FEMME'EN'SCÈNE: O Devir Feminista em Audiovisuais
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FEMME'EN'SCÈNE - Fernanda Capibaribe Leite
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO
A Aiuká e Arthur, minhes filhes, fonte maior de amor e potência.
AGRADECIMENTOS
Uma grande lista compõe as contribuições que foram importantes para a construção deste trabalho, direta e indiretamente. Atravessamentos afetivos, intelectuais, críticos, sensíveis... Certa de que não conseguirei alcançar a todas as pessoas que fazem parte dessa rede colaborativa por aqui, já que tal rede é composta pela experiência muito mais ampla do que a obra em si, nomeio as que, notadamente, dedico minha profunda gratidão pela conclusão, sempre em aberto, deste livro, resultante dos meus quatro anos de doutorado.
Como, ao fim, é pela afecção que nos movemos, vou começar pelo que há de mais potente e incondicional, zona intensiva que me faz diariamente pensar na minha condição de sujeito sob diversos aspectos: mulher, mãe, profissional, indivíduo. Agradeço e dedico este trabalho a Aiuká e Arthur, lindes e amades filhes. Não tenho dúvidas de que é, sobretudo, por vocês que aqui escrevo estas linhas, depois de quem a vida ganhou outro sentido e a existência outra potência. E, como não poderia deixar de ser, à minha amada mãe, Clicia, e meu pai, Oswaldo, por todo o apoio de uma vida que não dá nem para nomear aqui e sem o qual nada disso seria possível. Gratíssima pelo suporte de sempre. Às minhas irmãs queridas, Rafaela e Mariana. Juntas vimos instituindo o sentido, na experiência cotidiana, de diferir e compartilhar.
Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pelo financiamento de parte da pesquisa e publicação deste livro. Ainda, ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), por ser o aporte institucional por meio do qual este projeto foi realizado. Ainda, ao Departamento de Comunicação da UFPE, pela compreensão e pelo suporte no dia a dia de trabalho.
À professora Rosângela Tenório, agradeço pelas contribuições na qualificação e banca de defesa do meu doutoramento e, sobretudo agora, pelas palavras potentes que estão no prefácio.
Uma gratidão especial e carinhosa a Jeder Janotti Jr., um parceiro em muitos sentidos, com quem venho atravessando ventos afetivos, intelectuais e da ordem dos dissensos também. Meu mais que obrigada pela leitura crítica e atenciosa, pelas indicações e conversas, pela logística e pelo apoio, carinho e amor. Também pelos momentos tempestuosos, que nos mostram que a experiência é controversa mesmo e é a partir dessas ambivalências, em trânsito, que refletimos, revisamo-nos e mudamos.
Às realizadoras e aos realizadores dos filmes que compõem o corpus da pesquisa neste livro: Paulina Tervo, Katrina Mansoor, Cláudia Priscilla, Kiko Goifman, Pedro Marques, Erika Lust. Gratidão especial a Claudinha e Kiko, presentes maravilhosos com quem compartilhei vivências para muito além dos filmes nos últimos anos. Também agradeço às/aos personagens-sujeitos que estão nos filmes abordados neste trabalho: Negra Jho, Cristina, Creuza, Jane, Hanan, Majda, Niveen, Yusra, Silvia, Davi, Irina, Joni, Dunia, Joel, Silvyo, Laerte, Phedra e todas as outras pessoas envolvidas nos filmes, algumas próximas/conhecidas, outras não, mas igualmente importantes ao trabalho. Tais sujeitos são expressões de como podemos viver e enunciar a diferença como potência e transformação, no que diz respeito ao sistema sexo-gênero e além.
Não poderia deixar de agradecer ao Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher – Neim, UFBA. Foi através dessa experiência que a latência do meu feminismo foi revelando-se uma experiência nomeadamente feminista. Por meio do envolvimento com o Neim pude entender, crítica e reflexivamente, o sentido de ser mulher, da construção e desconstrução do feminino em mim, de onde vinha meu incômodo com os arquétipos. Pude fortalecer minha experiência como sujeito em todos os sentidos e compartilhá-la com outros sujeitos. Agradeço, especialmente, a mulheres maravilhosas, como Cecília Sardenberg, Terezinha Gonçalves e Andrea Cornwall, pelo investimento em muitos níveis, pela confiança, por terem me mostrado uma perspectiva propositiva do feminismo, por meio de laboratórios, oficinas, reuniões, aulas, almoços, festas, viagens e amizade. Minha vida não foi mais a mesma após essa passagem.
