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Óscar de Lis
Resumo:
Analisam-se de modo genérico os sistemas
estratégicos que o poder promove para
garantir a sua estabilidade, assim como as
habilidades combinatórias e recombinatórias
que oferecem graças à capacidade de mudança
que a própria estrutura do poder possui.
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Temos visto o futuro, e dói.
Curt Suplee
1.
Mas um estudo histórico das ideologias põe de manifesto que tal tendência não procede
apenas da pós-modernidade nem dos processos aberrantes de alienação que se
estabeleceram com novas fórmulas e dos quais parece já impossível se subtrair. É certo
que tais motivos estão também presentes na criação da inércia que se está a descrever,
mesmo como factores fundamentais entanto que marco conceptual no que tem lugar a
referida inércia; mas, contudo, pretender que a nossa contemporaneidade esteja a ser
mais afectada por tais factores do que as épocas passadas carece de sentido. Antes bem,
épocas anteriores, nas que tiveram lugar acontecimentos fulcrais na história do homem,
demonstram que o processo de desideologização das massas estava fortemente
estabelecido já nos começos do século XX. Gramsci, como assim outros teóricos de base
marxista, deram para a vista a assunção da indiferença como estratégia, e contribuíram
asinha (Althusser, 1970) a localizar e identificar aqueles motores que trabalhavam de
algum modo pela continuação de tal inércia desideologizante, especialmente mediante a
reprodução de umas determinadas condições de produção estabelecidas no espaço hábil
e perigosamente indeterminável da pura supervivência. Nessa linha, manterem o nível
meio da vida apenas uns poucos pontos acima do umbral estrito da supervivência
capacitava os detentores do poder do modo em que noutra época eram qualificados os
reis pelos súbditos: capacitava-os como figuras paternais e quase filantrópicas que
mediante o seu esforço de empreendimento estavam a garantir um mínimo nível de vida
nos demais indivíduos. E tal modelo fazia-se estável desde que tais detentores não
cessassem na sua tarefa de garantir a generalização desse marco de mediocridade.
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caso como passos para a mudança profunda do sistema de poder. O poder, de tal modo,
era simplesmente transferido de mãos, no melhor dos casos, mas sempre acontecia o
descrito por Hegel na curva de progresso da revolução: os novos poderosos passavam a
comportar-se como os velhos poderosos, e de tal modo ficava restabelecido mais uma
vez o sistema de potestades baseado na existência de súbditos e reis, quaisquer que
fossem os reis.
Tal repartição especular reforçou-se, ademais, em duas direcções. Duma parte, pôs-se em
marcha uma campanha integral de publicitação do modelo liberal mediante o sistema de
co-branding: a marca american way of life converteu-se na ponta de lança do ataque a
qualquer modelo que, como mínimo na teoria, procurasse uma repartição real do poder
entre os indivíduos, que atingiriam assim categoria de massa mais ou menos unitária e,
pelo mesmo, capacitada para o progredimento. Ao mesmo templo, em sentido contrário,
propôs-se a tarefa da desqualificação moral de modelos alternativos ao liberal, e até a sua
demonização mediante o recurso do medo e a criação de poeiras conceptuais que
resumem toda fórmula alheia à metaetiqueta do “eixo do mal”.
Doutra parte, pôs-se em marcha outro processo: como maneira a se conservar, a liquação
que o poder efectuou da sua própria imagem fez com que a sensação de poder se
vulgarizasse até o ponto de hoje termos chegado a um nível de mediocridade globalizada
no qual cada indivíduo crê possuir uma determinada quota dele em proporcionalidade
direita com a sua renda económica. Após ter criado uma falsa analogia entre poder
económico e poder social por médios próprios, o modelo liberal estava já em disposição
de oferecer-se às mesmas metas que o socialismo parecia conduzir, especialmente
quando o modelo económico dos estados socialistas parecia ir cara a um
empobrecimento manifesto da população.
