II - separação na profissão = separação na educação
II - separação na profissão = separação na
educação
como juntar siameses quando já cortados?
“Ao dividir o trabalho, divide-se igualmente o
homem, sendo todas as outras
potencialidades intelectuais e físicas
sacrificadas ao aperfeiçoamento de uma
atividade única”1
Como era de se esperar, o mimetismo e a falta de crítica
identificada na universidade como um todo também ocorre na
Fau, segundo as especificidades de nosso campo de atuação.
As contradições e limites da profissão do arquiteto e urbanista
são mimeticamente reproduzidas em nossas salas de aula.
Vivemos cópia e reafirmação. Não há um “engolir” o mundo e
responder com novas saídas realmente críticas, radicais, das
raízes, de fato. Grande parte de nossos projetos e tfg´s reafirmam
a natureza, por exemplo, do não debate sobre a mais gritante
contradição de nossa profissão: a separação do canteiro e do
desenho, ou a divisão social do trabalho praticada pela
sociedade compartimentada.
Mesmo que atualmente as críticas de Sérgio Ferro sejam
comemoradas na Fau, em suas mais que bem vindas visitas ao
Brasil2 , participando de conversas diversas, unindo professores,
estudantes e arquitetos (há até corrida por autógrafos), sempre
que terminadas, é ovacionado, mas das portas da palestra para
fora: quase nada muda.
Mas como mudar? Como fazer diferente se a grande maioria das
disciplinas de projeto requerem desenhos, maquetes... apenas.
Que fazer?
Reprimir nossos colegas alunos e professores, nos jogando uns
contra os outros, de modo a impossibilitar, enterrar para sempre a
possibilidade de qualquer superação desta questão que deve ser
resolvida de forma essencialmente coletiva?
Aparentemente o pó das questões levantadas na obra de Sérgio
Ferro, “O Canteiro e o Desenho” parecem assentar-se num beco
sem saída: sou aluno da FAU, fiz vestibular, difícil, passei, quero
me formar, ganhar um diploma, e sustentar minha vida com um
salário médio, ainda, já que o “mercado não está para peixe”.
Aparentemente não há alternativas, parece não haver saídas que
se apresentem possíveis. O caminho está dado. Trabalharemos
em nossos Cad´s, mas conscientes: sabemos que há operários
alienados e explorados nas obras, mas continuamos apenas a
trabalhar com nossos traços, mas só que agora conscientes !
De novo, que fazer?
Alguns colegas já deram continuidade a esse debate,
desenvolvendo tfg´s que revisam e complementam o tema3 ,
trabalhando em mutirões autogestionários4 e alterando algumas
partes, as conjunturalmente possíveis, do processo de
concepção e construção de utensílios diversos5 .
A Fau não tem contribuído muito para avanços no debate, pois
da forma que se relaciona com essas questões do mundo
profissional, respostas tendem a se colocar como impossíveis.
A relação de mimese com o mundo-mercadoria não contribui. O
mecanismo básico instituído nos estatutos da universidade:
indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão, não ocorre a
contento.
Se nos relacionássemos com essas questões “via mão dupla”, ou
de forma mediada, como já mencionado, ou através dos
métodos da “pesquisa-ação” 6 , seríamos impregnados pela
barbárie e teríamos de nos sujeitar a encontrar meios de resposta,
de explosão criativa e crítica, para um avançar sobre o aparente
impossível.
Mas não, vive-se trancado, vem a demanda por um desenho de
arquitetura, através de disciplina, fazemos a crítica funcional do
traço, do tema, e não nos é dada a chance da aplicação, da
experimentação construtiva. Ficamos com a crítica, e o mundo
com as questões intactas. Resultado: nossa prática acaba
mimética, mas com diversas questões na cabeça, virgens,
maravilhosas, super complicadas, nunca aplicadas.
Há sim exceções, a essa prática, sejamos justos, há sim méritos a
diversos estudantes e professores da Fau, mas é marginal. O
curso vivenciado por alguns poucos colegas, com atividades
extra-curriculares e optativas menos elementares permitiu contato
com a possibilidade de vislumbres outros, que nos últimos anos
têm dado um bom caldo, como veremos mais adiante.
