais poderosos Estados do mundo’. Na sua anilise deste discurso, aponta Rubens Ricupero, que o sentido de.diregio que norteava a visio do futuro de Rio Branco é o desenvolvimento como inéio de reduzir o diferencial do poder, responsavel pela Vaine- rabilidade sul-americana. Esta redugao da vulnerabilidade traria um mais apropriado equilibrio internacional, dese- jével em relagio as grandes poténcias européias, aos Es- tados Unidos e igualmente aplicavel no que diz. respeito ao Brasil que “quer vir a ser forte entre vizinhos grandes ¢ fortes”, A estrada a ser percorrida neste sentido nao deveria ser a da expansio para fora, mas a do esforgo interno, como recomendava o préprio Rio Branco em discurso proferido em 20 de abril de 1909, ao falar do “trabalho de anos, e muitos anos, pela nobre ¢ fecunda emulagiio no caminho de todos os progressos morais € materiais”. 6 este trabalho que permitiré ao Brasil e aos paises da América Latina “igualar em poder e riqueza a 1. Obras do Bardo do Rio Branco, vol. IX, Discursos, pp. 16- 71. nossa grande irma do Norte e as mais adiantadas nagdes da Europa”. Neste mesmo discurso de 1909, apontou os riscos da “loucura das hegemonias” e do “delfrio das gran- dezas pela prepoténcia” e afirmou: [.. estou persuadido de que nosso Brasil do futuro ha de con- tinuar invariavelmente a confiar acima de tudo na forea do Diteito ¢ do bom senso, ¢ como hoje, pela sua cordura, desinteresse ¢ amor da justiga, procurar merecer a consideragao e o afeto de todos os Povos vizinhos, em cuja vida imtemna se absterd sempre de intervie? Como se depreende do texto acima, a visio de futu- To preconizada por Rio Branco baseava-se, no plano exter- no, numa ago diplomitica a ser implementada segundo uma conduta lastreada na leitura grociana da realidade internacional. De que maneira o nacionalismo, na expe- riéncia histérica do nosso pais, foi dando contetido con- creto, no século XX, a tal vis%o do futuro? © nacionalismo em geral é um termo que comporta tnliltiplos significados. ‘Tem para paises em formacao uma wertente defensiva que provém das assimetrias da Estratificagao da vida. internacional, E 0 que diz Pontes de Miranda na sua colaboragio para o livro de 1924, A Margem da Histéria da Reptiblica, organizado por Vicente Licinio Cardoso com a idéia de passar em revis- ‘a 0s problemas do pais, no clima critico do balango do centendrio da Independéncia. Na anélise sobre os “Preli- minares para a Revisio Constitucional”, afirma Pontes Miranda, num primeiro momento, que, a despeito das descontinuidades ¢ das diferengas econdmicas ¢ sociais existentes no pais, a unidade nacional “é 0 nosso motivo 2. Obras do Bartio do Rio Branco, vol. IX, Discursos, pp. 190- 191; Rubens Ricupero, Rio Branco, o Brasil no Mundo, pp. 61-62, 85 nico de justo orgulho e 0 tinico titulo de verdade que poderem invocar perante os povos 0 nosso direito & existénicia e a s atirar por sobre a mesa, quando tivermos de presungaio de que somos mais capazes”. Mais adiante, ao discutir a pergunta que ele mesmo se coloca — Devemos ser nacionalistas? — ao tratar do socialismo e depois de dizer que “o socialismo dos proletdrios dos povos explo- radores pode ser universalista e nio patristico”, afirma: “Enquanto existir a opressio econémica e politica entre Estados, entre nagées, 0 socialismo dos oprimidos tem de ser nacionalista”. Assim, no caso do Brasil, resumindo o que € uma discussao de variadas facetas, creio que se pode dizer, na esteira de Antonio Candido, que cita alids 0 texto de Pon- tes de Miranda, que, se hé no nacionalismo brasileiro uma vertente mais ingénua, da exaltag4o patriética do poten- cial de um pats novo e de futuro — do que o exemplo inaugural, 6 0 livro de 1900 de Afonso Celso, Porque me Ufano do Meu Pats ~ ha também uma vertente mais pro- funda, de uma avaliag&o mais dura e realista das deficién- cias do pais. Esta avaliagao tem suas rafzes nos “classi- cos” das ciéncias sociais dos anos 30 (Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr.) e nos seus sucessores nas décadas subseqtlentes (por exemplo: Cel- so Furtado, Raymundo Faoro, Florestan Fernandes) que procuraram interpretar o Brasil. Dai a base de uma im- portante produgio académica que, com distintos enfoques metodolégicos ¢ orientagdes politicas, voltou-se para explicar quais as “falhas” na formagao do pais. Neste sen- 3. Pontes de Miranda, “Preliminares para a Revisio Constitu- cional”, em Vicente Licinio Cardoso (org.), A Margem da Historia da Repiiblica, 2 ed., introd. de Alberto Vendncio Filho, tomo Il, Brasilia, Editora da Universidade de Brasilia, 1981, p. Sep. 12. 86 tido, a Revolugio de 1930, que é na histéria brasileira do século XX um divisor de aguas politico, econémico e cultural, assinalou uma mudanga generalizada de perspec- tiva. Esta levou ao aprofundamento critico do naciona- lismo brasileiro ao trazer 4 tona a nogao do Brasil como pais subdesenvolvido*, A conseqiiéncia deste processo de tomada de cons- ciéncia veio a ser a percepgio de que a construgio da nacionalidade, no século XX, requereria um projeto que por uma agio sistemtica superasse as “falhas” de for- magio, nelas inclufdas o problema da exclusdo social. Dai a idéia-forga de um pacionalismo integrador do espa- go nacional, haseado no desenvolvimento. Este resulta- ria de um nacionalismo de fins, que Hélio Jaguaribe, na sua importante reflexiio analitica sobre o significado do nacionalismo no Brasil, formulou nos seguintes termos: “O nacionalismo nao é imposigao de nossas peculiarida- des, nem simples expresso de E, ao contrério, um meio para atingir um fi wacteristicas nacionais. 0 desen- volvimento”. Do contexto norteador desta reflexdo vai-se nutrir com nitidez,.a partir das anos 30, a politica exterior e a 4, Antonio Candido, Vérios Escritos, 3 ed,, revista e ampliada, Sto Paulo, Duas Cidades, 1995, pp. 293-305; Antonio Candido, A Educagao Pela Noite e Outros Ensaios, S40 Paulo, Atica, 1987, pp. 140-162, pp. 181-198; Antonio Candido, Teresina etc., Si0 Paulo, Paz ¢ Terra, 1980, pp. 135-152; Dante Moreira Leite, O Cardter Nacional Brasileiro, Histéria de uma Ideologia, Sao Paulo, Pionei- 1a, 1969; Carlos Guilherme Mota, Ideologia da Cultura Brasileira, 3? ed, (1933-1974), Sao Paulo, Atica, 1977; Mario Vieira de Mello, Desenvolvimento e Cultura. O Problema do Estetismo no Brasil, Sao Paulo, Nacional, 1963; Gelson Fonseca Jr., A Legitimidade e Outras Questdes Internacionais, pp. 251-291. 5. Hélio Jaguaribe, O Nacionalismo na Atualidade Brasileira, Rio de Janeiro, ISEB, 1958, p. 52. 87 aco diplomatica do Brasil, que tém duas linhas mestras. A primeira é a de cultivar o espago di autonomia, ou seja, rr zelo, nas pelawas ood Chanceler Horacio Lafer, em 1959, brasileiros”’. A segunda é 0 empenho na identificagao.de quais Os recursos externos que, ¢in distintas conjunturas vras do. mesmo.Chanceler em_1960, na OEA: “Vemos em. todos, os quadrantes do mundo que a uta contra o subdesenvolvimento econ6mico é a palavra de ordem, a razdo tltima das composigées politicas e das reivindicagdes populares”. Na ldgica diplomatica brasileira de um nacionalis- mo de fins, no perfodo que se estende até o final da déca- da de 1980, estas linhas mestras se tradyziram em traba- thar as modilidades possiveis de uma _integragio controlada na economia mundial, mobilizando recursos vez que, nas pala para aprofundar 9 processo ds Supstituiga’’ We importa ‘goes, que associava mercado interno e intervencionismo estatal, com 0 6I no objetin Promover a industrializacio e g desenvolvimento, Saco aaa também, num esforco de construir 0 espago da autonomia nacional por um moderado e relativo distanciamento — maior ou menor, dependendo das condigdes de permissibilidade, para re- 6. Hordcio Lafer, “Discurso de posse no Ministério das Rela- des Exteriores”, em 4 de agosto de 1959, em Gestdo do Ministro Lafer na Pasta das Relagées Exteriores (de 4 de agosto de 1959231 de janeiro de 1961), Ministério das Relagdes Exteriores/Departamento de Imprensa Nacional, 1961, p. 83. 7. Hordcio Lafer, “Discurso no Conselho da OEA”, Revista Brasileira de Politica Internacional, ano TI ,n. 10 Gunho de 1960), p. 125. 88 corer & terminologia de Hélio Jaguaribe, dadas pela dina- mica da politica mundial® — em relagao aos pdlos de po- der do eixo assimétrico das interagGes internacionais do Brasil. Este comportamento diplomatico, foi viabilizado tanto pela escala continental quanto pelo fato de o pafs nao ter estado na linha de frente das tensGes prevalecen- tes no centro do sistema internacional. O zelo em preservar espago de autonomia tem, na diplomacia do Império, um antecedente exemplar na opo- sigo & renovagio dos tratados de comércio celebrados, inter alia, com a Inglaterra, Franca e Austria. Estes trata- dos, que se inseriam no eixo assimétrico das relagdes internacionais do Brasil, foram negociados entre 1826 e 1829, nas dificeis condigGes dos anos iniciais da Indepen- déncia. Limitavam a tarifa aduaneira, concediam prefe- réncias comerciais e, no caso da Inglaterra, contempla- yam também a figura de um juiz conservador da nagaio inglesa, o que representava empecilho a plena afirmagaio da competéncia jurisdicional do Estado brasileiro. A fir- me oposi¢ destaque para a aco do Legislativo, levou na década de 1840 ao seu término e A subseqiiente politica da diplo- interna A renovagio desses tratados, com macia do Império de rejeitar sistematicamente acordos deste tipo com nagGes de economias mais poderosas. Assim, 0 pais recobrou liberdade de movimentos, para conduzir suas politicas piblicas, a comegar pela afirma- Gio de sua independéncia tributéria, pois a receita de im- 8. Hélio Jaguaribe, Novo Cendrio Internacional: Conjunto de Estudos, Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, pp. 33-82; Gelson Fon- seca Jr., “Relendo um Conceito de Jaguaribe: A Permissibilidade no Sistema Internacional”, em Estudos em Homenagem a Hélio Jaguaribe, org. de Alberto Venincio Filho, Israel Klabin, Vicente Barreto, Sao Paulo, Paz e Terra, 2000, pp. 93-103, 89 Portagao era, na época, a principal fonte de arrecadagio. Neste sentido, Alves Branco em 1844 elevou as tarifias de 15% para uma regra geral de 30% ad-valorem, con- tribuindo igualmente para favorecer o primeiro surto de industrializagao no Brasil?. Nos antecedentes da postura diplomética da autono- mia pela distancia possivel, também vale a pena lembrar, como fez José Honério Rodrigues, o significado da posi- gio de Domicio da Gama — discipulo de Rio Branco — quando Embaixador do Brasil em Washington. Em tele- grama de 24 de fevereiro de 1913 ao entio Chanceler Lauro Miiller, que pretendia “sempre marchar de acor- do” com os Estados Unidos, Domicio da Gama propunha [...] que aos Estados Unidos nao dé o Brasil maiores provas de consideragao do que dele receber, que nos coloquemos em postura de retribuir e nfo de adiantar, j4 que o agodamento s6 serviria para nos desprestigiar, como a outros acontece", Foi neste espfrito que o esforgo para traduzir neces- sidades internas em possibilidades externas, ampliando © poder de controle do pais sobre o seu destino, na légi- ca diplomatica de um nacionalismo de fins, teve nas diver- sas fases do primeiro governo de Getiilio Vargas (1930- 9. J, Pandia Caldgeras, A Politica Exterior do Império, vol. 11 ~Da Regéncia a Queda de Rosas, 2 ed., Brasilia, Fundagio Alexan- dre de Gusmao, Camara dos Deputados, Nacional, 1989, pp. 371- 383; Amado Luiz. Cervo ¢ Clodoaldo Bueno, Histéria da Politica Exterior do Brasil, pp. 59-71; Nicia Vilela Luz, A Luta pela Industria- lizagdo do Brasil, Sao Paulo, Difustio Européia do Livro, 1961, cap. I; Amado Luiz Cervo, O Parlamento Brasileiro e as Relagdes Exteriores (1826-1889), Brastlia, Editora da Universidade de Brasilia, 1981, pp. 20-29, 10. José Hon6rio Rodrigues, Interesse Nacional e Politica Ex- terna, Rio de Janeiro, Civilizagiio Brasileira, 1966, p. 56. 