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Controle concentrado de constitucionalidade

O “Guardião da Constituição” no embate entre Hans


Kelsen e Carl Schmitt

Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

Sumário
1. Introdução. 2. Estado, Constituição e nor-
mas constitucionais. 2.1. A Grundnorm de Kel-
sen. 2.2. Constituição e leis constitucionais em
Schmitt. 3. Justiça constitucional. 3.1. O contro-
le de constitucionalidade e o Tribunal Consti-
tucional Kelseniano. 3.2. A crítica de Schmitt
ao Tribunal Constitucional. 4. Quem deve ser
o guardião da Constituição?

1. Introdução
Este ensaio buscará cuidar do embate
entre dois dos mais notáveis juristas do sé-
culo XX, Hans Kelsen e Carl Schmitt, acerca
da questão sobre quem deveria ser o “Guar-
dião da Constituição”. Pretendemos mos-
trar mais de cerca os fundamentos do siste-
ma de controle concentrado, tal como foram
pensados no Estado Social (para depois
revê-los desde o atual paradigma do Estado
Democrático de Direito). Ademais, a discus-
são mostrará, de forma geral, os princípios
do próprio controle judicial de constitucio-
nalidade. Isso porque é com Kelsen que o
controle de constitucionalidade passa a ser
tido como um capítulo do Direito. O que ha-
via antes, principalmente nos EUA, eram prá-
ticas jurisprudenciais que, como bem dizia
Lúcio Bittencourt, declaravam o princípio da
nulidade absoluta de uma lei declarada in-
constitucional sem mostrar-lhes os funda-
Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia é mentos (BITTENCOURT, 1997, p. 140-141).
Advogado, Mestre e Doutorando em Direito Kelsen leva a sério o tema do controle de
Constitucional pela UFMG. constitucionalidade, buscando dar-lhe con-
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tornos científicos; não só do controle con- Quanto a Schmitt1, seu antagonismo a
centrado que ele cria, mas também do con- Kelsen já pode ser visto desde a primeira
trole americano, que ele busca estudar, até década do século, mas, a partir da publica-
mesmo para ao final tecer-lhe críticas. O con- ção de A defesa da Constituição, tornou-se uma
fronto entre Kelsen e Schmitt representa – confrontação direta.
além de uma belíssima demonstração de téc- Vale a pena lembrar que a época em que
nica e retórica – a afirmação da teoria kelse- os dois juristas publicaram os textos acima
niana sobre o controle judicial de constitu- foi marcada pela instabilidade. Em 1929, a
cionalidade. grande crise econômica mundial afetou sen-
O resultado dessa oposição é uma teoria sivelmente a República de Weimar. Havia
mais depurada por parte de Kelsen, ofere- também internamente uma crise de susten-
cendo a todos um trabalho final muito me- tação política do governo. A partir do final
lhor. Para nós, o trabalho de Kelsen é um de 1930, o chanceler Brüning começa a go-
referencial não só pela grandeza de suas vernar por regulamentos (editados pelo pre-
teses, mas também porque foi justamente ele sidente), que se apoiavam na segunda parte
o criador do controle concentrado que vie- do famoso artigo 48 da Constituição de Wei-
mos a copiar em meados do século passado mar:
e que hoje tem enorme importância no que “Art. 48. (...) No caso de a ordem e
se refere à jurisdição constitucional no a segurança pública do Reich serem
Brasil. Não é possível estudar os efeitos da perturbadas ou ameaçadas, o Presi-
declaração de inconstitucionalidade (ou de dente do Reich pode tomar as medi-
constitucionalidade) nas várias ações hoje das necessárias para seu restabeleci-
existentes em nosso intricado sistema de con- mento, se for necessário, com o auxí-
trole concentrado de constitucionalidade sem lio das forças armadas”.
estudar os fundamentos dados pelo jurista O próprio Schmitt (1983, p. 25), a despei-
vienês; é importante, outrossim, para vermos to de apoiar publicamente a decisão de Brü-
o quanto seus ensinamentos podem ser ade- ning, reconhece a crise vivida pela Alema-
quados à nossa realidade constitucional. nha, chegando a escrever no prefácio de seu
Para tanto, seguiremos as discussões tra- livro que a análise acerca do guardião da
vadas entre os dois juristas acerca de quem Constituição era um trabalho “difícil e peri-
deveria ser o “Guardião da Constituição” e goso”; na Áustria, a situação não era muito
como essa discussão contribuiu para a Teo- diferente, conforme veremos infra.
ria da Jurisdição Constitucional (OLIVEIRA, Além disso, ambas teorias se deparam
2000, p. 119 et seq.). com o problema da unidade do Estado, ame-
Os textos que utilizaremos para expor o açada pela emergência política do proleta-
tema serão basicamente, de Carl Schmitt, Der riado, principalmente após a 1 a Guerra. Pro-
Hüter der Verfassung (A defesa da constituição), curam elas, de alguma forma, mostrar como
publicado no princípio de 1931, e a respos- seria possível a integração dessas massas
ta de Kelsen, Were soll der Hüterder Verfas- em um Estado cujas lutas prefaciavam a
sung sein? Quem deve ser o Guardião da Cons- aniquilação e/ou a ameaça bolchevique.
tituição?, publicado pouco depois. A proposta da Constituição de Weimar
Mesmo antes da publicação de Schmitt, apontava na direção de uma democracia
Kelsen já sofria ferrenha oposição de alguns orgânica em um Estado Social e inclusivo,
juristas, que acusavam sua teoria de “extre- inaugurando uma nova fase dentro do cons-
madamente formalista, una lógica vacia, titucionalismo; mas, como dissemos, justa-
incapaz de dar cuenta de los fenómenos re- mente essa ordem estava a ruir. O “Estado
ales, de la vida del derecho, una teoría sin Plural” vai ser grandemente combatido por
sustancia” (HERRERA, 1994, p. 198). Schmitt, que vê na homogeneidade o princí-

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pio da democracia. Kelsen, ao revés, apóia o Contribuiriam para esse mecanismo as
aumento de agentes na política e ataca, di- oscilações de maiorias, o que possibilitaria
zendo que, na verdade, as elites estavam a sempre a revisão dos compromissos de acor-
temer uma emergência do proletariado. É do com a representação mais atual. Apesar
esse o pano de fundo que dará a tônica das da possibilidade de se constituírem novos
discussões que se seguem. compromissos, isso não poderia significar
Apenas para podermos situar a concep- mudanças tão drásticas justamente porque,
ção de cada um sobre a defesa da Constitui- ao final, o Parlamento teria de ser fiel à Consti-
ção, vamos, ainda que sucintamente, expor tuição, já que lhe é tributário quanto à sua ori-
algumas de suas idéias centrais sobre uma gem e atribuições3. Por essa razão, para Kelsen
concepção de Estado, de democracia e de (1998, p. 129), não faz sentido opor a Justiça
Constituição. Constitucional frente a uma pretensa “so-
Antes, porém, queremos deixar aqui uma berania do Parlamento” (que, aliás, não exis-
observação a respeito dos textos de Kelsen te para ele). É que
que pesquisamos no sentido de concordar “no se puede dejar de reconocer que
com Herrera (1994, p. 215), quando afirma la Constitución regula, en definitiva,
que ocasiões como essa servem para des- el procedimiento legislativo de la mis-
mistificar o autor de Teoria pura do direito ma forma que las leyes regulan el pro-
como um teórico despreocupado dos pro- cedimiento de los tribunales y de las
blemas concretos; muito ao contrário, como autoridades administrativas, que la
se verá, o que percebemos foi um publicista legislación está subordinada a la
ferrenhamente defensor da democracia e da Constitución exactamente igual que la
formação plural e democrática das leis no justicia y la administración lo están a
Parlamento. la legislación”.
Assim, a grande importância dada por
2. Estado, Constituição e normas ele ao Parlamento não configura uma “so-
inconstitucionais berania do Parlamento” e nem qualquer
defesa de uma “ditadura da maioria”, an-
2.1. A Grundnorm de Kelsen tes pelo contrário, apesar do apoio às deci-
sões colegiadas no Parlamento, Kelsen co-
Kelsen acredita no Parlamento como ins- loca as leis daí decorrentes dentro de uma
tituição nuclear da democracia representa- (rígida) estrutura escalonada, em que estas
tiva. Como bem analisou Fioravanti (1999, estão abaixo – e, logo, sob a dependência –
p. 156), na perspectiva de Kelsen, a Consti- da Constituição4, e, como veremosinfra, uma
tuição democrática não possui donos, não é das funções da Justiça Constitucional é jus-
filha de um sujeito ou de um poder, mas de tamente a defesa das minorias.
“un proceso que produce constitución en la A Constituição da Áustria a ser aqui con-
medida en que es capaz de mediar, de com- siderada é a aprovada em 1920 até as refor-
poner, de representar en su interior la plu- mas de 1930. As emendas após 1930 não
ralidad de las fuerzas y de los concretos in- serão por ele consideradas para tratar do
tereses existentes”. Os grupos representa- tema da jurisdição constitucional, porque,
dos no Parlamento, em suas discussões, pro- nas palavras do próprio Kelsen ([19--?], p.
curariam não verdades absolutas (como acu- 81), tais emendas “fueron decretadas bajo
sava Schmitt, infracitado), mas verdades re- un régimen semifacista y tenían la tenden-
lativas, que gerariam compromisso, essência cia de restringir el control democrático de la
da democracia e que consiste em “posponer constitucionalidad de las leys”.
lo que separa a los associados en favor de lo É sobre aquele período anterior que
que los une” (KELSEN, 1992, p. 453)2. Kelsen traça uma proposta de proteção de

