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MAUS TRATOS: QUE INTERVENÇÃO

A ABORDAGEM DA PSICOLOGIA LEGAL

MAUS TRATOS: Que intervenção? – A Abordagem da Psicologia Legal


© Celeste Duque, Abril 2008 (celeste.duque@gmail.com)

“Disse-lhe várias vezes que era inadmissível, que eu vegetava


como uma pessoa quebrada e partida num calabouço.” Natascha
Kampusch

I – INTRODUÇÃO
Todos os homens e mulheres que constituem a nossa sociedade já foram um dia crianças. Através da
interacção com os outros foram vivendo a sua infância, adquirindo novas capacidades e passando por fases
de desenvolvimento essenciais para um desenrolar da adolescência e para um atingir a idade adulta.
Constata-se, no entnato, que algumas crianças não recebem da parte dos adultos responsáveis, os cuidados
necessários. Surgem, igualmente, situações em que as crianças são despojadas da sua dignidade e são
agredidas por adultos, resultando destas agressões graves consequências em termos de desenvolvimento,
chegando mesmo a ocorrer a morte.

Os maus tratos infantis são uma realidade que infelizmente continua a fazer parte do nosso quotidiano e
perante a qual é necessário actuar, destacando-se a este nível o papel fundamental que as equipas de
profissionais de saúde (psicólogos, médicos, enfermeiros, etc.), conjuntamente com professores, educadores
e entidades responsáveis pelo bem estar das crianças.

Ao longo deste artigo será apresentado o tema Maus tratos infantis de um modo geral, seguido de uma
referência aos vários tipos de maus tratos, à dimensão estatística desta realidade e ao papel do psicólogo na
prevenção, detecção e actuação perante esta situação.

A metodologia utilizada na realização deste trabalho consistiu em pesquisa bibliográfica e de internet por
palavra chave e apresentação de um Relatório de processo de denúncia de violação, verídico.

Termina-se com o computo geral e mais valias de exploração do tema, seguido das referências
bibliográficas que sustentaram e auxiliaram à realização do presente trabalho.

II – A CRIANÇA E OS MAUS TRATOS


A infância é o momento da nossa vida em que somos mais dependentes das pessoas que estão à nossa volta.
Dependemos de quem cuida de nós para obtermos alimentos, conforto, afecto, para descobrirmos o mundo
à nossa volta, em suma, para prosseguirmos o nosso desenvolvimento de uma forma natural. O bem estar da
criança influencia o modo como esta irá crescer, viver a sua adolescência e tornar-se adulta, pelo que deve
ser preocupação da sociedade em que vivemos proteger as crianças de qualquer agressão que as possa
atingir.

Contudo, um grave problema que afecta demasiadas crianças, no mundo, são os maus tratos e abandono. A
preocupação com as crianças maltratadas é algo recente, o que não é indicador de que só actualmente as
crianças sejam alvo destas agressões. Segundo Ferreira da Costa (1997), ao longo da história da infância a
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violência sobre as crianças tem estado presente sendo encarada pela sociedade como um mal necessário
para a sua educação.

Ao longo de vários séculos não foram atribuídos às crianças quaisquer direitos legais, pelo que maltratá-las
não constituía crime, sendo mesmo prática usual em algumas instituições e encarado como normal pela
sociedade dessa época. Ao voltar um pouco atrás no tempo verificamos que a utilização de castigos físicos
nas escolas como forma de correcção foi um prática vulgar, sendo encarada pela sociedade dessa época
como algo normal.

Ferreira da Costa (1997) refere igualmente que sempre têm existido crianças vítimas de maus tratos, de
explorações e de abandono, mas que a sociedade não se encontrava consciencializada de que o sofrimento
causado constituía uma crueldade e prejudicava gravemente o desenvolvimento das crianças. Foi ao longo
do século XX que o mundo infantil se tornou alvo de descoberta, permitindo teorizar o desenvolvimento, as
suas etapas e o contexto em que estas se devem processar. Certamente que desde sempre existiram pessoas
com capacidades para lidar com o mundo infantil, mas a generalidade das intervenções foram bastante
diferentes das que se adoptam na sociedade actual.

Presentemente o conceito de criança maltratada é muito mais vasto do que poderá inicialmente parecer.
Seabra Dinis (op. cit. Ferreira da Costa, 1997) refere que o conceito de criança maltratada deve depender do
risco em que essa criança é colocada e não unicamente do sofrimento físico a que é exposta. Assim
considera-se maltratar uma criança quando se a deixa ou se a coloca numa situação da qual possam resultar
riscos graves, os quais deveriam ser evitados pelos adultos responsáveis por essa criança. Este risco pode
ser físico ou psicológico.

Deste modo o conceito de maus tratos abrange os maus tratos físicos, os maus tratos psicológicos, os
abusos sexuais e o abandono ou negligência, seja esta nutricional, emocional, educacional, etc.

Segundo Opperman e Cassandra (2001), são cerca de três milhões, por ano, os casos notificados de crianças
maltratadas, sendo 1000 o número de crianças que morrem anualmente como consequência de negligência
ou mau trato nos Estados Unidos da América.

1. ASPECTOS CARACTERÍSTICOS DOS MAUS TRATOS


Os maus tratos físicos podem ser detectados pela presença de marcas no corpo da criança, dores intensas
causadas pelo traumatismo dos músculos e tecido subcutâneo, lesão cerebral ou dados radiológicos que
indiquem fracturas ou luxações recentes. Mais difícil de detectar são a negligência e os maus tratos
emocionais. Deve-se suspeitar quando a criança está mal nutrida, suja, vestindo roupas velhas ou
inadequadas para a estação do ano. Um dado a que se deve dar especial atenção e que indica maus tratos
emocionais é a relação do(s) progenitor(es) com a criança, se este agride verbalmente a criança ou a
diminui frequentemente em público. Um outro tipo de maus tratos de que as crianças são vítimas è o abuso
sexual. Para a detecção do mesmo é necessário um exame físico com uma inspecção cuidadosa onde se
procura sinais de penetração e de contacto genital. A presença de doenças venéreas na criança também é um
indicador de que podemos estar perante um abuso sexual. Nos sub-capítulos que se seguem é feita uma
referência mais pormenorizada aos diferentes tipos de maus tratos.

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A criança que é maltratada também apresenta comportamentos característicos que diferem dos
comportamentos de uma criança que não esteja sujeita a qualquer tipo de maus tratos. Continuando a seguir
as ideias expostas por Whaley e Wong (1985), por exemplo, uma criança agredida não mostra esperar dos
pais qualquer tipo de conforto perante a situação que a levou até ao hospital.

Esta criança, ao ser admitida no hospital, apresenta menos receio de pessoas estranhas do que é normal para
a sua idade e ajusta-se facilmente, fazendo amigos de uma forma quase imediata, mas utilizando pouca
selectividade ou preferências nas amizades estabelecidas. Segundo os mesmos autores, talvez as crianças
maltratadas, no intervalo entre os maus tratos recebam dos seus pais alguma atenção e afecto, pois é raro
uma criança denunciar os pais, de acordo com os autores anteriormente referidos, este facto talvez não se
justifique unicamente no medo de represálias mas também no facto de as crianças reconhecerem que ao
denunciar os pais poderão perder o pouco carinho que ainda recebem, sem saberem o que irá acontecer a
seguir e, é possível que sintam que mais vale “um pouquinho de amor(...) do que nenhum” (Whaley &
Wong, 1985) .

Mendes (1995), afirma que “os maus-tratos infantis são um problema multidimensional, e relacionado com
uma multiplicidade de factores, sendo um fenómeno universal, que ocorre em todas as culturas e
sociedades.” É urgente que a nossa sociedade se debruce sobre este assunto, no sentido de modificar esta
situação, melhorando a qualidade de vida daqueles que são mais frágeis e inocentes. O problema da criança
maltratada exige uma intervenção que, de acordo com a mesma autora, só poderá ser eficiente se for
interinstitucional e multidisciplinar, essencialmente ao nível dos cuidados antecipatórios, e de modo a
envolver toda a comunidade.

2. TIPOS DE MAUS TRATOS

2.1. Os maus tratos físicos


Os maus tratos físicos, sendo os mais facilmente reconhecíveis, poder-se-ão definir como a imposição de
danos físicos a uma criança, geralmente pelo seu responsável. Estas lesões têm um aspecto que se reveste
de diferente gravidade, onde se enquadram lesões mínimas até graves ou mesmos fatais. Frequentemente,
os abusos físicos são repetitivos e a sua gravidade tende a aumentar a cada investida.

Segundo Wong (1997, p. 381) a causa exacta de maus tratos físicos não é conhecida, no entanto, considera-
se que a interacção de vários factores aumenta o risco de maus tratos, nomeadamente as características das
crianças, as características dos pais e as características do ambiente.

Quanto às características dos pais de muitas crianças maltratadas têm-se constatado segundo Davis (1993):
• História passada de maus tratos em criança ou de rígidas punições;
• Dificuldade em lidar com situações de stress e de controlar a raiva e frustração;
• Famílias com uma socialização pobre onde predomina a falta de confiança nos outros, não existindo muitas
relações de suporte;
• Situações de alcoolismo, vício de drogas ou psicoses.

Quanto aos factores de risco infantis destacam-se:

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• Crianças menores com idade inferior a 3 anos pois são incapazes de se defender e não estão muito desenvolvidas
para corresponder a algumas expectativas dos pais;
• Crianças com temperamento difícil, teimosas, negativistas, hiperactivas;
• Lactentes prematuros os separados dos pais ao nascer devido ao não estabelecimento de vínculos de união entre
estas e os pais;
• Crianças com anomalias congénitas e doenças crónicas face à culpa e revoltas sentidas pelos pais;
• Filhos ilegítimos, indesejados ou até crianças adoptadas.

Quanto aos factores risco relacionados com o ambiente envolvente, Wong (1997, p. 382) refere: situações
de divórcio, pobreza, desemprego, más condições de moradia e mudanças frequentes. Embora a maioria dos
maus tratos advenha de populações com níveis socio-económicos inferiores, os maus tratos infantis são um
problema que abrange todos os níveis educacionais, sociais e económicos.

Numa tentativa de simplificação de apresentação desta temática, têm-se tentado agrupar as várias lesões, os
sinais e sintomas destas, o que poderá ser feito segundo diversos critérios.

2.1.1. Lesões superficiais ou cutâneas


Este tipo de maus tratos físicos inclui escoriações ou equimoses, feridas contusas, vergões, marcas deixadas
pelas mãos, dedos, unhas (arranhões), dentes (mordeduras), assim como por outros objectos como cordas,
laços, cintos, fivelas. Frequentemente, as lesões propositadas encontram-se nas costas, nádegas, braços,
coxa, peito, face, orelhas, mãos e pés. Em muitos exemplos consegue-se identificar o tipo de “arma”
utilizada pela apresentação superficial ou marca da lesão.

3.1.2. Queimaduras
As queimaduras, embora sejam geralmente acidentais, constituem uma prática comum de lesão abusiva
(Davis & Carrasco, 1993).

Quanto à etiologia, Reis (1993) refere que as queimaduras de causa térmica constituem as lesões mais
frequentes em crianças, logo seguidas das queimaduras de contacto com objecto sólidos quentes. Quanto à
incidência, o mesmo autor refere que esta é maior em crianças com menos de dois anos de idade mas que já
gatinham ou dão os primeiros passos.

As queimaduras mais frequentes entre as crianças, nomeadamente as térmicas, são definidas pelo autor
anteriormente citado, como queimar com líquido ou vapor quente, ou a imersão em água muito quente. Este
tipo de queimaduras, que muitas vezes são fatais, sucedem normalmente em infantários ou em casa, com
alimentos líquidos. Podem suceder também em face da queda de um recipiente com água muito quente ou
devido á imersão total ou parcial da criança no banho. Apesar destas lesões serem frequentemente
acidentais, por iniciativa da criança, também podem ser intencionais, o que poderá provocar lesões muito
extensas.

As queimaduras de contacto com as fontes de calor, normalmente com chamas, com gás doméstico, ou em
face de explosões são muitas vezes fatais.

Para além das queimaduras anteriormente citadas, ainda se constatam casos de queimaduras devido a
contacto com objectos sólidos aquecidos como fogões, ferros de engomar, radiadores; queimaduras

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eléctricas; queimaduras de cigarro que se acidentais são superficiais, mas quando intencionais são
circulares, profundas, múltiplas e com diâmetro entre 7 a 8 mm.