À Maysa Araújo e Pagu Zete, pela revisão criteriosa, e, enfim, gratidão a todas às mulheres e pessoas LGBTQI+ que resistem na luta contra as desigualdades de sexo-gênero-sexualidade e existem na configuração da diferença como sentido legítimo da experiência.
[...] quando falo de mudança, não me refiro a uma simples troca de papéis, ou a uma redução temporária das tensões, nem à habilidade de sorrir ou se sentir bem. Estou falando de uma alteração radical na base dos pressupostos sobre os quais nossas vidas são construídas.
(Audre Lorde)
PREFÁCIO
Nos anos recentes, parte dos discursos de gênero opta por deslocamentos conceituais dos estudos clássicos feministas, cujos objetos de saber, nos séculos XIX e XX – sufrágio das mulheres, direitos trabalhistas e educacionais e participação cultural –, não abarcam a complexidade das experiências de gênero. Com vistas a acolher acontecimentos no curso das lutas dos movimentos sociais e culturais de gênero, pesquisadores/as seguem em direção a significações dos fenômenos culturais de afirmação do Outro como prática radical e da linguagem fértil da diferença. Há, de fato, uma radicalização da diferença em stricto sensu. Não obstante, tal investida não significa a exaustão de estudos; na verdade, tem-se um longo caminho a trilhar.
Nessa perspectiva, parece-nos produtivo realçar estudos voltados para operações performáticas (palavras-ações) que estão a suscitar mudanças de palavras, escritos, imagens, gestos, alegorias na direção do devir feminista, tal como a presente obra de Fernanda Capibaribe Leite – cujo conteúdo, instigante e original, faz pensar numa cena enunciativa em trânsito – que oferece uma abordagem do discurso de gênero com base em uma narrativa feminista no sentido de estar-se numa iminência, num trânsito, tornando-nos
. Com rigor, a autora descortina diante de nós um estudo de fronteira, de luta política e cultural, de regimes de visibilidade de sujeitos em movimento – estudo que tem como foco principal a potência latente de sujeitos em suas práticas de contraconduta.
Jornalista, fotógrafa e pesquisadora, Fernanda Capibaribe Leite trabalha, há algum tempo, com temas da cultura: gênero, sexualidade, binarismos de sexo/gênero, política do dissenso e geografia feminista/queer. Entre a Universidade Federal da Bahia e a Universidade Federal de Pernambuco, desenvolveu investigações de interesse teórico e empírico pelo tema da cultura, atenta a suas ambivalências, a exemplo dos estudos: O ritual da roda: um ensaio fotográfico sobre as rodas de Capoeira de Angola nos anos 1990
na graduação; Teias Trançantes: O Mercado Cultural e as Dinâmicas da Cultura na Contemporaneidade
, no estudo de mestrado; e a tese de doutorado publicada neste livro Femme’en’scène: o devir feminista em audiovisuais.
O fio condutor desta obra está nos enunciados autobiográficos, nas narrativas de vida, nas confissões de desejos que o texto ajuda a disseminar, o que nos faz retomar Will Eisner ao dizer, em suas novelas gráficas, sobre como palavras e imagens sobre vidas experimentadas no clima de preconceito, ao longo do tempo, vêm permeando o mundo. A autora, ela própria, vê-se no texto que produz por reconhecer como está implicada como sujeito ao mirar outras subjetividades.
Fernanda Capibaribe Leite adota conceitualizações preconizadas no campo da teoria crítica do feminismo pós-estruturalista, sobretudo aquelas produzidas nas investigações de Judith Butler, Guacira Lopes Louro, Donna Haraway e Teresa de Lauretis, para investigar o devir feminista. Quer ver para além do feminismo, ou seja, para o que transborda das cenas em análise para fazer ver o olhar na perspectiva de mulheres, gays, lésbicas, transgêneras/os e as/os transexuais – em trânsito, um devir em curso.