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tipo judicial e concentrada à Constituição, Fundamental. Trata-se de uma norma que
o que representou não só uma novidade, mas se constitui no fundamento do Estado (que
uma revolução conceptual, que viria a pro- na verdade com ele se confunde) e que regu-
pagar-se pelas mais diversas regiões do glo- la a produção de todas as outras normas,
bo, conforme vimos na primeira parte deste por isso, deve ser rígida e assegurada a mai-
trabalho. Nesse status constitucional, foram or estabilidade possível. A unidade do or-
dadas garantias à Constituição contra leis e denamento jurídico dá-se enquanto as leis
regulamentos. Sobre os “regulamentos”, vale ordinárias são produzidas em conexão de
a pena esclarecer que estes não são apenas dependência em relação à Constituição.
aqueles editados pelo governo para darem Fala-se então de Constituição em senti-
eficácia às leis (os nosso conhecidos decre- do material – normas que regulam a produ-
tos), mas aos doutro tipo, isto é, aos regula- ção das demais normas – e Constituição em
mentos editados “diretamente debaixo da sentido formal – um documento que contém
Constituição”. normas referentes a assuntos politicamente
Kelsen ([19--?], p. 82) tem uma especial relevantes. Sinteticamente, pode-se entender
preocupação com essa espécie normativa – Constituição como
preocupação essa que não se mostraria in- “un principio en el que se expresa ju-
fundada dados os acontecimentos futuros. rídicamente el equilibrio de las fuer-
Segundo o mestre vienês, o controle sobre zas políticas en el momento que se
os regulamentos era até mais importante do toma en consideración” (...) [é também,
que o sobre as leis, já que “el peligro de que como norma superior,] “la norma que
los órganos administrativos excedam los lí- regula la elaboración de las leys, de
mites de su poder de crear normas jurídicas las normas generales en ejecución de
generales es mucho mayor que el peligro de las cuales se ejerce la actividad de los
una ley inconstitucional”. A observação, órganos estatales, de los tribunales y
inclusive, é particularmente interessante e de las autoridades administrativas”
vale para nosso atual momento institucio- (KELSEN, 1998, p. 115; Cf. FIORA-
nal; referimo-nos às medidas provisórias que VANTI, 1999, p. 155).
têm se proliferado e que certamente amea- A nova fase do constitucionalismo, o Soci-
çam a ordem constitucional tanto ou mais al, inaugurado formalmente com a Consti-
que as leis. tuição de Weimar, não passa desapercebi-
Conclui Kelsen ([19--?], p. 84), da por Kelsen. Observa ele que, nas “Cons-
“la utilización abusiva del artículo 48 tituições modernas”, é ampliado o conteú-
de la Constitución de Weimar, que do de normas naquele segundo sentido, pois
autorizaba al Gobierno a promulgar re- contêm um catálogo de direitos fundamen-
glamentos, fue el camino a través del cual tais dos indivíduos ou liberdades indivi-
el caracter democratico de la Republica fue duais.
destruído en Alemania, y preparó el as- A conseqüência é que agora uma lei pode
censo del nacional-socialismo al poder” ser inconstitucional por contrariar o proce-
[grifos nossos] (Cf. KELSEN, 1998, p. dimento de sua elaboração (inconstitucio-
133-134). nalidade formal) ou por seu conteúdo con-
Mais à frente, mostraremos o quanto ele es- trariar os princípios da mesma (inconstitu-
tava preocupado com os regulamentos no cionalidade material). Com a ajuda da pirâ-
tocante à independência do Tribunal Cons- mide hierárquica do ordenamento, Kelsen
titucional em relação à Administração e à (1998, p. 110) mostra que, no transcurso des-
forma de escolha dos juízes. de a Constituição até a sentença (e regula-
Qual a concepção de Kelsen sobre a mentos), “el Derecho regula su propria cre-
Constituição? A Grundnorm é a Norma ación y el Estado se crea y se recrea sin tre-

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gua con el Derecho” 5 (Cf. KELSEN, 1998, p. já superada), mas essa não é uma crítica que
111-112). apenas opõe o empírico e o ideal; trata-se de
A regularidade da lei e normas inferiores condenar todo o modelo e sua base legiti-
(ou, o que dá no mesmo, a garantia da Cons- mante. O problema é que a Constituição de
tituição) se afere pela relação de correspon- Weimar surgira na época em que o Reich
dência de um grau inferior com um superi- estava limitado pelo Tratado de Versalhes.
or. Dessa forma, não só as normas indivi- Desde a reconstrução histórica feita por
duais (sentença e atos administrativos) po- ele, a Constituição de Weimar era, quanto à
dem ser conferidas com relação à lei, mas sua ideologia, uma Constituição “póstuma”,
também esta pode ser avaliada frente à porque buscaria realizar as já fracassadas
Constituição. Essa regularidade apenas idéias liberais-burguesas do século XIX, man-
pode ser aferida por um Tribunal Constitu- tendo suas instituições e regulamentos.
cional, conforme falaremos mais adiante. No século XIX, imperava o dualismo
Estado (burocrático, monárquico, que sus-
2.2. Constituição e leis cita desconfiança) vs. Sociedade (represen-
constitucionais em Schmitt tada no Parlamento), e a Constituição era
A respeito do Parlamento e da Democra- um contrato entre esses. Apenas em tal qua-
cia, era opinião de Schmitt (1983) que a cren- dro, em que a Constituição é vista como um
ça de que a democracia exercida no Parla- contrato entre Monarca e Povo (representa-
mento por meio do livre jogo de opiniões do no Parlamento), em que o segundo pre-
não era mais do que uma “metafísica libe- cisava a todo momento opor a Constituição
ral”. Democracia para Schmitt é vista como frente à insubordinação do primeiro, é que o
homogeneidade e, por isso, não estaria ame- Parlamento pode ser visto como o protetor da
açada pelo fascismo ou pelo comunismo, Constituição, de forma similar a uma parte
mas pela democracia de massas. contratante quando vela pelo pactuado6.
Schmitt diferencia Constituição (um todo Com o tempo, porém, o Parlamento co-
unitário ou decisão política sobre a existên- meça a se sobrepor e passa a ser o centro
cia de um Estado) e leis constitucionais (re- das atividades estatais; o Estado Legislati-
alização normativa). Constituição é a deci- vo vai se aperfeiçoando e desaparece aque-
são conjunta de um povo sobre sua existên- la dualidade, pois o Estado passa a ser a
cia política (SCHMITT, 1983, p. 130). A Cons- “auto-organização da sociedade”, interven-
tituição seria democrática quando cionista, assistencialista. Aqueles que se
“ha sido querida por el pueblo sobe- mostravam descontentes com as mudanças
rano, que en ella aparece como uni- trataram logo de atacar esse “Estado Total”,
dad política capaz de decidir sobre su principalmente seu órgão mais saliente, o
proprio futuro, [logo, o grande inimi- Parlamento: logo surgem reclamações de
go da Constituição se mostra] en el garantias contra o legislador – aqui estaria
gran proceso histórico, evidente a lo o “germe” das aspirações a um controle das
largo del siglo XX, de articulación de leis7. Vale a pena ressaltar que Schmitt não
la socieadad civil y política en senti- estava solitário nessas observações, como
do pluralista, que en esta línea se ve aponta Fioravanti (1999, p. 151), as discus-
como algo que continuamente corroe y sões em torno de um pretenso “absolutismo
pone en discusión la unidad del pue- parlamentar” estiveram presentes desde o
blo soberano representada en la cons- início da República de Weimar.
titución” (FIORAVANTI, 1999, p. 159). Voltando à questão da Constituição
Para o autor alemão, a Constituição de como contrato entre Governo e Parlamento,
Weimar era “liberal”, portanto desconfor- tendo como substrato uma sociedade dua-
me à realidade (devedora de uma tradição lista ou até pluralista, se antes de 1919 po-