90 1945) o seu significativo paradigma inaugural. Neste pe- rfodo, iniciado sob impacto da crise de 1929, que inter- rompeu os fluxos de capital e provocou a queda dos pre- gos do café, na época 0 principal produto de exportagio do pais, o primeiro problema passou a ser conseguir di- para atender ao ci xt r financeiros. Eni Tutiglé destes imperativos, 0 governo explorou as brechas existentes no sistema inter- nacional através de uma eqitidistancia pragmética em rela- “gio As grandes poténcias. Buscou eréditos de Carto pra- zo na Inglaterra; renegociou compromissos financeiros internacionais do pafs; celebrou, em 1935, um tratado bilateral de comércio com os EUA, mantendo ao mesmo tempo, apesar da oposig&io norte-americana, 0 intenso comércio compensado com a Alemanha. Numa conjun- tura ndo apenas economicamente dificil, mas cada vez coméroio-exterior-e-aos"eompro- mais tensa politicamente, marcada pelo confronto inter- no € externo das lutas ideolégicas e da rivalidade belico- sa entre as grandes poténcias, que levaram & Segunda Guerra Mundial, Vargas jogou diplomaticamente com 0 potencial da importancia estratégica do pais para mobili- zar recursos externos a fim de atender a necessidades internas. Gerson Moura mostra que a eclosio da guerra levou a eqiiidistancia pragmatica a transformar-se em efetivo alinhamento com os Estados Unidos, em obediéncia a um dado da realidade, isto é, 0 peso ¢ a importancia da- quele pais no contexto interamericano, fato de que Getii- lio Vargas tinha muita consciéncia, e dai 0 cuidado com 0 qual cultivou o relacionamento com Roosevelt. Repre- sentou, também, no ambito interno do governo Vargas, 0 sucesso da ala liderada pelo Chanceler Oswaldo Aranha, que com empenho e talento advogava a causa dos aliados. Este alinhamento foi, no entanto, negociado a luz da 16- 1 gica diplomética de um nacionalismo de fins, tendo como lastro 0 que o pafs podia oferecer para a condugio da guerra, ou seja, matérias-primas essenciais ¢ bases no Nordeste, importantes para a guerra na Africa. Esta nego- ciagdo expressa-se em dois planos complementares: 0 econémico € o estratégico-militar™. No plano econémico, 0 objetivo do governo Vargas foi o de promover a industrializacao e o desenvolvimen- to do pais, através de uma insergao controlada na econo- mia mundial, compatfvel, diga-se de passagem, com o que ocorria no resto do mundo. A ilustragdo, por exceléncia, deste objetivo é 0 finan- ciamento que depois de muitas tratativas foi obtido dos EUA para a implantacio da siderurgia no Brasil. Na en- trada de 31 de maio de 1940, Getilio registrou em seu Didrio, nos seguintes termos, este sucesso diplomitico, que é exemplar para esclarecer o significado do naciona- lismo de fins: 11.Gerson Moura, Autonomia na Dependéncia, Rio de Janeiro, NovaFronteira, 1980; Gerson Moura, Sucessas ¢ Iusties — Relagdes Internacionais do Brasil Durante e Apés a Segunda Guerra Mundi- al, Rio de Janeiro, Editora da Fundagio Getilio Vargas, 1991; Maria Celina Soares d’ Araijo e Gerson Moura, “O Tratado Comercial Bra- sil-Estados Unidos e os Interesses Industriais Brasileiros”, Revista Ciéncia Politica, 21, (jan./mar.) 1978, pp. 55-73; Marcelo de Paiva Abreu, O Brasil e a Economia Mundial -— 1930-1945, Rio de Janei- 10, Civilizagiio Brasileira, 1999; Roberto Gambini, O Duplo Jogo de Vargas, Sio Paulo, Simbolo, 1977; Ricardo Antonio Silva Seitenfus, O Brasil de Getilio Vargas ¢ a Formagao dos Blocos: 1930-1942, Sao Paulo, Nacional, 1985; Stanley B. Hilton, Brazil and the Great Powers, 1930-1939 The Politics of Trade Rivalry, Austin, University of Texas Press, 1975; Frank D. Me Cann Jr., The Brazilian American Alliance, 1937-1945, Princeton, Princeton University Press, 1973; Joao Hermes Pereira de Araijo, “Oswaldo Aranha e a Diplomacia”, op. cit; Stanley Hilton, Oswaldo Aranka - Uma Biografia, Rio de Janeiro, Objetiva, 1994. 92 Ponco antes de recolher-me, recebi um cifrado do nosso embai- xador em Washington informando que 0 governo americano (esta- va) pronto a financiar nosso programa siderirgico, Foi uma noticia feliz que me encheu de satisfaciio. E um novo teor de vida para 0 Brasil: ariqueza eo poder" No plano estratégico-militar, 0 objetivo foi promo- ver 0 reequipamento das forgas armadas e obter 0 apro- priado apoio dos Estados Unidos a decisao brasileira de participar efetivamente da guerra, através do envio da Forga Expedicionéria ao teatro de operacées na Europa. Es dial — em contraste, por exemplo, com a Argentina de decisio deu ao Brasil, no pés-Segunda Guerra Mun- Perén, — 0 locus standi e a confiabilidade de um pats realmente alinhado com os vencedores, que a seguir cons- truiram a nova ordem mundial. A bipolaridade rigida da Guerra Fria e as prioridades norte-americanas na reconstrugao da Europa (Plano Marshall) tornaram, no governo Dutra, 0 locus standi do alinhamento do Brasil aos EUA um alinhamento com pou- cas recompensas para a légica diplomitica do naciona- ‘0 com os Estados lismo de fins. O alinhamento pol! Unidos nao impediu, no entanto ~ e vale ressaltar este ponto ~ que, no ambito do multilateralismo econémico que entio comecava a consolidar-se, a diplomacia brasi- leira afirmasse a especificidade dos interesses do pais na promogiio do desenvolvimento econdmico e da indus- trializagao. E 0 que se verifica no histérico das negocia- ges da Carta de Havana, voltadas para a criagdo da malo- grada Organizagiio Internacional do Comércio, cujo subproduto se cingiu ao GATT. 12. Gettilio Vargas, Didrio, vol. Tl, p. 316. 13. Gerson Moura, O Alinhamento sem Recompensa =a Polf tica Externa do Governo Dutra, Rio de Janeiro, CPDOC/FGY, 1991 93 ‘As escassas margens de manobra no plano interna- cional (Guerra da Coréia), que caracterizaram 0 segundo governo Vargas (1951-1954), também limitaram, no pla- no externo, o pragmatismo diplomitico desse tipo de nacionalismo. Isto nao impediu o prosseguimento de uma insergao controlada na economia mundial, para levar adiante o processo de substituigio de importagdes e a discussio no Ambito internacional da problematica do desenvolvimento'*. Jofio Neves de Fontoura, que foi o primeiro Chan- celer do 2¢ governo Vargas e que endossava, no plano politico a relevancia do conflito Leste/Oeste e 0 apoio do Brasil & causa do Ocidente, exprimiu no seu discurso de 1952 na Assembléia Geral da ONU, com clareza, a prioridade.a ser dada, na perspectiva brasileira, ao desen- volvimento no contexto de um mundo que se estava divi- dindo, nas suas palavras, entre “um pequeno nimero de comunidades présperas” ¢ “um vasto proletariado inter- nacional”. E di: Estou convencido, contudo, de que nossos maiores proble- ‘mas so os econdmicos, e que precisamos aqui é de uma politica dindmica, capaz. de satisfazer as necessidades que surgem em mui- tos paises como resultado de seu crescimento. Paulo Roberto de Almeida, “A Diplomacia do Liberalismo Econémi- co”, em José Augusto Guilhon de Albuquerque (org.), Sessenta Anos de Polttica Externa Brasileira (1930-1990), vol. I; Crescimento, Modernizagao e Politica Externa, Sio Paulo, Cultura Editores As- sociados/Niicleo de Pesquisa de Relagdes Internacionais da USP, 1996, pp. 188-193. 14, Monica Hirst, “A Politica Externa do Segundo Governo Vargas”, em José Augusto Guilhon de Albuquerque (org), Sessenta Anos de Politica Externa Brasileira (1930-1990), vol. I; Crescimen- 10, Modernizagdo ¢ Politica Externa, pp. 211-230. 94 Por isso afirmava mais adiante: Passos imediatos tém que ser dados para se tragar um amplo programa de agiio que beneficie os paises subdesenvolvidos ¢ aque- les que ainda nfo chegaram nem a um nivel econémico que assegure a mera subsisténcia®* As fissuras do sistema internacional (Bandung, Suez, Revolugio Hiingara) abriram espago para a politica exte- rior brasileira exercitar de maneira mais desenvolta 0 nacionalismo de fins no estilo grociano de sua conduta diplomatica. E neste contexto que se insere a Operagiio Pan-Americana (OPA). A OPA foi uma inovadora afirmagio de diplomacia presidencial. Pot meio dela, Juscelino Kubitschek (1956- 1961) articulou no Ambito do sistema interamericano 0 imperativo do desenvolvimento como condigao de susten- tagdo da democracia, da solidariedade e da paz. Tal arti- culagio efetivou-se por meio de uma iniciativa politica que teve como ponto de partida a oportunidade criada pelas hostilidades que marcaram a passagem do Vice-Pre- sidente norte-americano Richard Nixon, em 1958, por Lima e Caracas. A OPA tevea dimensio simb6lica, no plano dos valo- res, de colocar inequivocamente a diplomacia brasileira a servigo do desenvolvimento de forma muito conver- gente com o sentido de direg%o que norteou a presidén- cia de Juscelino Kubitschek (‘50 anos em 5”). Neste pla- no, ela muito deve & intuigio de um dos seus grandes inspiradores, Augusto Frederico Schmidt, que afirmou 15. A Palavra do Brasil nas Nagées Unidas. Discurso do Mi- nistro Joti Neves de Fontoura na VII Sessio Ordindriada A. G. (14 out. 1952), pp. 55-56. 95 no seu discurso de 1959 como chefe da delegacio brasi- leira 4 XIV Assembiéia Geral da ONU: [...]o Brasil acrescenta hoje, com caréter prioritario, & politica de colaboracdo internacional para o desenvolvimento, que é a polft cado futuro, a politica da esperanga. Estamos profundamente conven- cidos de que~como afirmou o Chefe da Nacao brasileira —a inércia diante do problema da miséria, da doenga, da ignorancia, num mun- do que tem & sua disposi¢fo recursos cientificos ¢ técnicos nunca dantes sonhados, constitui um crime contra o espirito, um atentado a0 nossos pretendidos foros de civilizagéo, uma imperdodvel ofen- sa moral e uma imprudéncia politica de incalculiiveis consequéncias para a paz do mundo, Que essa adverténcia seja ouvida enquanto for tempo! A OPA teve ao mesmo tempo uma dimensio técnica voltada para o aprofundamento da visdo multilateral dos problemas econémicos do desenvolvimento. Entre eles estava a da mobilizagao de recursos para o seu financia- mento. Dai a importancia neste contexto da criagio do BID — Banco Interamericano de Desenvolvimento — que teve na OPA uma das suas principais bases de materia- lizagao”. 