Estranho a Fau não ter algo que institucionalmente desempenhe
papel análogo à escola de aplicação da Escola de Educação,
Hospital Universitário, Hospital Veterinário... nosso curso também
é profissionalizante, guardadas as especificidades do universo da
arquitetura e do urbanismo, enquadradas nas “ciências humanas
aplicadas”.
Artigas, ainda que sob seus objetivos comunistas de “desenvolver
as forças produtivas”7 propôs um local na Fau para a aplicação
do projeto, ainda que em escala desenvolvimentista: o AI, atelier
interdepartamental, que cumpriria tal função... hoje vazio.
Há um sério buraco em nossa formação. Pensa-se o “o quê”,
não se aplica, e daí não se vivencia e se questiona “o como”.
Diante disso, dessa mimese submersa diante da prática
profissional, a autonomia universitária na Fau de fato não ocorre.
A possibilidade de formação de sujeitos históricos, como
caracterizados por Paulo Freire, dotados de consciência critica8 ,
é limitada. O esperado e pregado processo de transformação
social, endereçado às universidades, dificilmente ocorrerá se
aguardarmos o mexer-se de teses e antíteses através de nossas
limitadas atividades acadêmicas, e teremos de aguardar mais
quinhentos anos para sairmos todos de casa com tranqüilidade
(os que hoje não tem casa, e aqueles que têm).
Antes de seguir com o apontamento de questões específicas da
Fau sobre o ensino, vejamos brevemente o início da separação
dos ofícios do desenho e da construção, ao menos no Brasil.
Antes da chegada dos portugueses no Brasil a separação entre
concepção e execução era algo difícil de ser aceita pelos
habitantes da terra, e passou a ser paulatinamente aprendida, a
pauladas mesmo, e foi institucionalizada enquanto formação
profissional regulamentada apenas com a chegada da imperiosa
família de Dom Pedro. Em 1816, inicia-se o debate com a visita da
missão francesa ao Brasil, já ela própria dividida em duas partes
distintas: “quadro superior artístico, com um chefe, seus
professores e três assistentes; e quadro complementar ou de artes
mecânicas, com seus mestres de artes e ofícios”.9
Manuscritos do francês Lê Breton, integrante da missão, tentam
justificar a necessidade da criação de duas escolas distintas,
como em sua missão, em vez de apenas uma, afirmando que
“criando simultaneamente uma Escola de Belas Artes, los nobles
artes, e uma escola de desenho para as artes e ofícios, se possa
preservar a primeira pela segunda, classificando e mantendo
nesta, que não poderia chegar a ser demasiado freqüentada,
todos que não conviessem à outra”.10
Le Breton justifica essa atitude segundo a experiência francesa,
que tinha o ensino superior já gratuito na época. Na França, “a
pobreza ali [universidade de belas artes] envia seus filhos, em vez
de colocar em oficinas de artesões, onde teriam de pagar pela
aprendizagem”. E mais adiante: “Imagine, Sr. Conde, a quantidade
de fermento grosseiro e falta de liberdade que, desta maneira,
pode penetrar e realmente penetra nas belas artes. È de se desejar
que esta má semente não se introduza no berço de nossa escola;
que, pelo contrário, a profissão de artista fique, em geral numa
região média da sociedade”.11
Apesar disso, o que veio a ocorrer foi a criação de uma única
escola que lecionava as artes como um todo, a Academia
Imperial de Belas Artes, “com o ensino centralizado e total. isto é,
cabendo a cada professor o ensino completo de sua arte desde o
os elementos mais simples até a alta composição. Assim,
Grandjean de Montigny teria de transmitir a seus discípulos todos
os conhecimentos necessários na época, à formação do
arquiteto...”. Nota-se que Flávio Motta tem uma apreensão do
arquiteto mais ampla que a atual, bastante próxima da que
pretendemos aqui debater o seu devido resgate.
Se não estivermos enganados, o ensino “total” das artes, que
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unifica as “mecânicas” às “belas”, já teve ensaios anteriores em
nossos chãos!