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dia-se falar nessa idéia contratualista, após Ainda que não concordemos com sua
a Constituição introduz-se a “idea demo- opinião sobre a influência “danosa” dos gru-
crática de la unidad homogénea e indivisi- pos pluralistas, há um ponto que deve ser le-
ble de todo el pueblo alemán”, que se deu vado em consideração pela sua atualidade:
uma Constituição, por um ato unilateral. “Los grupos (...) que en cada momen-
Logo, a Constituição já não mais pode ser to dominan, consideran sinceramen-
vista como um contrato, senão no que tange te como legalidade la utilización
ao compromisso federativo. exhaustiva de todas las posibilidades
Ao lado de – e competindo com – esse legales y el aseguramiento de sus po-
elemento unilateral, haveria outro, o dos siciones, el ejercicio de todas las atri-
grupos pluralistas (SCHMITT, 1983, p. 114), buciones políticas y constitucionales
que formariam, sobre todo o território en materia de legislación, administra-
nacional, “constelações sociais” e “comple- ción, política personal, (...) de onde
xos de poder”. Apesar de não negar sua exis- resulta naturalmente que toda severa
tência e sua força – pelo contrário, Schmitt crítica e incluso cualquier amenaza a
mostra o quanto têm eles influenciado a su situación aparece para esos gru-
política do Reich –, ele acaba por relegar- pos como ilegalidad, como acto sub-
lhes o papel de amostras da fragmentação plu- versivo o como un atentado contra el
ralista do Estado, que não é vista com bons espíritu de la Constitución” (SCHMITT,
olhos por ele, conforme dissemos acima, 1983, p. 153)9.
dentro de sua visão de democracia como Um outro aspecto na doutrina de Schmitt
unidade do povo. (1983) é a “teoria da exceção”. Em sua Teo-
Dessa forma, a atuação desses grupos logia política (1922), ele define o soberano
de poder faria a Constituição transformar- como aquele que “decide sobre o Estado e a
se mais uma vez em um compromisso, ape- exceção”. O ordenamento jurídico está assen-
nas não mais entre Rei e Parlamento, mas tado sobre uma decisão10 e não sobre uma nor-
entre os próprios grupos sociais. Tal con- ma. Contrapõe-se a Kelsen, que identifica Es-
cepção, ultrapassada, de Constituição não pode tado e Ordenamento Jurídico, além de priori-
ser aceita na nova ordem, sendo de todo in- zar a formação democrática das leis a partir
compatível com aquele ato unilateral. das discussões parlamentares.
Mesmo que houvesse coalizões entre es- Schmitt critica ainda Kelsen dizendo que
ses grupos formando “compromissos”, elas sua teoria de Estado constitui uma “metafísi-
seriam variáveis e instáveis, o que geraria ca monista que exclui o arbitrário e a exce-
desagregação. A Constituição, assim, uma ção”. Segundo ele, a exceção faz parte do di-
obra atomizada dos grupos sociais (Consti- reito, pois é na situação de exceção que a sub-
tuição como convênio), poderia pois ser re- sistência do Estado mostra sua superiorida-
clamada pelos mesmos, frente ao Estado. de sobre a validade da norma jurídica, pois é
Schmitt (1983, p. 116) cita casos do Tribu- aí que a decisão fica livre de toda obrigação
nal de Justiça Constitucional, em que se per- normativa e a norma se reduz a nada (SCH-
cebe que as partes “aparentes” na verdade MITT, 1983, p. 132; HERRERA, 1994, p. 199).
representavam estruturas sociais ou coali-
zões de partidos em disputa, o que é incom- 3. Justiça constitucional
patível com sua teoria democrática8.
Além de pôr em perigo a formação da 3.1. O controle de constitucionalidade e o
unidade nacional, o pluralismo do conceito Tribunal Constitucional Kelseniano
de legalidade destruiria o respeito à Consti-
tuição e transformaria sua área de atuação Em primeiro lugar, vale apontar que a
em uma zona cinzenta. justiça constitucional, para Kelsen (1998, p.

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109), é “un elemento del sistema de medi- sita de outro ato jurídico que lhe retire sua
das técnicas que tienen como fin assegurar “qualidade jurídica”. Essa distinção torna-
el ejercicio regular de las funciones estata- se muito importante quando combinada à
les”11. A importância que já à época de Kel- distinção entre inconstitucionalidade for-
sen se dava à jurisdição constitucional deve- mal e material (supracitado - 2.1.); no pri-
se, segundo o mesmo, a razões teóricas e meiro caso, temos um ato nulo (trata-se de
jurídicas – às primeiras, pois somente há pou- uma pseudolei) e, no segundo, o ato é anu-
co tempo teria surgido a doutrina do escalo- lável (aqui, sim, a lei é inconstitucional).
namento das normas, que é para ele o que dá Dessa forma, dentro de uma teoria das
suporte ao controle de constitucionalidade. garantias, como observa o Professor José Al-
Quanto às razões políticas, como bem fredo de Oliveira Baracho (1999, p. 100),
mostra Kelsen, as doutrinas que até então Kelsen percebeu muito bem que a “anula-
se debruçavam sobre a realidade das mo- ção do ato inconstitucional representa a
narquias constitucionais, paradoxalmente, principal garantia e o meio mais eficaz de
não valorizavam o controle de constitucio- preservação da Constituição”.
nalidade das leis — já que é aqui que surge A despeito da teoria das nulidades, Kel-
a doutrina da Constituição como limite. Essas sen (1998, p. 124) diz que no sistema de di-
doutrinas, ao contrário, apresentavam o reito positivo não é possível conceber-se
monarca como o “artífice único” ou autên- uma norma que possa ser tida como nula,
tico da legislação, e a função do Parlamento pois apenas há nulidade após o reconheci-
seria a de apenas aderir, de maneira mais o mento por uma autoridade pública, e nun-
menos necessária, às suas ordenações. ca a priori13. Por isso, apenas se pode falar
Hodiernamente, portanto, a justiça cons- em nulidade como anulação com efeito re-
titucional deparava-se com um problema troativo. Leis criadas em desconformidade
teórico-constitutivo básico: como tratar da com o procedimento legislativo (ou que não
regularidade da legislação, ou criação do contenham o conteúdo por ele determina-
Direito, usando padrões estabelecidos pelo do) são “válidas” – no sentido de existentes
próprio Direito, objeto do controle?12 Esse – a despeito de revogáveis por um processo
problema fica ainda maior – diz Kelsen especial.
(1998, p. 110) – quando se confundem legis- A questão sobre quando um ato é nulo/
lação e criação do Direito, e, conseqüente- anulável deve ser decidida por uma esfera
mente, Direito e lei. A identificação entre le- pública. O particular não pode ter a prerro-
gislação e criação do Direito não pode ser gativa de atribuir nulidade a uma norma,
aceita por Kelsen, pois, segundo sua doutri- pois faria com que a mesma tivesse cessada
na, o aplicador da norma (juiz/administra- sua força coativa. Se o indivíduo ainda as-
dor) também cria Direito. sim o faz, é por sua conta e risco, pois pode vir
Haveria, enfim, duas formas de garantia a sofrer conseqüências caso a norma seja
da regularidade das normas. As chamadas posteriormente tida como constitucional.
garantias preventivas e as repressivas. O Assim, apenas os tribunais poderiam
controle preventivo refere-se às formas polí- verificar a constitucionalidade das leis. Mas
ticas de responsabilização pessoal do órgão todo e qualquer tribunal? Não, segundo a
que promulgou a lei e o outro, repressivo, concepção kelseniana. Se qualquer tribunal
jurídico, consiste em nada menos que a não pudesse verificar a regularidade de normas
aplicação da lei. gerais em um caso concreto, isso resolveria
As garantias repressivas referem-se à te- o problema para aquele caso, mas sua atua-
oria das nulidades: nulo (a priori) é o ato ção “apenas” pontual não conferiria uni-
quando qualquer pessoa pode lhe exami- dade ao sistema, podendo causar insegu-
nar a regularidade; anulável quando neces- rança jurídica; esta foi a maior crítica de

