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só escrevo
para quem
gosta de gatos.
Porque só quem
gosta de gatos
entende certas coisas,
e quem não gosta
acha uma
grandessíssima
perda de tempo
ficar nesse assunto.
Tanto que meu primeiro gato eu roubei do jardim de uma casa, aos 6 anos, quando voltava da
escola Roubei, não: peguei e sai com ele numa boa, e já estávamos in love na garagem da minha casa quando
toca a campainha e são duas senhoras: as donas dele. Que me viram pegando o gato. Minha mãe ficou
passada. Mas o gato estava tão satisfeito, parecia tão à vontade, que deixaram ficar... Chamava-se Tsuri,
certamente tesouro em turco, era branco e rajado, grande, bonito, muito gostoso de passar a mão. Tenho uma
foto com ele no jardim, vou ver se encontro. Não sei que fim levou Tsuri. Todos os bichos vinham e iam, por
alguma razão: atropelamento, carrocinha, vermes. Tsuri provavelmente voltou para a antiga casa dele. Meus
pais, meus irmãos e eu sempre tivemos bichos, mas eles não duravam muito.
O problema é que nossas casas também não duravam muito. Depois de ter um cachorrinho fox
chamado Bambi, uma gatinha rajada muito doentinha, outra cachorrinha chamada Bolinha que tinha vermes
demais (Mamãe, ela comeu o macarrão sem mastigar e está pondo tudo pra fora!), mais um mais um
porquinho-da-índia e um ratinho branco, mudamos para um apartamento e parei de ter bichos por algum
tempo, ou melhor: tive um casal de passarinhos lindos, bico-de-lacre, que um garoto vizinho me deu e meu
irmão soltou. (Não adiantou nada: nem sabiam voar, pois tinham nascido em gaiola.)
Mas na casa seguinte ganhei uma cadela grande e mansa, filha de collie com pastor: Wendy. Alegre
e discreta, ficava só no quintal. Quando eu abria a janela do quarto, de manhã, ela punha aquela carona linda
para dentro. E também tivemos Guri, um cachorro daqueles bem vira-latas mesmo, amarelo, ordinário e sem-
vergonha, que me seguiu na volta da padaria só porque lhe dei um pedacinho de mortadela. Simpático e
sedutor, minha mãe começou dizendo que não e não e três-vezes-não mas acabou deixando ficar.
Arrependeu-se.
Guri latia demais, amolava as pessoas na rua, brigava com os outros cachorros, roubava
coisas na feira - e desobedecia, sistematicamente e com estilo. Por exemplo, almoço de sábado.
Meu pai fechava a loja ao meio-dia e vinha para casa, então o almoço era sempre especial porque
tinha o papai, que tomava um aperitivo e punha discos de música clássica. Guri não podia entrar na
sala. Então a gente sentava para almoçar e o Guri deitava na soleira da porta com a cara mais séria
do mundo. Dali a dois minutos ele estava um centímetro mais para dentro. Cinco centímetros.
Quinze centímetros, um palmo, meio metro. Meu pai olhava, Guri virava a cara para não ver. E
assim ia ganhando terreno, até que meu pai começava a pigarrear. Guri fazia então uma recuada
estratégica, para logo depois avançar mais um bocadinho, e outro bocadinho, até que, já meio
caminho andado entre a porta e a mesa do almoço, levava um passa-fora, voltava à soleira,
recomeçava do zero. Meu pai acabava perdendo a paciência e zangando com ele, que parecia achar
aquela bronca uma delicia: assim que meu pai terminava de gritar, Guri abanava o rabinho. Um dia
papai botou Guri no carro e largou do outro lado da cidade de São Paulo, onde morávamos. Não é
que dali a uns dias o cachorro voltou? Ficou conosco mais uns tempos, sempre aprontando, e
morreu atropelado bestamente, numa noite em que saiu com meu pai e minha mãe para dar uma
voltinha depois do jantar, como de costume. Num instante estava ali, com eles; no instante seguinte,
debaixo das rodas de um carro. Meu pai levou à clínica veterinária, fez o possível para salvar a vida
dele, mas não teve jeito.
Foi logo depois disso que, aproveitando o vazio, eu trouxe para casa Pussy, uma gatinha
rajada muito especial e ainda bem pequenininha Minha mãe, como sempre, não queria; como
sempre, cedeu àquela gracinha peluda que a olhava com seus grandes olhos verdes. Pussy tinha sido
o nome do primeiro gatinho dela, no Egito.
