«A ficção científica assume sempre a forma de uma antecipação e a antecipação
assume sempre a forma de uma conjectura formulada a partir de linhas de tendências reais do mundo real. [...] Insisto na ficção científica como narrativa de conjectura por um motivo bem simples: a boa ficção científica é cientificamente interessante não porque fale de prodígios tecnológicos – e poderia até perfeitamente não falar – mas porque se propõe como jogo narrativo sobre a própria essência de uma ciência, isto é, sobre a sua conjecturalidade. A ficção científica é, noutros termos, narrativa da hipótese, da conjectura ou da abdução (processo criativo) e, neste sentido, é jogo científico por excelência, dado que toda a ciência funciona por conjeturas, ou melhor, por abduções. Sobre o procedimento da abdução[...] recordarei o exemplo de Pierce [...]: um punhado de feijões brancos em cima da mesa e, pouco distante, um saco. Na dedução, eu saberia que o saco contém feijões brancos, saberia que os feijões em cima da mesa provêm do saco e, necessariamente, saberia que os feijões em cima da mesa são brancos. Na indução, depois de ter tirado várias mancheias de feijões brancos do saco, inferiria daí que provavelmente todos os feijões do saco são brancos. Mas, na abdução, encontro-me perante o resultado “curioso” de um punhado de feijões brancos em cima da mesa, e é por decisão conjectural que arrisco que os feijões estejam de alguma maneira ligados àquele saco (e que no saco haja feijões brancos). Só à luz desta hipótese o facto de haver feijões brancos em cima da mesa obtém uma explicação razoável e económica. Isto é, na abdução, imagino uma Lei tal que, se porventura o Resultado que devo explicar fosse um Caso dessa Lei, o Resultado deixaria de parecer inexplicável. O que tem a abdução a ver com a lógica dos mundos possíveis? Encontro um punhado de feijões em cima da mesa. Em cima da mesa há um saco. O que é que me indica que devo estabelecer uma relação entre os feijões que estão em cima da mesa e o saco? Poderia perguntar-me se os feijões terão vindo de uma gaveta, se foram trazidos para ali por alguém que depois saiu. Se fixo a minha atenção no saco (e porquê precisamente sobre aquele saco?), é porque na minha cabeça se desenha já uma espécie de plausibilidade. Esta plausibilidade pode ser entendida como a forma orgânica que assume um mundo possível. Ou seja, ao apostarmos nos resultados da nossa conjectura, consideramos que, se as coisas fossem realmente daquela maneira, tudo seria bem equilibrado e harmónico. Newton considera que, se no universo os corpos se atraíssem na razão directa do produto das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias, toda uma série de problemas, da gravidade terrestre ao campo mais vasto das leis da mecânica celeste, se tornaria clara e resultaria explicada de forma económica. A aposta conjectural do cientista, que depois esperará pôr à prova e falsificar a sua hipótese, é que se o mundo real fosse análogo ao mundo possível da sua conjectura, o mundo real pareceria bastante mais razoável do que anteriormente. Mas até ao momento em que ele puser à prova a sua conjectura, a lei que encontrou será a lei do um mundo estruturalmente possível. Neste sentido, cada operação científica (e não estou a pensar apenas nas ciências físicas, mas também na hipótese do psicanalista, do detective, do filólogo, do historiador) tem na origem um alto jogo de ficção científica. Paralelamente, cada jogo de ficção científica representa uma forma particularmente ousada de conjectura científica. A ciência extrai o Resultado do mundo real, mas para o explicar, elabora uma lei (tentativa) que vale apenas num universo paralelo (que o cientista antecipa como “mundo modelo”). A ficção científica executa, pelo contrário, uma operação simetricamente inversa. [...] Em vez de partir de um Resultado factual, imagina um Resultado contrafactual. Paralelamente, não tem que imaginar uma Lei inédita que o explique: pode tentar explicar o resultado possível com uma Lei real, ao passo que a ciência explica o Resultado real com uma Lei possível. A outra diferença óbvia entre os dois procedimentos é que a ciência, uma vez hipotizada a lei, tenta de imediato criar as condições de verificá-la e/ou falsificá-la. A ficção científica, pelo contrário, remete para o infinito quer a verificação quer a falsificação. [...] O autor de ficção científica é simplesmente um cientista imprudente, e muitas vezes é-o por severas razões morais (particularmente quando conjectura sobre os fenómenos sociais) porque, ao prever e ao anunciar um mundo possível, ele quer de facto preveni-lo. [...] Neste sentido (e pensemos em 1984 de George Orwell), a narrativa antecipa não para encorajar, mas para prevenir. Nestes casos, a ficção científica não cessa de ser parente da ciência, mas é-o no sentido em que a dissecação de um cadáver é parente da medicina preventiva: só que o cadáver, ainda inexistente, é “antecipado” para tornar odiosa a alteração orgânica que poderia um dia vir a torná-lo coisa verdadeira. Finalmente, a ficção científica recorda-nos que a dinâmica de invenção é semelhante, em muitos aspectos, na arte e na ciência: tal como o artista prevê, ao longo do seu trabalho, aquele organismo possível que aspira a construir (mas no fundo, ao trabalhar, aposta no sucesso da sua hipótese formativa), também o cientista para delinear uma boa lei deve pôr à prova um talento estético, um sentido da forma coerente e económica (apostando que o universo seja igualmente artista e esperando que a realidade queira um dia confirmar a sua hipótese). Há algo de artístico na descoberta científica [...] e há algo de científico, no sentido de que há algo de abdutivo, naquilo a que o vulgo chama fantasia do artista. A ficção científica, lugar de encontro entre ciência e ficção (fantasia), surge como um exemplo vivo deste parentesco.»
ECO, Umberto, Sobre os Espelhos e Outros Ensaios, Lisboa, Difel, 1989, pp. 204-208.