Contudo o deslocamento que Fernanda Capibaribe Leite faz, em relação aos estudos clássicos, é tributário também de uma filosofia da resistência. Sob a influência de Jacques Rancière, a autora empreende uma análise de filmes, com foco na relação entre narrativa e espectador/a e na reflexão sobre em que medida esses filmes desencadeiam uma política do dissenso. Ela acolhe também elementos da reflexão filosófica de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Assim, mobiliza o devir feminista e propõe, a partir de Laura Mulvey, uma crítica ao cinema clássico, sugerindo a construção de novas possibilidades de olhar e uma contundente crítica ao olhar masculino.
Do ponto de vista metodológico, a autora opta por operar com a interpelação pela relação imagem-pensamento ao modo deleuziano para dar conta da análise de um arquivo que privilegia três tipos de narrativas: empoderamento de mulheres com documentários produzidos pelo Pathways of Women’s Empowerment; filmes de pornografia feminista dirigidos pela cineasta Erika Lust; e docuficções realizadas pela cineasta Cláudia Priscilla, abordando questões relativas a sujeitos transgêneros/transexuais. Essa relação imagem-pensamento é traduzida no modo como Fernanda Capibaribe Leite joga com imagem e conceito para fazer ver o incômodo, o estranhamento, o vislumbramento, sobressalto, ou nomeações, para indicar um trânsito. A análise que apresenta neste texto comporta, simultaneamente, os aspectos: memória, como mudança de tendência; rosticidade, como afecção; legitimação dos processos subjetivos; eventos de endereçamento; emergência da política do dissenso e fraturas do referencial estável do tempo – e, assim, poder ver as produções feministas para além dos filmes.
Aonde chega a obra aqui apresentada? Seguindo Fernanda Capibaribe Leite até o final do seu texto, singular no gênero, vamos abdicar do desejo de apreender uma narrativa pronta e verdadeira da relação entre cinema e sujeito de gênero. Ao adotar a perspectiva do devir feminista, ela parece anunciar que a apreensão das questões de gênero na atualidade demanda formulações teórico-empíricas desafiadoras pela sua complexidade. Ela própria, pelo caminho que tomou, reconhece a incompletude das possibilidades das narrativas de trânsito, já que o devir não significa uma transformação plena, mas se conforma como algo que atravessa – um fluxo-potência. Talvez por isso mesmo, a leitura deste texto possa ser de interesse não apenas para pesquisadores/as de gênero.
Rosângela Tenório de Carvalho
Professora da graduação em Pedagogia e pós-graduação em Educação na Universidade Federal de Pernambuco. Sua atividade de trabalho e pesquisa foca na relação entre cultura e educação, rituais de disciplinamento e performatividade, trabalhando especialmente nos campos teóricos do discurso foucaultiano e dos estudos culturais. Dedica-se, em sua pesquisa, às questões relacionadas aos modos de subjetivação por meio de práticas curriculares e rituais nas relações de gênero, raça e etnia, geração. É autora do livro O discurso intercultural no campo curricular da educação de jovens e adultos no Brasil. Seus artigos, em periódicos e livros, têm privilegiado a relação cultura, escolarização e modos de subjetivação.