16. A Palavra do Brasil nas Nagdes Unidas, Discurso do Em- baixador Augusto Frederico Schmidt na XIV Sessio Ordinaria da A. G. (14 set. 1959), p. 157. 17. “Operago Pan-Americana”, Documentdrio VI (Relat6rio Cleantho Paiva Leite), Rio de Janeiro, Presidéncia da Republica, 1960. Sobre a politica externa no governo JK, ver Ricardo Wahrendorf Caldas, A Politica Externa do Governo Kubitschek, Brasilia, ‘Thesaurus, 1966; Gerson Moura, “Avangos e Recuos: a Politica Exterior de JK”, em Angela de Castro Gomes (org,), O Brasil de JK, Rio de Janeiro, Editora da Fundagao Getilio Vargas/CPDOC, 1991, pp. 23-43; Alexandra de Mello e Silva, A Politica Externa de JK: Operagéio Pan-Americana, Rio de Janeiro, CPDOC/FGY, 1992; Paulo ‘Tarso Flecha de Lima, “A Diplomacia, Celso de Souza ¢ Silva, A OPA” em JK, O Estadista do Desenvolvimento, coord. Afonso Heliodoro dos Santos e Maria Helena Alves, Brasilia, Memorial JK/ Senado Federal, 1991, pp. 273-286; 289-297, 96 de ampliar o éspaco da autonomia. As condigées de permissibilidade do sistema inter- nacional ¢ os dados internos permitiram esforgos de universalizagao da Operagao Pan-Americana por meio da politica externa independente dos Presidentes Janio Qua- dros (1961) e Jodo Goulart (1961-1964), na qual tive- ram papel de destaque os Chanceleres Afonso Arinos & San Tiago Dantas'*, A universalizagio no ficar os relacionamentos diplo com os paises africanos e asidticos, na onda aproximagao do processo de descolonizagao, ¢ o significado do resta- belecimento, em 1961, das relagGes diplomaticas com a Unidio Soviética, rompidas no governo Dutra (1947), € antecedidas pelo reatamento das relagdes comerciais no final do governo Kubitschek. No campo econémico, no perfodo da politica exter- na independente, a agenda diplomdtica brasileira univer- salizou-se, valendo-se das teses da CEPAL sobre a dete- 18, Braz José de Aratijo, “A Politica Extema no Governo de Janio Quadros”, em José Augusto Guilhon de Albuquerque (org.), Sessenta Anos de Politica Externa Brasileira, vol. 1, Crescimento, Modernizagio ¢ Politica Externa, pp. 253-281; Rodrigo Amado, “A Politica Externa de Joo Goulart”, idem, ibidem, pp. 283-287; Gelson Fonseca Jr., A Legitimidade e Outras Questdes Internacio- nais, pp. 293-352; Paulo G. F. Vizentini, Relagdes Intemacionais ¢ Desenvolvimento, O Nacionalismo e a Politica Externa Indepen- dente 1951-1964, Petropolis, Vozes, 1995; Celso Lafer e Felix Pefia, Argentina e Brasil no Sistema de Relagdes Internacionais, pp. 88- 126; San Tiago Dantas, Politica Externa Independente, Rio de Ja- neiro, Civilizaga io Brasileira, 1962; Aspasia Camargo, Maria Clara Mariani, Maria Tereza Teixeira, O Intelectual e a Politica: Encon- tras com Afonso Arinos, Brasilia, Senado Federal, Rio de Janeiro, CPDOCIFGY, 1983, pp. 161-188. 7 rioragao dos termos de troca dos produtos primérios. Renovada énfase foi dada as dificuldades do comércio exterior do pais e do que isto significava para os proble- mas da geracdio de recursos cambiais para o desenvolvi- mento interno. Estas dificuldades (“o estrangulamento cambial”) estavam centradas no valor econémico de uma pauta de exportagGes concentrada em café e também em cacau e agticar. Daf a importancia da exitosa negociagio do Acordo Internacional do Café de 1962, que reunia paises produtores em desenvolvimento e paises consu- midores desenvolvidos ¢ que criou uma disciplina juridi- ca mundial para 0 café, que associava mercado e inter- vengao (quotas), para manter um apropriado equilfbrio de pregos. Na mesma linha, porém com escopo mais amplo, est o papel do Brasil na articulagao diplomatica que levou a criagdo em 1964 da Conferéncia das Nagdes Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) como uma organizagao internacional voltada para a vinculagio entre comércio internacional e desenvolvi- mento. O significado desta articulacao e o que ela Tepre- sentou como adensamento da capacidade técnica dos paf- ses em desenvolvimento na identificag3o dos seus problemas ¢ na busca de solugdes especfficas foi uma das tOnicas do pronunciamento do Chanceler Aratijo Cas- tro em 24 de marco de 1964, em Genebra, na quarta ses- sao plendria da Conferéncia dos Paises em Desenvolvi- mento. Daf no ambito da UNCTAD a defesa da tese de acesso a mercados, sem o tipo de reciprocidade prevista no GATT, através de um sistema de preferéncias a ser concedido pelos paises desenvolvidos aos produtos ex- portados pelos paises em desenvolvimento. Daf também a irradiagao no tempo do conceito de “tratamento espe- cial e diferenciado” como uma categoria do direito do desenvolvimento, defendida pelo Grupo dos 77, com ati- 98 va participagao brasileira, nas negociagées econdmicas internacionais”, ‘A implantagio do regime militar em 1964 deu-se no contexto de uma significativa batalha ideolégica entre esquerda e direita, reverberadora da bipolaridade Leste/ Oeste. Por isso, os dados internos e externos da conjun- tura da época amainaram, no momento inicial, ou seja, no governo Castelo Branco (1964-1967) a propensiio & autonomia pela distancia da politica externa a sobretudo em relacio aos Estados Unidos ¢ muito especi- ficamente no que dizia respeito & Cuba revolucionéria de Fidel Castro. No plano politico, a participagao do Brasil em 1965 na Forca Interamericana de Paz, organizada, sob alideranca do governo norte-americano, para assegurar & ordem na Reptiblica Dominicana, é uma clara expresso simbélica, do alinhamento brasileiro A visio dos Estados Unidos sobre o apropriado funcionamento do sistema internacional, no contexto do conflito Leste/Oeste. Entretanto, nos governos subseqiientes as “forgas profundas” do nacionalismo de fins, como, companente forte das linhas de continuidade da identidade internacio- nal’do Brasil, afloraram com a evolugio da conjuntura 19. O discurso de Aratijo Castro, “Comércio Internacional ¢ Desenvolvimento” esté reproduzido em Rodrigo Amado (org;),Arail> jo Castro, Brasflia, Editora da Universidade de Brasflia, 1982, pp. 43-49; cf. Luis Lindenberg Seue, “A Diplomacia Beon6mica Brasl+ leira no P6s-guerra (1945-1964), em José Augusto Guilhon de Albu- querque (org.), Sessenta Anos de Politica Externa, vol. Il, Diplo macia para o Desenvolvimento, pp. 239-266; Pedro Sampaio Malan, “Relacdes Econ6micas Internacionais do Brasil (1945-1964)", om Histéria Geral da Civilizagdo Brasileira - Perfodo Republieano, diregdo de Boris Fausto, tomo 3, vol. 4 (Economia ¢ Cultura, 1930+ 1964), pp. 83-106; Paulo Roberto de Almeida, O Brasil ¢ 0 Multilateralismo Econ6mico, Porto Alegre, Livraria do Advogade, 99 interna e externa. A conjuntura interna viu-se permeada por um nacionalismo de inspiragiio militar, sensivel ao tema da afirmago de autonomia, para um pais percebido por significativa parcela das liderangas do regime autori- trio como “poténcia emergente”. Esta afirmacao foi lastreada inicialmente no crescimento econdmico dos governos Costa e Silva (1967-1969) e especialmente Médici (1969-1973) — cujas bases foram dadas pela po- litica econdmica do governo Castelo Branco e que, no plano do comércio exterior, se traduziu numa pauta de exportagdes adensada pela presenga de produtos manu- faturados. Esta assercio encontrou espago no plano in- ternacional em fungio da détente, que abriu novas opor- tunidades para a polaridade Norte/Sul na vida mundial. Neste sentido, na interagdo dialética mudanga/continui- dade, assim como a OPA num contexto democratico, pre- parou as condiges para a politica externa independente, também as gestdes Magalhaes Pinto (1967-1969) e Ma- tio Gibson Barboza (1969-1974) no Itamaraty, dentro do contexto das caracterfsticas inerentes ao autoritarismo do governo militar, prepararam o “pragmatismo respon- svel” do Presidente Geisel (1974-1978) e do seu Chan- celer Azeredo da Silveira. 1999; Celso Lafer, “O Convénio Internacional do Café”, Revista de Direito Mercantil, n. 9, ano XII, nova série, 1973, pp. 29-88; O Convénio do Café de 1976/Da Reciprocidade no Direito Internacio- nal Econémico, Sio Paulo, Perspectiva, 1979; Comércio e Relagdes Intérnacionais, So Paulo, Perspectiva, 1977; “O GATT, acléusula de Nago mais Favorecida e a América Latina”, Revista de Direito Mercantil, n. 3, ano X, Nova Série, 1971, pp. 41-56. Sobre a irra- diago das idéias da CEPAL no Brasil, inclusive no ambito dos qua- dros diplométicos brasileiros, of. Celso Furtado, A Fantasia Organi- zadae A Fantasia Desfeita, Obra Autobiografia, tomo 1 ¢ tomo Il, Sao Paulo, Paz ¢ Terra, 1997, 100 Os argumentos e as proposigdes diplomaticas da politica xterna independente ¢ do pragmatismo sdvel so afins, em funcdo de uma percepedo, assemelha- da de identidade internacional, do Brasil ¢ do.papel do “nacionalismo de fins”. Nao so no entanto idénticos, como mostrou Gelson Fonseca Jr., pois os dados inter- nos ¢ externos eram distintos. O Brasil na década de 1970 tinha uma economia mais desenvolvida e complexa. Por via de consequiéncia, as suas relagdes com os pafses desen- volvidos eram mais diferenciadas e os contenciosos mais amplos, envolvendo subs{dios 4 exportagao, direitos com- pensat6rios, importagao de material sensivel. Na dind- mica do funcionamento do sistema internacional, a pola- ridade Norte/Sul, naquela década, cresceu também de importincia em fungao da crise do petrdleo e da aco da OPEP, situag&o que ajuda a explicar a complexidade das negociagdes multilaterais sobre Direito do Mar, prefe- réncias comerciais, ciéncia e tecnologia que se inserem nas propostas voltadas para a aspiracio de criar uma nova ordem ccon6mica internacional, favorecedora do desen- volvimento do grande espaco nacional na visio da politi- ca externa articulada pelo “pragmatismo responsével”. QO aprofundamento da u a d foi um dos objetivos do “pragmatismo res~_ iversalizé interagdes iplomatic ponsdyel”. Daf uma importante politica africana, uma.ex: pressiva aproxi com 0 mundo érabe, ditade-acima de tudo pela crise do petréleo, ¢ 0 significado do estabe-_ No capitulo da preservagao do espago da autonomia atra- vés da diversificagao dos contatos com o mundo desen- volvido — uma prioridade do governo Geisel - merece destaque 0 Acordo Nuclear com a Alemanha (1975), € nao pode deixar de ser mencionada a inflexio represen- tada pela dentincia do acordo militar com os Estados 101 Unidos, provocada pelo contencioso do desrespeito in- terno aos direitos humanos (1977). Além das conseqtiéncias externas da diferenca entre democracia e autoritarismo, verificadas por exemplo em matéria de uma lamentavel postura sobre a tutela de direi- tos humanos no plano internacional, a nota singularizadora mais expressiva, que, no meu entender, separa a politica externa independente do “pragmatismo responsével”, diz Tespeito ao relacionamento com a Argentina. Com efei- to, a politica externa independente assinalou-se, no me- Ihor da linha das “forgas profundas” da agio di diplomatica brasileira, pela aproximacio com a Argentina. Este