Pequena, levíssima, Pussy era uma artista andando entre os bibelôs de louça sem derrubar
nada, dando saltos enormes de um canto a outro da sala. Bastava minha mãe sentar na poltrona com
sua cestinha de lãs para Pussy surgir no colo dela - vinda do ar, por cima do tricô e das agulhas,
gata-pássara audaciosa e senhora de si. Quando tínhamos visitas a gata se recolhia: imóvel em cima
do móvel, como um enfeite, nem piscava. Só dava sinal de vida depois da visita sair.
Uma vez Pussy roubou um bife da cozinha enquanto minha mãe atendia o telefone, e
ganhou uma bronca daquelas que deixam a pessoa completamente envergonhada. Muito que bem.
Depois do almoço, minha mãe cochilava no quarto quando percebeu a gata entrando pela janela e
pulando em cima da cama. Ao abrir os olhos viu que ela trazia um ratinho na boca! Quase teve um
chilique. A bonitinha queria pagar o bife...
Mas minha alegria durou pouco. Mudamos dessa casa de supetão, não só para outro
apartamento: para outra cidade. Foi muito triste. Wendy ficou com o moço do caminhão que fez a
mudança. Pussy tinha acabado de ganhar gatinhos e nem assim, ou até por isso mesmo, podíamos
levá-la. Pedimos à vizinha para cuidar e dar comida, e eu mesma voltei lá uma vez, o coração
apertado. Entre bifes roubados e ratinhos dos terrenos baldios, espero que Pussy tenha sobrevivido -
como eu - a essa fase de abandono e desamparo.
Nessa cidade do interior não tive bichos, nem um carrapatinho sequer. Quando finalmente
voltei a tê-los já era adulta, fui morar com pessoas que também gostavam de gatos, e logo
arranjamos dois filhotinhos siameses para tumultuar a casa. A fêmea se chamava Crissy. O macho,
por inspiração de certa cadelinha chamada Sua Tia, ficou sendo Seu Pai.
Crissy era uma gata grande, bege e marrom, de olhos muito azuis, ágil e inteligente. Seu
Pai era todo cinza, mais escuro no rabo e nas orelhas, os olhos muito claros; menor e mais quieto.
Sua peculiaridade era não ter medo de água. Adorava ficar junto de chuveiro aberto ou banheira
cheia, principalmente se tivesse muito vapor. E Crissy só fazia xixi no ralinho do bidê. Uma dama!
Elegante em tudo. Com Seu Pai dávamos muita risada: - Seu Pai fugiu! - Seu Pai ficou preso dentro
do guarda-roupa! - Seu Pai tá com caganeira!
Eram gatos que se comportavam como cachorros - saíam conosco de carro, gostavam de
passear no parque, não tinham medo. E lá pelas tantas, acontece o quê? Mudamos. Para onde?
Outro país:
Alemanha! E os gatos, meu Deus? Também, ora essa. Iam conosco dentro do avião,
naquela casinhola que todo mundo sabe. Quando chega a hora do embarque, encrenca: já tinha um
cachorrinho a bordo e não podia ter outro bicho. Falamos, esbravejamos, choramingamos, nada
adiantou. Então iriam com a bagagem. Mas não dava, a cabine não era pressurizada! Nenhum
animal vivo pode viajar assim. Que fazer? Que fazer? Tínhamos que viajar de qualquer jeito. Eles
não cediam. Aí a Betty salvou a situação: ficaria com Crissy e Seu Pai até o vôo seguinte, dali a três
dias. Grande Betty.
Três dias depois ela foi ao aeroporto embarcar Crissy e Seu Pai. Chegou lá, o homem
pediu os documentos, ela deu os atestados de vacina, ele conferiu e pediu o resto. Que resto? - Ora,
senhora, passaporte, visto... Afinal, eles vão desacompanhados! - Mas meu senhor... - Mas minha
senhora... Pois é, pois é: os gatos novamente não foram. A pobre Betty teve que enfrentar
consulado, cartório e tradutores juramentados para produzir os papéis, e depois de outros três dias
conseguiu embarcá-los. Ah, e um detalhezinho que esqueci de contar: Bettv detesta gatos.