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Kelsen ([19--?], p. 83) ao sistema difuso ame- concentrado de normas contêm dispositivo
ricano, in verbis, “la ausencia de una decisi- semelhante, possibilitando ao Supremo Tri-
ón uniforme en torno de la questión sobre bunal Federal,
cuándo una ley es inconstitucional (...) es “tendo em vista razões de segurança
un gran peligro para la autoridad de la jurídica ou de excepcional interesse
Constitución”. social, (...) por maioria de dois terços
Se o controle difuso não é a melhor op- de seus membros, (...) decidir que ela
ção, propõe então o mestre de Viena um con- [a decisão] só tenha eficácia a partir
trole “concentrado”. Mas, para isso, era ne- de seu trânsito em julgado ou de ou-
cessária uma redefinição da organização tro momento que venha a ser fixado”
judiciária, já que a cúpula do Judiciário aus- (art. 27 da lei 9.868/99).
tríaco (como de resto em toda Europa Conti- Voltando ao Tribunal Constitucional
nental) não possuía força suficiente para Austríaco, Kelsen defendia que ele deveria
possibilitar o respeito às sentenças. De fato, ser independente do Governo e do Parla-
a Obster Gerichttshof não possuía autorida- mento; seus membros eram escolhidos pelo
de para que suas decisões sobre a constitu- Parlamento entre juristas renomados (Kel-
cionalidade das leis se impusessem aos de- sen mesmo presidiu o Tribunal por largo
mais tribunais ordinários (e administrati- tempo). A razão de assim ser está relaciona-
vos) inferiores, nem mesmo aquela Corte da diretamente com a posição do Tribunal
Suprema estaria obrigada a decidir da mes- Constitucional como legislador negativo.
ma forma em caso análogo posterior. Como a Constituição lhe confere uma fun-
A criação de um Tribunal Constitucio- ção tipicamente legislativa (derrogar leis),
nal era, pois, de suma importância para segue-se natural para Kelsen a escolha de
Kelsen, principalmente no que diz respeito seus membros pelo órgão legislativo, o que
à Constituição Austríaca (cujo projeto lhe de pronto diferenciava os juízes daquela
pertencia). Senão vejamos. A Constituição Corte dos demais, escolhidos pela Adminis-
de 1920 previu, nos artigos 137 a 148, a cri- tração. Tal é a importância disso que o juris-
ação do primeiro Tribunal Constitucional, ta vienês, ao se referir à reforma de 1929,
o Verfassungsgerichtshof, a quem foi dada a destaca, como um dos indícios da ascensão
competência primordial de anular leis que do nazismo na Áustria, a mudança na for-
considerasse inconstitucionais. ma de escolha dos membros da Corte Cons-
As decisões desse Tribunal anulavam a titucional, pois, com a citada reforma, os
lei inconstitucional, valendo (em princípio) antigos juízes do Tribunal Constitucional
para o futuro. Caso o Verfassungsgerichtshof foram afastados e os novos juízes passaram
considerasse que a lei é inconstitucional, a a ser escolhidos pela Administração.
decisão valeria contra todos, e a lei seria É curioso observar que o jurista vienês
anulada, cassada (aufhebt), ou seja, perde- não faz referência às outras mudanças que
ria a eficácia a partir da decisão. Isso quer a reforma de 29 provocou no Verfassungsge-
dizer que, até a sentença começar a ter eficá- richtshof, ao alargar a legitimidade ativa da
cia, a lei seria válida e os atos celebrados “ação de inconstitucionalidade”. A possí-
com base nela permaneceriam inalterados; vel razão dessa omissão, como já referido, é
em contrapartida, a decisão, quando come- que essas reformas já apontavam para a
çasse a produzir efeitos, atingiria a todos os queda do Estado austríaco e, com ele, da
órgãos do Estado e aos cidadãos em geral. Constituição tão cara a Kelsen.
Essa peculiaridade torna-se muito im- Sob o aspecto político, o Tribunal Cons-
portante no Brasil a partir do momento em titucional possuía duas funções: garantir a
que as Leis 9.868/99 e 9.882/99 que regula- idoneidade da democracia, oferecendo às
mentaram as ações referentes ao controle minorias um instrumento para se defende-

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rem das decisões da maioria, e ser também tuitiva, pois ignora a superioridade do Par-
uma garantia para o Parlamento, na medi- lamento sobre o Judiciário, na medida em
da em que controlava também os regulamen- que as decisões deste baseiam-se em leis di-
tos do Governo. Importante salientar que tadas por aquele. Os ensaios sobre um con-
essas eram as razões de existir um órgão de trole de tipo judicial produzidos até então
controle de constitucionalidade, na perspec- foram como que atos reflexos às ambições
tiva de Kelsen. Quanto à proteção das mi- intervencionistas do Estado, capitaneadas,
norias, diz ele: segundo Schmitt, pelo Parlamento.
“Si se considera que la esencia de Considerando a situação constitucional
la democracia se halla, no en la omni- política em que vivia, essa não lhe parecia a
potencia de la mayoría, sino en el com- melhor resposta à questão. O Estado abs-
promiso constante entre los grupos tencionista do século XIX desaparecera,
representados en el Parlamento por la dando lugar cada vez mais a um Estado que
mayoría y por la minoría y, como con- intervém, e em que “todos os problemas se
secuencia de ello, en la paz social, la tornaram estatais”.
justicia constitucional aparece como Seguindo os apelos dos que pediam um
um medio particularmente idóneo controle contra o Parlamento, o Tribunal de
para hacer efectiva esta idea” (KEL- Justiça Constitucional do Reich chegou a se
SEN, 1998, p. 152). colocar como protetor da Constituição. No
Dessa forma, o Tribunal Constitucional mesmo sentido, pululavam projetos de lei
podia então garantir a paz política dentro que atribuíam a um tribunal a missão de
do Estado. Dizia Kelsen (apud HERRERA, defender a Constituição. Mais uma vez,
1994, p. 204), em seu ensaio Essência da de- Schmitt atribui tal posicionamento à ideo-
mocracia, que “uma democracia sem contro- logia que concebe que um procedimento ju-
le não pode durar”. dicial resolve todos os problemas e desco-
nhece a diferença entre uma sentença e uma
3.2. A crítica de Schmitt ao resolução acerca de um preceito constituci-
Tribunal Constitucional onal, limitando a proteção apenas contra leis
Preliminarmente, começa Schmitt (1983, e regulamentos.
p. 27), “la demanda de un protector, de un Schmitt admite que os tribunais façam
defensor de la Constitución es, en la mayo- um controle geral e acessório das leis, mas
ria de los casos, indicio de situaciones críti- isso não significaria, pelo menos na Alema-
cas para la Constitución”. Assim teria sido, nha, uma defesa da Constituição. Para isso,
segundo seu parecer, na Inglaterra após ele diferencia proteção e controle. O que os
Cromwell e na França, na Constituição de tribunais em geral fazem é o controle das
1799, que, após grande agitação política, leis (tal atividade é ocasional, incidenter, di-
coloca o Senado como conservateur da Cons- fusa), mas não a proteção. Dizer o contrário
tituição. Se no século XIX, na Alemanha, os é querer importar o sistema de controle ame-
problemas constitucionais puderam ser ti- ricano, que não poderia ser adaptado a ne-
dos apenas como políticos e os mecanismos nhum Estado da Europa Continental.
de defesa da Constituição, deixados de lado, De outro lado, também ruim é a alterna-
admite o jurista alemão que, desde a Consti- tiva de se confiar tal missão a um Tribunal
tuição de Weimar, voltam a interessar as Constitucional; diz Schmitt (1983, p. 58) ci-
garantias especiais da Constituição e se de- tando Hugo Preuss, “pai” da Constituição
manda que “alguém” a proteja, pelas razões de Weimar, que retirar dos juízes comuns a
que abaixo relacionamos. função do controle difuso e atribuí-la a um
A princípio, pensa-se em um controle Tribunal excepcional seria como “encomen-
judicial, mas essa é apenas uma solução in- dar as ovelhas ao lobo”.