Sumário
INTRODUÇÃO 17
1
Sobre o que impele e o que repele 33
Os Feminismos e os Gêneros entre Elaborações Possíveis
33
1.1 BREVE HISTÓRIA NARRADA EM RASURAS 33
1.2 SOBRE PERTENCIMENTOS E INADEQUAÇÕES: O QUE SIGNIFICA
SER FEMINISTA? 35
1.3 SISTEMAS DE SEXO-GÊNERO COMO CAMPO HISTÓRICO-ANALÍTICO 43
1.4 PELA POLÍTICA DAS AFINIDADES: DO FEMINISMO MULHER
AO
FEMINISMO CIBORGUE
50
2
SOBRE AS IMAGENS E OS GÊNEROS 57
Os Feminismos entre Poética e Devir
57
2.1 TRILHAS FEMINISTAS ENTRE SUJEITOS E OLHARES ATRAVÉS DAS CÂMERAS 57
2.2 O QUE A TELA DIZ AO OLHO: OS FEMINISMOS ENTRE ESPECTADOR/A, TEMPO E NARRATIVA 70
2.3 O LUGAR DA DIFERENÇA: SOBRE O QUE NOS TORNA DISTINTOS 83
2.4 POR UM DEVIR FEMINISTA NUM REGIME ESTÉTICO POSSÍVEL DAS IMAGENS 98
3
IMAGENS FEMINISTAS, PERCEPTOS DE DEVIR 113
Uma Reflexão sobre Audiovisuais em Três Tomos
113
3.1 POR MEIO DAS IMAGENS E DOS SONS: APONTAMENTOS SOBRE POÉTICA, ESTÉTICA, POLÍTICA E EXPERIÊNCIA NO CINEMA E AUDIOVISUAL 113
3.2 TOMO I − NA TRILHA DOS SUJEITOS SINGULARES: O QUE ME CONTAM
AS IMAGENS DO EMPODERAMENTO? 129
3.2.1 Eu me lembro
: primeiro percepto de devir entre imagens
e relatos 134
3.2.2 Segundo percepto de devir: faces do rosto
e imagem-afecção 146
3.2.3 De buzzword à potência: pelo empoderamento de mulheres
em trânsito 156
3.3 TOMO II – O SUJEITO, A PORNOGRAFIA E O REGIME ESTÉTICO DA ARTE 168
3.3.1 Reinvenções do discurso no prazer apropriado: a filmografia de Erika Lust ou Porque também somos sujeitos do sexo 182
3.3.2 Terceiro percepto de devir: a subjetificação dos corpos
sexuados na narrativa pornográfica feminista 195
3.3.3 Novos modos de prazer visual: o evento de endereçamento como quarto percepto de devir feminista 202
3.4 TOMO III – QUANDO AS FIGURAÇÕES FEMINISTAS TRANSBORDAM O
SEXO E OS GÊNEROS NOS FILMES 211
3.4.1 Quinto percepto de devir feminista: os audiovisuais e a
emergência da política do dissenso em sujeitos
transgênero/transexuais 238
3.4.2 Sobre o tempo fragmentado em imagens cristalinas, ou
o sexto percepto de devir feminista 247
CONSIDERAÇÕES FINAIS 255
Notas sobre uma Cena em Processo
255
REFERÊNCIAS 267
INTRODUÇÃO
Eis que começa a trama. Tecida de histórias, vivências, inquietações, rastros, sensibilidades. A viagem que convido a empreender, daqui em diante, transborda o campo da investigação acadêmica e de pesquisa e liga-se muito intimamente à minha trajetória. Talvez, por isso, seja interessante começar a trilhar essa via, a da motivação e permanência nesta viagem, qual seja, estar constantemente refletindo sobre e alinhavando minha experiência e o processo de construção, sempre inconcluso, desse corpo materializado e contextualizado na condição do ser mulher
. Afinal, e antes de tudo, é essa condição e os constructos a ela atrelados que me impulsionam na direção de uma pesquisa conectando a formação em comunicação ― fotógrafa e jornalista ― aos estudos de gênero e feministas.
Acredito ser difícil para uma mulher inserida nos estudos feministas desprover-se de sua implicação como sujeito ao mirar outras subjetividades. E não é à toa que os laboratórios feministas se constituem como recursos metodológicos na área partindo de tal entendimento. Os indicadores que me servem como guia, portanto, não podem estar somente ligados a um/a outro/a
que tomo como objeto da investigação; porque estou inserida no universo da pesquisa, da reflexão e da escrita, vivo suas elaborações, seus tensionamentos e suas escolhas. Assim, parte desta narrativa, que aqui se inicia, é também parte da história de quem a narra. Ciente do desafio implicado nessa empreitada, espero poder evidenciar os trânsitos que transbordam o quadro das investigações teóricas, mas retornam sempre a elas, revisionados.