Nós em Hamburgo, na Alemanha, esperando os gatos que não chegavam. Os homens da
alfândega já conheciam nossa voz no telefone, de tanto que ligávamos para perguntar. Um dia quem
ligou foram eles - Venham rápido, os gatos estão aqui!
Pobres gatos. Assustados, famintos, presos naquela gaiolinha mínima sem fazer cocô nem
xixi... Fomos com eles para casa. No fundo do coração, um grande remorso por fazer os bichinhos
sofrerem.
E ai vivemos felizes para sempre, tá bem? Ora, por que não? Essas coisas acontecem.
Depois de um monte de dificuldades tudo fica lindo. Após a tempestade vem a bonança. Não? O
horror continua? Continua. Veja por quê: um apartamentinho que era de uma sala só, mais um
banheirículo, uma cozinhícula e uma ridícula cama embutida de casal magro, que lá se considerava
confortável. Depois de uma semana vivendo nesse aperto vimos que era absolutamente necessário
um apartamento maior, ou uma casinha, se quiséssemos ter gatos. Fomos procurar outro lar, mas
logo caímos na real - não havia quase nada para alugar. Comprar? Só se fosse uma barraquinha de
camping, o que seria ótimo no verão; já no inverno... E assim, por dificuldades que foram se
avolumando no dia-a-dia, menos de um mês depois acabamos nos separando todos, felinos e
humanos. Crissy e Seu Pai foram morar no campo, numa casa cinco estrelas, com uma senhora
louca por gatos que nunca tinha visto siameses pessoalmente. Eu voltei para o Brasil morta de
vontade de comer feijão com arroz e farofa. E as outras pessoas que gostavam de gatos foram
arranjar outras pessoas e outros gatos pela vida afora.
Pessoas são mais difíceis do que gatos. Arranjei logo dois: um casal de gatinhos pretos.
Ela redondinha, fofinha, meiguinha, querida, Quiqui. Ele magro, comprido, desajeitado e narigudo,
rouco e chato, Cocô. Uma noite Cocô fugiu pelas ruas do Jardim Botânico. E nós atrás dele
chamando baixinho:
Cocôôôô... Cocôôôô... Como por encanto, Cocô se foi. Os bichos sabem muito bem o que
fazem nessa hora. Se querem voltar, voltam. Cocô realmente não era querido, e nem fazia a menor
questão. Nasceu para magro e vagabundo, gato sem dono, vai ver detestava ficar dentro de casa
naquele esqueminha burguês de comidinha no prato, almofadinha para dormir, chamego, cafuné.
Vou escrever agora uma coisa horrível: não sei o que aconteceu à Quiqui. Sei que fomos
morar no Sitio, voltamos para a cidade, a Quiqui ficou lá...
Gato vem, gato vai. Eu já nem queria mais
gatos, porque o gato-vem é bom, o gato-vai é
péssimo. Principalmente se o gatinho encontra seu
fim nos dentes de um cachorrão, como aconteceu
certa vez e eu nem vou entrar em detalhes, ou
quando morre atropelado, porque gato quando
enxerga uma coisa lá na frente não quer nem saber
se tem estrada: atravessa disparado, não vê asfalto
nem carro nem moto, nada. Mas aí aconteceu que
voltei a morar no Sítio, e já adianto logo que dessa
vez fiquei cinco longos anos, e por isso criei uma
lindíssima família de gatos: os filhos da Xana!
Nunca se conseguiu encostar a mão no Beija-flor. Bastava chegar perto que ele ficava
todo arrepiado, cheio de rás e fus, e isso desde pequenininho. Foi crescendo assim, arisco e
maravilhoso, por isso Beija-flor. Cinza-clarinho, focinho e luvas brancas, pêlo curto e cheio: lindo,
coisa de doido.
Virou um gato grande. Vinha, comia, tomava sol, sumia. Certo dia chegou em casa
arrastando as pernas de trás. Seu Tião disse que estava descadeirado, certamente devido a coice de
cavalo ou pancada de carro, que costuma quebrar a bacia do gato impedindo-o de mover os quartos
traseiros. Que fazer? Nada, disse o homem, deixa que o bicho se cura sozinho. Fica quietinho, o
osso consolida outra vez. Falou a voz da experiência, só me restava observar. Beija-flor largou-se
num canto da varanda e ali ficou, na mesma posição, durante dois dias, sem tocar em água ou
comida. Achei que naquela circunstância dramática ele ia aceitar um carinho, mas qual, continuava
alérgico a humanos.