2.1.3. Lesões esqueléticas


As lesões esqueléticas, nomeadamente as fracturas ósseas constituem, segundo Reis (1993), 10 a 15% dos
casos de crianças maltratadas. Entre as estruturas atingidas destaca-se as costelas, o úmero, o fémur, a tíbia,
o crânio, o cúbito, o rádio e os maxilares.

Frequentemente, a queixa principal fractura é a irritabilidade sem explicação; às vezes não têm relação
nenhuma (por vezes vómitos, infecções das vias respiratórias superiores ou exantema) nem qualquer
história de lesão. Visto que a apresentação é geralmente retardada, as fracturas identificadas em radiografias
comumente apresentam já sinais de cura (formação de calo ósseo) (Davis, 1993).

Segundo o mesmo autor, existem dois sinais patognomónicos para o abuso. O primeiro é o das fracturas
múltiplas, não explicadas de várias idades, envolvendo os ossos longos e costelas de um bebé ou jovem que
tem de outra maneira, ossos normais. O segundo tipo de fractura patognomónica é chamada de lasca
metafisárica ou fractura em ângulo.

2.1.4. Traumatismos da cabeça


Este tipo de traumatismo constitui, segundo Reis (1993) a causa mais frequente de morbilidade e
mortalidade de crianças maltratadas. Este tipo de traumatismo pode atingir as partes moles como o couro
cabeludo ou face, ou a parte óssea do crânio ou maciço facial. Nestes traumatismos poder-se-ão associar
várias lesões como hematomas do couro cabeludo, equimoses peri-orbitárias, alopécias parciais e
hematomas epidurais.

2.1.5. Síndrome do bebé sacudido


Segundo Opperman e Cassandra (2001, p. 526) o síndrome do bebé sacudido constitui um tipo de maus
tratos físicos em que a criança é sacudida vigorosamente estando agarrada pelos braços ou ombros. Estas
crianças têm geralmente idade entre os 6 meses e um ano. Os sinais característicos do síndrome são a
hemorragia retiniana, a lesão intra-craniana e Davis (1993) cita até hematomas subdurais, sendo que os
sinais externos de traumatismos são mínimos. Segundo o autor anteriormente citado, um terço das crianças
afectadas sobrevive sem problemas, outro terço morre, e as restantes crianças sofrem lesões permanentes
como cegueira, paralisia deficiência mental e convulsões, sendo que, quando estas crianças são
transportadas para o Hospital, poderão apresentar convulsões inexplicadas, vómitos associados a letargia,
irritabilidade, bradicárdia, apneia, fontanelas proeminentes, hipotermia, atraso de crescimento e hemorragia
da retina.

2.1.6. Lesões abdominais ou torácicas


Segundo Davis (1993) as lesões abdominais e torácicas, embora sejam menos comuns que as lesões
anteriormente citadas, ocorrem em abuso infantil e podem ser muito graves. Tipicamente resultam de socos,
chutes aplicados com força ou pancadas contra a parede ou a mobília, sendo os achados externos
normalmente mínimos ou ausentes.

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Os principais tipos de patologia abdominal, segundo o mesmo autor, são hematomas duodenais, intestino
delgado e/ou rompimento mesentérico, contusões pancreáticas e renais e lacerações do fígado ou baço.

Os principais tipos de lesões torácicos propositais incluem contusões pulmonares e miocárdicas, lacerações
pulmonares e hemorragias do timo ou bubpleural.

2.1.7. Síndrome de Munchausen por Procuração (SMP)


Segundo Wong (1997) a SMP constitui um tipo de maus-tratos, geralmente físicos, mais incomuns e
surpreendentes, consistindo segundo Opperman e Cassandra (2001) na doença que o adulto induz na
criança ou na situação que provoca nesta e que ameaça a sua vida.

Segundo Wong (1997, p. 381) é geralmente a mãe que induz determinados sinais e sintomas de doença em
seu filho para chamar à atenção a equipa médica. Através destes sintomas ou da suposta doença da criança
os pais obtém normalmente atenção e até mesmo o apoio emocional da equipa médica (Opperman &
Cassandra, 2001, p. 527).

Os problemas normalmente observados na SMP podem assumir várias formas como a apneia, convulsões,
febre, bradicárdia, diarreia, vómitos, rush cutâneo, alergias e asma. Estes sintomas os sinais poderão ser
induzidos através das soluções salinas, laxantes, diuréticos, pela adição de sangue à urina, vómitos ou fezes
para alterar os resultados laboratoriais, ou a indução de apneia e bradicárdia tapando o nariz e a boca à
criança (Opperman & Cassandra, 2001, p. 527).

Os sinais de advertência quanto à SMP, segundo Wong, incluem:


• Doença inexplicada, prolongada, recorrente ou doença muito rara;
• Discrepância entre os dados clínicos e a história relatada;
• Doença que não responde ao tratamento;
• Sinais e sintomas que só se verificam na presença dos progenitores;
• Conhecimento relativamente aprofundados dos pais relativamente à doença dos filhos, procedimentos e
tratamentos que conferem credibilidade à história;
• Pais muito atentos à criança, recusando-se a deixar o hospital;
• Pais muito interessados em relacionar-se com a equipa médica;
• Familiares com sintomas semelhantes (1997, p. 381).

Normalmente as consequências para as crianças com SMP são graves o que poderá incluir a submissão a
procedimentos e tratamentos médicos desnecessários, o desenvolvimento de invalidez crónica ao aceitar
que estão doentes, poderão sofrer de traumas psicológicos intensos e desenvolver SMP aquando adultas
(Wong, 1997, p. 381). A intervenção a crianças com este síndrome inclui evitar que autor de maus tratos
visite a criança por algum tempo, promovendo a sua segurança, ao mesmo tempo que se analisa
cuidadosamente todas reacções e sintomas desta neste período.

2.2. Abuso sexual


“O Silêncio é a alma das Agressões Sexuais.”

Anna Salter

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A violência sexual é uma realidade e ocorre, infelizmente, com uma frequência demasiado elevada. Por
exemplo, veja-se o número de processos derivados de denúncia de violação, durante os meses de Janeiro a
Junho de 2006, recolhidos no Gabinete de Apoio à Vítima (APAV):

Quadro 1
Número de processos de denúncia de violação junto da APAV, entre os meses de Janeiro e Junho de 2006,
nas cidades de Lisboa, Porto e Faro
Localidade Nº de denúncias entre Janeiro e Junho de 2006
Lisboa 1597
Porto 608
Faro 120

E sabe-se que, por a vítima se sentir coagida muitos são os casos que não chegam a ser denunciados!

A violência sexual contra menores inclui a prática de abuso sexual de menores, lenocínio, violação ou
tráfico para fins de exploração sexual. Neste trabalho damos especial relevância à problemática do abuso
sexual de menores. Sendo que, na nossa cultura, o abuso sexual de menores é identificado em todas as
camadas sócio-económicas, independentemente do sexo, expressão sexual ou idade do menor.

A violência sexual de menores pode definir-se como uma actividade criminosa que constitui uma agressão
ao bem-estar do menor por meio de actos de cariz sexual efectuados por um adulto contra uma criança e
tipificados como crime. Este tipo de acto pode ser esporádico ou contínuo, visando a estimulação e
satisfação sexual do adulto, podendo acarretar consequências negativas a nível psicológico, físico e
psicossocial para a criança. O abuso sexual é um dos tipos mais devastadores de maus tratos infantis, e as
estimativas actuais indicam que aumentaram significativamente durante a última década. O abuso sexual
infantil poderá ser definido como o envolvimento de crianças e adolescentes, mentalmente imaturos e
dependentes, em actividades sexuais que não compreendem verdadeiramente, e para as quais são incapazes
de dar o seu consentimento, violando assim tabus sociais ou papéis familiares (Wong, 1997).

Entre os sintomas incluem-se traumas locais, por exemplo, ferimentos perineais, desfloramento vaginal,
dores, hemorragia anal e uretrite recidivante. Os efeitos emocionais podem apresentar perda de
concentração, enurese, encoprese, anorexia e para-suicídio. As alterações do comportamento são também
importantes. A criança pode exibir uma conduta sexualizada ou conhecimento sexual, inadequado, contudo,
tal conduta pode ser derivada da observação de outras ou, ainda, de filmes pornográficos (Meehan, 1991).

O abuso sexual é difícil de identificar. Normalmente, não é uma hipótese considerada por quem examina a
criança, por ser um assunto tabu, que a própria família pretende encobrir. A participação às autoridades, só
é feita, habitualmente, em casos de gravidez ou denúncia por parentes ou vizinhos do agregado em que se
situa a vítima. Raramente é a própria vítima a divulgar o abuso à mãe, amigas ou outros e não o faz,
temerosa das acções de represália por pressões e ameaças do elemento activo, interessado em esconder a
situação (Reis, 1993). No entanto, as declarações feitas por crianças que sofreram abuso sexual devem ser
tomadas a sério e, se possível, registadas. Os relacionamentos familiares deformados e exploração sexual
podem levar a tendências manipulativas e a condutas desordeiras, disfunções sexuais e falta de auto
confiança na idade adulta (Meehan, 1991).

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As características a encontrar entre os pais “abusadores” podem ser muitas e variadas, e incluem falta de
auto respeito, sentimentos de incompetência face ao seu papel de pais e sentimentos de insignificância ou
indignidade. Têm invariavelmente atitudes irrealistas e esperanças nos filhos, pouco se importando com as
suas necessidades e capacidades. Podem ter uma grande necessidade de se sentirem queridos e amados, mas
um sentimento de rejeição pode aparecer quando o amor é óbvio (Meehan, 1991).

Bowles identifica os seguintes factores de risco relativamente ao abuso sexual infantil: pequenos
rendimentos, ou constantes mudanças de emprego, sem esquecer os pais que foram, eles próprios, alvos de
maus tratos infantis (op. cit. Meehan, 1991).

Na maioria dos casos de incesto, envolvendo pais e filhas, as relações sexuais começam gradualmente sem
qualquer violência. Trata-se, geralmente de pais imaturos, com tendência para o alcoolismo, ou alcoólicos,
sem capacidade para arranjar relações extra matrimoniais ou psicopatas que vão em busca de uma
gratificação sexual, enquanto que a filha procura ou pensa encontrar ternura, afeição ou cuidados especiais.
Também as mães destas crianças sofrem geralmente de depressões, mantendo-se indisponíveis para o
marido, não só devido a doença, ao seu estado depressivo, como o cansaço físico, devido a excesso de
trabalho ou a fraqueza constitucional, elas próprias muitas vezes, ex-vítimas de abuso sexual quando
crianças (Reis, 1993).

Segundo Reis, 1993, existem várias formas de se processar o abuso sexual:


• Molestação: toque nos orgãos sexuais, quer pelo molestante quer pela criança, isolada ou mutuamente;
• Relações sexuais: penetração ou tentativa de penetração vaginal, oral ou anal, sem tentativa de estupro. Em menos
de 10% é tentetiva de estupro ou relação forçada, relacionada com violação por familiares;
• Exibicionismo: exposição dos genitais por um homem ou mulher adulta a crianças.

Mas Wong (1997), apresenta outras formas de abuso sexual infantil:


• Pornografia infantil: promover e fotografar em qualquer meio actos sexuais envolvendo crianças, sozinhas ou
com adultos ou animais, independentemente do consentimento pelo responsável legal da criança; também pode
designar distribuição deste material de qualquer forma com ou semi lucro;
• Prostituição infantil: envolvimento de crianças em actos sexuais para lucro e geralmente com vários parceiros;
• Pedofilia: literalmente significa “amor à criança” e não designa um tipo de actividade sexual, mas sim a
preferência de um adulto por crianças pré-puberes, como uma forma de alcançar a excitação sexual.

O abuso sexual é talvez o último tabu da humanidade.

Segundo Cordeiro (s/d) “enganam-se os que pensam tratar-se de um assunto facilmente resolúvel, com
legislação ou intervenção profissional - este problema tem as suas raízes nos recônditos mais profundos da
condição humana, na complexidade mais terrível dos comportamentos.”

Actualmente, e apesar da revisão de 1998, o Código Penal continua a estabelecer que até aos 16 anos de
idade, os crimes sexuais devem ser denunciados ao Ministério Público pelos representantes legais (crime
semipúblico). Só a partir dos 16 anos pode ser o próprio a queixar-se (Cordeiro, s/d).