Mas se ocorreu, foi por pouco tempo, pois em 1854, com a
chegada de Manoel de Araújo Porto Alegre, encarregado de
reformar a escola, o ensino das artes foi definitivamente separado
em belas artes e artes mecânicas: “Assim foi descentralizado
totalmente o regime pedagógico (...)”. Desta forma, “o Brasil iria
também neoclassizar-se, povoando-se de visões de beleza ideal
grega (...). O neoclassicismo correspondia assim à organização
social daquele período, marcado pelas distâncias entre o pensar e
o fazer.”12
Daí em diante, a separação entre o canteiro e o desenho nas
escolas de arquitetura torna-se um movimento constante, com
alguns episódios de tentativa de reunificação, mas no geral
distanciam-se a cada nova “reforma”, em busca de maior
perfeição e eficiência no ofício do arquiteto:
“Se o distanciamento da construção ensejava uma maior
concentração no ato de projetar e ansiava por sínteses mais
perfeitas e consistentes, infelizmente, atrapalhou o arquiteto no
reconhecimento social de sua profissão, como construtor de seu
projeto. Criou-se uma imagem para o exercício profissional,
distanciando desnecessariamente o pensar do fazer”.13
Um momento certamente didático para o debate da
(re)unificação das artes ocorreu na própria Fau, no Fórum de
1968, durante o período militar, quando se opõe mais claramente
dois caminhos para a faculdade. Há propostas de radicalização
da questão, através de uma ruptura, e enfrentamento das
contradições de classe na arquitetura e a de “dar uma segurada
nas coisas”. 14
Recentemente, Sérgio Ferro retomou algumas questões do
Fórum de 68, em conferência na Fau Maranhão, refletindo sobre
o rumo tomado pela faculdade: de “segurar as coisas”, e afirma
que possivelmente, se a Fau tivesse tomado o caminho da
ruptura, da crítica mais radical, certamente teria sido fechada pelo
regime.
Para uma melhor apreensão do debate ocorrido na época,
recomendamos visita a publicação de Pedro Arantes: “Arquitetura
Nova - Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefévre, de Artigas
aos Mutirões” que o aborda de modo mais cuidadoso, segundo
rica articulação de documentos e posições.
Atualmente o tema existe, todavia está “travado” pela falta de
aplicação crítica mediada com a cadeia produtiva, como
mencionado mais acima. A aparente “ausência de saídas”, dá
ares de cristalização da questão, que é velada por um discurso
ideológico avassalador: é piegas e chato dizer tais coisas no
estúdio, ou nas salas de aula. A possibilidade de levantar essas
lebres fica reservada apenas para os livros, e para “os críticos”,
que segundo uma visão limitada são taxados de “não
II - separação na profissão = separação na educação
praticantes”, “não propositores”, portanto não há saída: “Eles 2
criticaram tanto que deixaram de ser arquitetos”.
Nota-se que este estado de “torpor” é também alimentado por
uma desconexão com o todo. A partir de constantes passeios
por outras unidades da universidade, fica latente a célebre frase:
“separar para reinar faz da separação a essência do reino”15 . Os
estudantes e professores de outros departamentos enfrentam as
mesmas questões da separação entre concepção e realização.
A casa grande e senzala se espalham e se intensificam a cada
dia, a cada formação de profissional liberal e a cada formação de
profissional mecânico.
Até aí sem novidades, novamente. Pairamos sob a falta de
visualização de que todos bailamos sob o mesmo ritmo, que
impede qualquer mobilização anti-sistêmica. A separação em
grande escala (20 milhões de pessoas) é sem precedentes na
história da humanidade. Que fazer?
Certamente ações diferentes de 1917, 1959...
A caminhada de uma tarde, uma cerveja com um colega de
outro curso gera choque:
Como puderam separar as artes plásticas da arquitetura, da Poli,
das Fatecs, dos Senais?
Quem fez isso deveria ser morto!
Seria fácil agir assim. Não podemos encarar os fatos com
simplismo e apontar superficial “maldade” nos homens,
polarizando as coisas de modo maniqueísta.
Essas separações surgiram segundo um movimento sistemático
de práticas analíticas, parciais, que visam dar eficiência e controle
dos processos para gerar mais produção, mais valia, e dar direito
a todos os homens de consumir os bens produzidos. Mais
adiante trataremos da questão abordando a diferença entre
divisão social do trabalho e divisão do trabalho social.