é 0 significado do Encontro de Uruguaiana de 22 de abril de 1961 entre os Presidentes Janio Quadros e Arturo Frondizi, que na ocasiao assinaram um Convénio de Ami- zade e Consulta, aberto a adeso de outros paises do con- tinente. J4 o pragmatismo responsdvel caracterizou-se pela exacerbacao do contencioso de Itaipu, com todas as ine- vitéveis conseqiiéncias que uma relagio dificil com a Ar- gentina trouxeram para a preservagao de um clima favorecedor da cooperagio para o desenvolvimento na América do Sul. O governo Figueiredo (1979-1984), que contou no Ttamaraty com a superior competéncia diplomitica do Chanceler Saraiva Guerreiro, superou rapidamente as difi- culdades com a Argentina relacionadas ao contencioso de Itaipu. Em plano mais geral, no contexto do proceso in- terno de normalizagao da vida politica e institucional do pais, das dificuldades econdmicas da segunda crise do pe- tr6leo e do aumento do endividamento externo, nossa po- litica exterior operou os ajustes de condugio diploma- tica necessérios para dar continuidade ao “nacionalismo de fins”. Logrou assim consolidar no plano interno a acei- taco do papel desempenhado pelo Itamaraty na pritica de 102 uma diplomacia que cultivou a autonomia e deu continui- dude a uma insergao controlada no mundo, com 0 objeti- vo de favorecer o desenvolvimento interno”. Daf a mani- festagiio de Tancredo Neves, como candidato das forgas de oposigao a presidéncia da Repiiblica, na sucessfio de Figueiredo, em encontro sobre a politica externa promo- vido pela Comissio de Relagdes Exteriores da Camara dos Deputados em novembro de 1984: Sempre defendi a politica externa do Itamaraty nas suas linhas gerais_¢ fundamentais. Tenho, i0 dito que se ha um ponto.na politica brasileira que encontrou wy consenso.detodas-as-couentes. 20. Paulo Fagundes Vizentini, A Politica Externa do Regime Militar Brasileiro: Muttilateralizagao, Desenvolvimento e Constru- do de uma Poténcia Média (1964-1985), Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS, 1998; Luiz Augusto P. Souto Maior, “O “Pragmatismo Responsével” em José Augusto Guilhon de Albu- querque (org.), Sessenta Anos de Politica Externa, vol. 1, Cresci- memo, Modemizagéo e Politica Externa, pp. 337-360; Luiz Augusto Souto Maior, “A Diplomacia Econdmica Brasileira no Pés-guerra (1964-1990)", em José Augusto Guilhon de Albuquerque (org.), Ses senta Anos de Politica Externa, vol. Il, Diplomacia para 0 Desen- volvimento, pp. 267-296; Gelson Fonseca Jr., A Legitimidade e Outras Questdes Internacionais, pp. 293-352; Vasco Leitio da Cu- nha, Diplomacia em Alto-Mar (depoimento ao CPDOC, entrevista Aspisia Camargo, Zairo Cheibub, Luciana Nébrega), Rio de Janeiro, tora da Fundago Getilio Vargas, 1994, pp. 264-306; Luiz Viana Filho, O Governo Castelo Branco, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio, 1975, pp. 428-451; Mario Gibson Barboza, Na Diplomacia,o ‘Trago Todo da Vida, pp. 197-310; R. Saraiva Guerreiro, Lembranga do Empregado do Itamaraty; Ernesto Geisel, Depoimento, org. de Maria Celina d’ Aratjo e Celso Castro, Rio de Janeiro, Editora da Fundagiio Getulio Vargas, 1997, pp. 335-360; Luiz Felipe de Seixas Corréa, “O Discurso da Diplomacia Brasileira na Assembléia Geral du ONU: Cinco Décadas de Politica Externa e de Contribuigho a0 Direito Internacional”, em Paulo Borba Casella (org.), Dimensito [n= ternacional do Direito - Estudos em Homenagem a G. E. do Na: iento e Silva, Sto Paulo, LTr, 2000, pp. 97-109; Wayne A. Selcher, 103 de pensamento, este ponto € realmente a politica extema levada a A bem sucedida transi¢io democritica, levada a cabo com a eleigao de Tancredo Neves, conferiu a politica externa na presidéncia de José Sarney (1985-1989), no campo dos valores, um componente importante de legi- timidade. Soube o presidente Sarney, com a colaboracao do Itamaraty nas gestdes Olavo Setiibal (1985-1986) e Roberto de Abreu Sodré (1986-1990), recuperar a pro- jeg%o internacional do Brasil como Estado de Direito, retificando a visio de inspirago militar — por exemplo em matéria de direitos humanos — ¢ valorizando o ele- mento positivo representado pela normalizagio demo- critica. Assim, no quadro das linhas bésicas de uma polf- tica externa inspirada pelo “nacionalismo de fing”, a presidGncia Sarney moveu-se, como apontou Luiz Felipe de Seixas Con a, no plano interno pelas linhas-mestras da a reforma politica e : do ajuste econdmico; no plano ex- terno, pela busca de parcerias multilaterais e bilaterais Voliadas para a Configuragao dé mecanismos de insercio que contribuissem para o ‘desenvolvimento, no gquadro Brazil's Multilateral Relations Between First and Third Worlds, Boulder, Colorado, Westview Press, 1978; Brazil in the International System: The Rise of a Middle Power, Boulder, Colorado, Westview Press, 1981; Luiz Fernando Ligiéro, Politicas Semelhantes em Mo- mentos Diferentes: Exame e Comparagdo entre Politica Externa In- dependente (1961-1964) 0 Pragmatismo Responsével (1974-1979), tese de doutoramento, Departamento de Historia, Universidade de Brasilia, 2000. 21. Tancredo Neves, em Encontro da Politica Externa: Brasilia 28 ¢ 29 de 1984, Brasilia, Camara dos Deputados, Coordenagao de Publicagdes, 1985, p. 79. 104 politico-econdmico e financeiro do sistema internacio- nal da da segunda metade da década de 1980”. Em sintese, enquanto prevaleceu um sistema inter- nacional de polaridades definidas, Leste/Oeste, Norte/ Sul, e enquanto o processo de substituigo de importa- ges, baseado na escala continental do pais, teve dina- mismo econdmico, a politica externa do Brasil buscou, na ldgica de um nacionalismo de fins, a autonomia pela distancia. Esta busca foi operada de forma flexivel e cons- trutiva, com uma conduta diplomética voltada para ex- plorar os variados e varidveis nichos de oportunidades oferecidos pela convivéneia competitiva da bipolaridade para uma poténeia média de escala continental, situada na América do Sul. O objetivo era o de desenvolver-se para emancipar- an Tiago Dantas elaborada se, na limpida formulagéo d em 1963 desta “forga profunda” de longa duragao, no século XX, da ago diplomética brasileira: 22. Luiz Felipe de Seixas Corréa, “O Discurso da Diplomacia Brasileira na Assembléia Geral da ONU: Cinco Décadas de Politica Externa ¢ de Contribuigdes ao Direito Internacional”, loc. cit, pp. 109-114; Luiz Felipe de Seixas Corréa, “A Politica Externa de José Sarney”, em José Augusto Guilon de Albuquerque (org.), Sessenta Anos de Politica Externa Brasileira, vol. I, Crescimento, Moderni- zagiio e Politica Externa, pp. 361-385; Diplomacia para Resulta- dos, A Gestao Olavo Setibal no Itamaraty, Brasilia, Ministério das Relacdes Exteriores, 1986; Roberto de Abreu Sodré, No Espetho do Tempo ~ Meio Século de Politica, Si Paulo, Best Seller, 1995, pp. 283-335; Celso Lafer, Ensaios Liberais, Sao Paulo, Siciliano, 1991, pp. 205-216; Celso Lafer, “Anilise das Possibilidades Diplomaticas de um Governo Tancredo Neves”, em Monica Hirst (org.) Brasil- Estados Unidos na Transigéo Democratica, Rio de Janeiro, Paz € Terra, 1985, pp. 83-96; Celso Lafer, “Novas DimensGes da Politica Externa Brasileira, Revista Brasileira de Ciéncias Sociais, n.3, vol. I (fev. 1987), pp. 73-82. 105 [...] desenvolver-se é sempre emancipar-se. Emancipar-se ex- ternamente pela extingZo de vinculos de dependéncia a centros de decisio, politicos ou econémicos, localizados no exterior. E emanci- par-se internamente, o que s6 se alcanca através das transformacdes de estrutura social, capazes de instituir, paralelamente ao enriqueci- mento, uma sociedade aberta, com oportunidades equivalentes para todos, ¢ uma distribuigao social da renda apta a assegurar niveis satisfatGrios de igualdade, 23. F. C. de San Tiago Dantas, Politica Exterior e Desenvolvi- mento (discurso de paraninfo pronunciado em 10 de dezembro de 1963 no Palacio do Itamaraty), Revista Brasileira de Politica Inter- nacional, ano VIL, n. 27 (set. 1964), p. 525, 106 Capitulo VI ODESAFIO DO SECULO XXI: ODESENVOLVIMENTO ATRAVES DA INSERGAO NO MUNDO O século XX tem sido objeto de muitas andlises vol- tadas para o entendimento de sua especificidade hist6- rica. Uma das mais conhecidas e instigantes interpreta- g&es € a de Hobsbawn. Ele contrasta um longo século XIX, que se iniciaria com a Revolugiio Francesa e se pro- longaria até a Primeira Guerra Mundial, abrangendo a era das revolugées, a do capital e a dos impérios, a um curto século XX. Este pode ser visto como um “século breve” ~o das guerras de alcance planetario — contido entre a Primeira Guerra Mundial e o fim da Guerra Fria. Nesta linha, a queda do muro de Berlim pode ser considerada um evento inaugural, pois assinalaria, em conjunto com © colapso da Unitio Soviética como conclusio do pro- cesso iniciado com a Revolugio Russa, 0 comego hist6- rico de um novo século'. 1. Eric Hobsbawn, The Age of Extremes, N. York, Pantheon Books, 1994; Renato Petrocchi, “O Irredutfvel Século XX: Uma Existem muitas controvérsias sobre a periodizagio € a interpretagio proposta por Hobsbawn, mas, do ponto de vista da Histéria Diplomitica brasileira creio que o século XX também pode ser visto como um século bre- ve. Tem a especificidade de um inicio proprio, que resul- ta da obra de Rio Branco na primeira década do século XX, encerrando a fase da consolidacdo das fronteiras do espago nacional. Esta consolidagio configurou a natu- reza da diferenga entre o “interno” e o “externo” que foi a base da moderna politica externa brasileira, como pro- curei mostrar nos capitulos anteriores deste livro. En- cerra-se, de maneira convergente com a petiodizagao proposta por Hobsbawn, no inicio da década de 90, em fungao das conseqiiéncias derivadas da queda do muro de Berlim e da desagregagao da Unio Soviética. Para o Bra- sil, uma destas importantes conseqiiéncias foi a de, ao ensejar a plenitude afirmativa da légica da globalizacio, sseaar e diluir a diferenca entre o “interno” ¢ o “exter- bou ’. Esta diluigio foi um dado da realidade que a as uma pausa para pensar de que maneira viabilizar, nas condigGes atuais, o desenv 10 odoe to do espago nac: nal. Com efeito, 0 ) desenvolvimento continua sendo, a faz da identidade_ ‘do Brasit mo “Outro. Ocidente’ 0 obje- tivo ivo por ¢ exceléncia da da nossa \ politica externa, como uma uma polit tiblica voltada par neces 7 politica pi oltada pa ara, a traduzir n wecessidades inter- fades externas. Daf um esforgo, na linha dantitidanga dentro da continuidade que caracteriza a pre- senga do Itamaraty na aco diplomatica brasileira, nas gestdes Francisco Resek (1990-1992), Celso Lafer (1992), Fernando Henrique Cardoso (1992-1993), Cel- so Amorim (1993-1994) e Luiz Felipe Lampreia (1995- Pesquisa de Chaves de Leitura” Contexto Internacional, vol.22, n. | (jan.jjun.) 2000, pp. 7-37. 