Segundo Meehan (1991) têm estado a ser tomadas medidas para a melhoria das condições e das vidas das
crianças, em todo o mundo. Em 1989, as Nações Unidas procederam à revisão da Declaração dos Direitos
das Crianças de 1959; este novo documento propõe que todas as crianças, independentemente da raça,
circunstância ou religião, tenham direito a direitos básicos, o que inclui:

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• Direito a uma educação livre;


• Direito a uma nacionalidade e a um nome;
• As crianças deficientes devem ter direito a condições especiais;
• Direito a não serem separadas das suas mães;
• Direito de serem ouvidas;
• Direito de serem protegidas contra a crueldade, negligência e perigos.

2.3. Abuso por negligência e abandono


A negligência nos cuidados prestados à criança e o abandono podem causar graves danos às crianças,
incluindo a morte. Contudo, de acordo com Davis e Zitelli (1993) este é o tipo de maus tratos mais comum,
sendo responsável por mais de 50% dos casos em cada ano.

Registam-se várias formas de negligência, as quais podem ir desde uma falta de vigilância da criança
pequena que fica assim sujeita a maiores riscos e intoxicações, até aos casos em que a criança apresenta
atraso de crescimento e de desenvolvimento devido a uma alimentação inadequada ou mesmo ineficaz.

De um modo geral, a criança é alimentada irregular ou ineficazmente, é lhe dada pouca atenção e não lhe
são prestados alguns cuidados básicos. Podem ainda suceder casos em que a ansiedade e depressão
maternas são como que assimiladas pela criança ainda bebé que virá a desenvolver uma anorexia
secundária e distúrbios intestinais.

Nieto (1986) afirma que a negligência implica uma falha dos pais ou educadores no que diz respeito a
actuar devidamente no sentido de garantir a segurança da criança, a sua protecção e bem estar, envolvendo
variadas manifestações, como não proporcionar à criança a alimentação que esta necessita, a falta de
cuidados médicos ou a ausência de uma adequada protecção da criança contra riscos físicos e sociais.

Segundo Meehan (1991) existem situações em que a criança surge intoxicada devido a negligência,
podendo a intoxicação advir de dois tipos de negligência. Uma intencional, em que podem ser incluídas a
administração de doses elevadas de medicação à criança (por exemplo nos casos de doenças crónicas) e a
tentativa de iniciação de narcóticos em crianças (por exemplo a distribuição de chocolates impregnados de
narcóticos à porta das escolas). E outra acidental, em que a criança ingere produtos tóxicos sem que os seus
pais ou responsáveis pela sua educação o notem, devido a uma vigilância inadequada.

A mesma autora assinala também a negligência emocional. Neste tipo de negligência, os ralhos constantes
que diminuem a auto-estima da criança e a falta de carinho e afecto essenciais para o desenvolvimento
emocional da criança levem a uma perturbação do desenvolvimento psicossocial com graves consequências
sobre a personalidade e inserção social da criança.

Os cuidados médicos de que a criança necessita também são muitas vezes descorados. Alguns pais e
responsáveis pelas crianças falham no que diz respeito à sua vigilância médica. Algumas crianças que
necessitam de cuidados médicos especiais e cujas famílias não possuem meios económicos suficientes para
fazer face a essa sobrecarga económica, correm o risco de ficar privadas dessa medicação devido às
dificuldades financeiras ou de serem abandonadas no próprio hospital. Outras vezes, especialmente quando
ocorre negligência intencional, os responsáveis pela criança constróem um síndroma (Síndrome de

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Münchausen) fictício, que pode conduzir a exames clínicos repetidos e internamentos desnecessários, os
quais nem sempre são inócuos e as medicações desnecessárias podem ser perigosas para a criança.

Outro tipo de negligência que afecta muitas crianças é a negligência alimentar. Esta negligência consiste
em não proporcionar à criança os alimentos necessários. Uma subnutrição, segundo Meehan (1991) pode
originar alterações orgânicas graves, cujas consequências englobam sequelas a longo prazo, por falta de
desenvolvimento estaturo-ponderal e psicomotoras. Este tipo de negligência pode surgir devido situações
de fome endémica, situações de ignorância por falta de cultura, situações de dificuldades económicas,
situações de incapacidade mental dos responsáveis pela criança e também as situações de abandono e de
falta de afectividade que geralmente se fazem acompanhar de negligências a outros níveis (carência de
cuidados básicos, higiene, tratamentos médicos, etc.).

Nieto (1986) defende ser fundamental uma educação que permita aos pais uma adequada compreensão de
quais as necessidades alimentares da criança nas diferentes idades, pois o desconhecimento das
necessidades alimentares da criança durante o primeiro ano de vida e o modo como a sua alimentação irá
influenciar o seu desenvolvimento psicofísico, não se encontra unicamente nos meios mais desfavorecidos.

A negligência nos cuidados de protecção contra riscos físicos ou sociais é o tipo de negligência em que os
progenitores não exercem adequadamente a sua função de protecção e supervisão da criança, ficando esta
exposta a diversos perigos.

O tipo de negligência que envolve qualquer um dos descritos anteriormente é o abandono. Nesta situação a
criança é deixada à sua sorte e exposta a inúmeros perigos, dos quais podem resultar várias e graves
sequelas, havendo mesmo o risco de vida.

Indo de encontro ao pressuposto por Davis e Zitelli os factores de risco para que suceda este tipo de maus
tratos, para além dos referidos anteriormente para os maus tratos de um modo geral, são:
• O facto de a maioria destas crianças não terem sido desejadas e de suas mães terem procurado pouca ou nenhuma
assistência pré-natal;
• O facto de as mães destas crianças terem mais tendência a estar deprimidas ou mentalmente perturbadas e de
terem dificuldade em cuidar de outras crianças que já têm;
• Na última década a incidência do uso de drogas têm-se tornado num factor predisponente;
• Os pais destas crianças não aparentam estar preocupados com o seu atraso de crescimento, recorrendo ao hospital
por outras razões menos significativas;
• É frequente existirem contradições na história da alimentação, podendo o responsável pela criança dizer que a
criança habitualmente come determinada quantidade e pouco tempo depois já altera essa versão.

Esta forma de maus tratos é difícil de detectar precocemente e também de denunciar às autoridades
competentes. E no entanto, estas falhas dos responsáveis pelas crianças em actuar devidamente para
promover e garantir a segurança, protecção e bem estar da criança na sua integridade total (englobando
cuidados de higiene, de saúde, alimentação, carinho, afecto...), podem deixar sequelas a longo prazo e
chegam mesmo a por em risco a vida das crianças.

2.4. Maus tratos psicológicos


Segundo Pinheiro de Melo (1995) os maus tratos infantis são predominantemente considerados nos meios
sócio-económicos mais desfavorecidos e referem-se essencialmente a agressões físicas mas, nas sociedades
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actuais, surge cada vez em maior crescimento um outro tipo de mau trato predominante nos meios sócio-
económicos mais favorecidos e que se revela principalmente no foro psicológico.

O mau trato psicológico a crianças e jovens, consiste em actos ou omissões, praticados individualmente ou
em grupo, que podem ser considerados susceptíveis de causar dano psicológico. O agressor é sempre
alguém que se encontra numa situação de maior poder, face à vulnerabilidade do agredido.

Este tipo de maus tratos podem ter efeitos imediatos ou retardados, com alterações no desenvolvimento
físico, afectivo e emocional da criança.

Existem cinco formas de mau trato psicológico: a rejeição, o isolamento, a corrupção, a sujeição ao terror e
o ignorar a criança, que serão seguidamente abordados de modo mais especifico.
• Rejeição – muitas vezes os pais tendem a ser demasiado exigentes com os filhos e quando estes não alcançam os
objectivos pretendidos pelos pais, são muitas vezes apelidados de “burro”, ou acusados de não saber fazer nada. É
exigido à criança um comportamento de adulto ou que eles sejam capazes de concretizar as expectativas que eles
próprios não foram capazes de atingir.
• Isolamento – caracteriza-se pela falta de comunicação entre os familiares e a criança. A falta de disponibilidade
dos membros das famílias de estrato sócio-económico mais elevado, leva a que não seja dada a atenção devida às
crianças, não existindo tempo para demonstrações de carinho e afecto ou simplesmente para ouvir a criança. A
criança não se sente amada e tem tendência a isolar-se no seu próprio mundo, refugiando-se no seu quarto ou
simplesmente manifestando a sua tristeza.
• Corrupção – este tipo de mau trato consiste especialmente no suborno da criança, sendo esta educada a conseguir
fazer algo por meio de recompensas. Os comportamentos das crianças são induzidos de forma não espontânea,
uma vez que as suas atitudes não são tomadas por si, mas incutidas pelos pais, muitas vezes com o objectivo de
que a criança tenha atitudes mais adultas face a determinadas situações. Este tipo de mau trato inclui todas as
formas de desonestidade, perversão e depravação para com a criança.
• Sujeição ao terror – a criança é dominada pela manipulação dos seus medos. São feitas chantagens em função dos
temores da criança, ameaçando-a, aterrorizando-a e levando-a a ter comportamentos pretendidos pelos pais.
Muitas vezes a nível escolar, a exigência dos pais, colocam na criança um nível de stress e medo tão elevado que
a criança não consegue atingir os objectivos, ficando de tal modo assustada em comunicar resultados menos bons
que esta começa a mentir e a esquivar-se de dar a resposta.
• Ignorar a criança – este tipo de mau trato consiste em não valorizar ou em desvalorizar o que a criança faz ou o
que ela necessita para que o seu desenvolvimento se processe do modo mais adequado. Inclui-se neste tipo de
maus tratos, os pais que não dão atenção à criança, quer voluntariamente, quer quando são solicitados por ela,
ignorando-a pura e simplesmente.

3. INTERVENÇÃO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE


O contacto com crianças maltratadas constitui um desafio para os profissionais que exercem a sua
actividade em contexto de saúde face à situação envolvente. Cuidar dessa crianças implica um árduo
trabalho de equipa. Por exemplo, a intervenção do técnico de enfermagem é fundamental dado o vasto
campo de actuação destes profissionais aos três níveis de actuação (Fonseca, 1999, p. 251) sendo, não raras
vezes estes técnicos que detectam e re-encaminham precocemente os casos de maus tratos infantis.

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3.1. Comportamentos e reacções da criança maltrarada


O reconhecimento de maus tratos ou negligência exige uma familiaridade com sinais físicos e
comportamentos ou reacções sugestivos de maus tratos. No entanto, não existe indicador que permita
diagnosticar os maus tratos, existem sim padrões ou combinações de factores que podem levantar a suspeita
de maus tratos (Wong, 1997, p. 383). Para além dos aspectos já citados, é também fundamental conhecer a
individualidade da criança inserindo-a sempre num contexto socio-cultural pois o que aparentemente pode
corresponder a um padrão de comportamentos e manifestações de maus tratos pode, no entanto, estar
relacionado com a história clínica da criança ou com alguns aspectos culturais referentes à sociedade onde
está inserida.

Os comportamentos ou reacções das crianças aos maus tratos são variáveis, pois apesar de dependerem dos
factores expostos anteriormente, dependem também do tipo de maus tratos instituídos.

Relativamente aos maus tratos por negligência física têm-se constatado as seguintes reacções em crianças:
• Apatia, inactividade ou excessiva sonolência;
• Comportamentos auto estimulatórios como sucção no dedo;
• Furto de comida ou implorando por comida;
• Falta às aulas;
• Vandalismo ou furto em lojas.

Relativamente aos maus tratos emocionais têm-se constatado as seguintes reacções em crianças segundo
Wong (1997, p. 381) e Thompson e Ashwill (1996):
• Comportamentos auto estimulatórios como morder sugar, balancear;
• É exigente, difícil, provocando confusão frequentemente;
• Evita as pessoas, é tímida , suporta actos ou palavras desagradáveis sem protestar;
• Atrasos no desenvolvimento físico, emocional e intelectual principalmente da linguagem;

Relativamente aos maus tratos físicos têm-se constatado as seguintes reacções das crianças, ainda segundo
estes autores:
• É desagradável causando problemas frequentemente, desobediente, de difícil convivência e exigente
• É tímida, evita as pessoas inclusive crianças, não protesta aos actos e palavras;
• Contacto físico com adultos muito cuidadoso;
• Medo aparente dos pais ou de retornar a casa quando estes são os agressores;
• Reacções impróprias à lesão como não chorar por dor e ausência de reacção a eventos amedrontadores;
• Relações superficiais, amizades e exibições de afecto indiscriminadas (Wong, 1997, p. 381; Thompson &
Ashwill, 1996).