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Apenas poderia haver um controle judi- Parlamento era o natural defensor da Cons-
cial em um país onde toda a vida política tituição frente ao Governo (daí as teorias em
estivesse sob o controle dos tribunais, como torno das monarquias constitucionais), ago-
seria o caso dos EUA (SCHMITT, 1983, p. ra no século XX, se o Executivo não pode sê-
46, 52) (ver infracitado, 3.2), em que o tribu- lo, e nem o Legislativo, pois, como se disse,
nal, com base em princípios gerais e critéri- ele assumiu grande importância na estru-
os fundamentais, defendesse a ordem social tura do Estado, segue-se intuitivamente que
e econômica existente. cabe ao Judiciário ser o guardião da Carta
Afora isso, para que fosse possível po- Política.
der falar-se em contradição de uma lei fren- A limitação de um controle judicial, que
te à Constituição, seria imprescindível que não pode ir além do jurídico, pois do con-
a norma constitucional se pudesse subsu- trário iria desnaturar-se, pode ser exempli-
mir de forma precisa, concreta, no litígio e, ficada por dois acontecimentos importan-
frente a isso, estar em contradição com a tes da história constitucional alemã: o con-
norma ordinária. O juiz poderia, então, nes- flito prussiano de 1862 – 1866 e a dissolu-
ta situação de necessidade, deixar de aplicar ção do Reichstag em 193015. Casos como es-
essa última, mas não lhe retirar a validade. ses, em que a questão ultrapassava o âmbi-
Caso contrário, qualquer pessoa, física ou to jurídico, penetrando no político, deixa-
jurídica, poderia arrogar-se em protetor da ram o Tribunal de Justiça Constitucional
Constituição. Se não há um caso concreto, en- sem ação, sem poder decidir; ora, isso mos-
tão a atividade resume-se apenas em comparar tra o que Schmitt tem sempre afirmado: o
“normas sobre normas”, o que desqualifica a ati- juiz apenas pode dar conta das leis e regu-
vidade do juiz como jurisdicional e o transfor- lamentos, não de questões políticas, função
ma em legislador. essa típica do Legislativo.
Colocada nesses termos a verdadeira atu- Assim, a atual teoria da defesa da Cons-
ação difusa dos tribunais no trato das leis, tituição formulada, segundo ele, frente às
Schmitt propõe-se a rebater o natural contro- variações das maiorias parlamentares seria
le judicial da função de proteção da Consti- devedora do constitucionalismo do século
tuição. XIX, em que tal função cabia ao Parlamento
A atribuição de soluções judiciais a pro- (que representava a sociedade), em sua luta
blemas políticos, no ideal do Estado de Di- contra o soberano, não podendo, pois, dar-
reito, apenas traz prejuízos para o Poder se ao juiz aquela função – que é – política,
Judiciário, pois representaria mais uma “po- sem alterar sua posição constitucional.
litização da justiça” do que uma “juridici- Schmitt insiste nesse ponto: sentença e lei
zação da política”14. A distinção entre con- são coisas diversas. Não se pode aceitar, por
trole judicial e proteção política advém de formalismo, que qualquer ato proferido pelo
uma distinção anterior, feita por Schmitt, juiz seja tido como jurídico. Para ser uma
entre Constituição e lei constitucional: as leis decisão judicial, é-lhe fundamental derivar
ordinárias podem ser controladas judicial- de uma lei (lei essa que deve ser minima-
mente frente às leis constitucionais, mas a mente específica a ponto de obrigar de modo
Constituição, como decisão política de um concreto o juiz).
povo, tem de ser protegida politicamente. “Si las normas de la política, en
Mas não é isso o que se tem feito, não é lugar de ser determinadas por el
assim que a doutrina (e até o Tribunal de Chanciller del Reich, lo fueron por el
Justiça Constitucional do Reich, como vimos Tribunal Supremo, bajo la égida de su
supra) tem trabalhado. Ao contrário, tem-se independencia judicial, ello no pro-
preferido trabalhar com “ficções sem con- duciría Justicia ” (SCHMITT, 1983, p.
teúdo”. Parte-se de que, se no século XIX o 81).

96 Revista de Informação Legislativa


As conclusões são inevitáveis: nenhuma Constituição como Lei Constitucional, ou
lei pode proteger outra lei; lei é fundamento, e seja, como norma, como um sistema de di-
não objeto de decisão; subsumir um fato a reitos, que podem ser vindicados pelas par-
uma lei não é o mesmo que subsumir uma tes (SCHMITT, 1983, p. 102).
lei simples frente a uma lei constitucional. Schmitt (1983), ao contrário, faz diferen-
Quanto à última, não se olvide que só é pos- ça entre litígios constitucionais (políticos) e
sível, como dissemos, falar-se em empare- as dúvidas e opiniões sobre a interpretação das
lhamento de uma lei a outra caso haja um leis constitucionais, estas como se disse po-
fato concreto subjacente, e mesmo aí, na ver- dem ser ocasionalmente resolvidas pelos
dade, a subsunção se dá entre cada lei e o juízes sem alterar sua competência. Mas se
fato, para se saber se o legislador, intérprete for colocado para os primeiros quaisquer
autêntico, atribuiu correto conteúdo à lei lides que tenham imediata ligação real com
constitucional. a Constituição, isso seria o mesmo que dar
Sobre a atuação de Tribunais com fun- ao próprio tribunal a missão de delimitar
ção de controle, para o jurista alemão, em sua competência.
quaisquer decisões existe um elemento de O máximo que pode-se admitir no fede-
pura decisão, que não deriva da norma, mas ralismo da Constituição de Weimar é que o
que, pelo contrário, é sentido e objeto desse Tribunal de Justiça Constitucional do Rei-
tipo de sentença. Isso estaria presente em ch resolva questões políticas entre a União
Tribunais como a Suprema Corte America- e os Länder, entre os Länder e até no interior
na, em que a existência de votos vacilantes de um Länder (como quando alguma asso-
ou divergentes mostraria que o que ela faz ciação invoque para si a proteção baseada
não é, por meio do livre jogo de argumenta- no Livro Segundo, referente aos Direitos e
ções, chegar a esclarecer o sentido verda- Deveres Fundamentais), mas sempre den-
deiro da Constituição, em contraposição a tro da teoria contratual do federalismo.
uma norma alegada inconstitucional, mas Já que, para além dos casos de litígios
tão-só, suprimir a dúvida de modo autoritário federais, a Jurisdição Constitucional não se
(mais uma vez, o elemento decisionista e traduz na melhor forma de constituir um
uma supervalorização da exceção). defensor da Constituição, já que a justiça é
Isso tornar-se-ia ainda mais evidente em incompatível com a política, e tendo em mira
um Tribunal tal qual o pretendido por todas as considerações acima, quem deve
Kelsen, que apenas cuida de resolver “dú- ser o defensor da Constituição?
vidas e divergências de opinião” (pois não
há um caso subjacente) e em que ao elemen- 4. Quem deve ser o guardião
to decisionista somar-se-ia o fato de que dita da Constituição?
Corte, sendo formada por expertos, tornaria
seus “informes” uma atividade pericial ti- Concluindo o pensamento de Schmitt
picamente administrativa e não judicial, mas (1983), ao contrário do Poder Judiciário,
que, ao se tornarem obrigatórios, converter- apenas o Executivo poderia fazer frente à
se-iam em sentenças (SCHMITT, 1983, p. grandeza do Parlamento.
93)16. Isso porque, em conformidade com a lei-
Um Tribunal Constitucional, ademais, tura que ele faz do art. 48 da Constituição
só é possível se a Constituição é vista como de Weimar, o único que ainda manteria a
um contrato (uma relação jurídica bilateral característica de representar plebiscitaria-
e não uma decisão política unitária). O que mente o povo em sua unidade seria o Presiden-
ocorre é que Kelsen (1998, p. 152) entende te do Reich, porque seria o único a se manter
democracia como compromisso constante acima de todos os interesses parciais. Se-
entre os grupos presentes no Parlamento e a gundo o mestre alemão, o presidente, nos