Voltando à Fau, e às faculdades de arquitetura em geral, reafirma-
se a separação em foco. De todas as faculdades de arquitetura
do Brasil, de um total de 132 pesquisadas, apenas 11 possuem
canteiro experimental de obras, espaço elementar para abrigar a
percepção e a leitura do apartamento dos fazeres16
Observando edital do MEC de 1997, que regulamenta o currículo
mínimo das Instituições de Ensino Superior de Arquitetura e
Urbanismo, encontramos apenas a “recomendação” de que os
canteiros experimentais façam-se presentes no ambiente de
formação dos arquitetos. Não se trata de exigência qualquer,
trata-se de um espaço a “auxiliar” nossa formação. Já a situação
da separação dos fazeres, que constitui nosso ensino
profissional, não é sequer mencionada, como tema mínimo a ser
abordado. De fato, não era de se esperar outra coisa, pois se
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assim fosse exigido estariam a atear fogo nas faculdades de
arquitetura, sepultando a profissão do arquiteto alienado, o que
certamente passaria longe das vontades dos formados arquitetos
que controlam tais processos de reprodução da sua profissão.
Mas por quê não exigir uma abordagem da cadeia produtiva
como um todo nas faculdades?
Não seria interessante, para não dizer vital, o reconhecimento de
que somos uma peça, chave, para a produção das mercadorias
habitáveis e úteis em geral?
Há o empreendedor, há o construtor, há o incorporador... se for o
arquiteto desde o início de sua formação consciente dos
interesses em jogo, dizem alguns, “o que restaria à liberdade
criativa do desenhista sonhador”?
Se as coisas fossem discutidas, de fato, em sala de aula, não
estariam os recém formados a enfrentar essa forma piramidal de
mandos e decisões de modo tão infrutífero. Poderiam melhor
dialogar, e propor alternativas de comunicação entre os
patameres do que mais parece uma torre de babel, cada qual
com sua língua, incomunicáveis.
Se virarmos essa forma piramidal, estaremos a fazer uma
revolução. Não é assim que se chama, em matemática, quando
viramos um sólido geométrico? Por que não virá-la? Achatá-la?
Intervir... mas como intervir ?
Poderíamos pensar, elocubrar, de forma libertária, caminhos para
esse ‘virar do sólido’. O que não remeteria certamente em idéias
de carnificina, conspiração. Não podemos matar nossos colegas,
Mao Tsé Tung já o fez e a China passa por transformações
capitalistas. O período histórico recentemente vivido gera diversas
incertezas de como atuar sobre o futuro, mas sabemos que será
através da construção da autonomia do ser humano, e não o
contrário.
Realmente, como avançar se na matéria última de nosso curso -
legislação - é apresentada como o melhor meio de atuação
profissional para os arquitetos, os alienantes escritórios de
arquitetura?
Nem é mencionada a possibilidade de atuação numa cooperativa
de construção, por exemplo, ou alguma forma outra de atuação
no ambiente profissional. É mencionada a saída pelo poder
público, sim, mas ainda hoje limitada pelo “Estado Mínimo”,
apesar das constantes promessas de contratação pela PMSP e
no recente amplo concurso.
Seríamos injustos em dizer que não há, na Fau, crítica alguma ao
modelo de produção vigente, faz-se a crítica, porém limitada ao
desenho, e enquanto nos mantemos arquitetos alienados do
canteiro. Produzimos “revolucionárias” formas: projetamos casas,
escolas, hospitais... para “todos os homens”, para “toda
sociedade” (será que a edificação de Brasília foi em vão? Assim
parece).
Deixamos de lado a experiência mais gratificante e
transformadora de ver germinar as idéias no ideal desenhado, de
ver o pensar virar coisa, matéria, para gerar repensar, para um
novo fazer, um novo desenho, por que paramos?
Por quê não permitir o afloramento da contradição primeira e
transformadora estabelecida entre a idéia e a matéria,
desalienando canteiro e desenho?
Tivemos poucas visitas a obras... Quanto pesa um tijolo? Qual a
possibilidade de um parafuso furar determinada superfície se esta
superfície é apenas um conto de fadas?