Wong (1997, p. 381) e Thompson e Ashwill (1996), relativamente aos maus tratos por abuso sexual
afirmam que se tem vindo a constatar as seguintes reacções em:
• Surgimento súbito de problemas sexualmente relacionados (masturbação excessiva ou em público, brincadeiras
sexuais não condizentes com a idade, comportamento excessivamente sedutor);
• Adopta comportamentos fantasiosos;
• Isolamento social, desenvolvimento de depressão profunda;
• Mau relacionamento com colegas;

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• Ansiedade súbita, agressão e hostilidade;


• Ira contra o progenitor que não a protege do progenitor agressor;
• Início súbito de fobias e medos (medo do escuro, de pessoas ou locais estranhos);
• Declínio do desempenho escolar;
• Fuga de casa.

Segundo Wong (1997, p. 386) os principais objectivos da assistência por exemplo em termos de cuidados
de enfermagem à criança maltratada são:
• Proteger a criança maltratada de maus tratos adicionais;
• Fornecer à criança e família apoio adequado;
• Preparar a criança hospitalizada e família para a alta;
• Prevenir os maus tratos.

4. A ABORDAGEM DA PSICOLOGIA LEGAL


Antes de mais verifica-se a necessidade de especificar o que se entende por Psicologia Legal, vulgarmente
designada de Psicologia criminal ou, ainda, de Psicologia Forense.

4.1. O que é a Psicologia Legal?


A Psicologia Legal, consiste na aplicação dos conhecimentos psicológicos ao serviço do Direito. Dedica-se
à protecção da sociedade e à defesa dos direitos do cidadão, através da perspectiva psicológica.

Este ramo da psicologia restringe-se às situações que se apresentam nos tribunais. Deste modo, a psicologia
legal encontra a sua área de actividade em todos os casos psicológicos que podem surgir em contexto de
tribunal. Dedican-se ao estudo do comportamento criminoso.

Clinicamente, tenta construir o percurso de vida do indivíduo criminoso e todos os processos psicológicos
que o possam ter conduzido à criminalidade, tentando descobrir a raiz do problema, uma vez que só assim
se pode partir à descoberta da solução. Descobrindo as causas das desordens tanto mentais como
comportamentais, também se pode determinar uma pena justa, tendo em conta que estes casos são muito
particulares e assim devem ser tratados em Tribunal.

Esta ciência nasceu da necessidade de legislação apropriada para os casos dos indivíduos considerados
doentes mentais e que tenham cometido actos criminosos (pequenos ou graves delitos). A doença mental
tem de ser encarada a partir de uma perspectiva clínica mas também do ponto de vista jurídico.

A psicologia criminal realiza estudos psicológicos de alguns dos tipos mais comuns de delinquentes e dos
criminosos em geral, como por exemplo, dos psicopatas que ficaram na história. De facto, a investigação
psicológica desta área da psicologia apresenta, sobretudo, trabalhos sobre homicídios e crimes sexuais,
talvez devido à sua índole grave mas, paradoxalmente, fascinante.

4.1.2. O que é a Criminologia?


A criminologia é uma ciência empírica que se ocupa do crime, do delinquente, da vítima e do controle
social dos delitos. Baseia-se na observação, nos factos e na prática, mais que em opiniões e argumentos, é

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interdisciplinar e, por sua vez, formada por uma série de ciências e disciplinas, tais como a biologia, a
psicopatologia, a sociologia, política, etc.

Quando nasceu, a criminologia tentava explicar a origem da delinquência, utilizando o método das ciências
o esquema causal e explicativo, ou seja, procurava a causa do efeito produzido. Pensou-se que erradicando
a causa se eliminaria o efeito, como se fosse suficiente fechar as maternidades para o controle da
natalidade.

Academicamente a Criminologia começa em 1876 com a publicação de "L'Uomo Delinquente", obra de


Cesare Lombroso, cuja tese principal era a de que o delinquente já nascia delinquente, isto é, o delinquente
nacto.

Já existiram várias orientações causais em criminologia. Vejamos o que dizem, a esse propósito, Rousseau
e Lombroso:
• Rousseau ! criminologia deveria procurar a causa do delito na sociedade.
• Lombroso ! para erradicar o crime deveria encontrar-se a possível causa no próprio criminoso e não no meio que
o rodeia.

Tanto as orientações sociológicas, como as orgânicas fracassaram, por isso, hoje em dia fala-se no elemento
bio-psico-social, e o indivíduo é analisado na sua perspectiva holística (como um todo, formado por uma
enorme diversidade de partes).

Retomam importância os estudos de endocrinologia, que associam a agressividade do delinquente à


testosterona, os estudos de genética ao tentar identificar no genoma humano um possível "gene da
criminalidade", juntamente com os transtornos da violência urbana, de guerra, da fome, etc.

De qualquer forma, a criminologia transita pelas teorias que buscam analisar o crime, a criminalidade, o
criminoso e a vítima. Passa pela sociologia, pela psicopatologia, psicologia, religião (nos casos de crimes
satânicos), antropologia, política, enfim, a criminologia habita o Universo da acção humana. Sendo que,
neste trabalho interessa a perspectiva da criminologia que diz respeito à psiquiatria.

4.2. Factores que predispõem aos maus tratos


Como já foi afirmado anteriormente e em jeito de síntese, cabe aos psicólogos que actuam na área da
psicologia criminal ou legal o delinear do perfil do abusador, mas também da vítima e a adequação de
intervenção psicológica junto de ambos. Vejamos então quais os factores que predispõem aos maus tratos,
nomeadamente por violação.

Os desvios sexuais estão divididos em dois grupos: as disfunções sexuais e as parafilias. O primeiro grupo é
caracterizado por inibições do desejo sexual ou mudanças psicofisiologias, que caracterizam um ciclo de
resposta sexual; o segundo grupo é caracterizado por uma excitação em resposta a objectos sexuais ou a
situações que não fazem parte dos padrões de normalidade da actividade sexual. Existem ainda, outros
desvios sexuais que não estão inseridos em nenhum dos grupos referidos.

As parafilias decorrem de alterações psicológicas durante as fases iniciais do crescimento e


desenvolvimento da pessoa e são atitudes sexuais diferentes das permitidas pela sociedade, sendo que as
pessoas que as praticam não têm actividade sexual normal, ou seja, a sua preferência sexual "desviada"

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torna-se exclusiva, visto que exclui o normal. Só são consideradas doenças quando forem a única forma de
sexualidade do indivíduo, e que a tentativa dele em recorrer a outras formas de sexualidade para obter
prazer sexual geralmente serão fracassadas, o que levará a pessoa a continuar insistindo na mesma atitude.
No entanto, as pessoas parafílicas podem ter dois ou mais tipos de parafilias ao mesmo tempo. Estas são
praticadas por uma pequena percentagem da população, mas como essas pessoas cometem atitudes
parafílicas com muita frequência e repetição, existe um grande número de vítimas. Os tipos de parafilia são:
Exibicionismo, Fetichismo, Fetichismo transvéstico, Froutterismo, Pedofilia, Masoquismo e sadismo
sexual, Voyerismo. Em geral, as perversões sexuais são mais comummente vistas em homens, e o tipo de
parafilia mais comum é a pedofilia.

Whaley e Wong (1985) afirmam que se desconhece a causa exacta que desencadeia os maus tratos infantis,
mas que as crianças maltratadas, os agressores e o ambiente onde decorre a agressão têm determinadas
características. Embora nenhum agressor seja exactamente igual a outro ou nenhuma criança agredida seja
exactamente igual a outra, existem alguns factores comuns que podem facilitar a identificação dos casos de
maus tratos a crianças. O mesmo sucede com o ambiente em que estas crianças vivem.

4.2.1. Perfil do agressor


Não existe propriamente um perfil rígido de características que permitam identificar um agressor sexual de
menores, sendo este, portanto, um adulto que pratica crimes de natureza sexual contra menores de idade.

Na maioria dos casos, o agressor tem consciência dos seus actos e planeia o seu envolvimento com a
criança. Utiliza estratégias concretas para o realizar, para se aproximar, garantir que não será denunciado e
que a relação continuará.

Algumas destas estratégias são:


• Proximidade afectiva, de confiança ou de familiaridade (o agressor tranquiliza a criança, inventando desculpas
para o que lhe pretende fazer);
• Recurso ao engano (facilmente o agressor engana a criança com significados distorcidos da realidade);
• Atenção dada a uma criança carente (o agressor facilmente manipula a criança emocionalmente carente, podendo
por exemplo, conversar atentamente com ela, dar-lhe abraços e beijos, entre os quais vai introduzindo actos de
cariz sexual, etc.);
• Oferta de recompensas ou prémios em troca do seu silêncio ou até para que esta julgue que receberá um prémio
cada vez que ocorrer um encontro com o agressor; a ameaça de castigos, os quais podem envolver directamente a
criança (por exemplo, ameaçar bater-lhe, deixá-la sem comer, não a deixar brincar com os amigos, etc.) ou seus
familiares;
• Aproveitar-se da confusão da criança, podendo misturar gestos comuns e toques corporais de afecto com carícias
sexuais, confundindo a criança sobre o significado de uns e outros; o recurso à surpresa;
• Uso do poder psicológico e da agressão emocional, introduzindo ou precipitando-lhe um grande sofrimento
emocional, criando um contexto favorável sua maior liberdade de a usar para sua satisfação sexual;
• Recurso ao segredo, quer por uma via “positiva” (dizendo-lhe para não contar a ninguém a relação especial de
amizade ou cumplicidade que tem apenas com ela, para que a criança se sinta precocemente introduzida no
mundo dos adultos, se sinta amada e guarde segredo, quer por uma via “negativa” recorrendo à indução do medo,
da vergonha e da culpa na criança, tal como ameaça de castigos ou represálias para mantê-la sob controlo;
• Rapto e o desaparecimento, podendo o agressor raptar a criança fazendo-a desaparecer da sua vida normal; o
sequestro e a escravatura, o agressor pode manter a criança sequestrada, para que não se escape ao seu controlo e

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o denuncie. Podendo, em lugar fechado e vigiado, fazer dela sua prisioneira, sobretudo enquanto não atingir a
vida adulta.

Uma das características que se encontra presente em muitos agressores consiste na educação que estes
tiveram quando eram crianças. Grande parte das pessoas que maltratam os filhos também foram vítimas de
maus tratos na sua infância. Foi-lhes incutido que nunca se encontravam à altura daquilo que os seus pais
esperavam deles, por mais esforço que fizessem para o conseguir. Por conseguinte, desenvolveram
sentimentos de depressão, inferioridade e isolamento, acreditando que nunca conseguiam servir para nada e
que os maus tratos que recebiam eram merecidos. A auto-imagem que estes agressores criaram de si
mesmos é precária e conduziu a uma baixa auto-estima. Estas pessoas carecem de estreitos vínculos
afectivos, sentindo-se por vezes alheios aos seus filhos e transferindo para eles a convicção de que a
punição é o modo destes procederem de acordo com as expectativas criadas pelos pais.

Uma outra característica dos agressores consiste na sua falta de conhecimentos em relação às capacidades e
ao desenvolvimento de uma criança. Tal como os seus pais tinham um fraco conhecimento em relação às
suas capacidades e necessidades enquanto eles eram crianças, uma vez que exigiam deles demasiado,
também eles tem poucos conhecimentos sobre como tratar de crianças, não tendo por vezes noção de que
uma criança tem necessidades nutricionais e de afecto especiais, que são diferentes das do adulto. Do
mesmo modo a criança não consegue desempenhar determinadas tarefas, tais como cuidar dos irmãos
lactentes quando a criança tem apenas 4 ou 5 anos ou proteger-se dos perigos que possam existir à sua
volta, do mesmo modo que os adultos. Em vez de terem a noção de que a criança necessita de protecção e
de cuidados emocionais esperam que esta tenha capacidades para cuidar deles e para lhes dar carinho e
atenção. Quando a criança não o consegue fazer recorrem à agressão, como forma de aliviar frustrações e
ansiedades.

Estes indivíduos, tal como referem Whaley e Wong , “nunca dominaram a tarefa de desenvolver
confiança”, não conseguindo obter satisfação e prazer dos seus relacionamentos com os outros. Num acto
de compensar estas necessidades insatisfeitas, “eles procuram gratificação num parceiro, que pode ser o
abusador ou quem tolera os maus tratos, não interferindo”.

