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Considerações de Isaac Deutscher sobre Spinoza com um judeu não-judeu.
In: O judeu não-judeu e outros ensaios. Apresentação e Introdução de Tamara Deutscher tradução de Moniz Bandeira, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1970, pp. 28-45.
Considerações de Isaac Deutscher sobre Spinoza com um judeu não-judeu.
In: O judeu não-judeu e outros ensaios. Apresentação e Introdução de Tamara Deutscher tradução de Moniz Bandeira, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1970, pp. 28-45.
Considerações de Isaac Deutscher sobre Spinoza com um judeu não-judeu.
In: O judeu não-judeu e outros ensaios. Apresentação e Introdução de Tamara Deutscher tradução de Moniz Bandeira, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1970, pp. 28-45.
Consideraes de Isaac Deutscher sobre Spinoza com um judeu no-judeu,
in: O judeu no-judeu e outros ensaios. Apresentao e Introduo de Tamara Deutscher traduo de Moniz Bandeira, Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira, 1970, pp. 28-45.
O judeu herege, que superou o judasmo, pertence a uma
tradio judaica. Voc pode ver Akher, se quiser, como um prottipo daqueles grandes revolucionrios do pensamento moderno: Spinoza, Heine, Marx, Rosa Luxemburg, Trotski e Freud. Tambm pode, se assim o desejar, coloc-los dentro da tradio judaica. Todos ultrapassaram a divisa do judasmo, que consideravam to estreito, to arcaico, to constrangedor. Todos procuraram ideais e satisfao fora do judasmo e representaram a soma e a essncia de tudo que mais grandioso no pensamento moderno, a soma e a essncia das mais profundas convulses que ocorreram na filosofia, na economia, e na poltica nos ltimos trs sculos. Tinham alguma coisa em comum? Influenciaram, talvez, o pensamento da humanidade por causa do seu especial gnio judaico? Eles no acreditavam na genialidade exclusiva de uma raa. Penso, no obstante, que, de alguma forma, foram bastante judeus. Levavam dentro de si algo da quintessncia da vida judaica e de sua intelectualidade. Foram excepcionais nisso, pois, como judeus, viviam nas fronteiras de vrias civilizaes, religies e culturas nacionais. Nasceram e se criaram nas fronteiras de vrias pocas. Amadureceram onde se cruzavam as mais diversas influncias culturais, fertilizando-se umas s outras. Viveram nas margens, nos cantos ou nas fendas de suas respectivas naes. Cada um deles estava na sociedade ou fora dela, pertenciam-lhe ou no. Foi isso que lhes possibilitou elevar o pensamento acima de suas sociedades, suas naes, suas pocas, seus contemporneos e expandir-se mentalmente para novos horizontes e para o futuro. Penso que um protestante ingls, bigrafo de Spinoza, disse que somente um judeu teria conseguido aquele desenvolvimento na filosofia de sua poca, como Spinoza o conseguiu um judeu liberto dos dogmas das igrejas crists, catlica e protestante, e tambm daqueles em que se criou1. Nem mesmo Descartes ou Leibniz puderam libertar-se desse tipo de grilhes que os acorrentavam s tradies da escolstica medieval na filosofia. Spinoza educou-se sob as influncias da Espanha, Holanda, Alemanha, Inglaterra e Itlia do Renascimento. Todas as tendncias do pensamento, que vigoravam naquela poca, formaram seu carter. Sua terra natal, a Holanda, estava em plena revoluo burguesa. Seus antepassados, antes de virem para a Holanda, foram cripto-judeus marranos, judeus de corao e cristos de fachada, assim como o eram muitos judeus espanhis aos quais a Inquisio
impusera o batismo. Depois de chegar Holanda, os Spinoza