Começando pelos caminhos trilhados até aqui, devo afirmar que a questão de gênero me motivou de muitas maneiras ao longo da vida. Antes intuitivas, mais sensoriais, agora contextualizadas, mais concretas, porém não definitórias, ou conclusas. Venho imbuída, assim, da constatação de que as desigualdades envolvendo o quesito sexo-gênero-sexualidade me mobilizam, de maneira integrada, por trazerem questões referentes aos meus processos de subjetivação, às rotas pelas quais opto (e as que também me cooptam) na construção de afinidades, aos discursos que gradativamente vão habitando meu corpo. E não escrevo apenas sobre o corpo material, mas sobre um corpo mais amplo, o corpo cultural, aquele impregnado de significados que expandem sua materialidade e nela reverberam. É a partir desse lugar autorreflexivo, portanto, que posso abordar as performatividades relacionadas ao gênero, às (des)construções identitárias e às afinidades políticas de outras subjetividades narradas e figuradas nas imagens.
No campo da intuição/sensibilidade, posso pontuar que as afirmativas sexistas, os abusos e as violências decorrentes de naturalizações desiguais de gênero, bem como as ironias que, através da narrativa cômica, visam a estabilizar lugares demarcados de poder, vêm me mobilizando numa perspectiva de enfrentamento regular. No campo da investigação notadamente contextualizada, meu percurso com gênero começa conectando as duas vertentes que também articulo nesta obra: imagem e estudos feministas.
Em 2007, fui convidada pelo Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher – Neim, então órgão suplementar da Universidade Federal da Bahia – UFBA, para ministrar um curso de instrumentalização e linguagem fotográfica a integrantes do consórcio internacional intitulado Pathways of Women’s Empowerment¹. A proposta do curso era capacitar bolsistas participantes ― o que incluía estudantes de graduação, mestras e doutoras de diferentes áreas ― para o trabalho em campo realizando imagens. Ou seja: o consórcio partia da premissa de que a elaboração de documentos textuais acadêmicos não bastava ao objetivo de endereçamento às mulheres para tratar sobre questões de autonomia e acessos alcançados. Nessa perspectiva, era prevista a realização de material (áudio)visual que ampliasse o público-alvo do consórcio, mediante a elaboração de narrativas envolvendo trilhas do cotidiano ligadas ao empoderamento de mulheres; adentrando, assim, nos relatos de vida de diferentes sujeitos e tendo como foco as dinâmicas de mudanças, permanências e retornos em suas experiências.
A vivência no Neim, entretanto, mostrou-se mais intensa do que uma experiência pontual. Para a turma de fotografia, abriu-se um universo amplo de possibilidades no que toca a certa magia
da produção de imagens, além de um sentido de coesão do que significava realizá-las coletivamente, em equipe. Para mim, descortinou-se um universo/campo de estudos que veio a permear, significativamente, meu percurso acadêmico posterior: os estudos de gênero e a teoria feminista. Ao final do curso, realizamos uma mostra audiovisual, e fui convidada a integrar o consórcio como bolsista permanente, coordenando o setor de audiovisual da sede no Neim.
Enquanto programa internacional de pesquisa e comunicação, fundado em 2006, o consórcio definiu como objetivos o entendimento e o empreendimento de esforços para a construção de mudanças positivas nas vidas das mulheres
². À época de sua constituição, além do Neim/UFBA no Brasil, o programa também envolvia mais quatro instituições em outros países, a citar: o Núcleo de Pesquisas sobre Gênero no IDS − Institute of Development Studies, Brighton, Inglaterra; o Centro de Estudos sobre a Mulher na BRAC University, Dakha, Bangladesh; o Centro de Estudos sobre a Mulher na American University no Cairo, Egito; e o Núcleo de Pesquisas sobre a Mulher na Universidade de Gana, Acra, Gana. Participar do consórcio, portanto, significou também interagir com as reflexões e ações que vinham sendo desenvolvidas pelos demais grupos integrantes. Houve um investimento do programa em potencializar fluxos de empoderamento focados, antes de tudo, em suas participantes, o que fez com que minha atuação não se resumisse ao contexto do Neim, mas também fosse socializada em outras situações e lugares. Por isso, além da realização de imagens e produtos comunicacionais localmente, acabei participando de atividades em outras cidades/países, a exemplo de workshops em Nova Delhi, na Índia, ou encontros feministas em Florianópolis, Santa Catarina, e Boston, nos Estados Unidos, a fim de trocar experiências entre os núcleos, além de difundir o trabalho que vinha sendo desenvolvido.