Quando os pais descobrem que a sua filha ou o seu filho foi vítima de violência sexual podem ter reacções
muito diversas dependo especialmente do contexto em que tal ocorreu. Entre outros, destacam-se os
aspectos gerais no âmbito da descoberta dos pais da situação sexual com seus filhos: drama, após esta
descoberta é para os pais um acontecimento terrível, podendo os momentos seguintes serem de crise; desejo
de vingança; desconforto; sentimento de abandono e desamparo; desespero; desconfiança em relação à
intervenção; afectação geral da vida; desafio inevitável; exigência de sobrevivência; mudança relacional;
sentimento de culpa; grande ruptura; maior união familiar; sentimento de insegurança; luto; lembrança
persistente; assunto difícil; ansiedade; perigo de precipitação; momento importante do diálogo; necessidade
de apoio.

4.2.2. A criança
As crianças vítimas de maus tratos também apresentam algumas características que podem desencadear a
agressão. Por vezes, numa família com vários filhos apenas um(a) é vítima de maus tratos. A posição que a
criança ocupa na família pode ser uma dessas características, sendo um exemplo um filho ilegítimo ou não

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desejado. Uma criança com necessidades físicas especiais, como uma criança com alguma deficiência é
também muitas vezes a vítima dos maus tratos.

Outras características das crianças agredidas são o temperamento da criança, o seu nível de actividade ou
por vezes o simples facto de lembrarem aos agressores alguém que estes detestam. As crianças prematuras
também podem correr riscos de serem vítimas de maus tratos, pois nos primeiros dias de vida pode não se
estabelecer o vínculo afectivo entre a criança e os pais, ocorrendo um fracasso na sua ligação afectiva com
os mesmos. Por vezes as etapas de desenvolvimento em que as crianças se encontram também se tornam
motivo da agressão. No caso de um lactente que tenha necessidades nutricionais que o levam a chorar
durante a noite, o agressor poderá ignorar a necessidade da criança e interpretar este comportamento como
uma indisciplina, ou achar que a criança o incomoda, desencadeando-se a agressão. O mesmo se processa
por vezes em relação à aprendizagem do controle dos esfíncteres. Os agressores esperam que a criança
aprenda a controlar os seus esfíncteres muito cedo ou de uma forma muito rápida, castigando a criança se
esta não o fizer.

O facto de numa família com várias crianças apenas uma ser alvo de maus tratos não significa que as
restantes estejam em segurança. Continuando a seguir o exposto pelos autores anteriormente referidos,
sabe-se que a causa dos maus tratos não é derivada de uma perturbação no relacionamento pai(s)-filho, mas
sim a uma perturbação associada aos papeis de pais, pelo que os maus tratos podem dirigir-se a qualquer
criança. Se a criança que normalmente é vítima dos maus tratos for retirada da família as agressões poderão
começar a dirigir-se a outra criança. Só com uma adequada ajuda os pais poderão aprender a cuidar de
forma diferente dos seus filhos e a resolver as suas frustrações de outro modo que não seja a violência.

4.2.3. O ambiente
Para além das características dos pais e outros agressores e das características das crianças que são
maltratadas, todo o ambiente que envolve a situação de maus tratos apresenta aspectos que condicionam a
situação. De um modo geral este ambiente encontra-se continuamente em stress, com crises financeiras,
familiares, situações de divórcio ou separação, crises físicas e emocionais. O ambiente em que se encontra a
família da vítima carece frequentemente de sistemas de apoio competentes para atender às suas
necessidades. Ao contrário do que se possa pensar, nem sempre as situações de maus tratos sucedem numa
família de baixo nível socioeconómico. Uma família de alto nível socioeconómico pode desencadear um
ambiente de crise emocional ou de stress propício ao aparecimento de maus tratos.

Estas características são factores importantes a ter em conta pois a sua identificação pode revelar fontes
ocultas de negligência e maus tratos, e pode contribuir para evitar ou por fim a uma situação de violência
sobre crianças. Os psicólogos ao ter contacto com as crianças e as famílias, devem tentar inteirar-se da
existência dos factores de risco mencionados, a fim de poderem identificar precocemente uma situação de
risco ou de ajudar as crianças e as famílias em que os maus tratos já estejam presentes por forma a
adoptarem modalidades ou estilos de vida mais saudáveis, nomeadamente reduzindo os níveis de stress,
medo e ansiedade. É também fundamental a actuação dos professores, educadores e outros profissionais
que trabalhem com crianças, na medida em que mais situações de risco possam ser evitadas ou resolvidas.

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4.3. Análise psicológica da problemática da violação sexual


Ainda no que concerne às vítimas de maus tratos por violação sexual, cabe diferenciar pedofilia de abuso
sexual de menores, em que:
• Pedofilia é um conceito psiquiátrico que implica uma perturbação mental do indivíduo. A pedofilia envolve
pensamentos e fantasias eróticas repetitivas ou actividade sexual com crianças. Em geral o acto pedófilo consiste
em toques, carícias genitais e sexo oral, sendo a penetração menos comum. Violência sexual contra crianças pode
então englobar indivíduos com este tipo de perturbação, “pedófilos”, que passem das suas fantasias ao acto,
tornando-se, portanto, agressores sexuais de crianças. No entanto, nem todos os agressores sexuais de crianças são
pedófilos, ou seja, nem todos podem ser enquadrados num plano psiquiátrico.
• O abuso sexual de menores define-se como qualquer conduta sexual levada a cabo por um adulto ou por uma
criança mais velha com outra mais nova, sendo caracterizado pela ausência de consentimento do menor na
relação. A vítima é, portanto, forçada física ou verbalmente na relação, sem ter necessariamente capacidade
emocional ou cognitiva para consentir ou julgar o que está a acontecer. O abuso sexual pode ser também
compreendido como uma ocorrência onde a criança é usada como objecto de gratificação para desejos ou
necessidades sexuais do adulto. Estas podem variar desde discretas “carícias” a estupro com lesões.
O abuso sexual contra crianças pode ocorrer em diferentes contextos em que estas se encontram ou movimentam,
desde o contexto familiar, por exemplo, o agressor pode ser o pai, a mãe, ou quem desempenha o papel parental,
irmão, irmã ou outro membro da família alargada (avós, tios, primos…); até ao contexto exterior à família, por
exemplo, vizinhos, professores, amigos, ou mesmo alguém estranho à criança ou à sua família.

Não é possível determinar com exactidão um conjunto rígido de características que permitam definir o
perfil da criança que é ou poderá ser vítima de abuso sexual. Apesar de qualquer criança poder ser vitima de
abuso sexual, independentemente do meio social, religioso, politico, educacional, moral, da época
civilizacional, da idade ou género, sabe-se o que sexo feminino é abusado sexualmente 10 a 20 vezes mais
do que o sexo masculino. Em estudos recentes, porém sugerem que se trata de uma problemática em
proporções epidémicas.

A criança pode reagir de formas diferentes, dada a diversidade de modalidades dessa violência, do agressor,
da relação que mantém com este, da duração e repetição dos episódios. Além disso, cada vítima é uma
pessoa absolutamente singular, com personalidade única, tendo, portanto, reacções muito variadas e
pessoais. No entanto, estudos demonstram que as reacções gerais que a criança desenvolve são:
• Passividade: opção por uma postura passiva (não grita, não tenta fugir nem defender-se), até apática em relação
aos actos do agressor. No entanto, esta passividade não significa que consente os actos, mas sim do medo de ser
mais agredida, morta, da vergonha que sente ou sob a ameaça que a situação seja revelada.
• Agressividade: reacção agressiva face ao agressor, gritando, tentando fugir, batendo-lhe. Esta reacção é mais
frequente no início da vitimação, contudo o poder superior, psicológico e físico, do agressor poderá reduzir esta
reacção à nulidade total.
• Participação activa: a criança participa activamente na situação arquitectada pelo agressor; além de não lhe
resistir, colabora com o agressor, podendo até mesmo o seu próprio comportamento incitar o agressor. De
qualquer modo, a responsabilidade continua a ser do agressor.

Frequentemente a criança que foi ou vem sendo vítima de violência ou abuso sexual refugia-se no silêncio e
não divulga o seu problema, o que se verifica devido ao carácter da própria relação com o agressor, o qual
usa estratégias específicas para manter a vítima silenciada e acessível aos seus intentos.

As dificuldades de diagnóstico devem-se sobretudo a:

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• Raras vezes resultarem lesões físicas ou vestígios que indiquem claramente que a criança foi ou tem sido vítima,
já que em alguns casos não chega a haver penetração anal ou vaginal, ou quando há a ejaculação dá-se fora do
corpo da criança. Também as roupas e a criança podem ser lavadas após o acto e os exames médico-legais podem
ser realizados apenas mais de 48 horas após o acto, impossibilitando a pesquisa de vestígios de esperma e outros
indícios presentes na criança;
• A vergonha sentida pela criança associada a sentimentos de culpa.
• Os sinais apresentados pela criança vítima podem ser de diferentes tipos: deficiências não orgânicas de
crescimento, bem como infecções, asma, doenças cutâneas, alergias, auto-mutilação.

Ao nível de sintomas, dependendo da idade da criança pode verificar-se:


• Perturbações funcionais, como, por exemplo, ao nível do apetite, do sono (terrores nocturnos, falar em voz alta
durante o sono…), do controlo dos esfíncteres, da fala (problemas de gaguez), tonturas, dores (de cabeça,
musculares e abdominais), interrupção da menstruação na adolescência;
• Perturbações cognitivas, como atraso de desenvolvimento da linguagem, perturbações da memória, baixa auto-
estima, sentimentos de inferioridade, alterações (da concentração, atenção e memória), e dificuldades de
aprendizagem;
• Perturbações afectivas, como choro incontrolado, sentimentos de vergonha e culpa, medos concretos ou
indefinidos, timidez, inadequação na maturidade, e dificuldade para lidar com situações conflituosas;
• Perturbações de comportamento: desinteresse total por si mesmo, falta de curiosidade e do natural
comportamento exploratório, défice na capacidade de interacção, agressividade, manifestações de ira contra
determinadas pessoas, fugas de casa, comportamentos bizarros, negativistas, violentos, problemas escolares,
comportamentos desviantes;
• Alterações psiquiátricas: agitação ou hiperactividade, ansiedade, depressão, mudanças repentinas de
comportamento e de humor, comportamentos obessessivo-compulsivos e/ou de auto-mutilação, tentativas de
suicídio, neuroses graves, alterações da personalidade e psicoses, regressões no comportamento, e falta de
integração entre o pensamento e a linguagem.

É concensual, que a vitimação sexual de uma criança lhe acarreta, inevitavelmente, consequências
negativas quer na vida presente, quer no futuro. No entanto, a influência de tais consequências no futuro
dependerá de vários factores, entre eles, a criança ter ou não contado o sucedido, a demora que teve em
fazê-lo, a reacção de quem recebeu o seu pedido de ajuda, se a ajuda recebida foi eficaz e rápida, a relação
da criança com o agressor, a duração e intensidade da violência sofrida, o medo, a ameaça, chantagem e/ou
a perseguição após o pedido de ajuda, a qualidade de apoio especializado recebido, a reacção dos pais e a
qualidade de apoio familiar recebido. Mas também dependerá das condições de vida futura da criança,
algumas como: a evolução da sua vida, a sua entrada na vida adulta, o amor recebido por alguém no futuro:
namorado, esposa, filhos, etc., a sua realização numa carreira profissional, a qualidade geral da sua vida no
futuro.