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últimos anos, já teria até assumido tal en- namento constitucional dos outros poderes
cargo, agindo, com freqüência, como defen- e da Constituição. A conclusão de Schmitt é
sor da Constituição (SCHMITT, p. 30, 222)17. automática, o Presidente do Reich era o único
O Reichspräsident constituir-se-ia em uma que poderia ser o “Guardião da Constitui-
instância neutra e superior, capaz de unifi- ção”, pois que não estaria sujeito às paixões
car a vontade estatal, diante da “impureza” dos partidos e logo só ele poderia resolver
pluralista. (“de fora”) os conflitos dos grupos pluralis-
Além de suprir a lacuna sobre a prote- tas, que, disputando em equilíbrio, ameaça-
ção da Constituição, tal teoria dá sentido à vam a Constituição, como ordem política da
própria existência de um Presidente ou um unidade do povo alemão.
Rei em um regime parlamentar, que règne et É em resposta à teoria de Schmitt que
ne gouverne pas. De fato, o chefe de Estado Kelsen publica o artigo Quem deve ser o de-
não é uma figura apenas “decorativa”, ele fensor da Constituição?. A crítica de Kelsen é
possui importantes funções, entre as quais, desenvolvida principalmente sobre a defe-
segundo Schmitt (1983, p. 219), estaria a de sa do controle judicial da Constituição em
representar “la continuidad y permanencia face do caráter “nada novo” e “ideológico”
de la unidad politica y de su homogéneo da argumentação de Schmitt. Kelsen ataca
funcionamiento” e por isso “deve tener una primeiramente a falsa distinção feita por
especie de autoridad que es tan consustan- Schmitt entre controle e defesa da Constitui-
cial a la vida de cada Estado como la fuerza ção, dizendo ser essa uma distinção apenas
y el poder imperativo que diariamente se terminológica.
manifestan de modo activo”. Schmitt (1983) tentara retirar o caráter
De toda sorte, esse papel não é realizado jurisdicional do Tribunal Constitucional, ao
continuamente pelo Presidente; ao contrá- argumento de que, em um processo comum,
rio, é uma função fundamentalmente “me- decide-se uma causa, enquanto o Tribunal
diadora, tutelar y reguladora”, isto é, oca- Constitucional apenas resolveria acerca de
sional, excepcional, porque não deve com- dúvidas/divergências acerca de uma lei.
petir com os demais poderes, atuando ape- Ora, rebate Kelsen, na maior parte das
nas em casos de necessidade. Nesse senti- decisões judiciais decidem-se divergências
do ele dá como exemplos de atuação dessa sobre o conteúdo de uma lei; se não há di-
função presidencial o Poder Moderador, pre- vergências, cessa a jurisdição. Valendo-se
visto nas Constituições Brasileira de 1824 da própria teoria de Schmitt, poder-se-ia
(art. 98) e Portuguesa de 1826 (art. 71). concluir que, em um processo sobre a cons-
Segundo vindica Schmitt, sua doutrina titucionalidade, há tanta subsunção quan-
fundamenta-se na teoria política do pouvoir to em um processo criminal, por exemplo. O
neutre de Benjamin Constant18, para quem problema seria que o jurista alemão conce-
os conflitos políticos podem ser resolvidos, be o controle de constitucionalidade como o
excepcionalmente, por um órgão judicial, confronto entre duas leis, o que não corres-
quando se objetive atribuir pena ao que ponde ao pensamento kelseniano, que é
transgride a Constituição; ou por um tercei- mais complexo: para Kelsen, na verdade, o
ro acima dos litigantes, soberano do Esta- controle visa averiguar o processo legislati-
do. vo como fattispecie subsumível à Constitui-
Mas pode ser dada tal competência a um ção da mesma forma como a doutrina clás-
organismo não superior, mas um terceiro sica (entre eles o próprio Schmitt) desenvol-
neutro, intermediário e regulador, que se co- ve a subsunção tendo o fato como premissa
loque não numa relação de superioridade, menor e a norma como premissa maior19.
mas de coordenação. Esse outro poder, dis- Assim, não é que uma lei mais débil é tutela-
tinto dos já existentes, garantiria o funcio- da por outra mais forte, mas sim que deve ser

98 Revista de Informação Legislativa


anulada porque a fattispecie que a produziu a ação segue em contraditório, possuiria a
contrasta com a norma que regula esta fattispe- vantagem de dar publicidade à efetiva situ-
cie (KELSEN, 1991, p. 248; HABERMAS, ação de interesses ao invés de mascará-los
1998, p. 315-316). sob o capa de “política” e escondê-los de-
Para KELSEN, o principal argumento de baixo de ficções como “unidade da vontade
Schmitt sobre a danosa influência da políti- geral” e “Estado Total”.
ca em um Tribunal Constitucional é um fal- O ponto central, portanto, contra a teo-
so-problema: se se entende o político, no sen- ria de Schmitt do Presidente como o Guar-
tido dado por Schmitt, como exercício do po- dião da Constituição é, por um lado, o velho
der, fácil é perceber que aquele não se limita princípio “nessuno può essere giudice in causa
ao Parlamento, pois que toda sentença, ao propria” (KELSEN, 1991, p. 232) [apenas em
resolver um conflito, tem um elemento deci- itálico no original] e, por outro lado, a ne-
sório20. cessidade de que o controle seja feito por
Logo, o controle judicial de constitucio- um Tribunal independente dos poderes Exe-
nalidade das leis não altera a posição cons- cutivo e Parlamentar, para que possa ter
titucional da jurisdição. Kelsen não vê uma condições de controlar os atos inconstituci-
distinção qualitativa entre legislação e ju- onais porventura praticados por algum de-
risdição, mas quantitativa, porquanto a le- les. Como observa o Professor Marcelo
gislação produz normas gerais e a jurisdi- Cattoni de Oliveira (2000, p. 31), o debate de
ção, normas individuais (dito doutra forma, europeus e norte-americanos em torno do
quem interpreta também cria). Antes pelo controle de constitucionalidade e de sua le-
contrário, chega mesmo a afirmar que o Ju- gitimação “é conduzido quase sempre em
diciário possui até um caráter mais político relação à distribuição de competências en-
que o Legislativo: tre Legislativo e jurisdição e, como afirma
“quando il legislatore autorizza il giu- Habermas (1998, p. 314 et seq.), ‘nessa me-
dice a valutare, entro certi limit, inte- dida ela é sempre uma disputa pelo princí-
ressi tra loro contrastani e a decidere pio da divisão dos poderes”.
il contrasto in favore dell’uno o Voltando ao publicista austríaco, o que
dell’altro, gli attribuisce un potere di na verdade pretenderia a doutrina de
creazione del diritto e quindi un pote- Schmitt seria restaurar a doutrina do cons-
re che dà alla funzione giudiziaria lo titucionalismo monárquico que considera-
stesso carattere ‘politico’ che – sia va o rei como um pouvoir neutre. Caso um rei
pure in misura maggiore – ha la legis- ou um Presidente representassem de fato um
lazione” (KELSEN, 1991, p. 242). poder neutro, isso significaria uma contra-
Schmitt então é que seria “devedor” de uma dição para alguém que diz que as estrutu-
doutrina própria ao constitucionalismo ras monárquicas do século XIX teriam sido
monárquico, que consideraria o Parlamen- abandonadas com a Constituição de Wei-
to como o único órgão político e criador do mar. É que Schmitt confia ao Executivo a
Direito e o juiz como um “autômato jurídi- tarefa de Guardião da Constituição porque
co”, que apenas aplica a lei. parte do pressuposto de que, se nas Monar-
Dessa forma, se a política não se restrin- quias Constitucionais era contra aquele que
ge ao Parlamento e se também as sentenças se deveria ficar atento, hoje o Parlamento é
contêm uma fração de poder, todo conflito que estaria sob suspeita – pressupondo uma
judicial é também um conflito de poder, não há pretensa preponderância deste. A contradi-
uma natureza política incompatível com a ção esboça-se claramente: se hoje a situação
judicial. Além do que, se todo conflito judi- é outra, como aplicar uma teoria antiga?
cial é também político, confiar o controle de Como querer dar ao Presidente poderes tí-
constitucionalidade a um Tribunal, em que picos do Monarca? E mais, Schmitt faz pres-