108 2001), de trabalhar as reformulagdes conceituais exigi- das na década de 1990 pela mudanga do paradigma de funcionamento do sistema internacional, tal como se configurava e afetou o Brasil no pés-Segunda Guerra Mundial’. O paradigma de fato mudou substantivamente, pois a vida internacional deixou de ter como. elemento. estru- te; & NortelSul ‘Passou a caracterizar- se por polaridades indefinidas, sujeitas as “forgas profundas” de-duas l6gi- cas que operam numa. dialética co contraditéria de mtitua A interagao entre uma légica integradora do espago mundial e uma dindmica desintegradora e contestadora desta légica tem muito a ver com as realidades de uma “globalizagao assimétrica”®. Esta realga a percepgaio das descontinuidades no sistema internacional, que, de um 2. Cf. José Maria Atbilla, A Diplomacia das Idéias: A Politica da Renovagdo Conceitual da Politica Externa na Argentina ¢ no Brasil (1989-1994), dissertacaio de mestrado, Instituto de Relagdes Internacionais, PUC-Rio de Janeiro, 1997; Flavia de Campos Mello, Regionalismo e Insergao Internacional: Continuidade e Transfor- magio da Politica Externa Brasileira nos Anos 90, tese de douto- ramento, Departamento de Ciéncia Politica, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas, Universidade de Sto Paulo, 2000; Sér- gio Luis Saba Rangel do Carmo, O Comércio Internacional eo Bra- sil: Multilateralismo, Regionalismo e a Politica Externa Brasileira, dissertagio de mestrado, Departamento de Direito Internacional da Faculdade de Direito de Sao Paulo, Sao Paulo, 2000. 3, Fernando Henrique Cardoso, “Discurso na Sesstio de Traba- Tho da VIII Reunitio de Chefes de Estado e de Governo da Conferén- cia Tbero-Americana”, Cidade do Porto, Portugal, 18 de outubro de 1998. 109 lado, exprimem descompasso entre significado e pode- tio, e, de outro, traduzem um inequivoco déficit de gover- nanga do espago do planeta‘, Como € que se vém situan- do e reposicionando diante destas novas realidades os monster countries, entre os quais se inclui o Brasil? Os EUA ~ que pacificamente ganharam a guerra fria — so hoje a tinica superpoténcia mundial. Esto relativa- mente a vontade neste mundo de descontinuidades e vém explorando as oportunidades que o sistema internacional oferece para, unilateralmente, afirmar o scu globalismo no campo estratégico-militar, no econémico-financeiro e no dos valores. A China foi, no plano estratégico-militar, um dos grandes beneficidrios do fim da guerra fria e logrou obter um excepcional desenvolvimento através da competente administrago do jogo entre o “interno” ¢ o “externo”, num mundo globalizado e de polaridades indefinidas. Este mundo novo alterou os dados estratégico-mili- tares da insergio da india no seu contexto regional, o que explica a sua afirmagio como poténcia nuclear & mar- gem do TNP ¢ o seu cuidado diante da légica da globa- lizag4o que, por suas assimetrias, pode, no plano interno do pais, desencadear forcas centrffugas até agora admi- nistradas pelo seu préprio sistema democratico. 4. Cf. Celso Lafer e Gelson Fonseca Jr., “Questdes para a Di- plomacia no Contexto Internacional das Polaridades Indefinidas (Notas ‘Analiticas e Algumas Sugestées)”, em Gelson Fonseca Jr. ¢ Sérgio Henrique Nabuco de Castro (org.), Temas da Politica Externa Brasi- teira~ I, vol. I, pp. 49-77; Celso Lafer, “O Brasil no Mundo Pés- Guerra Fria”, em George P. Schultz et al, A Economia Mundial em Transformagao, Rio de Janeiro, Editora da Fundagao Gettilio Vargas, 1994, pp. 99-108; Celso Lafer, “Brasil y el Nuevo Escenario Mun- dial”, Archivos del presente, ano 1, n. 3 (verano austral 95/96), pp. 61-80; Zaki Laidi, Un Monde privé de sens, Paris, Fayard, 1994. 110 ARissia, como sucessora da URSS —a grande derro- tada da Guerra Fria ~, continua detendo a segunda maior capacidade nuclear mundial ¢ est4, no contexto de uma ldgica de fragmentacao, em meio a grandes dificuldades econémicas e politicas, 2 procura de uma nova identida- de internacional. Em sintese, os monster countries acima menciona- dos mantém-se, na visio sugerida por Kennan, assusta- dores, por distintas razdes e em novos moldes. Neste panorama sobre a capacidade de responder aos desafios do século XXI, para ficar no plano do eixo assimétrico das relagdes internacionais do Brasil, con- vém fazer uma referéncia 4 Comunidade Européia e ao Japao — que, com os EUA, compéem a “trilateral”. Para 0s europeus, organizados em torno da UE, o fim da Guer- ta Fria colocou politicamente o tema do alargamento para 0 Leste, ao mesmo tempo que o desafio da globalizagao impés 0 aprofundamento da delegagdo de competéncias as instancias comunitérias (por exemplo, a moeda tinica: © euro). A concomitancia do alargamento e do aprofun- damento vem sobrecarregando a agenda da integragao européia, que se vé institucionalmente estressada pela complexidade e pelo volume de problemas. Este stress, presente na grociana construgdo européia, nao impediu, até agora, a resposta aos desafios das novas realidades, mas sem diivida comprometeu sua velocidade ¢ abran- géncia. Ja para o Japio, tem sido problematico responder aos desafios das novas realidades. Tem sido problematico porque o fim da Guerra Fria, ao alterar os dados estraté- gico-militares, colocou novos e significativos dilemas para o papel e os relacionamentos do Japao na Asia. Tem sido problemitico, também, porque 0 modelo sécio-eco- nOmico japonés, tio bem sucedido nos anos 70 e 80, vem ui encontrando dificuldades para dar conta de novos aspec- tos compet Diante destas novas realidades e dos seus problemas, como vem-se situando 0 Brasil? Preliminarmente, é im- portante mencionar que a sociedade brasileira mudou de maneira significativa a partir de 1930, em fungdo do con- vos da globalizagao’. junto de politicas piblicas, inclusive a externa, inspira- das por um “nacionalismo de fins”. O Brasil urbanizou- se, industrializou-se, democratizou-se, diversificou sua pauta de exportagdes, ampliou seu acervo de relagées diplomaticas. Em sintese, modernizou-se e melhorou seu locus standi internacional sem, no entanto, ter equacio- nado uma das “falhas” constitutivas de sua formagao — o problema da exclusao social. A década de 1980, no plano interno, foi politicamente bem sucedida com a transig&io do regime militar para a democracia. Economicamente, o pafs assistiu, em meio Acrise da divida externa e a inflagdo, ao esgotamento do dinamismo do modelo de substituigo de importagées. Este esgotamento jé se vinha evidenciando em razao de um processo de mudancas profundas no plano inter- nacional. A queda do muro de Berlim, marco politico- ideolégico da ruptura, tornou-o ainda mais inequivoco. Sob o = da Siminwigio, dos custos dos transportes 5. Cf. Thérese Delpech, La guerre parfaite; Quelle Identité pour L'Europe, sous la direction de Riva Kastoryano, Paris, Press de Science Po, 1998; La PESC, sous la direction de Marie-Francoise Durand et Alvaro de Vasconcelos, Paris, Press de Science Po, 1998; Robert B. Zoellick, Peter. Sutherland, Hisashi Owada, 2/st Century Strategies of the Trilateral Countries: in Concert or Conffict?, N. York, Paris and Tokyo, The Trilateral Comission, 1999; Carlos Escudé, Estado del Mundo. 112 permitiu, pela inovagio tecnolégica, diluir 0 significado financeiro ¢ e¢ondmico das fronteiras, esgarcando a dife- renga entre o “interno” ¢ ° “externo”. ‘Num mundo de polaridades indefinidas, este esgarcamento colocou em questo a eficiéncia e o dinamismo do processo de inter- nalizagao das cadeias produtivas, mediante uma insergao controlada do pais na economia mundial. Com efeito, como mostrou Gilberto Dupas, a légica da globalizagao, além de ter acelerado vertiginosamente os fluxos finan- ceiros, ensejou uma desagregacio das cadeias produti- vas em escala planetéria. Converteu 0 outsourcing numa pritica empresarial rotineira ¢ fez, assim, do comércio exterior e da produgo de bens e servigos, as duas faces de uma mesma moeda®. Por esta razéo, o desenvolvi- mento no relativo distanciamento dé uma inser¢ao na economia mundial gestionado pelo estado, viabilizado pela escala continental do pais operado pela prévia logica do “nacionalisino de Tins”, tomou-se inoperante. Em sintese, 0 mundo que 6 Brasil administrava com bas- tante competéncia como “externalidade”, internalizou- se: Encerrou-se assim a eficdcia do repertério de solu- Ges construidas a partir do primeiro governo de Getiilio Vargas e que configuraram 0 pais no século XX. Quais as conseqiiéncias dessa “internalizagao” do mundo, como novo dado da realidade internacional, para a condugao da politica externa brasileira? Hé situagdes em que mudangas significativas do funcionamento do mundo provocam e exigem de um pafs uma mudanga da visdo do seu papel, o que pode alterar significativamente sua identidade internacional. O caso da Riissia, como su- cessora da Unido Soviética no pés-Guerra Fria, talvez 6. Gilberto Dupas, Economia Global e Excluséio Social, Sio Paulo, Paz ¢ Terra, 1999. 13 constitua 0 exemplo recente mais marcante. Ja a Alema- nha e 0 Japao, no pés-Segunda Guerra Mundial, deixa- ram, como via de conseqiiéncia de sua derrota militar, de ser atores com aspiragées de grandeza imperial no cam- po estratégico-militar, mas encontraram um novo cami- nho, convertendo-se em bem sucedidos trading states, embora prosseguissem buscando outras formas de parti- cipaco internacional. Também Portugal pés-Revolugao dos Cravos aceitou a légica histérica do processo de descolonizagao do século XX. Redefiniu uma multisse- cular identidade internacional, configurada com a expan- sio ultramarina portuguesa que est na origem do Brasil, assumindo a sua presenga no mundo como parte integrante da Europa Comunitéria. Nao é desta natureza a mudanga que os anos da década de 1990 colocaram para a agenda diplomatica brasileira. Com efeito, no n e ‘mais de permissibilidade do mundo. A visio do mundo e do papel do Brasil nas relagdes internacionais é fruto das circunstincias histéricas que como torné-! foram definindo nossa identidade internacional, tal como procurei mostrar nos capitulos anteriores deste livro. Neste processo, certos valores foram se afirmando, En- tre eles o da autonomia possivel para uma poténcia mé- dia de escala continental situada na América do Sul. Este valor, com seus desdobramentos, passou a integrar o mapa da agio diplomatica brasileira. Os valores, como explica Miguel Reale, sio um bem cultural e tem uma objetivi- dade que se revela no proceso hist6rico. Como bem cul- tural, tém um suporte, uma base na realidade, mas tém igualmente um significado, que aponta para uma diregio de “dever ser”, Por isso mesmo, referem-se a realidade, mas nao se reduzem a ela. Os valores tém igualmente 4 varias dimensées. Uma delas, além do significado direcional, € a possibilidade de realizagiio, que diz res- peito A capacidade de o valor efetivar-se historicamente com apoio numa determinada realidade sécio-politico- econémica’. E precisamente o tema da possibilidade de realizado de uma visto do mundo que, na dialética mu- danga/continuidade, se colocou na agenda diplomatica brasileira na década de 1990. O presidente Fernando Collor (1990-1992) teve a intuigo do aleance da magnitude da mudanga trazida pelo fim do curto século XX para o Brasil. A grande reforma ministerial por ele empreendida em 1992 teve como um dos seus objetivos decantar o significado da reordenagiio da agenda, mas 0 processo se viu interrompido pelas reve- lagSes que levaram ao seu impeachment. Sua sucesso, pelo Vice-Presidente Itamar Franco (1992-1994), den- tro do cumprimento das normas constitucionais — cum- primento que atestou a maturidade das instituigdes de- mocriiticas ~ deu ao pais uma pausa inicial para digerir 0 alcance da mudanga. O Presidente Fernando Henrique Cardoso, em seu primeiro mandato (1995-1998) — va- lendo-se do que os gregos qualificavam de “anguinoia”, a agilidade e a rapidez da inteligéncia — conferiu nova e mais consistente racionalidade ao processo de reorde- nagdo da agenda’, Jé seu segundo perfodo de governo, iniciado em 1999, tem pela frente o desafio de efeetiva- 7. Miguel Reale, Introdugdo a Filosofia, S80 Paulo, Saraiva, 1988, pp. 135-162. 