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«Por definição é bom progredir. Mas quando se trata da ciência e da técnica não
devemos pôr em causa, hoje, esta evidência? Penso no contraste entre duas frases
relativamente célebres. A primeira é de Francis Bacon, no fim do século XVI: "O
principio da ciência é realizar tudo o que é possível". Que optimismo! Estava-se no
início da grande aventura do conhecimento científico 2. Sonhava-se em compreender o
que se passa no mundo que nos rodeia, e, deste modo, tornarmo-nos os seus donos e
fazer "tudo o que é possível".
Em eco, três séculos e meio mais tarde, há a frase de Albert Einstein, na noite de
Hiroshima: "Há, contudo, coisas que era melhor não fazer". Ora, depois que Einstein
desapareceu, "as coisas que era melhor não fazer" têm-se acumulado. As nossas
capacidades de acção e de destruição foram sendo acrescentadas em proporções
gigantescas.
Podemos matar todos os homens em algumas horas. É tecnicamente possível.»
Roger-Pol Droit (1990).
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O autor refere-se à Revolução Científica dos séculos XVI-XVII.
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«'Ciência sem consciência é a ruína da alma': muita água correu sob as pontes da
história e da ciência desde que François Rabelais, na primeira metade do século XVI,
escreveu esta máxima premonitória. 0 autor de Pantagruel dificilmente podia imaginar
que esta afirmação, que ele havia tão sabiamente sublinhado, seria elevada no nosso
século a um ponto tão extremo. Na sua época, apenas apareciam os primeiros focos
daquilo que se ia tornar, nos séculos seguintes, o sol resplandecente da ciência
experimental moderna. E ninguém, salvo talvez o génio profético de um Leonardo da
Vinci, poderia então suspeitar até onde iria a conquista científica e técnica do mundo e
menos ainda adivinhar, não somente as promessas, mas também os perigos que
provocaria para a humanidade esta apaixonante aventura.
Os resultados, temo-los nós diante dos olhos: jamais esta tensão entre ciência e
consciência, técnica e ética, chegaram, como hoje, a extremos que constituem uma
ameaça para o mundo inteiro. A genética molecular e a energia nuclear, para citar dois
exemplos significativos, podem ser, em princípio, segundo a maneira como as
utilizamos, grandes benefícios ou grandes danos. Tudo depende do uso que se faz dos
conhecimentos científicos, da sua aplicação correcta ou incorrecta. Assim, aquilo que
chamamos a civilização industrial, que beneficiou o homem em tantos aspectos, pode
danificar, quando só interessam as preocupações económicas, o nosso meio ambiente,
noção preciosa de que apenas tomámos consciência há algumas décadas.
Tal é o reverso da medalha fulgurante do progresso, que nos recusamos a ver.
Estamos tão fascinados que não nos apercebemos das ameaças que pairam sobre nós e
que nos deviam persuadir a rever radicalmente, numa perspectiva ética universal, o
futuro da ciência contemporânea. Não devemos esquecer os aspectos negativos, a face
obscura que apresenta a ciência, quando as suas aplicações não respondem às exigências
culturais, quando ela não tem em conta as necessidades humanas fundamentais, quando
ela não é devidamente submetida ao interesse social. Porque, se a ciência e a técnica
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podem contribuir para a sabedoria, já seria muito perigoso que a viessem a substituir.
Como o disse, com uma lucidez exemplar, Bertrand Russell: ‘A humanidade, graças à
ciência e à técnica, está unida para o pior sem o estar ainda para o melhor. Os homens,
no mundo inteiro, aprenderam a técnica da destruição mútua, mas não aprenderam a que
seria mais desejável, a da cooperação mundial... cada progresso do conhecimento e da
técnica torna mais necessária a sabedoria; embora a nossa época tenha ultrapassado
todas as outras pelo conhecimento, ela não beneficiou de um progresso equivalente no
que respeita à sabedoria'. E, na sua conclusão, Russell reclama 'uma nova perspectiva
moral'.
Sem ela, a hecatombe que nos ameaça poderá tornar-se fatal. Donde a necessidade
duma revolução científica que poderá realizar-se no dia em que o saber, em lugar de
estar enfeudado ao poder, virá equilibrá-lo. Hoje, o saber sustenta, cada vez mais, o
poder; a ciência favorece em excesso a força − aí onde ela devia ser a escora3 da razão.
A revolução reside num uso ponderado do saber. Trata-se, portanto, de instaurar uma
ordem cientifica que dê os meios de assegurar a todos os homens as condições decentes
de subsistência − alimentação, saúde, cultura... −, uma nova ordem científica que
suponha uma mudança de orientação tecnológica, uma reorientação profunda das
aplicações da ciência, longe do horizonte atómico e do consumo desenfreado actual.
Ciência e consciência, técnica e ética: tal é a responsabilidade a assumir se não
queremos chegar à 'ruína da alma', que equivaleria hoje simplesmente ao aniquilamento
da humanidade.
Esta responsabilidade diz-nos respeito a todos, sem excepção, porque estamos
todos no mesmo barco, mas ela incumbe de forma particular aos intelectuais, aos
homens do pensamento e da ciência, àqueles cuja obra está na origem do conhecimento,
tanto teórico como prático. Os sábios, os intelectuais em geral, em razão da natureza do
seu trabalho, devem reflectir nos problemas graves do mundo actual com todo o
conhecimento de causa e rectidão indispensáveis, sem se deixarem influenciar pelos
interesses políticos do momento ou pelas particularidades culturais, por muito legítimas
que sejam.
Não é fácil precisar de que maneira os homens de ciência podem agir para
inflectir o sentido no qual os interesses poderosos orientam, ou manipulam os seus
trabalhos e os frutos daí tirados. Mas é aos cientistas que cabe a responsabilidade de não
calar − eles devem pelo contrário pô-los em relevo − os perigos que acarreta um uso dos
seus conhecimentos científicos que os desvirtue ou falseie, por não se medir as
consequências sociais, económicas, culturais, enfim, humanas. [...]
A UNESCO prossegue um papel essencial: contribuir para elaborar e maturar esta
nova perspectiva ética sem a qual a paz e um desenvolvimento plenamente humanos são
inconcebíveis.»
Frederico Mayor Zaragoza, in Le Courrier, UNESCO, Paris, Maio de 1988.
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Escora − peça que ampara ou sustém outra; (fig.) amparo; encosto.