Na terceira manhã arrastou-se até a cozinha e largou-se entre o fogão e a janela. Achei que
estava com fome, botei uma comida, não comeu. Os outros gatos vieram olhar.
Aí o grande Meleca fez uma coisa bela: foi lá fora e caçou um passarinho para o Beija-
flor. Chegou com ele na boca, desta vez mortinho mesmo, e colocou junto do doente. Que, juro que
vi, mudou de expressão na mesma hora: grr grr, mmmau-maaaurrr, rapidamente tomou posse do
passarinho e arrastou-se com ele para baixo do fogão. Gato tem essa mania de se entocar para
comer. Em volta, aquela platéia atenta: vó Xana, vó Preta, tia Gogóia, tio João, primo Charles, mãe
Piriquita, tio Meleca, eu, os outros, todo mundo sentado, piscando. Mas Beija-Flor não comia, só
montava guarda e rosnava, um tempão.
O passarinho já devia estar frio. Cansei e fui fazer outra coisa.
Quando voltei Beija-flor se lambia, satisfeito, quase palitando os dentes com uma pena.
Depois disso dormiu, acordou e foi devagarinho lá para fora tomar sol. O pior já tinha passado; em
poucos dias ficou bom.
Foram anos e gatos ótimos. Além de lindos, gatos fazem boa companhia e são pessoas
muito interessantes. Eu poderia ficar horas falando deles - de como era bom tê-los por perto. Cobra,
por exemplo, com eles ficava cômico. Porque quando viam uma eles cercavam e iam
acompanhando devagar, em passinho de procissão. De vez em quando sentavam. E pelo movimento
uníssono das cabecinhas dava para saber o que a cobra estava fazendo. O espetáculo das caçadas
também era o máximo. No começo me chocava vê-los caçando passarinhos, depois entendi que,
para gato, passarinho é uma comidinha que canta...
Xana só teve essas quatro ninhadas e se aposentou. Morreu com menos de quatro anos, de
fraqueza renal, mal-humorada e bonita como nunca.
Voltei a morar na cidade. Pretinha ficou vivendo na casa dos caseiros. Piriquita, primeiro,
depois Gogóia: atropeladas na estrada. Charles foi dado, João já tinha se mudado para a casa da
vizinha e Meleca, o grande Meleca, ficou por ali mesmo.
Saudade dos bichos.
Novamente, por um grande período, nem um carrapatinho. Aqui e ali, uns cachorros. Fui
passar uns dias na casa da minha cunhada, que tinha uma poodle branca deliciosa, a Boni.
Inteligente, esperta, bem-humorada, todas as qualidades do poodle - só que não comia nem fazia
cocô. Um horror, dizia minha cunhada, e tentava dar mais um pedacinho de filé mignon na
boquinha da Boni - em vão. Coitada da cachorrinha. De manhã desci com ela e vi o esforço que fez
pra cagar uma mísera bolinha. Estava entupida. No fim de semana o pessoal da casa viajou. Resolvi
aproveitar a chance e botei a Boni em jejum. Não dei jantar na sexta. Não dei café da manhã no
sábado. Quando chegou a hora do almoço ela já estava realmente interessada em comer. Aí
apresentei uma novidade absoluta em matéria de comida de cachorro: uma tigelinha de triguilho
cozido com peito de frango, que ela comeu inteira num ritmo só. Jantar, mesma coisa. No dia
seguinte, quando descemos, ela fez um cocozinho - e ficou tão feliz que saiu dando cambalhotas e
correndo pelo gramado feito uma pipoca. Passou a comer bem, sempre com triguilho, que é aquele
de fazer quibe, que tem muita fibra, e nunca mais entupiu de novo.
Cachorro pode ser muito engraçado. No Sítio tive um cachorro, o Ringo, que ria,
igualzinho à mãe dele, a Bela. Eu trouxe o Ringo e não avisei os caseiros sobre essa peculiridade.
No primeiro acesso de riso do Ringo eles acharam que o cachorro era possuído pelo demônio, pois
onde já se viu cachorro rir? E era um riso nervosinho, um mostrar-os-dentes & abanar-o-rabo todo
frenético, que geralmente não tinha quê nem por quê. Quase afogaram o cachorro no rio, de medo!
Por sorte resolveram esperar minha volta...