8. Marcel Detienne e Jean-Pierre Vernant, Les ruses de Vintelligence la métis des grecs, Patis, Flammarion, 1974, pp. 293-296; Pier Paolo Portinaro, i! Realismo Politico, p. 89; Celso Lafer, Desafios ~ Etica e Politica, pp. 169-180; O Presidente Se- gundo 0 Socidlogo, entrevista de Fernando Henrique Cardoso a Roberto Pompeu de Toledo; Vilmar Faria e Eduardo Graeff, com 45 mente consolidar a nova agenda, adensando 0 caminho através do qual, no contexto de uma “globalizacio assimé- trica”, o pais amplie o poder de controle sobre seu desti- no e, com sensibilidade social-democrdtica, encaminhe © persistente problema da exclusio social. Lembra neste sentido Fabio Wanderley Reis que os trés problemas articulados que se colocam para o desen- volvimento politico de um estado-nagaio moderno sio os da identidade, o da governabilidade ¢ o da igualdade. Eles ‘Se viram colocados em novos termos no mundo pés-Guer- ra Fria para o Brasil, na medida em que a fusio entre iden- tidade e economia, concebido pelo “nacionalismo de fins”, tornou-se inoperante. Esta inoperancia tem o seu efeito em matéria de governabilidade, pois em fungio das nao equacionadas deficiéncias sociais do pais o tema de uma “ingovernabilidade hobbesiana”, proveniente da deterio- ragio do tecido social agudizou-se. E isto toma mais pro- blemitica a agdo do estado na sua tarefa primeira de manu- tengo de uma apropriada ordem publica. E porestarazio “questo nacional” se identifica fortemente com a “questo social”, ou seja, com o problema dé igualdade no Brasil?. O que significa esta problematica do ponto de vista de politica externa concebida como politica piiblica vol- tada para o tema do desenvolvimento do espago nacio- nal? No que diz respeito ao Brasil na América do Sul, os Ana Maria Lopes de Almeida, Sérgio Fausto, Sérgio Florencio, Cléu- dio Maciel, “Preparando o Brasil para o Século XI — Uma Expe- rigncia de Governo para a Mudanga”, em Liicio Alcantara, Vilmar Faria e Carlos H. Cardin (org,), Globalizagéio e Governo Progressis- ta — Novos Caminhos, pp. 217-276. 9. Fébio Wanderley, “Atualidade Mundial e Desafios Brasilei- ros”, Estudos Avangados, vol. 14, n. 39 (mai./agos.) 2000, pp. 14- 20. 116 caminhos que me parecem apropriados foram discuti- dos no capitulo III deste livro. No que tange ao eixo assimétrico do sistema internacional, creio, com Gelson Fonseca Jr., que se antes o pafs construiu, com razoavel sucesso, a autonomia possivel pelo relativo distancia- mento em relagio a6 mundo, nesta virada do século esta “autonomia possivel, necessiria para o desenvolvimento, sia | parti 10 f “Gio y das nlormas € pautas de conduta da gestiio da ordem mundial”, Em outras palavras, os “Cificos™ do ais éStéio, mais do que seus “interesses gerais” na dindmica do funcionamento da ordem mundial. E por esta razao que a “obra aberta” da _86 pode ser construida ipagao ativa na elabora- iteresses espe- Jados aos ‘continuidade na mudanga, que caracteriza a diplomacia brasileira, requer um aprofundamento, nos foros multi- laterais, da linha de politica externa inaugurada na Haia em 1907. _O locus standi para este aprofundamento tem a sustenté-l olidagao da demo. cracia e a importancia de uma economia aberta, estabili- zada ‘pelo Piano Real. Este foi um dos grandes méritos de Femando Henrique Cardoso, primeiro como Minis- tro da Fazenda e depois como Presidente da Republica, ¢ isto revigorou, no plano externo, o alcance e a coeréncia no plano interno, a cons dos ativos diplomaticos de uma conduta de corte grociano. Esta tem a sustent4-la, no plano da possibilidade de reali- zagio, o fato de ser o Brasil um pafs de escala continen- tal, relevante para a tessitura da ordem mundial e apto para articular consensos entre grandes e pequenos, por- que nao é um monster country assustador, como os seus congéneres. Tal disting’o nao deixa de constituir um ati- 10. Gelson Fonseca Jr., A Legitimidade e Outras Questées In- ternacionais, pp. 353-374. 7 vo potencial num sistema internacional em que as per- cepgdes de risco e as estimativas de credibilidade sao dados importantes. A isto se adicionam os investimentos no sofi-power da credibilidade, realizados pelo pais no_ correr da década de 1990,a0 tratar de maneira construti- ‘Va pela participagao ¢ nfio.pela distiii¢ia — os “temas feragio nuclear, pomderando que no plano dos va trato construtivo ie condizente com. dente da nossa identidade. internac a visto grociana que permeia a nossa conduta diplomati- cae vidvel & luz da nossa insergio no mundo. Este trato construtivo se deu em foros multilaterais, que sio para o Brasil, pelo jogo das aliangas de geome- tria varidvel, possibilitadas por um mundo de polaridades indefinidas, 0 melhor tabuleito para o pais exercitar a sua competéncia na defesa dos interesses nacionais. E neste tipo de tabuleiro que podemos desenvolver 0 me- Ihor do nosso potencial para atuar na elaboragiio das nor- mas e pautas de conduta da gestao do espago da globa- lizagdo em todos os campos de interesse para © Brasil. _Do ponto de vista do desenvolvimento do espaco nacional e do tema da pobreza, qué € um componente da ORS identidade internaciénal como Wim Outié-Ociden- te, 0 desafio real que se coloca para.o Brasil-reside nas negociagées da agenda financeira e da agenda de comér- exterion Com efeito, a globalizacio encurtou os es- ‘pagos e acelerou.o tempo, porém tais fendmenos afetam 0s interesses do Brasil de maneira nfo uniforme, em fun- cdo da especificidade da nossa inserctio no mundo. O tempo financeiro € 0 tempo on-line dos fluxos financeiros, que na sua volatilidade vém produzindo as 18 globais” que se inseriram, em novos térmos; fi agenda, componente Oci-_ |, congruente com sucessivas crises nos pafses de mercados emergentes € que nos atingiram direta ou indiretamente. Daf a relevan- cia, para o Brasil, das negociagSes sobre a “nova arquite- tura financeira”. O tempo da midia é também um tempo on-line. Pro- voca, no Brasil ¢ no mundo, a repercussdo imediata do peso dos eventos nas percepgées coletivas. Esta reper- cussio fragmenta a agenda da opiniao piiblica, leva ao monitoramento e a reagdes constantes aos sinais do mer- cado e da vida politica e cria, conseqiientemente, um ambiente de excessiva concentragio no momento pre- sente, em detrimento da necessdria atengdo ao embasa- mento no passado e as implicagSes futuras do evento em pauta, O foco nos acontecimentos e a falta de foco nos processos, provenientes da natureza dotempo.da.midia, € um desafio constante para a con trugao do soft-pow da credibilidade internacional do pafs — um desafio que adquire outra magnitude no sistema internacional pés- Guerra Fria, com a “internalizagio” do mundo.na re de brasileiva. Dat, por exemplo, a importancia, para 0 do eventos que permitem transmitir e informar a opiniao pUblica — interna e externa — sobre o significado dos pro- _cessos em andamento no pais. Chamo a atengio neste sentido para a importancia da diplomacia presidencial do presidente Fernando Henrique Cardoso, pois ela é a ex- pressio de uma visio arquitetnica da politica externa diante dos desafios do século XXI, que tem como obje- tivo constante lidar com o impacto da “internalizagio” do mundo na vida brasileira", U1. Sérgio Danese, Diplomacia Presidencial, Rio de Janeiro, Topbooks, 1999. 119 O tempo econdmico é 0 do ciclo da produgao e do investimento. E um tempo mais Jento que o financeiro e © da mfdia e, no caso do Brasil, encontra-se afetado pe- las condig6es sistémicas da competitividade. Estas so- frem o peso das ineficiéncias do assim chamado “custo Brasil”, um custo que era suportavel quando 0 mundo podia ser administrado como “externalidade”. Lidar com o “custo Brasil” é uma necessidade proveniente da internalizagaio do mundo. Isto requer reformas como, por exemplo, a tributéria e a da previdéncia social. Estas reformas transitam pelo tempo politico, que, into do financeiro, no Brasil € no mundo, é um tempo dis do da mfdia e do econémico. E, em principio, num regi me democrético, um tempo mais lento, condicionado pela territorialidade das instituiges politicas, pelos ciclos eleitorais, pelos interesses dos partidos ¢, no caso do Brasil, pelo problema do complexo equilibrio dos esta- dos da Federagdo, num pais caracterizado pelo pluralismo de sua escala continental. B, também, no caso brasileiro, um tempo tradicionalmente voltado para “dentro” e nao “para fora”, a luz da experiéncia histérica de um pafs con- tinental habituado 4 autonomia pela distancia e que, por isso mesmo, ainda nao absorveu a internalizacdo do mun- do. Daf a razio pela qual a sincronia do tempo politico com os tempos financeiro e econ6mico é um dos gran- des desafios na condugio das nossas politicas publicas. Tal desafio tem uma dimensao que passa pelo tempo diplomatico, que no caso das negociagées comerciais globais, regionais ou inter-regionais é um tempo mais lento. Esse tempo corresponde ao da OMC; ALCA; MERCOSUL; MERCOSUL-Ut Européia etc., e énele que 0 Brasil como um pequeno global trader precisa ampliar 0 seu acesso a mercados. Elemento essencial desse empreendimento é a participagao capacitada nas 120 negociagSes relativas A elaborag&o de normas internacio- nuis em reas afetas ao comércio, como por exemplo barreiras nfio-tariffrias, que podem assumir, entre outras, a forma de normas sanitérias e fitossanitarias; ou padroes técnicos. Ha também os temas dos subsidios; da defesa comercial e da propriedade intelectual. A crescente regu- lamentagdo multilateral dessas matérias constitui uma forma de “internalizagio” do mundo na vida brasileira, o que exige qualificagio negociadora condizente com a importancia da matéria e com o caréter complexo das negociacées. Essa qualificagto negociadora indispensavel, pois na elaboragdo da regulamentagiio dessas matérias o Bra- sil precisa também assegurar espaco — que vem-se redu- zindo — para a condugio de suas politicas publicas. Com efeito, num pais como 0 nosso, 0 desenvolvimento resultar4, automaticamente, da combinagio virtuosa das politicas fiscal, monetéria e cambial, embora nelas encon- tre as condigdes macroeconémicas de stia sustentabi- lidade, Requer um conjunto amplo de politicas piiblicas, que de maneira congruente e compativel com os grandes equilibrios macroeconémicos, asseguradores da estabi- lidade da moeda, reduzam a desigualdade e impulsionem © desenvolvimento do espaco nacional, dando no seu Ambito, aos agentes econdmicos, condigées de isonomia competitiva, que Ihes permita enfrentar o desafio da globalizagdo”, Em poucas palavras, o mais significativo desafio que se coloca para a politica externa brasileira neste inicio do século. XX1.