5. ESTUDO DE CASO: ABORDAGEM PRÁTICA EM CASO VERÍDICO


Dado o objectivo inicial do trabalho se inserir numa perspectiva da abordagem da Psicologia Legal na
problemática de maus tratos, e tendo optado mais precisamente pela violação. Passa-se a apresentar um
caso verídico (por uma questão ético-deontológica os dados são fictícios), denunciado junto da APAV, do
qual se elaborou o seguinte relatório:
Associação X

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Relatório de processo de apoio a criança vítima de violência sexual


URGENTE

1. Identificação da criança
Nome completo: Maria N. e N.
Data e local de nascimento: Lisboa, 2 de Janeiro de 1997.
Morada: Rua Frei Amadeu Hispano, 1 -1.ºLisboa.
Número de telefone: 88 88 88 88 87.
Escola e ano lectivo: Jardim-de-infância de Dona Brites da Silva.
Com quem vive actualmente e porquê: Com os avós paternos, pois os pais estão no Brasil por razões
profissionais.
Outras informações: ---------------------------------

2. Identificação dos pais/família


Pais: Manuel N e N. e Mariana Matilde N. e N.
Idades: Do pai, 31 anos; da mãe, 33.
Outros familiares do agregado familiar: O agregado familiar é apenas constituído por Maria N. e N. e os
seus avós paternos: Guilherme Roberto N. e N. e Madalena N. e N. (de sessenta e três anos e cinquenta e
nove anos de idade, respectivamente). Vive com este casal uma empregada, Isaura B., de quarenta e um
anos de idade.
Morada: Avenida Dom Pedro de Meneses, 111 – 15.º São Paulo Brasil.
Número de telefone: 2 22 22 22 22 28
Profissão: Ambos engenheiros químicos.
Outras informações: Actualmente, encontram-se no Brasil desenvolvendo uma investigação, por período de
um ano. Desconhecem, por enquanto, o problema da filha, pois os avós de Maria N. e N. ainda não lho
comunicaram.

3. Identificação do agressor
Nome completo: Rodrigo (apelidos ignorados)
Idade: cerca de vinte e sete anos.
Morada: Rua Frei Amadeu Hispano, 1 – r/c Lisboa
Número de telefone: ignorado.
Profissão: Tradutor.
Relação com a criança: Vizinho e amigo da família da criança.
Outras informações: É conhecido geralmente pelo nome de «Tati» e é assim que Maria N. e N. o trata.
Trabalha em casa, pois faz traduções por conta própria.

4.Início e modo de início do processo de apoio


O avô paterno da criança telefonou para a Associação X, na manhã do dia 9 de Outubro de 2002. No
mesmo dia, ainda de manhã, apresentaram-se pessoalmente com a criança na Associação X o avô paterno e
avó paterna, bem como a sua empregada, Isaura B.

5.Descrição do problema apresentado


Os avós da criança, Guilherme Roberto N. e N. e Madalena N. e N., bem como a empregada destes, Isaura
B., suspeitam que o vizinho dos rés-do-chão do seu prédio abusa sexualmente da sua neta.

Referem que Maria N. e N. gosta muito do vizinho e costumava ir muitas vezes, sobretudo à tarde, para
casa deste, onde costumava ver vídeos de desenhos animados. Os avós assistiam muitas vezes a estes filmes
e confiavam no vizinho.

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MAUS TRATOS: QUE INTERVENÇÃO
A ABORDAGEM DA PSICOLOGIA LEGAL

No entanto, Isaura B., a empregada, ao despir o vestido à criança ontem à noite para lhe dar banho, reparou
como ela tinha o peitilho do mesmo manchado «por uma nódoa grande» – pelo que repreendeu Maria N. e
N. por ter sujado o tecido.

Nisto a criança respondeu-lhe que «foi o Tati [nome pelo qual trata o vizinho do rés-do-chão] que deu um
peixe grande à Maria e que o Tati tem na barriga, mas depois disse para a Maria dar um beijinho ao
peixinho e ele deitou um creme branco e depois sujou o vestido da Maria!».

Isaura B. suspeitou da história contada pela criança, «sobretudo porque eu sempre disse aos senhores [os
seus patrões] que não era bom a menina ficar sozinha com um homem em casa dele [do suspeito]».

Por isso, resolveu conversar com a criança sobre a história que contava, enquanto lhe dava banho. E Maria
N. e N. comentou que tinha visto «um filme que não tinha bonecos, tinha uns meninos dentro da banheira
como a Maria e com uns senhores que também tinham peixes nas pernas que depois deitavam um creme
branco na boca dos meninos» e que «o peixe do Tati é grande e chama-se piça».

Isaura B. ficou alarmada pois «vi uma reportagem sobre abuso sexual de crianças na semana passada e
pensei logo que a Maria podia estar a passar o mesmo». Conversou com os seus patrões, que visivelmente
transtornados, vieram à Associação X pedir ajuda.

Os avós de Maria N. e N. dizem sentir-se culpados por terem deixado a neta ir tantas vezes para a casa do
vizinho. Isaura B. parece mais contida e pode vir a exercer um papel importante no processo de apoio, pois
parece estar relativamente informada sobre o abuso sexual de crianças; além de que a criança parece
preferi-la aos avós.

6. Pessoas envolvidas no processo de apoio


Estão envolvidos no processo de apoio unicamente os avós paternos da criança e a empregada destes, Isaura
B. Os pais da criança ainda não foram informados.

Atendeu-os o jurista Francisco J. da Associação X.

A criança foi atendida, em entrevista diagnóstica, pela psicóloga Beatriz S. da Associação X, no mesmo
dia.

7. Diagnóstico
A entrevista diagnóstica com Maria N. e N., realizada pela psicóloga Beatriz S. teve a duração de cerca de
uma hora.

A criança manteve-se estável, brincando e interagindo facilmente com a psicóloga sentadas no chão da sala
de atendimento, pois Maria N. e N. disse que preferia estar no chão, entretendo-se a desmontar um
«puzzle» com a ajuda da psicóloga.

Tendo brincado e, simultaneamente, conversado sobre o dia-a-dia, Maria N. e N. disse à psicóloga que
«vou ver os bonecos na televisão do Tati». Disse também que «os bonecos são do Michey e do pato».

A psicóloga mostrou interesse pelos filmes e perguntou sobre quais a Maria N. e N. já tinha visto. A criança
disse que via «o pato e os patinhos e depois a Pokahontas», mas revelou também que às vezes o Tati «gosta
de ver uns meninos com uns senhores que têm uma coisa preta nas pernas [pelos púbicos?] que também têm
patinhos na água».
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MAUS TRATOS: QUE INTERVENÇÃO
A ABORDAGEM DA PSICOLOGIA LEGAL

Um pouco depois a psicóloga voltou a abordar o tema dos filmes vistos pelo Tati, perguntando se os
senhores e os meninos que estavam na água, e que tinham patinhos, tinham também peixinhos. Maria N. e
N. respondeu afirmativamente.

A psicóloga perguntou-lhe, então se o Tati também tinha peixinhos. Ela respondeu «tem um peixinho
grande que se chama piça [vocábulo da gíria para designar pénis?]».

Ao apresentar-lhe a folha com o desenho de frente e verso de um boneco masculino, a psicóloga pediu à
criança que apontasse no desenho onde o Tati tinha o peixinho.

Maria N. e N. apontou para a pélvis do boneco masculino e disse: «É aqui nesta coisinha», colocando o
dedo sobre o contorno dos órgãos genitais.

A psicóloga perguntou-lhe o que ela e o Tati faziam com o peixinho. Ela respondeu: «É para a Maria dar
beijinhos.».

Apesar de parecer tratar-se de uma situação de abuso sexual, com exibição de filmes pornográficos e
episódios de sexo oral, Maria N. e N. não parece estar em sofrimento psicológico, pois não terá discernido a
situação, dada a sua pouca idade.

8. Encaminhamento
Apesar de Isaura B. ter dado banho ontem à noite à criança (presumível data do último abuso) podendo ter
destruído outros eventuais vestígios, guardou o vestido sujo «por uma nódoa grande» [esperma?], num
armário.

A conselho do profissional da Associação X que atendeu telefonicamente o avô de Maria N. e N.,


colocaram o vestido sujo num saco de papel e trouxeram-no ao atendimento presidencial com o jurista
Francisco J.

Faz-se o encaminhamento imediato da criança, seus avós e empregada, acompanhados pelo jurista
Francisco J. para a Polícia Judiciária (ao encontro do Senhor Inspector Afonso T.), de modo a que possa
desenvolver todas as diligências necessárias ao processo judicial.
[assinatura]
Beatriz S.
Psicóloga da Associação X

Lisboa, 9 de Outubro de 2002 (APAV, 2002).

5. Apoio à vítima
Como se pode constatar o procedimento de avaliação, diagnóstico, prognóstico e encaminhamento de
vítimas de maus tratos por violação segue determinados trâmites.

Para que se possa atender e apoiar crianças vítimas de violência sexual, tal como os seus familiares, o
profissional deve, após compreender em que consiste a violência sexual contra menores, saber quais os
procedimentos adequados e como organizar um processo de apoio com esses procedimentos. O processo de
apoio é um conjunto orientado de atendimentos à vítima e outros significativos no processo, com o intuito
de promover e proteger os direitos da criança, tendo sempre em conta, portanto, o melhor para a criança, o

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MAUS TRATOS: QUE INTERVENÇÃO
A ABORDAGEM DA PSICOLOGIA LEGAL

respeito pela intimidade desta, intervir logo que haja suspeita ou conhecimento de existência de abuso,
intervindo de modo adequado à situação actual da criança. O profissional deve obrigatoriamente fornecer
informação à criança, pais, ou seu representante legal acerca dos seus direitos, bem como dos motivos que
determinam a intervenção e o seu processamento, devendo estes ser ouvidos e convidados a participar nos
atendimentos e em todo o desenvolvimento do processo de apoio. Esta intervenção deve ser efectuada pelas
entidades competentes em matéria de infância e apoio à vítima, após ter sido apresentada denúncia da
vitimação da criança ao Tribunal competente ou à Polícia.

A quem se apresenta o processo? A quem se dirigir para formalizar a denúncia? Quando iniciar o
processo de apoio?

O profissional é um operador qualificado do processo de apoio, devidamente inserido numa instituição,


pública ou privada, governamental ou não governamental, de voluntariado social ou não, que exerça, por
exemplo, a profissão de jurista, médico, psicólogo, e trabalhar em diferentes instituições ou serviços. Este
profissional deve ser competente quer a nível pessoal, quer a nível técnico. A nível pessoal é necessário que
‘saiba ser pessoa’, “cheio de humanidade” para que possa estar próximo de pessoas em estado de
sofrimento, devendo, portanto, manifestar um comportamento relacional pacífico e redutor de conflitos,
promovendo um bom espírito de trabalho, sendo apto para comunicar com crianças, contrabalançando
simpatia, humor e seriedade, devendo ter capacidade de autogestão pessoal – manter serenidade durante o
acompanhamento, mesmo em casos chocantes, ser compassivo, sabendo compreender os sentimentos
interiores, ou, até mesmo, captar silenciosos pedidos de ajuda emocional, procurando ser empático,
imparcial, não se ligando afectivamente à criança ou familiares, para satisfazer desejos pessoais ou
ansiedades emocionais.

Por outro lado, a competência técnica está essencialmente relacionada com a formação académica (o
profissional deve ter estudado e concluído um curso superior ou licenciatura na área relacionado com o
papel que desempenha no processo de apoio), e a formação específica sobre vítimas de crime (revelar bom
domínio dos pressupostos teóricos necessários, das práticas quotidianas de serviço de apoio às vitimas do
crime, tal como das questões éticas fundamentais para quem trabalha com vítimas).Ao psicólogo cabe,
entre outras tarefas, avaliar a situação de risco psicológico e o grau de sofrimento emocional em que a
criança se encontra; avaliar o real significado dos comportamentos que apresenta; analisar o grau de
vinculação afectiva aos pais e a outros familiares; estabelecer um diagnóstico psicológico e solicitar, se
necessário, a intervenção de um pedopsiquiatra; trabalhar no sentido de reforçar a auto-estima e confiança
dos outros, etc.

5.1. Proteger a criança maltratada de maus tratos adicionais


Para a protecção da criança face à recorrência de maus tratos é fundamental remover a criança do ambiente
perigoso e estabelecer um ambiente seguro quer na hospitalização quer à posteriori. Para isto, o psicólogo
deve colaborar com a equipe multidisciplinar, no desenvolvimento de esforços conjuntos de
estabelecimento de uma avaliação permanente dos progressos da criança no lar adoptivo ou no retorno ao
lar. Também deverá estar alerta para sinais de maus tratos repetidos ou negligência quando actuar em
centros de saúde, escola creches. Os pais deverão ser ajudados a identificar as situações que precipitam os
maus tratos, procurando formas de atenuar os sentimentos de ansiedade, stress, fúria sem agredir a criança
(Whaley & Wong, 1985, pp. 316-317).