Brasília a. 41 n. 164 out./dez. 2004 99


suposições “como se, na Alemanha, o pro- sentir à vontade em tecer-lhes algumas crí-
blema da constitucionalidade da atividade ticas.
do ‘governo’, (...) desenvolvida com base no Quanto a Schmitt, além das críticas fei-
art. 48, não fosse (...) um problema vital” tas por Kelsen, é importante ressaltar que,
(KELSEN, 1991, p. 233, 238, tradução livre; “[q]uién, como en su tiempo C. Sch-
1998, p. 114). mitt, quisiera convertir en ‘protector
E continua Kelsen, a teoria de Constant de la Constitución’ al presidente del
é uma “ficção de extrema audácia” que di- Reich, es decir, à cúpula del ejecutivo,
vidia o poder executivo em poder ativo (go- en lugar de a un tribunal constitucio-
verno/administração) e passivo (sanção, nal, estaría invirtiendo, por tanto, el
celebração de tratados, alto comando das sentido que la división de poderes tie-
Forças Armadas...); este último representa- ne en el Estado democrático de dere-
va o poder neutro. Mas o monarca não é cho, convirtiéndola exatamente en lo
passivo; de outro lado, o Presidente do Rei- contrario” (HABERMAS, 1998, p. 314).
ch não está acima das pressões dos parti- Gostaríamos de ressaltar algumas opi-
dos, já que é eleito por eles e com eles man- niões de Kelsen, principalmente por sua
tém relações de dependência política. importância com relação à nossa realidade
Em síntese, Kelsen conclui que as idéias constitucional.
de Schmitt são produto de uma confusão Sobre a extensão das funções da Corte
entre um problema de teoria jurídica (o con- mais alta do país, é interessante observar –
ceito de jurisdição) e outro de política do principalmente em tempos como os que hoje
Direito (a melhor organização de um con- vivemos, em que a todo momento se levan-
trole jurisdicional). Além do que, se Schmitt tam vozes a favor da criação de um Tribu-
critica a teoria kelseniana acusando-a de nal Constitucional – a afirmação do jurista
normativista e formalista, esquece que tais vienês de que seria melhor o Tribunal Cons-
“abstrações” não haviam impedido que o titucional não se limitar ao controle de cons-
Tribunal Constitucional Austríaco realizas- titucionalidade:
se uma “boa dose de trabalho criativo”, o “... puede ser oportuno, si se presenta
que não é examinado por Schmitt, lá do alto el caso, hacer también del tribunal
de suas próprias abstrações (KELSEN, 1991, constitucional un Alto Tribunal de
p. 252). Justicia, encargado de juzgar a los mi-
Concluindo, a imensa importância que nistros sometidos a acusación, un tribu-
a discussão entre Kelsen e Schmitt tem para nal de conflictos central o atribuirle otras
toda a Teoria da Constituição e, mais de cer- competencias para evitar instituir juris-
ca, para a doutrina acerca do controle de dicciones especiales. Es preferible, en
constitucionalidade não nos impede de te- efecto, de una forma general, reducir lo
cer algumas críticas aos mesmos. Isso, con- más posible el número de autoridades su-
tudo, não invalida a importância de ambos premas encargadas de aplicar el Derecho”
para nós hoje (até o fato de hoje estarmos (KELSEN, 1998, p. 137) [grifos nossos].
relendo-os e repensando seus postulados Sobre a caracterização da função do Tri-
apenas mostra o quanto algumas pessoas bunal Constitucional como sendo de um
conseguem se eternizar por suas contribui- “legislador negativo”, isso contraria a na-
ções à Ciência). tureza da atividade judicial desenvolvida
Assim, porque suas teorias têm algo a por qualquer Tribunal, inclusive uma Corte
nos dizer em pleno século XXI e porque, por Constitucional; claro está que, como disse-
outro lado, pior que desconhecê-los é que- mos, não há contradição no pensamento
rer aplicar seus postulados sem um mínimo kelseniano em afirmar que o Tribunal Cons-
cotejo espaço-temporal é que podemos nos titucional é um órgão Judicial e ao mesmo

100 Revista de Informação Legislativa


tempo dizer que sua tarefa é de “derrogar da em seu pensamento, ainda que se possa
leis” à semelhança do que o Parlamento tam- vir a criticá-lo por isso (conseqüentemente,
bém faz (a distinção seria quantitativa, não não faz sentido a discussão da contradição
qualitativa). Sem embargo, não podemos entre Democracia – materializada no Parla-
concordar com um tal posicionamento, mento – e Constituição – como limite àque-
pois, como bem mostra o Professor Marcelo la21).
Cattoni de Oliveira (2000, p. 122), as ativi- Contudo, seguindo o raciocínio de Kel-
dades Legislativa e Judicial possuem “pers- sen, pode-se ver que apenas é possível fa-
pectivas lógico-argumentativas” diversas; lar-se em efeitos ex nunc porque há o pressu-
enquanto a primeira “visa ao estabelecimen- posto de que o Tribunal Constitucional é o
to de programas e políticas para a realiza- único, além do Parlamento, que pode inter-
ção dos direitos constitucionais”, a segun- pretar autenticamente a Constituição. As-
da deve ter em mira “a aplicação reconstru- sim, as leis criadas pelo Parlamento possu-
tiva do Direito Constitucional”; não pode- em presunção de constitucionalidade por-
mos nos esquecer, outrossim, da diferença que ele está autorizado a interpretar a Cons-
feita por K. Günther (1993) entre discursos tituição; forma-se aí a presunção (relativa)
de justificação e de aplicação. de constitucionalidade da lei que apenas
Quanto à “danosa influência da políti- poderá ser elidida se o outro órgão encarre-
ca no direito”, como vimos, Kelsen admite gado – o Tribunal Constitucional – disser
que a política é um dado presente; em vez que a lei é inconstitucional.
de tentar extirpá-la ou ignorá-la, ele tenta Tais colocações nos obrigam, mais uma
trabalhar com ela de forma a manter o Tri- vez, a empreender críticas ao seu sistema,
bunal o mais imparcial possível. A política pois, apesar de defender o elemento plura-
entra no raciocínio kelseniano no momento lista como forma de obter compromissos –
de escolha dos membros da Corte, uma es- que são, como já se disse, a essência da de-
colha feita pelo Parlamento entre juristas mocracia –, o jurista vienês não pode admi-
expertos (técnicos), o que garantia a neutra- tir que outras pessoas sejam legitimadas a
lidade do Tribunal. Ele acredita que toda interpretar a Constituição, porque, se isso
controvérsia jurídica é de interesse político ocorresse, todo seu sistema cairia por terra.
e todo conflito de interesse político pode ser Contudo, a legitimidade do ordenamento
decidido na esfera jurídica. Como se disse, jurídico moderno está diretamente ligada à
a necessidade de um Tribunal Constitucio- aceitação por parte dos cidadãos das nor-
nal reside em ser justamente a instância neu- mas que lhes são impostas; já que não se
tra e eqüidistante do confronto latente entre pode recorrer a um centro que forneça o subs-
Parlamento e Governo. trato dessa legitimidade (Deus ou a razão),
Dessa perspectiva, dá-se um passo à fren- o Direito Moderno necessita do cidadão
te, ao criar um outro órgão e não dar mais para, paradoxalmente, legitimar uma vio-
poderes a uma das partes, como queria lência que não é sentida como tal apenas se
Schmitt. É um avanço outrossim a naturali- racional e intersubjetivamente aceita. Nas
dade com que ele lida com a questão da in- palavras de Habermas (1998, p. 96), as nor-
terferência do Judiciário nas decisões legis- mas apenas podem cobrar cumprimento
lativas (ainda que apenas o Tribunal Cons- “haciendo que los destinatarios de esas nor-
titucional possa fazê-lo). Dessa forma, uma mas jurídicas puedan a la vez entenderse
questão que sempre é colocada frente ao en su totalidad como autores racionales de
controle de constitucionalidade, qual seja, esas normas”.
a legitimidade que possuiria o Judiciário de Limitar a interpretação (autêntica) da
invalidar atos procedentes do órgão de re- Constituição a apenas dois órgãos, além de
presentação popular, parece estar supera- irreal – pois “todo aquele que vive a Consti-