Há o Lame, mas subutilizado; há o canteiro, mas subutilizado,
compartimentado, distante, não apenas fisicamente, mas mental
e culturalmente, principalmente. A maior parte de nossa
formação se dá sob paredes espessas de concreto opaco. Como
tatear na vida o chão se, desde o início de nossa formação,
estamos cegos na escuridão?
Apenas com slides para exemplificar gruas, desenhos de “bob-
cats” nas lousas e cortes esquemático de caixilhos?
II - separação na profissão = separação na educação
As mãos de quem faz, de como se faz, o erguer da obra não são
sequer visualizados a olhos nus.
Pouco sabemos do que ocorre por detrás dos tapumes-
paliçadas17 das obras, seria importantíssimo termos mais contato
com o ambiente de trabalho que mata 2.503 operários por ano e
fere 326.071, em todo Brasil.18 Nossa postura seria outra frente ao
desenho.
Mas o que fazer para que os filhos da elite paulistana se
interessem por tais coisas, se “consideram o trabalho manual
degradante; os intelectuais são dignos e os que trabalham com as
mãos são indignos. Por isso as escolas técnicas se enchem de
filhos das classes populares e não das elites”.19
Vivemos separados, guardados em vidrinhos blindados, a sorrir a
cada traço belo e leve riscado.
nas escolas a reprodução da morte da arte na cidade
“(...) nos tempos de desigualdade, a condição
essencial da vida dos ricos era o fato de não
produzirem eles próprios as coisas que
usavam de adorno de suas vidas, mas o de
serem aqueles que forçavam quem fabricava a
viver numa vida sórdida e miserável, e que a
conseqüência necessária da sordidez e da
aridez dessa vida se reproduzia nos adornos da
vida dos ricos, e a arte morreu entre os
homens”.20
Nossas atividades de projeto nos estúdios quase sempre
terminam em lindas pranchas apresentadas em solenes
seminários. Nossa “grande tarefa social” é abortada em seu
momento mais frágil, em seu nascedouro mais elementar,
quando ainda papel, em cores distantes dos volumes e sombras
vivas de um real edifício.
Se o estudante de arquitetura não compreender “na pele” essas
separações, passará a erguer obras pelas cidades, a pensar
“fazer um bem”, e ainda as chamarão alegremente de “obra de
arte”.
Arquitetos formam-se, recebem canudos das universidades e
champanhes de nossas famílias, pensando todos: “lá se forma
mais um artista da construção”!
Será que poderíamos chamar os edifícios “bem resolvidos” e
“bonitos”, apenas projetados por estes arquitetos, de “obras de
arte” ?
Dificilmente.
Para brevemente rechear o difícil debate sobre a leitura da
arquitetura como produção artística, vejamos alguns trechos
organizados por Ruskin21 em meados do século dezenove,
período em que as atividades fabris da revolução industrial já
18

apontavam suas mazelas, mas ainda antes da composição da
“crítica da economia política” e de William Morris encampar a luta
contra o processo de alienação do artesão frente à frenética
alegoria da transformação dos utensílios em mercadoria
industrializada.
Ruskin, de modo didático e sensível, ao analisar os ornamentos
das obras arquitetônicas, classifica-os a partir de seu modo de
produção. Observa como foram produzidos, o processo como
se desenham as relações sociais na obra e como isso se
materializa em formas. Trata-se de um olhar processual. Algo que
pouco se faz na Fau.
Ele classifica: “1. O ornamento servil, no qual a execução ou o
poder do trabalhador inferior é inteiramente submetido ao intelecto
do superior; 2. O ornamento constitucional, no qual o poder
inferior executivo é até certo ponto emancipado e independente, e
tem vontade própria, ainda que confesse a sua inferioridade e
preste obediência a poderes mais elevados; 3. ornamento
revolucionário, no qual nenhuma inferioridade executiva é
admitida.” (§ IX).