De tal modo, como já se avançou, estabiliza-se o sistema desde que um indivíduo não
seja mais miserável do que o seu vizinho, de jeito que a mediocridade, pela sua
indefinição de facto, foi a categoria que habilitou a situação na que actualmente nos
achamos: aquela na que o conjunto da sociedade fica sujeita a um estado de pseudo-
liberdades e pseudo-realização baseadas na ilusão de potência económica; e na qual,
porém, os antigos detentores do poder seguem a sê-lo, mas de maneira menos evidente,
menos ostentosa.
A tradução ao concreto deste sistema pode, pelo tanto, explicar a aparição de cidadãos
do mundo ocidental (primeiro mundo) vivendo num razoável nível de indiferença, e
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configurando assim um espaço económico que guarda certa distância de segurança com
o umbral duro da supervivência. Mas tal indiferença parece existir desde que o espaço
económico seja também estável; é dizer, desde que fique garantida essa distância de
segurança com um umbral que se apresenta mesmo mais temível. E, com efeito, todos os
indicadores de perigo se acendem quando existe uma crise económica e,
consequentemente cai o nível de crédito que os novos súbditos põem a disponibilidade
do próprio sistema.
A ineficácia do modelo, pois, demonstra-se ainda que só seja pela constatação da cada
vez mais rápida sucessão das referidas crises económicas, mas também pelo estado de
tensão e semi-emergência ao que se está a submeter constantemente a população, com a
consequente impaciência e elevação do nível de crítica ao sistema. E, porém, mesmo
assim, aqueles sectores da população a fazer parte do precariado, é dizer, aqueles que
vivem justo acima do umbral de supervivência (não confundir com o de pobreza),
seguem a acreditar no modelo. Então, deve necessariamente existir algum outro motivo
ou motivos para que tal aceitação não rache. Deve existir um factor que explique quais os
motivos para que, rejeitando o modelo dos socialismos, por uma banda, mas também
perdendo a fé no liberalismo, por outra, não tenham aparecido alternativas capazes de
superar a demonização esgrimida pela praxe liberal.
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2.
Assim, pois, aceita-se que o liberalismo, além dos mecanismos de controle, se defende
atacando abertamente as suas alternativas, o alheio, o caracterizado como contra-natura
e maligno, e que nesse ataque se vê fortemente auxiliado pela existência do estado de
inércia social que ele mesmo potenciou. Em consequência, tratar de compreender o
modo em que o liberalismo é apoiado ainda na sua crise converte-se no relatório de
estratégias de hostilidade face aos demais sistemas, de negação da própria crise, e
fundamentalmente, de mantimento da referida inércia até o máximo possível.
Além dos dispositivos de ataque a outros sistemas possíveis, para compreender a questão
parte-se da premissa de que, a olhos da sociedade, o liberalismo jamais está em crise,
senão num contínuo processo de reconversão facilitado pela teoria capitalista de que o
fluxo supostamente livre de capital está capacitado para integrar em si próprio qualquer
movimento, mesmo aqueles que atentem contra a base do seu próprio sistema. Além de
que essa capacidade seja uma fraude, existe a evidência de que o conceito de “livre
mercado” não se refere mais a uma liberdade de facto, na que o capital se movesse talvez
motu proprio (tal possibilidade é absurda), senão a que esse movimento de capitais está
fora das medidas estritamente políticas (ideológicas) que podem ser aplicadas por um
governo concreto em contra dos interesses de certos detentores do poder semi-ocultos.
Nessa estratégica, está claro, nada se diz contra a intromissão de tais governos quando as
medidas vão na linha favorável ao capital liberalizado (Bolkenstein, Bolonha,...).
Em primeiro lugar, como medida a lograr isto, assiste-se ao processo de criação de uma
poeira (Baudrillard, 2002) que não permite enxergar com claridade qualquer coisa que
fique além das estritas margens do imediato. Assim, o assassinato do conceito e a prática
da cultura geral mediante a tendência enfermiça à sobre-especialização vai combinar-se
com a potenciação sistemática de meios de ócio reprodutores de novas fórmulas da
alienação.