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tuição é um seu legítimo intérprete” 22 –, é 8
“En suma, desde el punto de vista del jurista
também temerária. Considerando que o Tri- alemán se devía evitar que la crisis del conjunto de
los partidos y de la representación política del par-
bunal Constitucional possui a última pala- lamento arrastrase consigo a toda la Constitución”
vra, pode ele vir a se transformar numa ins- (FIORAVANTI, 1999, p. 153).
tância máxima de definição dos valores de 9
Sobre as críticas de Schmitt ao pluralismo, ver
uma sociedade, uma espécie de “alter ego” ainda Herrera (1994, p. 220) e as críticas de Kelsen
daquela comunidade, o que não parece ade- (1991, p. 261 et seq.) a tal conceito.
10
A decisão é o elemento central da ordem jurídi-
quado desde uma perspectiva atual de Es- ca, cria a norma, mantém-na e a aplica, além de
tado Democrático de Direito23. não derivar de nenhum outro elemento (BATISTA,
Para finalizar, gostaríamos de deixar cla- 1999, p. 173 ; DINIZ, 1998, p. 142, 151).
ra nossa posição a respeito da questão so- 11
Ver também Diniz (1998, p. 150). As funções
bre quem deve ser o Guardião da Constitui- estatais seriam os atos jurídicos produzidos pelo
Estado e se dividem tradicionalmente em: legisla-
ção e dizer que a mesma não é bem respon- ção (promovida pelo Poder Legislativo) e execução
dida (pelo menos desde o atual paradigma (que englobaria os Poderes Executivo e Judiciário).
do constitucionalismo) nem atribuindo tal 12
No fundo, o que se apresenta aqui é o conhe-
prerrogativa ao Chefe de Estado (SCHMITT, cido paradoxo sobre o Direito, que cria a si mesmo
1983) nem a um Tribunal Constitucional e se auto-regula. Nesse sentido, Habermas (1998),
notadamente o Capítulo 3.
(KELSEN), pois “[a] cidadania não precisa 13
E “a ordem jurídica não pode fixar as condi-
de tutores” (OLIVEIRA, 2001, p. 213, 263); ções sob as quais algo que se apresente com a pre-
dito doutro modo, somente os cidadãos, le- tensão de ser uma norma jurídica tenha de ser con-
gítimos intérpretes da Constituição, podem siderado a priori como nulo e não como uma norma
não apenas guardá-la, mas também desenvol- que deve ser anulada através de um processo fixa-
do pela mesma ordem jurídica” (KELSEN, 1987,
vê-la procedimentalmente em suas relações p. 308).
diárias. 14
A respeito, há ainda as críticas de B. Constant
(1815, p. 65) e de Guizot (1846, p. 101 apud
SCHMITT, 1983, p. 75); segundo este, com a juri-
Notas dicização, “la política no tiene nada que ganar, y la
Justicia puede perdelo todo”.
1
Para um estudo mais completo da obra de 15
Para os detalhes acerca dos dois episódios,
Schmitt, ver, Diniz (1998, p. 150-170). ver Schmitt (1983, p. 66-69).
2
Schmitt (1983, p. 61), ao contrário, vê nessa 16
Ver também, na mesma página, nota 65, a
proteção às minorias um atentado ao princípio de- opinião de A. Bertram.
mocrático das maiorias. 17
Schmitt terá a oportunidade de defender pu-
3
Colocação semelhante na defesa da Judicial blicamente suas posições em 1932 como Conselhei-
Review pode ser vista em Freeman (1994, p. 187). ro do Reich, quando redigiu um memorandum a fa-
4
“La ley vale ahora [desde a perspectiva de vor de uma intervenção federal na Prússia, com
Kelsen, não mais em razão de ter sido elaborada base em sua teoria sobre o Presidente do Reich como
pela “vontade geral” mas] en cuanto, y sólo en cu- “guardião da Constituição” (HERRERA, 1994, p.
anto, realice en sí el ideal democrático de la pacífica 214).
convivencia entre la pluralidad de las fuerzas e in- 18
Sobre as fontes de que se valeu o jurista ale-
tereses que operan en realidad” (FIORAVANTI, mão, ver Schmitt (1983, p. 214, 216), em que tam-
1999, p. 158). bém se poderão encontrar interessantes pareceres
5
Schmitt (1983, p. 83) critica expressamente tal de Hugo Preuss e Neumann.
tese, no que diz respeito à hierarquia entre normas, 19
Apesar de trabalhar com esses conceitos, é
que considera uma “antropomorfizacion, insensa- importante lembrar que Kelsen não vê a atividade
ta e confusa”. jurisdicional como simplesmente dedutiva; qual-
6
Sobre sua classificação dos Estados segundo quer juiz, ao aplicar a lei, não o faz como um autô-
a função estatal que neles predomina, ver Schmitt (1983, mato, mas como criador de normas individuais.
p. 131-132). 20
Interessante reler o que já dizia Ruy Barbosa
7
Trataremos mais pormenorizadamente disso (1932-1934, p. 41-42), referindo-se já à função de
mais à frente, ao tratarmos da opinião de Schmitt controle de constitucionalidade, no começo do sé-
sobre o controle judicial e suas ferrenhas críticas a culo passado: “não há nada, realmente, mais artifi-
ele. cial (...) do que a distinção entre questões políticas e

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jurídicas”. A função de declarar a inconstitucionali- GÜNTHER, Klaus. The sense of appropriateness: ap-
dade “é um poder, até certa altura, politico, exerci- plication discourses in morality and law. New York:
do sob ás fórmas judidiciaes”. State University of New York, 1993.
21
Um bom panorama dessa discussão pode ser
visto em Fioravanti (1999) e também Freeman HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a so-
ciedade aberta de intérpretes da Constituição: con-
(1994).
tribuição para a interpretação pluralista e procedi-
22
Apresentação feita por Gilmar F. Mendes ao
livro de Häberle (1997, p. 30-31). mental da Constituição. Porto Alegre: Sérgio A.
Fabris, 1997.
23
Não vamos nos alongar mais nesse aspecto,
já que não é o objeto do presente. Para maiores HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el
detalhes, ver, Maus (2000). derecho y el estado democrático de derecho en tér-
minos de teoría del discurso. Madrid: Trotta, 1998.
HERRERA, Carlos Miguel. La polemica Schmitt -
Kelsen sobre el guardian de la constitución. Revista
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4.
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Brasília a. 41 n. 164 out./dez. 2004 103


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