Bela era a companheira do Beleléu. Beleléu era um cachorrão preto bonito, lustroso, pêlo
curto, orelhas caídas, que morava num sítio à beira-mar. Quando Beleléu ainda era pequeno, as
pessoas da casa ganharam um gatinho preto, o Birunga. Mesmo estilo do Meleca: magro, comprido,
malandrão. Identificou-se completamente com Beleléu, por causa da cor, e comia com ele, dormia
com ele, onde ia Beleléu ia Birunga atrás. Acontece que Beleléu gostava de água - em dias de muito
calor se jogava na piscina e ficava nadando. Pois era Beleléu na piscina, Birunga nadando atrás.
Isso durou tempos, era tão engraçado de ver que os donos estavam quase cobrando ingresso. Aí
Birunga virou um gato adulto, sentiu os primeiros frêmitos de paixão por uma gata, enfrentou
outros gatos e descobriu que gatos não nadam. Dali em diante, nos dias de calor Beleléu se jogava
na água e Birunga assistia, do alto de uma árvore, impávido e à sombra.
Gato pode ser muito estranho. Passei tempos numa casa de campo onde aparecia um Gato.
Preto e branco, persa, muito grande e peludo. Ficava me olhando no jardim. Não era um gato
convidativo, dos que deixam a gente chegar e fazer cafuné. Também não era um gato oferecido, dos
que vêm buscar o cafuné in loco. Era um Gato. Por isso eu também ficava na minha, deixando rolar.
Um dia Gato resolveu me acompanhar na caminhada. Achei o máximo! Dei o maior papo, fomos
ficando íntimos, ele já se esfregava em mim. Mas no dia seguinte começou a me embaralhar as
pernas. Ficava trançando ali no meio, não me deixava andar. E miava baixinho, rouco. Insistente.
Chato. Achei péssimo. Reclamei, já de mau humor. Pois não é que ele me mordeu? No calcanhar,
exatamente como os gatos mordem as gatas quando ficam putocos com elas. Achei aquilo muito
esquisito e corri para dentro de casa, feito uma gata. No dia seguinte ele estava de novo em seu
posto, na cerca-viva. Fingi que não vi. No terceiro dia, quando fui caminhar, dei de cara com ele
deitado no muro de uma casa. Olhando feio, abriu a boca e fez um rá enorme pra mim. Nunca mais
nos falamos.
Gatos.
Comecei a paquerar os da rua. Já que não tinha mais nenhum, tinha todos! Quando vendi
o Sitio curti essa novidade: não "tinha" mais aquelas árvores, portanto podia amar todas as árvores
do mundo. Com os gatos era a mesma coisa, qualquer um servia. Quando chegava na casa de
alguém que tinha gato, então, dava logo um jeito de botar no colo, passar a mão... Olhava bem para
todos os que encontrava, queria matar as saudades de ver gato subindo no muro, gato pulando, gato
correndo, gato deitado, gato dormindo, gato sentado, gato piscando, gato chegando, gato
enrodilhando...
Certa vez, em Campinas, vi uma coisa incrível. Estava procurando casa para alugar, minha
cunhada comigo, e encontramos uma ótima. Quando já íamos saindo deu-se que no quintal, ao lado
da porta da cozinha, tinha a casinha do gás, cujo topo formava um balcão. Pois bem: ali, em cima da
cerâmica, perfeitinho, estava o esqueleto de um gato enrodilhado. Tudo, centenas de ossinhos, sem
faltar um. Nossa interpretação foi mais ou menos óbvia - um escapamento de gás matou o gatinho
enquanto ele estava dormindo. O corpo se decompôs sem atrair ratos ou urubus, quem sabe só
formigas. Os vizinhos, que não eram muitos, não sentiram o mau cheiro. E não ficou sobre o
azulejo uma marca sequer de nada, só mesmo aqueles ossinhos que o vento não conseguiu levar.
Minha cunhada achou demoníaco. Tudo o que representa a morte assusta. Disse que, se
fosse eu, não alugava a casa. Aluguei. Uma semana depois o dono se arrependeu e ofereceu uma
indenização de três meses de aluguel para anularmos o contrato. Maluquice por maluquice, aceitei e
fui gastar noutro lugar.
Desta última vez foram uns dez anos sem gatos. Mas, como não há mal que sempre dure
nem bem que nunca acabe, agora já tenho de novo. Três! Um gato, uma gata e uma gatinha: Taichi,
Taichinha e Bilili. Um é pouco, dois é bom, três nem sei se conto...