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MAUS TRATOS: QUE INTERVENÇÃO
A ABORDAGEM DA PSICOLOGIA LEGAL

5.1.1. Apoio à criança


Não raras vezes, as crianças com suspeita de maus tratos são hospitalizadas para o tratamento médico das
suas lesões. Independentemente do tipo de maus tratos e da facilidade destas crianças em se adaptar ao
novo ambiente e de fazer amigos, estas crianças têm necessidades semelhantes a outras crianças
hospitalizadas.

Deste modo, a criança deverá ser tratada como uma criança com necessidades físicas, tarefas de
desenvolvimento e interesse em brinquedos habituais, não devendo ser encarada como uma vítima
dramática de maus tratos (Wong, 1997). O objectivo da relação enfermeiro/criança deverá favorecer um
ambiente terapêutico para a criança, promotor de aprendizagem e de restabelecimento de confiança nos
adultos (iniciando-se pela confiança no psicólogo que presta os seus serviços) e proporcionar um modelo de
desempenho de papel para os pais, facilitador de uma relação positiva e construtiva com a criança.

Nesta tentativa de auxiliar os pais no relacionamento com a criança é fundamental que o profissional
procure não se tornar substituto dos pais, já que isso apenas teria como consequência o intensificar dos
sentimentos de inadequação, inutilidade e isolamento por parte dos progenitores. Ainda de acordo com
Wong (1997), a intervenção à criança em situações de abuso sexual poderá variar desde a tranquilização
(e.g., em casos de exibicionismo) ao aconselhamento a longo prazo (e.g., em relações incestuosas).

Ao entrevistar essas crianças é fundamental que o técnico proporcione um ambiente calmo, neutro,
silencioso, respeitante da privacidade da criança. Nestas entrevistas dever-se-á inicialmente fazer perguntas
neutras, devendo estas evoluir cronologicamente de um conteúdo geral e não sexual para um conteúdo
progressivamente mais relacionado com a problemática. As crianças deverão ter sempre a oportunidade de
fazer perguntas e não devem, em circunstância alguma, ser pressionadas ou obrigadas a falar. Em caso de
crianças ainda incapazes de falar poder-se-á utilizar brincadeiras, bonecos ou desenhos que permitam inferir
e/ou confirmar a suspeita de abusos sexuais.

5.1.2. Apoio à família


Um dos componentes mais difíceis, porém essencial para a assistência aos pais agressores, é a qualidade da
relação terapêutica. O técnico de saúde, nomeadamente o psicólogo, deverá basear esta relação numa
preocupação genuína, focalizando os maus tratos como um problema que necessita de intervenção
terapêutica e não como uma conduta característica ou deficiência do progenitor agressor, evitando deste
modo as acusações e punições É fundamental que os técnicos de saúde, nos quais se incluem obviamente os
psicólogos, conheçam bem as suas crenças e sentimentos relativamente às diversas dimensões que
trabalham, nomeadamente face a esta problemática específica. Só assim e face ao sucedido, poderão
adoptar uma atitude positiva para com a população alvo de intervenção, nomeadamente, os pais,
motivando-os a mudar.

Quando em situação de expectativas irreais relativamente às capacidades das crianças, as quais


contribuíram para os maus tratos, o psicólogo deverá basear a sua intervenção numa modalidade de
fornecimento de informação básica e essencial acerca do desenvolvimento das crianças e dando especial
relevo às necessidades físicas e emocionais da criança.

Tendo em atenção que os pais são, normalmente, sensíveis às críticas e “rótulos”, e que, além disso,
apresentam níveis de auto-estima demasiado baixos, é importante que a orientação do psicólogo seja

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MAUS TRATOS: QUE INTERVENÇÃO
A ABORDAGEM DA PSICOLOGIA LEGAL

efectuada através da demonstração e com a apresentação de exemplos muito práticos e fáceis de identificar
na vida quotidiana – deve-se evitar os discursos demasiados elaborados, como se de uma palestra para pares
se tratasse.

Por exemplo, o elogio de qualquer habilidade que os pais demostrem ao cuidar dos filhos poderá promover
o sentimento de adequação nestes pais (Wong, 1997, p. 397).

Em caso de abuso sexual, se os pais não forem os agressores poderão ser incentivados pelo técnico a
expressar os seus sentimentos de raiva, culpa, vergonha, evitando extravasar esses sentimentos na criança.

A família deverá, igualmente, incentivar a criança falar sobre os seus sentimento e a reiniciar as suas
actividades normais, estando sempre alertas para sinais de sofrimento, tais como recusa em ir à escola,
permanência excessiva em casa, alterações mais ou menos radicais dos estilos de vida anteriormente
adoptados, ou mesmo alterações do padrão normal do sono (Wong 1997, p. 387).

No caso de pais agressores, estes deverão ser ajudados a identificar um grupo de apoio para pais, o que
permitirá que os pais agressores assumam a responsabilidade pelos actos (Whaley & Wong, 1985, p. 317).

5.1.3. Preparar a criança hospitalizada e família para a alta


No caso de ter havido necessidade de hospitalização, a “alta” dever ser planeada e deverá sê-lo logo que
seja decidida a situação legal do encaminhamento da criança, o que poderá incluir um lar de adopção
temporário, retornar para a casa dos pais ou cassação permanente seus direitos enquanto pai (por exemplo,
quando se verificam casos sucessivos de maus tratos).

É importante frisar que todas as crianças que forem enviadas para um lar adoptivo deverão ter a
oportunidade de expressar os seus sentimentos, pois elas geralmente sofrem pela perda dos pais. Dever-se-á
ajudar a criança a sofrer esta perda, auxiliando-a compreender o porquê de não voltar para casa e que o
novo lar não é um lugar de punição. Sempre que possível, os pais adoptivos deverão ser incentivados a
visitar a criança no hospital, tendo a enfermeira um papel importante neste aspecto. Se a criança voltar para
casa é importante incentivar os pais a visita-la no hospital, planejar aconselhamento e supervisão da família.
Os maus tratos só poderão ser evitados se houver uma constante vigilância quanto ao local onde a criança
foi colocada e a sua adaptação ao novo ambiente (WONG, 1997).

5.2. Prevenção dos maus tratos


Segundo Whaley e Wong (1985, p. 316) a prevenção de maus tratos infantis implica a identificação das
famílias em que existe o perigo potencial de maus tratos.

Os técnicos poderão actuar a este nível ajudando os pais a se identificarem com a criança, promovendo a
auto-estima e ensinando-lhes as competências necessárias para cuidar do bebé, as expectativas reais de
crescimento e desenvolvimento de cada grupo etário e práticas efectivas para a educação dos filhos,
nomeadamente no que respeita aos métodos de disciplina. O técnico poderá actuar ensinando aos novos
pais as formas de lidar com o stress que poderá levar aos maus tratos e incentivar sistemas de apoio que
diminuam o stress e a responsabilidade total pelo cuidado da criança (Opperman & Cassandra, 2001, p.
527).

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MAUS TRATOS: QUE INTERVENÇÃO
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Segundo Olds et al., os profissionais poderão actuar através das visitas domiciliárias às primíparas
adolescentes, solteiras ou mulheres com baixa condição sócio-económica no período pré-natal ou lactância,,
através das quais se poderá efectuar educação para a saúde relativamente ao crescimento e desenvolvimento
normal das crianças, e suas necessidades, o que permitirá a identificação de problemas das famílias e
encaminhamento destas (op. cit. Wong, 1997).

No que respeita à prevenção do abuso sexual por parte da criança, esta relaciona-se com o que deveria ser
transmitido em Educação sexual e que passa por ensinar a criança a dizer não.

III – CONCLUSÃO
Os maus tratos infantis são actualmente um grave problema e têm repercussões nas reacções psicológicas,
afectivas e sociais, não apenas da vítima como da sua família e não se pode excluir o tratamento
psicológico do agressor.

Conforme se constatou ao longo do trabalho esta problemática relaciona-se com alguns factores
favorecedores, nomeadamente as características das crianças, dos pais e do ambiente. É necessário lembrar
que nem sempre os maus tratos ocorrem no seio familiar, podendo ser desencadeadas por conhecidos,
estranhos ou ocorrer até em instituições.

Verificou-se a existência de vários tipos de maus tratos, nomeadamente os físicos, psicológicos, abuso
sexual e negligência, no entanto, através da realização deste trabalho constatou-se que, de um modo geral,
não se verifica, um único tipo de maus tratos, isoladamente. Inúmeros são os estudos que confirmam que,
por exemplo, uma criança que sofre de maus tratos físicos é, normalmente, também vítima de maus tratos
psicológicos. Apurou-se, igualmente, que uma vez detectada a situação de maus tratos o processo de apoio
à criança e família é bastante moroso, devendo, posteriormente, ser efectuado um acompanhamento da
criança e em alguns casos também da família.

É importante estar despertos para esta problemática, já que os maus tratos são altamente prejudiciais, com
repercursões em termos do desenvolvimento global.

Espera-se ter exposto com uma linguagem clara a problemática dos maus tratos à criança, alertando-se para
a gravidade e dimensão desta realidade. É muito importante que a nossa sociedade tenha em conta que as
crianças são frágeis e inocentes, necessitando do nosso apoio para fazer valer os seus direitos.
• A criança tem direito à igualdade, sem distinção de raça, religião ou nacionalidade.
• A criança tem direito a ser compreendida, deve ter oportunidade de se desenvolver em condições de igualdade
de oportunidades, com liberdade e dignidade.
• A criança tem direito a um nome e uma nacionalidade.
• A criança tem direito à alimentação, direito de crescer com saúde e a mãe deve ter cuidados médicos antes e
depois do parto.
• A criança deficiente tem direito à educação e cuidados especiais.
• A criança tem direito ao amor e à compreensão, deve crescer sob a protecção dos pais, com afecto e segurança,
para desenvolver a sua personalidade.
• A criança tem direito à educação para desenvolver as suas aptidões, suas opiniões e seu sentimento moral e
social.

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• A criança em qualquer circunstância deve ser a primeira a receber protecção e socorro.


• A criança não deve ser abandonada, espancada ou explorada, não deve trabalhar quando isso atrapalhar a sua
educação, saúde e o seu desenvolvimento físico, mental ou moral.
• A criança deve ser protegida do preconceito, deve ser educada com o espírito de amizade entre povos, de paz e
fraternidade, deve desenvolver as suas capacidades para o bem dos seus semelhantes

IV – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APAV (2002). Manual para o atendimento de crianças vítimas de violência sexual. Lisboa: APAV.
Berger, M. (1998). A criança e o sofrimento da separação (pp. 47-61). Lisboa: Climepsi Editores.
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prospectivo de cinco anos. Coimbra: Quarteto editora.
CDDC (2000). Convenção dos Direitos da Criança. Comité dos Direitos da Criança. Òrgãos das Nações Unidas de
Controlo da Aplicação dos Tratados em Matéria de Direitos Humanos. Gabinete de Documentação e Direito
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Davis, H. W., & Zitelli, B. J. (1993). Atlas colorido de diagnóstico clínico em pediatria. S. Paulo: Editora Manolo.
Ferreira da Costa, S. I. (1997). Crianças Maltratadas. Informar. Revista de Formação Contínua em Enfermagem, 9
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252). Porto: Hospital de crianças Maria Pia.
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Opperman, C. S., & Cassandra, K. A. (2001). Enfermagem Pediátrica Contemporânea. Loures: Lusociência.
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Clínica e Psiquiatria”, 17. Coimbra: Editora Quarteto.
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Colecção “Stvdivm”. Coimbra: Arménio Amado.
Thompson, E. D., & Ashwill, J. W: (1996). Uma Introdução à Enfermagem Pediátrica. Porto Alegre: Editora Artes
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Whaley, L. F., & Wong, D. L. (1985). Enfermagem Pediátrica: Elementos essenciais à intervenção efectiva (p. 5). Rio
de Janeiro: Editora Guanabara.
Wong, D. L. (1997). Enfermagem Pediátrica: Elementos essenciais à intervenção efectiva (p. 10). Rio de Janeiro:
Editora Guanabara.

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MAUS TRATOS: QUE INTERVENÇÃO
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ANEXOS

A.1) Dados estatísticos de situações que determinaram a intervenção judiciária com


menores e adolescentes

Fonte: Estatísticas da Justiça

A.2) Dados estatísticos de situações que determinaram o internamento em instituições


do Ministério da Justiça (Dezembro de 1996)

Fonte: Instituto de Reinserção Social

Estes dados fazem realçar a grande percentagem de "menores-vítimas" colocados em instituições do


Ministério da Justiça, vocacionadas para receber crianças com problemas graves de comportamento,
mormente agentes de crimes. Este "efeito perverso" do actual sistema de justiça de menores tem sido
frequentemente posto em relevo, sendo igualmente salientado no relatório acima mencionado.