No contexto local, a participação no programa previu a construção de todas as etapas da pesquisa, tais como: leitura e discussão de textos; construção de indicadores e questionários para trabalhar a etapa quantitativa em campo e elaboração de roteiros/gravação de narrativas, em áudio e vídeo, focadas nas histórias de vida de mulheres. Tais atividades compuseram as diversas linhas de ação dos projetos relacionados ao consórcio por meio do Neim. Todos estiveram, entretanto, associados, de uma maneira ou de outra, ao estudo comparativo e crítico que associava os acessos de mulheres através de cortes geracionais e demarcadores de gênero cruzados com classe e raça, com o intuito de verificar, nos últimos 60 anos, o que havia mudado, permanecido e mesmo retrocedido em suas (nossas) experiências de vida. Grifo a primeira pessoa no plural porque tais reflexões envolveram todas as pessoas participantes do processo. No meu caso, tal proposta esteve direcionada à predominância de atividades de interpretação e realização de imagens na perspectiva feminista, mais precisamente adotando um olhar propositivo por intermédio das histórias de vida.
Foi fundamental, no processo, a operacionalização metodológica à qual tive acesso, qual seja, as vivências nos laboratórios feministas, em que cada integrante narra ao grupo recortes de suas histórias próprias por diversas perspectivas, tais como relações na família, no trabalho, educação, sexualidade e situações de violência. A partir desses relatos, fomos traçando os indicadores para serem trabalhados no projeto como um todo. Também fomos, cada uma, configurando-nos como sujeitos, partes de composição da dinâmica metodológica do trabalho. Essa inserção tem forte influência na aproximação que adoto neste livro, ou seja, certo modo de olhar as imagens do corpus e certo caminho analítico percorrido a partir de meu lugar como mulher e espectadora. E é por tais relações que destaco experiência no programa Pathways visando a chegar à minha pesquisa no PHD, que se configurou como desdobramento da participação no referido consórcio.
Meu ingresso, em 2011, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE propunha, inicialmente, o desenvolvimento de um modelo de análise de imagens, na perspectiva feminista, focando o corpus de fotografias e filmes produzidas/os no consórcio desde 2006. Tal proposição associou como campo de abordagens teóricas, além dos estudos feministas focados no empoderamento, os Estudos Culturais e a Filosofia da Imagem, a partir de leituras e experiências prévias já nessas áreas. A princípio, o corpus investigativo da pesquisa estava focado em cinco produtos fotográficos/audiovisuais, ligados ao consórcio, do qual eu partiria para desenvolver a análise. Contudo, como discorro a seguir, ao longo da imersão na pesquisa, acabei por sentir necessidade de integrar a esse corpus outros tipos de produção, a fim de ampliar as perspectivas feministas possíveis através das imagens, e acompanhando meu próprio trajeto de leituras e trânsitos com a temática proposta. O trabalho, dessa maneira, foi tomando outras trilhas, autônomas em relação àquelas das quais participei anteriormente, tanto no que diz respeito à filmografia abordada quanto no próprio enfoque relacionado ao empoderamento de mulheres como vertente teórica adotada. Por isso, ainda que tenha mantido a prerrogativa de realização de um trabalho envolvendo as questões de gênero/feministas não previstas por um distanciamento como pesquisadora, mas, ao contrário, numa perspectiva analítica integrada; os novos rumos adotados no processo também definiram outras estratégias de abordagem.