Dentro adoram, pode ser gaveta, armário, cesta, saco de compras e principalmente caixa
de papelão; dentro redondo, então, é irresistível, mesmo que seja pirex ou embalagem de sushi
fora para tomar sol, paquerar passarinho, Sentir o vento passar no nariz trazendo histórias
nos cheiros
em cima dos guarda-roupas, das prateleiras de louça, da televisão com o rabo bem no
meio da tela, do monitor do micro, dos livros ou do jornal que a gente está lendo: dormem e fazem
charme
embaixo de cama, poltrona, sofá, colcha, tapete, para dar o bote quando a gente passa; e
do lençol, quando a gente quer arrumar a cama
perto de parapeitos, beirais, janelas e outros lugares que deixam a gente de coração na
mão
na gente de noite, quando faz frio: por cima e por baixo das cobertas, no meio das pernas,
no meio das costas, em cima da barriga, do lado do corpo, ninguém consegue mais se mexer:
humanos cercados de gatos por todos os lados
tomando banho em grupo, todo mundo lambendo todo mundo, com muita saliva, muito
som, as orelhinhas ficam encharcadas
no chuveiro vendo aquelas milhares de coisinhas brilhantes (1) se mexerem (2) fazendo
barulho (3): três coisas que gato ama
mordendo as perninhas traseiras da gata: o gato, quando quer que ela desocupe o lugar
correndo a mil pela casa, Tom e Jerry ao vivo e a cores, e ai dos vasos
comendo com os olhos os pombos que passeiam displicentemente debaixo do nariz deles
pelo lado de fora da rede
caçando passarinhos no oitavo andar, vitória que só um gato muito contemplativo, calmo,
concentrado e sortudo como Bigode consegue obter sem despencar lá embaixo
fascinados por baratas: uma delas rende duas horas e meia para três gatos. O jogo é uma
espécie de futebol em que a bola está viva. Termina quando acabam as pernas. Da barata.
Descobri que amava o Taichi quando ele despencou três andares e quebrou o colinho do
fêmur. Primeiro porque o susto foi muito grande: O gato caiu lá embaixo!, disse o Tonico entrando
pela sala de repente, e eu fui correndo procurar por ele no quintal do prédio. Trouxe, assustado mas
em ordem, só que mancando direto. Liguei para a Rita e ela mandou bater uma radiografia, lá fomos
nós com o gato para a clínica em plena noite. E o gato numa boa, lindo, interessado em tudo,
grilado só com o barulho dos carros no túnel. Difícil mesmo foi quando o veterinário disse quanto ia
custar a operação para tirar o pedacinho de osso.
Detalhe técnico: quebrou justamente a bolinha do colo do fêmur que dá sustentação à
bacia quando o gato precisa. Tirando o ossinho, a musculatura dos arredores faz a sustentação
sozinha. Não tirando o ossinho ele calcifica, incomoda, dói.
Era uma pequena fortuna.
Fiquei um tempinho bem pão-dura, achando que não ia operar. Que ficasse manco.
Mas de repente vi que dinheiro existe pata ser gasto nessas horas, e que eu faria qualquer
coisa para meu gatinho ficar bom. Só então soube o quanto amava o Taichi. E ele não ficou bom,
ficou ótimo, ninguém diz que tem um ossinho a menos, a não ser numa certa circunstância da qual
falaremos oportunamente se for o caso.
É uma delícia de gato. Parece tigre, aquele do Calvin, o Haroldo. Além de ser lindo e
forte, Taichi é bem-humorado, sedutor, deixa tudo. Totalmente fissurado numa passação de mão. E
numa comidinha. Quando não agüenta mais paquerar meu prato de longe, começa a chegar na mesa
das mais diversas formas. Às vezes é subitamente, aterrissando de um salto ao lado do prato, tipo
operação-muito-rápida-para-não-ensejar-reações; às vezes é pelas beiradas, emergindo das cadeiras,
insinuando-se por algum canto feito um... gato. Quando suas manobras falham uma ou duas vezes, a
tentativa seguinte tem uma lógica toda especial: ele sobe na beiradinha da mesa de costas, sem olhar
para mim, e deita. Como não está me vendo, finge que também não está sendo visto, então tudo
bem. E vai ocupando espaço, se espichando malandramente na direção do prato, até que de repente
vira a cabecinha para mim: Oi! Tudo bem por aí?