Mais adiante Ruskin dá exemplos de onde esses ornamentos
podem ser encontrados. Ao abordar a escola grega, classifica-a
como praticante do “ornamento servil”: “Na Grécia, o artífice
mestre era muito mais adiantado em conhecimento e em poder
que o assírio ou o egípcio. Nem ele, nem aqueles para quem
trabalhava, podiam suportar qualquer aparência de imperfeição, e,
portanto, o ornamento que agregava à execução de seus
subordinados era composto de meras formas geométricas - bolas,
sulcos e folhagem perfeitamente simétricas - que podiam ser
executadas com absoluta precisão em régua e linha, e, quando
terminadas, eram ao seu modo tão perfeitas quanto as figuras
esculpidas pelo próprio mestre.”(§ IX)
Tal modo de produção está representado na maior parte das
obras da arquitetura moderna paulistana. Coisas para se pensar...
Ainda que mergulhado em crenças mais etéreas da cristandade
medieval, ao citar as obras Góticas, com “ornamentos
revolucionários”, Ruskin nos dá pistas sobre o gérmem de
questões que depois seriam trabalhadas por William Morris,
Sérgio Ferro e outros:
“Mas no sistema medieval, ou especialmente cristão, de
ornamento, essa escravidão [das obras gregas] é inteiramente
abolida, uma vez que a Cristandade reconhece o valor individual
da cada alma tanto nas pequenas como nas grandes coisas” (§ X).
Este “valor individual” dos construtores das catedrais góticas
revela a possibilidade de existência de um outro valor estético,
denominado por Ruskin de “selvatiqueza”, presente nas obras
medievais se observadas através do seguinte prisma: “(...) retorne
à contemplação da fachada da velha catedral que tantas vezes lhe
fez sorrir da espantosa ignorância de seus velhos escultores:
examine uma vez mais a feiúra daqueles diabretes e monstros
II - separação na profissão = separação na educação
informes, aquelas estátuas austeras, rígidas e sem anatomia; mas Parece que se quisermos chamar de obra de arte os imóveis de
não zombe delas por que são sinais da vida e da liberdade de arquitetura, e a nós arquitetos de artistas, teremos de por as mãos
cada trabalhador que golpeou aquelas pedras; de uma liberdade na massa.
de pensamento, em tal grau na escala dos seres, que nenhuma lei,
nenhum título, nenhuma caridade seria capaz de assegurar, mas Mas e se ficaremos apenas com o que fazemos: maquetas,
que deveria ser o objetivo primeiro da Europa atual reconquistar pranchetas e mouses virtuais, ainda ali podemos chamar de arte,
para as suas crianças”. (§ XIV). feita com as mãos, enquanto que só lá no canteiro, lá longe, na
cidade, é manufatura22 ... tudo bem! Ainda somos artistas, de
Olhando por esse ângulo, extremamente diverso do usual, o escritório, estúdio, atelier.
conceito de beleza poderia até seguir outros parâmetros se
inserirmos em nossos julgamentos estéticos o processo de Um momento. Não confundamos as coisas, denovo, Sérgio
produção das coisas. Ferro já deflagrou e, sejamos coerentes: como fazemos os
desenhos e maquetes para serem construídos, não nos
Depois voltaremos ao tema particular da beleza. Antes, vejamos enganemos, a arte nos passa longe. Somos peça de
como também pode ser observado através de outro prisma a engrenagem, de reprodução do capital.
formação dos construtores das obras arquitetônicas, nossos
companheiros de cadeia produtiva, os operários. Ruskin afirma Até aí, sem novidades.
que o que ocorreu nas catedrais, “(...) devemos fazer com todos
que entre nós labutam: procurar a sua parte pensante e fazê-la Mas não desistamos assim da conversa, vejamos a alegoria
desabrochar não importando o que se perca com isso, nem com abaixo, e como está feliz o homem a pintar... e o operário, a
que faltas e erros sejamos obrigados a arcar. Pois o que de operar.
melhor há neles não poderá se manifestar senão acompanhado de
muito erro. Que se entenda isso claramente: pode-se ensinar um
homem a traçar uma linha reta e a cortá-la, a lançar uma linha
curva e cinzelá-la e a copiar e cinzelar, com admirável rapidez e
perfeita precisão, um número infinito de linhas e formas, a partir de
modelos dados, e você achará o trabalho perfeito em sua espécie.