Por serem produtos realizados sob uma certa mirada nos referenciais de trânsito na vida das mulheres, os produtos imagéticos do programa Pathways estavam focados na transformação mediante o acesso ao trabalho e não previam outras esferas importantes, tais como a sexualidade, ou as relações familiares, também demarcadas pelas dicotomias de gênero, das quais já sentia falta ainda atuando no consórcio. Também estava interessada em poder abordar as perspectivas mais controversas, menos enunciáveis, decorrentes dos tensionamentos e das negociações que emergem dos discursos relacionados à diferença, de maneira que um tornar-se
algo pudesse ser abordado por fluxos múltiplos, interconectados e, muitas vezes, desencontrados nos vários atravessamentos que nos fazem sujeitos. Nessa busca por lugares onde essas contraversões estivessem latentes, e sempre perpassadas por uma experiência e um repertório próprio, cheguei à pornografia feminista.
Em paralelo à pesquisa no Neim, as questões envolvendo uma cultura pornográfica e sua relação com os papéis de gênero desempenhados no âmbito da sexualidade também já vinham despertando meu interesse há algum tempo. Como consumidora de uma pornografia acessível pós-internet, percebia, nas performances sexuais mostradas em boa parte dos filmes, o olhar, convencionalmente, focado nos homens e no universo do masculino. Tinha interesse em aprofundar a questão a fim, sobretudo, de abordar um incômodo pessoal em relação aos interditos colocados às mulheres, espectadoras e/ou interessadas no tema. A temática da sexualidade nos excita a todas/os, ou quase, mas assistir à boa parte dos filmes não constituía um endereçamento no qual me sentia contemplada. Entendia, assim, que abordar o conteúdo pornográfico por meio de um olhar feminista seria um viés pertinente de problematização desse gênero fílmico relacionado à construção dos imaginários sobre sexualidade.
Por essa via, através de pesquisas em rede, é que chego ao website do Feminist Porn Award – FPN³. Um prêmio que contempla produções em pornografia atendendo a três pré-requisitos: a) que mulheres ou pessoas tradicionalmente marginalizadas componham a direção, produção e/ou concepção do trabalho apresentado
⁴; b) que a narrativa aluda "ao prazer genuíno⁵ de performers nas imagens, especialmente em se tratando de mulheres e pessoas marginalizadas⁶"; e c) que os trabalhos
[...] ampliem as fronteiras da representação do sexo nos filmes, desafiando estereótipos e propondo uma visão que vá além do imaginário convencional da pornografia, o que inclui a diversidade de desejos, personagens, corpos, práticas sexuais, e apresente recortes antirracistas e contra a opressão.⁷
Um evidente tensionamento dos feixes discursivos que modulam o imaginário do gênero pornográfico pré-internet, comumente chamado de mainstream pornográfico⁸. Uma proposta explícita de reformulação da forma como vemos o ato sexual representado e pensamos as sexualidades interpretadas pelos corpos nas imagens. Uma adequação imediata com as inquietações que norteavam minha busca, sem deixar de engajar a proposta no trânsito, e por via das transformações, numa perspectiva da autonomia e dos acessos abertos mediante os fluxos de permanências e descontinuidades focados na representação das sexualidades.
Debrucei-me, mais detidamente, à filmografia de Erika Lust, diretora sueca com formação em Ciências Políticas e Estudos de Gênero/Feministas, que tem vários filmes lançados após direcionar sua carreira exclusivamente à realização de pornografia feminista. A diretora montou uma produtora de filmes em Barcelona, Espanha, a Lust Films, dedicada a tais realizações. Foquei-me em sua filmografia, sobretudo, por propor essa diretora uma inserção política que extravasa seus filmes, por meio de publicações, palestras e um manifesto intitulado The Good Porn⁹. Nele, a diretora defende a produção pornográfica para além de uma indústria constituída que reitera um padrão estereotipado de mulheres objetificadas em função do desejo masculino e contra a incitação de diferentes formas de violência contra mulheres e outros sujeitos das margens
.
Sua militância, autodenominada "sex-positive¹⁰", portanto, está focada em produções pornográficas que contemplem grupos fora da hegemonia homem-masculino-heterossexual-sexista, apresentando outras experiências narráveis através das imagens, mesmo que sejam pelo viés da heterossexualidade. Em