Doutra parte, mas não sem ligação com o anterior, evidencia-se a assunção de problemas
laterais à categoria de primeira ordem, em especial graças ao fenómeno relativamente
recente da exibição massiva de supostas realidades onde o potenciado é o escatológico e
o grotesco em geral. O desenho estratégico das formas e os contidos dos reality shows
conseguem assim fazer a população partícipe dos conflitos que nessas realidades
paralelas se dão. Porém, a referida assunção de problemáticas laterais não se produz
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apenas por meio de tais sistemas. Antes bem, consegue-se que os próprios problemas do
indivíduo ganhem proporções titânicas enquanto são estabelecidos como problemas
únicos, de tal modo que os membros da população estão sempre a crer que habitam um
estado de semi-tragédia da qual são protagonistas e pela qual se encapsulam, não sendo
mais capazes de olharem noutras direcções. A potenciação do individualismo, por isso,
ganha um peso específico dentro do repertório de estratégias em acção, e ademais
contribui de modo decisivo ao progredimento do modelo liberal por quanto constitui um
dos seus piares maiores.
De tal maneira, a percepção que o indivíduo tem dos problemas estruturais é afastada,
mas, contudo, ainda se exerce pressão para reforçar tal afastamento. De facto, o próprio
modelo liberal tende (quase se diria naturalmente) a se tornar mais e mais complexo, por
diversos motivos, com o qual apenas pode ser analisado desde posições relativamente
complexas. O resultado é uma elitização do problema que mais uma vez separa a
população do problema e de possíveis soluções, o qual não deixa assim de engordar a
ideia de que o problema não existe ou, doutro modo, é tão afastado que não merece a
pena.
A consequência geral destas estratégias combinadas para a defesa do modelo liberal, pela
sua vez em combinação íntima com os recursos fornecidos pela prática intensa do
controle social de tipo vigiador e punitivo ainda existente (Foucault, 1987), é a criação na
população de uma espécie de síndrome de minorização que diminui a sua capacidade de
reacção mediante a crença em que a massa não existe mais como ente operacional e em
que, como indivíduos, não é possível ou é suicida levar a termo algum tipo de luta contra
o sistema. No melhor dos casos, pelo tanto, essa luta é enquadrada pelos indivíduos
respectivos como uma questão romântica, quando romantismo tem também adquirido
conotações negativas ao se associar semanticamente com o campo do inútil, o
improdutivo ou o vão. E diz-se no melhor dos casos porque a associação dessa prática da
resistência com o romantismo pressupõe uma relativa inocuidade, ao se considerar
apenas no campo da ideação, da utopia. No pior dos casos, porém, aparecem os já
avançados qualificadores de extremismo e radicalismo, já definitivamente pejorativos e
para os quais, ao introduzirem definitivamente uma aposta pela prática, não se
contempla possível inocuidade, mas apenas um manifesto poder de destruição. Então,
essa defesa do sistema que parecia antes tão contraditória, dá-se na combinação deste
suposto poder destrutivo com a ideia de que o modelo de mercado está a fornecer
riqueza repartida sobre a base do esforço e o risco de empreendimento que cada
indivíduo possa assumir.
Entram assim em jogo, finalmente, duas categorias mais que vêm reforçar a tese
fundamental desta análise: a ideia de segurança e a importância da apresentação
escópica. Em rigor, esta última é introduzida, como se disse acima, por meio das
aparências interessadas implementadas pelo poder, com dois fins: em primeiro lugar, o
convencimento de que as garantias de supervivência as outorga o modelo de livre
mercado sem donos visíveis e, pelo tanto, sem intencionalidades prévias; em segundo
lugar, o convencimento das intencionalidades destrutivas dos modelos alternativos e,
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pelo tanto, o convencimento mediante recursos da imagem dos perigos que vai supor a
destruição hipotética do modelo económico liberalizado. Deste modo, a ideia de
segurança fica fortemente ligada também à apresentação das aparências, e explica que
indivíduos que comprovam a ineficácia do sistema possam ao mesmo tempo acreditar
nele e mesmo defendê-lo perante possíveis agressões enquanto o considerem como
único sistema possível. E nessa consideração, como já se avançou, joga um papel
estratégico qualquer recurso publicitário pertinaz, incluída a mentira sistemática e
selvagem.
Óscar de Lis
Compostela – Galiza, Dezembro de 2007