"Se você quer ser um novelista-psicológico e escrever sobre seres humanos, o melhor que
tem a fazer é manter um par de gatos." Foi dito por Aldous Huxley e explica o que fazem esses
gatos na minha vida: preparam meu futuro de romancista.
Taichi e Taichinha vieram pequenos, cabiam
os dois numa caixa de sapatos. Cresceram e um belo
dia Taichinha entrou no cio, ao que Taichi respondeu
com uma virilidade impetuosa que logo deixou a gata
barriguda, amorosa e ronronante: A mim restou
desocupar o gavetão inferior da cômoda para
acomodar uma bela cesta forrada que acolhesse a cria.
E tudo correu como era de se esperar: no dia D,
Taichinha esperou que eu chegasse em casa para
entrar em trabalhos.
Taichi acompanhou o parto de longe, em
cima do guarda-roupa, de onde podia ver tudo o que
se passava no gavetão. A gata lá se torcendo, miando
dores e depois lambendo diligentemente rebento após
rebento, o que incluía comer a placenta, que parece
um pedaço de fígado, e o gato impávido colosso lá em
cima, só olhando. A coisa se prolongou por algumas
horas, nasceram cinco filhotes e finalmente a gata se
acalmou. Estavam todos limpos, alimentados,
dormindo. Foi só então que Taichi desceu das alturas
e veio examinar aquilo de perto.
Examinou. Sua conclusão foi um rá enorme, rááááá, após o qual virou as costas e passou a
resmungar num tom horrível. Como se a raiva fervesse por dentro ocupando todo o seu corpo.
Abaladíssimo, saiu do quarto e foi espairecer na varanda.
Taichinha fez o quê? Levantou e foi atrás, lindinha, calma, elegante. Subiu ao parapeito,
onde ele estava, chegou juntinho, sentou olho no olho e aguardou. Ele abriu aquela boca toda,
rááááá, bem na cara dela, que nem piscou. Muito aborrecido, ele deu mais dois rás e saiu fora. Sons
cavernosos ressoavam nele, mostrando nitidamente um mal-estar profundo, mas Taichinha não se
abalou. Se expôs à raiva feito uma dama, suportando rás e fús com a maior serenidade, tipo quando
um não quer dois não brigam. E depois voltou ao cesto, onde os filhotes imediatamente começaram
a miar desmilingüidos procurando as tetas.
Taichi passou as semanas seguintes rosnando. De vez em quando dava uns tapas na cara
da Taichinha. No fim de um mês ela resolveu esconder a cria atrás do gavetão, que Taichi andava
rondando. Fiquei passada: ia repetir-se a história do gato mau?
A idéia de castrar o gato ficava mais insistente à medida que a hostilidade dele com os
filhotes ia aumentando. Um dia achamos que estava próxima a tragédia. E como de qualquer forma
não queríamos uma fábrica de gatinhos, o jeito foi levar Taichi ao veterinário para fazer a operação.
Na hora de tomar a anestesia ele ainda estava no meu colo, relaxado, numa boa, inocente das
amarguras da vida. O rapaz veio, anunciou a injeção e ato continuo espetou a agulha no gato, que
fincou os dentes no meu pulso.
Doeu muito. Mas também foi muito bom sentir aqueles dentes afundando na minha carne.
Amenizava a outra dor que eu estava sentindo.
O que sabem os gatos? Taichi, da primeira vez que caiu lá embaixo, três andares, voltou
mancando da pata traseira; tinha quebrado o colinho do fêmur. Teve que operar para tirar o pedaço
de osso e ficou a noite inteira na clínica. De manhã, quando fui buscar, ele estava muito frio, quase
gelado. Aos poucos, no meu colo, é que foi recuperando sua quenturinha. Tadinho do meu gato.
Quando caiu de novo, bem debaixo do meu nariz, o varal do vizinho do térreo aparou a
queda. Taichi subiu as escadas muito assustado, mas inteiro. Só o nariz espirrava um pouco, com
traços de sangue, que nem pude examinar direito porque ele se enfiou debaixo da cômoda e ficou lá,
inalcançável. Não parecia nada grave, e não era mesmo, tanto que dali a uma hora ele foi indo
devagarinho para a minha cama. Percebi que estava com frio, catei um cobertor e fiz um ninho, para
ele ficar bem quentinho dentro. Mas as gatas fizeram muito mais - Taichinha deitou todinha por
cima dele, enrolada, e Bilili, que tinha então uns três meses, deitou do lado e encostou o focinho no
dele. Assim passaram a noite inteira os três, apinhamento felino. De manhã Taichi já estava normal,
isto é, quentinho, comendo e com o nariz frio: três sinais de vida saudável no planeta gato.