é.0 de como preservar um espago pré. 12. Desenvolvimento, Indiistria e Comércio ~ Debates - Estu- dos ~ Documentos —1 (relatério de atividades ~ | de janeiro a 16 de julho de 1999 do Ministro Celso Lafer no MDIC). 121 prio, no plano interno, para poder lidar com o impacto dos tempos da “internalizagao” do mundo, que procurei sucititamente indicar.B a este grande desafio a que se referiu o presidente Fernando Henrique Cardoso na reu- nifio de Florenga de 1999 ao dizer: A progressive governance no plano internacional envolve, pois, © esforgo da construgdo de um sistema compativel com a existéncia de um espago, no plano doméstico para a condugao de politicas que sem prejuizo da responsabilidade fiscal e da coeréncia macroeco- némica respondam as questdes fundamentais do bem-estar, do em- prego e do desenvolvimento social e a da inclustio dos segmentos que ainda estejam & margem da sociedade'®, Em sintese, e para concluir com uma metéfora mu- sical, o desafio da politica externa brasileira, no inicio do século XXI, € 0 de buscar condigdes para entoar a melodia da especificidade do pafs em harmonia com o mundo, Nao € um desafio facil dada a magnitude dos pro- blemas internos do pais, as dificuldades de sincronia dos tempos na condugio das politicas piblicas e a cacofonia generalizada que caracteriza 0 mundo atual, em fung&o das descontinuidades prevalecentes no funcionamento do sistema internacional. E, no entanto, um desafio para 0 qual o histérico da insergao e da construgao da identida- de internacional do Brasil, analisadas neste texto, ofere- ce um significativo lastro para a ago bem-sucedida. 13. Fernando Henrique Cardoso, “O Modo Progressista de Governar”, em Lticio Alcantara, Vilmar Faria ¢ Carlos H. Cardin (org.), Globalizagdo e Governo Progressista, p. 200. 122 Posfacio Este livro, publicado no inicio de 2001, foi escrito a0 longo do ano de 2000, como explico na nota introdutoria na qual esclarego, igualmente, os objetivos que me anima- ram a tentar, em fung&o do meu percurso intelectual e de vida, uma interpretagdo da relagdo continuidade/mudanca no processo histérico da insergio do nosso pais no mundo. Subseqiientemente, o livro foi traduzido para o espanhol e publicado na Argentina em 2002 pelo Fondo de Cultura Econémica, Para esta edigo escrevi, em maio de 2002, um novo prélogo. Neste prologo realcei como os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 aos EUA tinham deslocado o eixo diplomatico no campo da seguranga internacional apontei a conexfio deste evento inesperado com um as- pecto daquilo que tinha sido objeto de andlise no livro, a saber, 0 fato de o mundo da globalizagdo operar mediante uma multiplicidade de redes que diluem a diferenga entre 0 interno dos paises e o externo da vida intemacional. Apon- tei, assim, que 0 funcionamento destas redes propicia uma multiplicidade de atores, nfo apenas governamentais mas também nao governamentais que, ao operé-las, conduzem — para bem e para o mal — a governanca ou a falta de governanca no mundo, Realcei que estas redes tendem a escapar do controle dos Estados ¢ das organizacées interna- cionais. Podem, em determinadas circunstancias, em fun- &io da fragmentagio das cadeias de poder, colocar em ques- tdo o tema da racionalidade dos mecanismos tradicionais da economia, da diplomaciae da guerra, multiplicando, destarte, 08 riscos difusos da violéncia. Daf a preponderfincia que detectei, no plano estratégico-politico, em fungi do 11 de setembro, de um clima intelectual propenso a uma leitura hobbesiana/maquiavélica da realidade internacional. Naquela mesma ocasido, observei que no campo eco- ndémico e comercial 0 11 de setembro nfo tinha chegado a constituir-se num ponto de inflexio significativo. Manti- nha-se presente a validade de uma leitura grociana, pois as normas e a diplomacia continuavam sendo, neste cam- po, devido & interdependéncia e & multipolaridade econd- mica, um fator relevante para solucionar as controvérsias € promover a cooperacao. Destaquei, neste sentido, o suces- so da Conferéncia Ministerial da OMC, de Doha, de no- vembro de 2001, cujo mandato negociador representou um progresso na cooperagao internacional e na afirmagio do multilateralismo comercial. Nao deixei de apontar as difi- culdades que se prenunciavam para estas negociagées da OMC, que fesultavam de forgas do sentimento protecionis- ta dos Estados Unidos e da Unido Européia. Em 2002 formulei estas observacées, na condi¢ao de estudioso das relagGes internacionais, mas também e sobre- 124 tudo na condigo de quem, como chanceler do presidente Fernando Henrique Cardoso, estava vivendo, na pratica, os limites e as possibilidades do embate entre os conceitos e as realidades, para evocar as consideragSes metodolégicas, so- bre a interagio experiéncia/teoria mencionada na nota introdutéria da primeira edigao deste livro. Em 2004, o que cabe dizer neste posficio sobre mudanca e continuidade, tanto no que diz respeito & dina- mica de funcionamento do sistema internacional quanto sobre a condugio da politica externa brasileira, relevantes para complementar 0 capitulo VI que trata do desafio do século XXI para o Brasil? No meu entender, em matéria de politica externa, este desafio era e é 0 de traduzir criati- vamente necessidades internas em possibilidades exter- nas e 0 de construir com realismo eritico a autonomia em interagdo com o mundo, pois a atitude de recolhimento e retracio, inspirada pelo desejo de autarquia, constitui uma ilusdo nas condigdes vigentes no pés-Guerra Fria. IL No que tange ao sistema internacional, convém relembrar que 0 século XX foi considerado um século curto, cujo fecho assinalou-se pela queda do muro de Berlim e 0 fim da Unido Soviética. O novo século, que comegou a con- figurar-se com o término da bipolaridade, apresentou, no seu momento inicial, sinais vinculados a experiéncia que permitiam, a maneira de Kant!, conjeturar sobre a possibili- dade da construgéio de uma ordem mundial cosmopolita. Havia, com efeito, um horizonte de sinais kantianos de pro- 1, Emmanuel Kant, Le Congflit des Facultés, en trois sections (1798) (tradugio de J. Gibelin), Paris, Vrin, 1973, 2** section-5, pp. 99-100. 125 gresso que vale a pena recordar. Maior homogeneidade dos ctitétios de legitimidade e uma diluic&o dos conflitos de con- cepgiio sobre a organizagéio da vida em sociedade, promo- vendo convergéncias no plano da economia e da politica, antecipavam a possibilidade da construgao de consensos gerais. O término do apartheid foi representativo do fim da mancha racista na Africa do Sul, paradigmaticamente com- prometedora da afirmagdo dos direitos humanos no plano universal. O inovador miituo reconhecimento de legitimi- dades contrapostas dos acordos de Oslo permitiam prenun- ciar paz entre israelenses e palestinos. Havia clima, com o fim da Guerra Fria, para um novo alento nas negociagées de desarmamento das quais adviriam os “dividendos da paz”. As duas primeiras conferéneias da ONU na década de 1990 sobre temas globais, no Rio em 1992 e em Viena em 1993, trataram (com a significativa e positiva presenga de organi- zages néio governamentais), respectivamente, do meio am- biente e desenvolvimento e de direitos humanos. Ocorre- ram ~€ isto foi o novo — no contexto de uma kantiana razio abrangente da humanidade e nfo em termos das prévias e seletivas polaridades definidas ~ Leste/Oeste, Norte/Sul. A conclusio da Rodada Uruguai permitiu a criagdo da OMC, que foi a primeira organizagao internacional econdmica de vocagao universal pés-Guerra Fria, voltada para um multilateralism comercial regido por normas. Estes eventos, que comportavam uma leitura positiva da dindmica de funcionamento do sistema internacional, vém esbarrando em sinais que se contrapdem a essa leitura. Estes sinais contrérios caracterizam o que Rubens Ricipero, a partir de Angulos diferentes mas complementares, qualifi- ca como a perda da inocéncia apés 0 11 de setembro?. 2. Rubens Rictipero, “O Mundo apés o Li de Setembro: A Perda da Inocéncia”, Tempo Social, vol. 15, n. 2, novembro 2003. pp. 9-30. 126 Com efeito, a légica da fragmentagao inerente as forcas centrifugas, que analiso no capitulo VI, adquiriu redobrada intensidade. No plano dos valores ela se expressa no movi- mento antiglobalizagiio. Este articula, como diz Manuel Castells, uma identidade de resisténcia 4 ordem global e a0 papel dos mercados. Tem a sua base social nos que vem sendo desvalorizados ou marginalizados e que, por isso, cavando suas trincheiras, contestam os princfpios prevale- centes nas instituiges que permeiam a sociedade’, O mercado, lembra Octavio Paz, é um mecanismo eficaz, mas — como todos os mecanismos — nfo tem cons- ciéncia e tampouco misericérdia. Sem regulagao apro- priada, pode levar & rebelifio que 0 mesmo Octavio Paz denominou a sublevacdo dos particularismos*. Esta su- blevacaio, no momento atual, vem dando novo impeto a légica da fragmentagao, Este novo impeto no somente questiona a idéia reguladora de uma histria universal de Angulo cosmopolita, segundo Kant, quanto compromete ‘a conjetura do direito & hospitalidade universal por ele proposto no Projeto de Paz Perpétua®. Disso sao indica- ges as limitagdes crescentes a livre movimentagio das pessoas, a xenofobia, o preconceito, a intolerancia em telagdo a diversidade, a situagio dos migrantes no docu- mentados. E por esta razfio que os nexos que Norberto Bobbio, com instigacao kantiana, articulou entre demo- 3, Manuel Castells, O Poder da Identidade (tradugio de Klaus Brandisi Gerhardt), So Paulo, Paz.e Terra, 1999, p. 24 ¢ passim. 4, Octavio Paz, In Search of the Present - Nobel Lecture 1990, N. York, Harvest Book, 1991, p. 54; Tiempo Nublado, Barcelona, Seix Barral, 1983, pp. 93-103. 5, Immanuel Kant, Idéia de uma Histéria Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita (1784), organizagao de Ricardo R. Ter ra, tradugdo Rodrigo Naves e Ricardo R. Terra, Sao Paulo, Brasiliense, 1986; Emmanuel Kant, Projet de Paix Perpetuelle (1795) (tradugio de J. Gibelin), Paris, Vrin, 1970, 3° art., pp. 29-33. 