Mas se pedir-lhe que pense a respeito de qualquer uma destas
formas, que considere se não poderá inventar uma melhor por sua
própria conta, ele simplesmente irá parar, a sua execução
tornarse-á hesitante, ele pensará, e aposto que pensará errado;
aposto que este ser pensante cometerá um erro no primeiro toque
que aplicar em seu trabalho. E, apesar de tudo, você terá feito dele
um homem, pois até então era apenas uma máquina, uma
ferramenta animada”. (§ XI).
A ação pensante é condição primeira na produção artística. Se
quisermos considerar arquitetura como arte, “a regra a seguir é
bastante simples: considere em primeiro lugar a invenção, isto é,
sem custar ao inventor qualquer esforço doloroso, e nada além
disso. Acima de tudo, não exija qualquer refinamento de execução
ali onde o pensamento está ausente, pois isto é trabalho escravo,
sem qualquer compensação. Ao invés disso, prefira o trabalho
áspero ao polimento cuidadoso, em que apenas o propósito
prático é atendido, e nunca acredite ser possível orgulhar-se Assim, tão descaradamente, parece tão absurdo... parece
daquilo que se realiza à base de paciência e lixa”. (§ XV). escandaloso isso.
E ainda: Estaria a produção de edifícios, erguidos coletivamente, então
para sempre fadados à manufatura de uma cadeia produtiva
“os pensamentos de um homem jamais podem ser expressos por exploratória? Por que não podemos voltar a edificar, com arte,
um outro: e a diferença que existe entre o dom do toque daquele coisas “maiores”, além de “pequenas” coisas?
que inventa e do homem que obedece as instruções é, com
freqüência, tudo o que diferencia o trabalho artístico grandioso do Mesmo que não optemos em colocar a mão na massa de nossas
comum”. (§ XXI). obras, paremos então de considerar arquitetos como artistas.
Tenhamos consciência, ao menos, do que fazemos.
19

Agora, aos arquitetos que querem ainda lutar e produzir “arte
contra a barbárie” de nossas cidades há alternativas, há
caminhos (considerados duros) de serem trilhados, que segundo
Ruskin, resultaram na arquitetura gótica: “na medida que o
arquiteto, que supomos capaz de fazer tudo com perfeição, não
pode executar o todo com suas próprias mãos, ou bem haverá de
escravizar os seus trabalhadores à velha moda grega, e
atualmente Inglesa, e nivelar seu trabalho às capacidades de um
escravo, o que é degradá-lo; ou bem aceitar os seus
trabalhadores tal qual os encontra, deixando-os revelar as suas
franquezas ao mesmo tempo que sua força, o que provará a
imperfeição do gótico, mas enobrecerá o trabalho tanto quanto o
intelecto da época permite”.(§ XXII)
A construção por cooperativas, a exemplo das construções
góticas poderia ainda ser viável, se sua lógica mais feliz fosse
considerada, de modo a ser aplicada: São Paulo, 2004, questões
atuais e respostas atuais, lógico que sem mimetismos
desfigurantes.
A arte voltaria às cidades?
Se as respostas dos professores de arquitetura a seus alunos
continuarem a seguir a seguinte cena:
“ 12
A: professor, eu fiz alguns desenhos e queria te mostrar.
P: Legal, deixa eu ver, senta aí.
A: (deixa prof. olhar um pouco, e fala timidamente) Aqui é um...
P: (interrompe aluno e diz) mas, e esses pilares?
não precisa, tira esses aqui e deixa dois, só.
e essa viga?
por que você não faz ela...
vazar essa parede?
A: (silencio por algum tempo, pensa) mas...
P: é. (firme e confiantemente)
A: mas professor, mas como?
P: é... ué? (silêncio, impasse).
A: (silêncio, segura, e irrompe novamente envergonhado) mas...
mas como?
P: ah ! não importa ! é belo ! (gesticula bravamente furando a
matéria etérea com as mãos)
” 22
Podemos dizer que não tão cedo.
II - separação na profissão = separação na educação
1
Engels, Anti-Duhring, in Werke, 20, pp.271-272, em Crítica da Educação e do Ensino,
Karl Marx e Friedrich Engels: 10.
2
Sérgio Ferro esteve no Brasil diversas vezes nos últimos anos, dando entrevistas,
conferências na Fau, a convite do Gfau, IAB, Fau Maranhão. Que bão!