O que querem os gatos? Sardinha. Galinha. Carne. Fígado. Ovas de peixe cruas. Ração de
lata. Manteiga, azeite e gorduras em geral. Restinhos do prato da gente. Abóbora cozida, inhame,
milho. Brotinhos de capim, folhinhas novas de capim-limão ou catnip, que eles comem com um
prazer notável. Barriga cheia, ai que sono! Um gato dormindo depois do almoço é pesado e
profundo como a morte.
Por que rasgam as poltronas? Não pense que é para afiar as unhas que o gato fica
arranhando móveis, tapetes, estofados e pernas do seu humano; é para espreguiçar os dedos. As
unhas, ele afia com os dentes. Além disso, segundo o livro Why cats paint, de Bush & Silver, Ten
Speed Press, Berkeley, California (onde mais?), os rasgões que alguns gatos fazem em sofás e
poltronas são uma forma deliberada de expressão estética. As fotos mostram dezenas de pinturas
feitas por gatos com tinta acrílica e os pincéis mais naturais do mundo - patinhas!, e são quadros
lindos. Cada foto de gato pintando vale dez, quinze mil dólares. Por isso, talvez seja bom você
comprar algumas tintas. E nem pense em reclamar de sofás dilacerados: de repente descobrem que o
autor é um gênio e o feliz humano do gato fica rico e famoso.
Nem sempre é divertido: cai aqui, põe rede de proteção nas varandas, não quer comer,
quer comer, controle de pulgas, agora a rinotraqueíte pegou Taichinha e depois Taichi: veterinário,
antibiótico, vitamina C, homeopatia e até florais, eles p da vida com tanta enfiação de coisa, eu
paciente e determinada: remédio em punho, goela abaixo, e tome polca. Mas tudo bem, passou a
febre, estão comendo. Viva o veterinário!
Outra coisa chata é ter que confinar os bichos em apartamento. Me consola pensar que
também eu estou confinada.
Mas difícil mesmo é entender as gatas. A cada dois ou três meses elas entram no cio;
sentem e expressam não exatamente seu amor pelos gatos, como qualquer observador pode
constatar, mas simplesmente o apelo biológico da reprodução. Segundo a Rita, gatas, camelas e
coelhas só ovulam quando copulam, por isso é que nossas felinas miam feito umas desesperadas
chamando o gato (que, no exemplo aqui da casa, é um raro caso de gato castrado que continua
cobrindo as gatas). O gato se aproxima, faz charme, detona gestos e sutilezas sonoras. A gata
também faz o maior charme, e lá pelas tantas o gato crau: segura ela pelo pescoço com os dentes e
monta. Aí é outro lero-lero - problemas de pontaria, ângulo, equilíbrio e até de concentração vão
fazendo com que a coisa se prolongue. De repente, ouve-se aquele miado fulminante: doeu!!! A
gata fica p da vida com o gato. Sai rapidinho, rosnando e fazendo rás e fús para ele; deita no
chão, lambe diligentemente as partes mimosas e começa a dar cambalhotinhas com ênfases
abdominais. O gato também se lambe e fica ali parado, como se nada tiveesse acontecido. Pois não
é que outro dia eu vi a Taichinha, nesse momento pós-tudo, interromper as cambalhotinhas,
caminhar até o Taichi e dar um tapa na cara dele?
Este livro é dedicado às pessoas com quem vivi e
vivo gatos em comum, e àquelas cujos bichos revivem aqui.
Dados para catalogação na fonte: H563g -Hirsch, Sonia, 1947 - Os gatos /Sonia Hirsch -
Rio de Janeiro : Hirsch : Mauad, 1996. 1. Hirsch, Sonia, 1947 - 2. Gatos. I. Título. 96-0777. CDD
869.98 CDU 869.0(81)-94 ISBN 85-85756-23-3. Copyright Sonia Hirsch 1996.
Este e outros livros de Sonia Hirsch podem ser pedidos pelos telefones (021)533-7422 e
220-4451 (também fax), ou de qualquer lugar do Brasil, gratuitamente, pelo 0800-116757.
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