127 ctacia e direitos humanos no plano interno e paz no plano internacional, esto enfrentando o desdgio do minimalismo que Michel Walzer qualificaria de thin morality’. A sublevagao dos particularismos no cenério interna- cional contempordneo abrange seja o destrutivo “poder de negacao” da violencia que animou paradigmaticamente, no LI de setembro, o solipsismo da razio terrorista’, seja 0 unilateralismo que, & maneira de Carl Schmitt, entende a soberania como o poder de decidir o estado de excegao®. O grande exemplo deste tiltimo foi a intervengao militar conduzida pelos EUA no Iraque em 2003 e os seus desdo- bramentos. © unilateralismo solapa o papel da ONU como um tertius inter partes e compromete uma das importantes fun- g0es do Direito Internacional no Ambito mundial: a de in- dicar e informar tanto sobre o padrao aceitavel de compor- tamento quanto sobre a provdvel conduta dos atores estatais na vida internacional. O unilateralismo da sobe- ania e o solipsismo da razao terrorista colocam em questo 6. Norberto Bobbio, O Futuro da Democracia, 8 ed. revista e ampliada (tradugao de Marco Aurélio Nogueira), Sao Paulo, Paz ¢ Tet- 18, 2000, pp. 187-207; A Era dos Direitos (tradugdo de Carlos Nelson Coutinho), Rio de Janeiro, Campus, 1992, Introdugiio; Luigi Ferrajoi, “Diritto e Comportamento”, em Bobbio ad uso di amici enemici, acura della redazione di Reset e di Corrado Ocone, Venezia, Marsilio, 2003, pp. 179-183; Michael Walzer, Thick and Thin — Moral Argument at Home and Abroad, Notre Dame, Notre Daine Press, 1994. 7. Cf, Roberto Romano, O Desafio do Isli e outros Desafios, Sao Paulo, Perspectiva, 2004, pp. 60-79. 8. Carl Schmitt, Le categorie del “politico” ~ saggi di teoria politica, acura di Gianfranco Miglio e Pierangelo Schiera, Bologna, TMulino, 1972~cf, “Teologia Politica: Quatro capitoli sulla dotirina della sovraniti”, pp. 33-86. Habermas mostra como o vitalismo belicista de Schmitt se contrapée & visio kantiana de paz e de uma ordem cosmopolita. Cf. Jurgen Habermas, A Inclusaio do Outro ~ Estudos de Teoria Politica, (tradugao de George Sperber e Paulo Astor Soethe), Sao Paulo, Loyola, 2002, pp. 218-227. 128 esta fungdo estabilizadora do Direito Internacional e confi- guram, no plano da legitimidade, uma alteraciio geradora de incerteza do espaco dos valores, condicionador das ages da politica externa’. As incertezas acima mencionadas vém provocando no sistema internacional um aspecto nao discutido no capf- tulo VI: a multiplicacao das tensdes. As tensdes se dife- renciam das controvérsias, como aponta Charles de Visscher'’. Com efeito, as controvérsias so um desacor- do entre atores internacionais sobre um assunto suficien- temente circunscrito para se prestar a pretenses claras, suscetiveis de um exame que transita pela racionalidadde do direito e da diplomacia. Assim, por exemplo, os contenciosos da OMC ou as negociagdes comerciais da OMC, da Unido Européia, da Alca, que integram a agenda da politica ex- terna do Brasil, em principio se inserem nesta categoria. As tensdes, ao contririo, sto difusas e o seu objeto é impreci- so. Instigam o antagonismo e exacerbam as questdes de poderio porque subjacente a elas estd presente a “alta po- Iftica” de uma forcada distribuigdo de poder. A distingao entre tensdo e controvérsia comporta uma analogia com aquilo que os economistas, no trato das ex- pectativas, dizem a respeito das diferengas entre risco e 9. Sobre a relagao entre legitimidade e 0 espago das proposi- ges da agto diplomitica, cf. Gelson Fonseca Jr, A Legitimidade outras Questoes Internacionais: Poder e Etica entre as Nagées, Sao Paulo, Paze Terra, 1998, pp. 137-248; Celso Lafer, “A Legitimi- dade na Correlagao Direito e Poder: uma Leitura do Tema Inspirado no Tridimensionalismo Juridico de Miguel Reale” em Urbano Zilles (coord.), Antonio Paim, Luis A. de Boni, Ubiratan B. de Macedo (orgs.), Miguel Reale — Estudos em Homenagem a seus 90 anos, Porto Alegre, Edipucrs, 2000, pp. 95-105. ! 10. Charles de Visscher, Théories et Realités en Droit International Public (4. e4., rev. ¢ aumentada), Paris, Pedone, 1970, pp. 91-105, 371-372. 129 incerteza. O risco comporta mensuragfio com base em. probabilidades objetivas; a incerteza nao comporta este cdlculo, inserindo no processo decisério a complexidade das probabilidades subjetivas. A conseqiiéncia da multi- plicago das tensdes, que podem ser encaradas como incer- tezas, 6 a da diminuigao, que atualmente ocorre no sistema internacional, do horizonte da previsibilidade"'. No trato da morfologia das tensdes, De Visscher men- ciona as tensbes de hegemonia ¢ as tensdes de equilibrio. No cenério internacional contemporaneo, assinalado pela preponderancia do poder dos EUA em todos os tabuleiros diplomaticos, o que vem caracterizando a administragao Bush, em contraste com a de Clinton, é a conversio da pteponderdncia dos EUA numa tens&o de hegemonia que se espraia erga omnes. No cenério internacional contemporfineo, as tensdes de equilibrio tém um campo geogréfico mais restrito. A referéncia a geografia é pertinente, pois a regio é uma relevante categoria no estudo das relacées internacionais, Exprime, no plano conceitual, uma relagdo entre um subsistema regional com as suas caracteristicas prdprias ¢ a sua capacidade de atuar ou a sua necessidade de reagir diante do funcionamento do sistema internacional. Nao é © caso, neste posficio, de examinar como os distintos subsistemas regionais vém sendo impactados, cada um 2 sua maneira, pela recente dinamica de funcionamento do sistema internacional, cujos tragos procurei delinear. Cabe, no entanto, uma mengio a América Latina e 4 América do Sul que sdo, respectivamente, 0 contexto regional e 0 con- texto de vizinhanga do nosso pais e cuja relevancia para a AL. Cf. Thiery de Montbrial, L’action et le systéme du monde, Paris, PUF, 2002, p. 157, 443-463; Therese Delpech, Politique du chaos, Paris, Seuil, 2002, : 130 politica externa brasileira foram amplamente discutidos no capitulo II. Em sfntese, creio que se pode dizer que as transfor- mag6es na dindmica de funcionamento do sistema inter- nacional nao tiveram, na nossa regio, um impacto do tipo, por exemplo, daquele que est incidindo no Oriente Médio, no qual tensdes e controvérsias se mesclam, provo- cando uma espiral de violéncia, Por esta razio niio estdio tendo um efeito comprometedor na organizaciio do espago sul-americano como um contexto regional favoravel & paz € a0 desenvolvimento, que é uma das linhas de reflexdo do capitulo III, reafirmada no capitulo VI. No entanto, as tenses presentes no sistema internacional contribuem para magnificar problemas latino-americanos que passam também a ter a dimensio difusa que caracteriza as ten- sdes. E 0 caso da persisténcia das fragilidades econdmi- co-financeiras; dos novos desafios para a consolidagdo democratica gerados pelo descompasso entre as expecta- tivas criadas pela redemocratizacio e as dificuldades de inclusio social; do agravamento dos problemas de segu- ranga e violéncia ligados & vertente transnacional da criminalidade organizada, do tréfico ilfcito de armamento e drogas. A isto tudo se agregam as novas formas, que as- sumiram, recentemente em varios paises, o repto do movimento indigena que traduz o desencontro entre nagio, identidade e democracia™. E nesta moldura que se insere © assimétrico relacionamento da regidio com os EUA, que se vé naturalmente afetado em novos moldes pela atual tensao da hegemonia, quando se contrasta, como foi dito acima, a administragdo Clinton com a administracao Bush. 12. Cf. Anibal Quijano, “O Movimento Indigena e as Questdes Pendentes na América Latina”, Politica Externa vol. 12, n° 4, mar- ¢0-abril-maio 2004, pp. 77-95. 131 Il Em fungiio das tendéncias acima mencionadas, a se- gunda metade do segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso foi, em matéria de condugao de politica externa, um “tempo de tormenta e vento esquivo” como observei, recorrendo a Cam@es (Lusfadas, V, 18)". A resposta da diplomacia brasileira ao 11 de setembro foi a de solidariedade aos Estados Unidos, em consonancia com um sentimento generalizado, quase unfinime, prevale- cente no sistema internacional. Isso se traduziu no endos- so As resolugdes da ONU, que aprovaram mecanismos de cooperacao na luta contra o terrorismo ¢ chancelaram mul- tilateralmente a agao contra o regime talib do Afeganistio, que dava base logistica a Osama Bin Laden. Além disso, e Ievando em conta que o reptidio ao terrorismo € um dos princfpios que constitucionalmente regem as relacdes internacionais do Brasil (Constituigao Federal, art. 4, ‘VID, 0 Itamaraty tomou a iniciativa de invocar o Tratado Interamericano de Assisténcia Recfproca — o Tiar, Dela re- sultou resolugao inteiramente compativel com as da ONU, Tepresentativa de um compromisso preciso de cooperago voltada para uma ago conjunta de prevengio e combate a0 terrorismo, geograficamente circunscrito ao hemisfério americano e que nao contempla o uso da forga"*. Em relagao aos riscos do unilateralismo, que se confir- maram em 2003, a posi¢ao brasileira também foi muito clara. Em nome do governo Fernando Henrique Cardoso, afirmei em discurso de abertura dos debates da Assem- bléia Geral da ONU, no dia 12 de setembro de 2002: 13. Celso Lafer, Mudam-se os Tempos - Diplomacia Brasilei- ra 2001-2002, Brasilia, Funag/Ipri, 2002, p. 15. 14, idem, pp. 53-69. 132 “O uso da forga no plano internacional somente pode ser admitido se esgotadas todas as alternativas de solugio diplomdtica. A forca somente pode ser exercida de acordo com a Carta das Nagdes Unidas e de modo consistente comas deliberagdes do Conselho de Seguranga. Do contré- rio, estar4 solapada a credibilidade da organizagao, dando margem ndo apenas a ilegitimidade, como também a si- tuagio de equilibrio precério e niio duradouro. No caso especifico do Iraque, o Brasil sustenta que cabe ao Conselho de Seguranga decidir as medidas neces- sérias para assegurar o pleno cumprimento das resolugdes pertinentes. O exercicio, pelo Conselho de Seguranca, de suas responsabilidades, constitui a forma de desanuvi tensées e evitar riscos imprevisfveis de desestabilizacio mais abrangente”, O duplo risco, 0 do terrorismo ¢ 0 do unilateralismo, indutor da multiplicagdo de tensdes que acima discuti, foi premonitoriamente apontado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso no seu discurso em Paris, na Assem- bléia Nacional, em 30 de outubro de 2001, ao discutir a dicotomia barbarie/civilizacao: “A barbarie nao € somente a coyardia do terrorismo, mas também a intolerancia e a imposigao de politicas unilaterais em escala planetaria”"®, Feitos estes registros, sobre 0 “novo” provocado pelo cenério internacional, cabe dizer que, em 2001 e 2002, 0 Ttamaraty aprofundou e deu seqtiéncia as linhas da politica externa que nortearam a visio do presidente Fernando Henrique Cardoso sobre a insergao do Brasil no mundo. No que tange ao perfodo 1995-2000, delas tratei no livro. Quanto ao perfodo 2001-2002, no qual tive o privilégio e a 15. idem, vol. 2, p. 57. 16. Palavra do Presidente Fernando Henrique Cardoso, Brasfla, Presidéncia da Repiiblica, 2002, vol. 14/2001, p. 504. 133

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