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O que é o ser humano? Assim podemos sintetizar a reflexão de Blaise Pascal, filósofo e cientista
francês do século XVII. E a partir dela, formular outras mais, como, por exemplo, "Qual o lugar do homem no
Universo?" e "O que é o Universo para o ser humano?" Vamos filosofar sobre o ser humano e aquilo que o
toma diferente e singular.
O ser humano pode ajustar-se a um número maior de ambientes do que qualquer outra criatura, multiplicar-se infinitamente
mais depressa do que qualquer mamífero superior, e derrotar o urso polar, a lebre, o gavião e o tigre, em seus recursos
especiais. Pelo controle do fogo e pela habilidade de fazer roupas e casas, o homem pode viver, e vive e viceja, desde os
pólos da Terra até o equador. Nos trens e automóveis que constrói, pode superar a mais rápida lebre ou avestruz. Nos
aviões e foguetes pode subir mais alto do que a águia, e, com os telescópios, ver mais longe do que o gavião. Com armas
de fogo pode derrubar animais que nenhum tigre ousaria atacar.
Mas fogo, roupas, casas, trens, automóveis, aviões, telescópios e armas de fogo não são parte do corpo do homem. Eles
não são herdados no sentido biológico. O conhecimento necessário para sua produção e uso é parte do nosso legado
social. Resulta de uma tradição acumulada por muitas gerações e transmitida, não pelo sangue, mas através da linguagem
(fala e escrita).
A compensação que o homem tem pelos seus dotes corporais relativamente pobres é o cérebro grande e complexo, centro
de um extenso e delicado sistema nervoso, que lhe permite desenvolver sua própria cultura.
Assim, diferentemente dos outros animais, os homens não são apenas seres biológicos produzidos pela
natureza. Os homens são também seres culturais que modificam o estado de natureza, isto é, o modo de ser,
a condição natural das coisas, definida pela natureza.
Natureza e Instintos
O comportamento de grande parte dos animais é basicamente determinado por reflexos e intintos
vinculados a estruturas biológicas hereditárias. Isso faz com que ocomportamento de um inseto seja
praticamente igual ao de outro de sua espécie, hoje e sempre. Comprovamos isso observando, por exemplo, a
atividade das abelhas nas colméias ou das aranhas tecendo as teias.
Existem animais que parecem mais livres do que outros da dependência dos instintos ou reflexos au-
tomáticos, que apresentam alguns comportamentos mais flexíveis, mais imprevisíveis, mais maleáveis às cir-
cunstâncias ambientais. É o caso, por exemplo, de cães e gatos, nos quais distinguimos muitas vezes o que se
poderia chamar "personalidade". E, dependendo do animal, como chimpanzés e gorilas, é possível encontrar
atos inteligentes e uma capacidade elementar de raciocínio.
Apesar de tudo isso, podemos dizer que existe um grande abismo, uma grande diferença entre o
comportamento dos animais e o dos seres humanos. Para dar um só exemplo, mesmo o chimpanzé mais
evoluído possui apenas rudimentos do que lhe permitiria desenvolver a linguagem simbólica e tudo o que dela
resulta: aprender, reelaborar o conteúdo aprendido e promover o novo (invenção). Isso quer dizer que a vida de
cada animal é uma repetição do padrão básico vivido pela sua espécie. Já o ser humano tem, individualmente e
como espécie, a capacidade de romper com boa parte do seu passado, questionar o presente e criar a
novidade futura.
É claro que exitem fatores genéticos e socioeconômicos que limitam certas mudanças, favorecem ou
dificultam a realização de determinados desenvolvimentos. Além disso há vários tipos de crenças, ideologias e
condicionamentos que impedem as pessoas sequer desejar uma transformação em si mesmas ou à sua volta.
Por fim, todo ser humano apresenta também reflexos e instintos vinculados a estruturas biológicas hereditárias
próprias da espécie humana.
O que queremos destacar, no entanto, é que o ser humano não nasce pronto pelas "mãos da natureza".
A vida de cada indivíduo depende do parto de si mesmo, num processo permanente de "nascer sem parar".
O que determina, então, essa diferença entre o "animal homem" e todos os outros animais?
O ponto de transição
Podemos fazer agora as seguintes perguntas: onde acaba, no ser humano, a natureza e começa a
cultura? Em que ponto, em que momento, com que fato ocorreu essa transição ou essa síntese?
O tema é polêmico. Alguns estudiosos afirmam que não há um limite rígido entre natureza e cultura,
enquanto para outros um provável indicador desse limite seria a construção de instrumentos de trabalho. Aqui
destacaremos duas correntes interpretativas que consideramos as mais relevantes.
Linguagem e comunicação
Alguns estudiosos entendem que o fator determinante da transição natureza -cultura é a linguagem.
Trata-se de uma corrente que entende o ser humano fundamentalmente como um ser lingüístico.
Assim, segundo esse antropólogo, o que teria distanciado definitivamente o homem da ordem comum
dos animais - animal que ele também é e nunca deixará de ser - e permitido a sua entrada no universo da
cultura seria o desenvolvimento da linguagem e da comunicação.
De fato, a linguagem constitui uma das dimensões mais importantes da cultura, pois é ela que permite o
intercâmbio das experiências e as aquisições culturais. É pela linguagem, por exemplo, que os pais comunicam
aos filhos não apenas suas experiências pessoais, mas algo mais amplo: as experiências acumuladas e
compartilhadas pela sociedade. De modo inverso, é também por meio da linguagem que o conhecimento
individual de cada pessoa pode incorporar-se ao patrimônio social.
Trabalho
Outra vertente interpretativa, desenvolvida por Karl Marx, filósofo alemão do século XIX, entende que é
o trabalho que possibilita a distinção entre ser humano e animais; portanto, entre cultura e natureza. É a partir
do trabalho, e da fonna como se dá o processo de produção da vida material dos homens, que todas as outras
fonnas de manifestações humanas se desenvolvem. Para Marx:
Pode-se considerar a consciência, a religião e tudo o que se quiser como distinção entre os homens e os animais; porém esta
distinção só começa a efetivar-se quando os homens iniciam a produção dos seus meios de vida.
MARX, K. e ENGEl, F. Ideologia alemã, v. 1, p. 19
De acordo com essa interpretação, portanto, é o modo como os homens constroem sua vida material
que dá origem à elaboração da vida espiritual e das relações sociais, formando um conjunto que constitui a
cultura. Isso quer dizer também que não podemos falar de cul.tura no singular, mas sim de culturas, pois elas
são multiplas e variáveis, de acordo com a diversidade dos modos de ser e viver das coletividades humanas.