3
O TFG de Pedro Arantes é um deles, intitulado “Arquitetura Nova: sérgio ferro, Flávio
Império e Rodrigo Lefévre, de Artigas aos mutirões”, que muito contribui para nossa
geração em formação, tecendo uma possível linha que estebeleça conexões desejadas.
4
Vive-se hoje uma “segunda geração” de arquitetos mutirantes nas assessorias técnicas,
buscando reinventar um fazer ainda em pesquisa-ação.
5 Por exemplo, dos que tenho conhecimento, o coletivo de arquitetos recém formados:
atelier “colectivo” e “fábrica da Bijari”.
6 “é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em
estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo no qual
os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão
envolvidos de modo cooperativo ou participativo.” Thiolent:14.
7 Há diversas versões para as intensões que aqui dispenasamos às intenções de Artigas
e do Partido Comunista, em “desenvolver as forças produtivas”. Ao menos, a mais
difundida, e que chegou mais bem estruturada em nossos ouvidos, é de que primeiro
deveriamos incentivar o desenvolvimento do capitalismo, com suas contradições internas,
deixando-as mais críticas, a fim de gerar uma re-ação do proletariado contra as classes
opressoras. Tratar-se ia de uma compreensão “etapista” da história, ou pré-programada,
com objetivos a longo prazo.
8 Paulo Freire, de modo didático busca organizar as diferentes “consciências e seus
estados” em cosciência Ingênua, Crítica e Fanática, em Educação e Mudança: 39.
9
Motta:03.
10
Idem,grifo nosso.
11
Idem:4, grifo nosso.
Idem:8.
13
Ronconi:152.
14
Arantes, parafresando Artigas.
15
Aqui retomada por Sérgio Ferro:30.
16
Levantamento realizado por Ronconi, 2001: “Com os dados recolhidos pudemos
constatar que das 132 (cento e trinta e duas) faculdades de arquitetura e urbanismo
existentes, 11 (onze) declaram possuir um Canteiro Experimental. Por outro lado, 27 (vinte
e sete) delas afirmaram trabalhar com laboratórios de construção. Existindo uma
intersecção composta por 5 (cinco) faculdades que possuem ambos os equipamentos.
Ou seja, apenas 28,79% das nossas faculdades demonstram um interesse mais
pragmático por esse tipo de atividade”.
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A expressão é utilizada por Sérgio Ferro: “Se o tapume-paliçada protege o vazamento
das “perverções”, determinando um espaço carceral (ver M. Foucault, Vigiar e Punir,
1975) apóia o controle”.
um cemnúmero de questões ainda restam
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Ministério do Trabalho, 2000.
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PF, Educação e Mudança, 35. De modo a não chatear demais os leitores, causando cansaço e
possível dispersão em tantas conversas, restando aí pouca
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William Morris, Notícias de Lugar Nenhuem:285. Trata-se de uma ficção que nos conta o
percurso de um inglês, que realiza uma viagem ao futuro, quando pode vivenciar os energia para o debate sobre a proposta-pergunta em causa,
resultados de uma revolução comunista mundial. Esta frase conta sobre o passado passemos adiante. Lá trataremos das mesmas questões,
longínquo pré-revolucionário, ou seja: Hoje. simultaneamente ao caminhar.
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John Ruskin, “A Natureza do Gótico”, 1851, no prelo, tradução de José Tavares Correia
de Lira. Adiante.
De modo a melhor compreender o que pretendemos dizer aqui com manufatura, nos
apoiaremos em Artantes (:113), a partir de Sérgio Ferro e Adam Smith, onde manufatura Não nos afobemos, pois essas contradições têm emergido desde
trata-se de “Uma transição entre o trabalho artesanal e a forma industrial [de produção. que resolvemos sair das matas e erguer cidades, e ainda vão
(...) Na manufatura o Capital fratura o trabalho e se para as ações em pedaços, numa
decomposição forçada dos ofícios. As equipes são organizadas para tarefas limitadas nas continuar a nos espezinhar por algum tempo, em debates
quais a compreensão da totalidade do processo, presente no artesão, é dispensada”. futuros, leituras restantes.
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