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Autobiografia
Aos quatro anos aprendi a ler; aos seis fazia versos, aos nove
ensinaram-me Inglês e pude alargar o âmbito das minhas leituras
infantis. Aos treze fui, interna, para o Colégio. Ali havia muitas
raparigas que cheiravam a pão, escreviam cartas às escondidas e
sonhavam com os filmes que viam nas férias. Tínhamos a certeza de que o
Tyrone Power havia de vir buscar-nos, com os seus olhos morenos, depois
de nos ter visto fazer uma entrada espampanante no salão de baile, onde o
Fred Astaire já nos teria escolhido para seu par ideal.
Além de tudo isto, que sorte, ainda havia tremas e acentos graves. Mas
também tínhamos a célebre aula de Economia Doméstica de onde saíamos
com a sensação de quea mulher era uma merdinha frágil, sem vontade
própria, sempre a obedecer ao marido, fraca de espírito que não de corpo,
pois, tendo passado o dia inteiro a esfregar o chão com palha de aço, a
espalhar cera, a puxar-lhe o lustro, mal ouvia a chave na porta havia de
apresentar-se ao macho milagrosamente fresca, vestida de Doris Day, a
mesa posta, o jantarinho rescendente e nem uma unha partida, nem um
cabelo desalinhado, lá-lá-lá, chegaste, meu amor, que felicidade! (A
professora era uma solteirona, mais sonhadora do que nós, que sabia todas
as receitas do mundo para tirar todas as nódoas do mundo e os melhores
truques para arear os tachos de cobre que ninguém tinha na vida real).
Mas o que sabíamos nós da vida real? Aos 17 anos entrei para a Faculdade
sem fazer a mínima ideia do que isso fosse. Aos 19 casei-me, ainda
completamente em branco (e não me refiro só à cor do vestido). Só seis
anos, três filhos e centenas de livros mais tarde é que resolvi arrumar os
meus valores como quem arruma um guarda-vestidos. Isto não, isto não se
usa, isto não gosto, isto sim, isto seguramente, isto talvez. Os preconceitos
foram os primeiros a desandar, assim como todos os itens que à pergunta
porquê só me tinham respondido porque sim ou, pior, porque sempre foi
assim. E eu, tumba, lixo, se sempre foi assim é altura de deixar de ser e
começar a abrir caminho às gerações futuras (ainda não sabia que entre os
meus 12 netos se contariam nove mulheres). Ouvi ontem uma jovem a
dizer, a revolução que nós fizemos nos últimos anos. Não, meu amor: a
revolução que NÓS fizemos nos últimos 50 anos. Mas não interessa quem
fez o quê. É preciso é que tenha sido feito. E que seja feito. Eu fiz tudo,
quando ainda não era suposto. Quando descobri que ser livre era acreditar
em mim própria, nos meus poucos, mas bons, valores pessoais. Depois
foram as circunstâncias da vida. A alegria de mais um filho, erros, acertos,
disparates, generosidades, ingenuidades, tudo muito bom para aprender
alguma coisa. Tudo muito bom. Aprender é a palavra-chave e dou por mal
empregue o dia em que não aprendo nada. Ainda espero aprender muita
coisa, agora que decidi que a Bíblia é uma metáfora da vida humana e
posso glosar essa descoberta até, praticamente, ao infinito.
Pois é. Eu achava, pobre de mim, que era poetisa. Ainda não sabia que
estava só a tirar apontamentos para o que havia de fazer mais tarde. A
ganhar intimidade, cumplicidade com as palavras. Também escrevia
crónicas e contos e recados à mulher-a-dias. E de repente, aos 63 anos,
renasci. Cresceu-me uma alma de romancista e vá de escrever dez
romances em 12 anos, mais um livro de contos (Os Linhos da Avó) e sete ou
oito livros infantis. (Esta não é a minha área, mas não sei porquê, pedem-
me livros infantis. Ainda não escrevi nenhum que me procurasse como
acontece com os romances para adultos, que vêm de noite ou quando vou
no comboio e se me insinuam nos interstícios do cérebro, e me atiram para
outra dimensão e me fazem sorrir por dentro o tempo todo e me tornam
mais disponível, mais alegre, mais nova).
Isto da idade também tem a sua graça. Por fora, realmente, nota-se muito.
Mas eu pouco olho para o espelho e esqueço-me dessa história da imagem.
Quando eu estou em processo criativo sinto-me bonita. É como se tivesse
luzinhas na cabeça. Há 45 anos, com aquela soberba muito feminina,
costumava dizer que o meu espelho eram os olhos dos homens. Agora são
os olhos dos meus leitores, sem distinção de sexo, raça, idade ou religião. É
um progresso enorme.
Se isto fosse uma autobiografia teria que dizer que, perto dos 30, comecei a
dizer poesia na televisão e pelos 40 e tais pus-me a fazer umas maluqueiras
em novelas, séries, etc. Também escrevi algumas destas coisas e daqui
senti-me tentada a escrever para o palco, que é uma das coisas mais
consoladoras que existem (outra pessoa diria gratificantes, mas eu, não sei
porquê, embirro com essa palavra). Não há nada mais bonito do que ver as
nossas palavras ganharem vida, e sangue, e alma, pela voz e pelo corpo e
pela inteligência dos actores. Adoro actores. Mas não me atrevo a fazer
teatro porque não aprendi.
Que mais? Ah, as cantigas. Já escrevi mais de mil e 500 e é uma das coisas
mais divertidas que me aconteceu. Ouvir a música e perceber o que é que
vem lá escrito, porque a melodia, como o vento, tem uma alma e é preciso
descobrir o que ela esconde. Depois é uma lotaria. Ou me cantam
maravilhosamente bem ou tristemente mal. Mas há que arriscar e, no
fundo, é só uma cantiga. Irrelevante.
Se isto fosse uma autobiografia teria muitas outras coisas para contar. Mas
não conto. Primeiro, porque não quero. Segundo, porque só me dão este
espaço que, para 75 anos de vida, convenhamos, não é excessivo.