Acresce que a percentagem de menores acolhidos nas instituições em situação provisória (guarda,
observação) é muito significativa, excedendo os 50%, facto esse que pode ser considerado uma segunda
disfuncionalidade do sistema.

Os menores internados tinham as idades indicadas, por géneros, no quadro LXIV.

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MAUS TRATOS: QUE INTERVENÇÃO
A ABORDAGEM DA PSICOLOGIA LEGAL

Fonte: Instituto de Reinserção Social

Estes dados reflectem uma tendência para a elevação da idade dos internados. Na verdade, nos anos
anteriores, a percentagem dos jovens com 16 e mais anos tinha sido de 36,5% (1991), 40,7% (1992), 38,7%
(1993), 36,5% (1994) e 34,5% (1995). Revelam ainda uma presença muito significativa das raparigas entre
os menores internados. Esse facto, que não é novo, é devido à frequente institucionalização de menores do
sexo feminino na sequência de situações de desprotecção ou por adoptarem comportamentos considerados
socialmente desajustados, já que o seu envolvimento em actividades delituosas é diminuto.

Todos as instituições dão grande importância à formação escolar dos menores, uma vez que estes
apresentam, quase invariavelmente, um grande deficit em tal área. De acordo com os dados publicados nas
Estatísticas da Justiça, em 31 de Dezembro de 1995, dos 955 menores então internados, 666 frequentavam
acções de formação escolar.

A.3) Exploração sexual e violência sexual


148-149. – O Código Penal português de 1982, já em vigor aquando da elaboração do Relatório inicial, foi
objecto de revisão em 1995, revisão essa que, sem alterar os princípios essenciais e a filosofia de base
daquele diploma (uma vez que o mesmo constitui, como se diz no preâmbulo do Decreto-Lei nº 48/95, de
15 de Março, que aprovou a revisão) "um código de raiz democrática inserido nos parâmetros de um Estado
de direito", lhe introduziu alterações muito significativas, nomeadamente no domínio dos crimes sexuais,
em especial dos cometidos contra crianças, cuja punição foi agravada. Deste modo, agravando
significativamente as penas relativas aos crimes contra crianças, o legislador esteve em consonância com os
sectores profissionais ligados à protecção da criança e com a opinião pública, que há muito vinham
reclamando uma maior protecção penal contra este tipo de abusos sexuais. Na verdade, a vitimação das
crianças, em geral, e especificamente na esfera sexual, constituiu um tema de preocupação nos últimos
anos, tanto em círculos profissionais ligados à criança como na sociedade em geral. Também a
comunicação social passou a dar um relevo significativo ao assunto.

Na revisão penal de 1995, os crimes sexuais considerados no Código Penal de 1982 "crimes contra os
valores e interesses da vida em sociedade", são integrados nos crimes contra as pessoas, constituindo aí um
capítulo autónomo epigrafado Crimes Contra a Liberdade e a Autodeterminação Sexual. Liberdade e
autodeterminação sexual que, quando se tratar de crianças de idade inferior a um certo limite, cuja liberdade
em geral (e portanto também na esfera sexual) se encontra ainda em processo de estruturação, se entende
como um direito a crescerem ao abrigo de agressões de natureza sexual.

A reforma consagra um direito penal sexual de cariz liberal, norteado pelo princípio de que, quando se trate
de adultos, não é crime qualquer actividade sexual praticada em privado e com consentimento. Assim, não
são criminalizados comportamentos como a prostituição, a pornografia ou a homossexualidade, desde que
praticados de modo que não ofendam a liberdade sexual de ninguém, nomeadamente quando sejam
cometidos por adultos e com o seu consentimento livremente prestado, apenas sendo criminalizadas as
actividades sexuais obtidas por meios que afectem a livre formação da vontade, nomeadamente quando o

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agente actue por meio de violência, ameaça grave ou quando depois de, para praticar os actos, tenha
tornado a vítima inconsciente ou incapaz de resistir.

No regime estabelecido pelo Código Penal de 1995, todos os factos que constituem crime quando
cometidos contra um adulto (nomeadamente a coacção sexual e a violação) são considerados crime
agravado quando a vítima for menor de 14 anos. Mas, para além disso, prevê-se uma categoria específica de
crimes - os denominados "crimes contra a autodeterminação sexual" - na qual se visam certos factos que só
constituem crime pela circunstância de serem cometidos com ou em relação a um menor. Um elemento
básico na tipificação destes crimes é a idade da criança, mais concretamente, o facto de essa idade ser
inferior ou superior a 14 anos.

Em relação a crianças de idade inferior a 14 anos, o Código Penal proibe todos os contactos de natureza
sexual, partindo da ideia básica de que, abaixo da referida idade, a criança não é livre de decidir em termos
de relacionamento sexual, sendo, portanto, indiferente que os factos tenham sido praticados com ou sem a
sua adesão. Até à idade referida, o Código Penal pune ainda as actividades que possam causar perturbação
na esfera sexual. Assim, incorre no crime de abuso sexual de crianças todo aquele que pratique acto sexual
de relevo, com ou em menor de 14 anos, ou que o leve a praticar um acto dessa natureza. O crime é punível
com pena de prisão de um a oito anos ou, nos casos em que o acto sexual de relevo seja constituído por
cópula ou coito anal, com pena de prisão de três a dez anos (art. 172º, nºs 1 e 2). Incorre ainda no crime de
abuso sexual de crianças quem praticar acto exibicionista perante menor de 14 anos, ou sobre ele actuar
"por

meio de conversa obscena ou por escrito, espectáculo ou objecto pornográfico, ou o utilizar em fotografia,
filme ou gravação pornográficos" (art. 172º, nº 3). Estes factos são puníveis com pena de prisão até três
anos, ou de seis meses a cinco anos, se cometidos com intenção lucrativa (art. 172º, nºs 3 e 4 ).

Neste crime – como na maior parte dos crimes sexuais, quer contra adultos quer contra crianças - o
procedimento criminal depende de queixa do ofendido (cabendo o direito de queixa ao representante legal
do ofendido menor de 16 anos); porém, quando a vítima tenha idade inferior a 12 anos, pode o Ministério
Público dar início ao processo, independentemente de queixa, "se especiais razões de interesse público o
justificarem" (art. 178º, nº 2) – interesse público que deve ser entendido como significando o "interesse da
criança", como já hoje alguns entendem e se torna claro na redacção prevista para a disposição em causa na
última proposta de revisão do Código Penal.

A Alta-Comissária para as Questões da Promoção da Igualdade e da Família apresentou ao Ministro da


Justiça um parecer acerca destas matérias, em que salientava a necessidade de serem devidamente
ponderadas as questões relativas à queixa no caso de a vítima ser uma criança.

Com efeito, deverá referir-se que, embora a revisão do Código Penal de Março de 1995 tenha procurado
responder a um movimento significativo da sociedade que reclamava penas duras para os autores de crimes
sexuais contra crianças e tenha agravado de uma forma geral as penas dos crimes sexuais praticados contra
estas, várias críticas têm sido apontadas às alterações verificadas no artº 178º relativo ao exercício do
direito de queixa.

Algumas Organizações Não Governamentais têm, aliás, defendido que, quando as vítimas são crianças de
menos de 12 anos, os crimes sexuais deveriam ter sempre natureza pública, podendo ser objecto de

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MAUS TRATOS: QUE INTERVENÇÃO
A ABORDAGEM DA PSICOLOGIA LEGAL

procedimento criminal, independentemente de queixa. Têm igualmente defendido que a partir dos 14 anos,
o direito de queixa deveria caber à própria criança e não ao seu representante legal.

Atingidos os 14 anos, a lei penal considera que a pessoa é, em princípio, livre de decidir quanto ao
respectivo relacionamento sexual, reservando a sua intervenção aos casos em que o agente se encontrar,
relativamente ao menor, numa posição de autoridade susceptível de afectar a capacidade de decisão deste.

Assim, os factos constitutivos do crime de abuso sexual de menores só constituem crime de abuso sexual de
adolescentes (art. 173º), sendo puníveis com pena de prisão de um a oito anos, quando se trate dos actos
descritos nos nºs 1 e 2 do art. 172º, ou com pena de prisão até um ano, quando se trate dos actos descritos
no nº 3 do art. 172º (até três anos se forem praticados com intenção lucrativa), quando sejam cometidos
relativamente a:
a) menor entre 14 e 16 anos que tenha sido confiado ao agente para fins de educação ou assistência;
b) menor entre 16 e 18 anos que tenha sido confiado ao agente para fins de educação ou assistência, sendo o
crime praticado com abuso da função ou posição que aquele detém.
A reforma do Código Penal admite duas outras limitações ao princípio segundo o qual o menor, atingidos
os 14 anos, é livre de decidir quanto ao seu relacionamento sexual. A primeira diz respeito ao
relacionamento homossexual, para o qual o menor só pode prestar validamente o consentimento aos 16
anos (art. 175º). A segunda excepção diz respeito ao crime de estupro. O Código Penal manteve a
incriminação da cópula com menor entre 14 e 16 anos, quando obtida mediante abuso da sua inexperiência
(art. 174º).

A protecção dos adolescentes contra a exploração em caso de prostituição foi fragilizada na reforma de
1975, uma vez que o crime de lenocínio de menor, ou seja, o fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da
prostituição, tem como limite etário máximo a idade de 16 anos. A partir dessa idade, a protecção conferida
à criança é igual à reconhecida ao adulto, ou seja, o crime só é punível quando o agente actuar
profissionalmente ou com intenção lucrativa e, para além disso, explorar situações de abandono ou de
necessidade económica.

O actual Governo apresentou, no corrente ano, à Assembleia da República uma Proposta de Lei de Revisão
do Código Penal, na qual eram introduzidas algumas alterações no âmbito dos crimes sexuais contra
crianças, nomeadamente destinadas a dar cumprimento às recentes orientações e resoluções internacionais
em matéria de luta contra a pedofilia e contra a exploração sexual de crianças para fins comerciais, tais
como a Resolução R(91)11 do Conselho da Europa, a Declaração e o Programa de Acção adoptados pelo
Congresso de Estocolmo de 1996 (no qual o país esteve representado) e, muito especialmente, a Acção
Comum adoptada pela União Europeia.

Neste sentido, propõe-se o alargamento dos crimes de abuso sexual de crianças e de adolescentes, punindo
o coito oral com a pena prevista para a cópula e o coito anal e incriminando quem pratique perante menor,
não só acto exibicionista, mas também acto atentatório do seu pudor. Além disso, incrimina-se, para além
da utilização de crianças e adolescentes na produção de fotografias, filmes ou gravações pornográficas, a
exibição ou cedência a qualquer título desse material.

No projecto apresentado pelo Governo, introduz-se, ainda, a possibilidade de aplicação extraterritorial da


lei penal portuguesa, de forma a abranger os crimes cometidos no estrangeiro por portugueses que vivam

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MAUS TRATOS: QUE INTERVENÇÃO
A ABORDAGEM DA PSICOLOGIA LEGAL

habitualmente em Portugal, e aqui sejam encontrados, independentemente da nacionalidade da vítima, e


seja ou não o acto punível pela legislação do lugar onde tenha ocorrido.

Esta Proposta de Revisão do Código Penal não foi aprovada pelo Parlamento, por razões divergentes por
parte dos diferentes partidos políticos da oposição. As Reformas propugnadas na área em causa foram,
todavia, aceites sem reparos. A Proposta de Revisão Penal será reapresentada à Assembleia da República.

O tema da violência sexual tem sido amplamente debatido, como já se referiu, quer em sessões
especialmente dedicadas àquele fim, quer em acções de formação, quer nos meios de comunicação social.

Em Fevereiro de 1997, teve lugar em Lisboa um Seminário de dois dias acerca do Abuso Sexual de
Menores, promovido pela Associação do Planeamento Familiar, que entretanto publicara uma revista
dedicada exclusivamente a este tema, em Novembro de 1996, como preparação do Encontro, que contou
com a intervenção de especialistas em diversas áreas, com experiência no tratamento destes casos.

Os anexos são excertos de texto original do Relatório da ONU sobre “Convenção dos Direitos da Criança”.
(GDDC, 2000).

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