mostraram-se, na realidade, judeus; mas, evidentemente, nem eles nem seus descendentes mais prximos eram estranhos ao ambiente intelectual do catolicismo. O prprio Spinoza, quando se lanou como pensador independente e iniciador da moderna crtica Bblia, compreendeu, imediatamente, as principais contradies do judasmo a contradio entre o Deus monotesta e universal e o conjunto com o qual ele se apresenta na religio judaica como um Deus legado somente a um povo: a contradio entre o Deus universal e seu povo eleito. Sabemos o que a conscincia desta contradio provocou em Spinoza: foi banido da comunidade judaica e excomungado. Teve de lutar contra os clrigos judaicos, os quais, vtimas recentes da Inquisio, se tomaram infectados pelo seu esprito. Depois, teve de enfrentar a hostilidade dos clrigos catlicos e dos padres calvinistas. Sua vida inteira constituiu uma luta para sobrepujar as limitaes das religies e culturas de seu tempo. Entre os judeus de grande inteligncia, expostos s contradies de vrias religies e culturas, alguns foram de tal forma impelidos em diferentes direes por influncias e presses contraditrias que, no conseguindo encontrar o equilbrio espiritual, fracassaram. Um desses foi Uriel Acosta, precursor e mais velho que Spinoza. Muitas vezes, ele se rebelou contra o judasmo e outras tantas se retratou. Os rabinos excomungaram-no. E sempre Uriel Acosta se prostrava diante deles, no cho da Sinagoga de Amsterd. Spinoza, porm, tinha a grande felicidade intelectual de no harmonizar influncias conflitantes e delas tirar uma alta viso do mundo e uma filosofia integrada. Em quase todas as geraes, onde quer que o intelecto judeu, a servio da concatenao de vrias culturas, luta contra si prprio e contra problemas do seu tempo, encontraremos algum que, como Uriel Acosta, fracassou sob o peso dessa tarefa e algum, como Spinoza, que tirou desta carga as asas para a sua grandeza. Heine foi, de certo modo, um Uriel Acosta mais velho. Sua relao com Marx, neto intelectual de Spinoza, comparvel quela que existia entre Uriel Acosta e Spinoza. (...) A tica de Spinoza no era mais a judaica, mas a de um homem sem amarras, assim como seu Deus j no era mais o Deus dos judeus. Seu Deus, unido com a natureza, derramava sua divina identidade separada e distintamente. O Deus e a tica de Spinoza, de certo modo, permaneciam judaicos, mas, o monotesmo o levou a concluso lgica e o Deus universal judeu foi decifrado. E, uma vez decifrado, deixou de ser judeu. (...) Todos esses grandes revolucionrios foram extremamente vulnerveis, pois, em certo sentido, no tinham razes como judeus. Mas, sob outros aspectos, deitavam profundas razes na tradio
intelectual e nas mais nobres aspiraes do seu tempo. Contudo,
sempre que a intolerncia religiosa ou as emoes nacionalistas estivessem em ascenso, onde quer que a estreiteza dogmtica de raciocnio e o fanatismo triunfassem, eles eram as primeiras vtimas. Foram excomungados pelos rabinos, perseguidos pelos padres cristos, oprimidos pelos gendarmes de governos absolutistas e pela soldateska; odiados pelos pseudodemocratas filisteus e expulsos de seus prprios partidos. Quase todos sofreram o exlio e, uma vez ou outra, seus escritos foram queimados na fogueira. O nome de Spinoza no pde ser mencionado por mais de um sculo depois de sua morte; mesmo Leibniz, que devia muitos de seus pensamentos a Spinoza, no ousava mencion-lo. (...) Mas, deles a vitria. Depois de um sculo, durante o qual o nome de Spinoza foi premeditadamente coberto com a capa do esquecimento, ergueram-se-lhe monumentos e reconheceram nele a mente mais fecunda do pensamento humano. Herder disse certa vez sobre Goethe: Estimaria que Goethe lesse algumas obras latinas alm da tica de Spinoza. E, muito corretamente, Heine o descreveu como o Spinoza que jogou fora o manto de sua frmula geomtrico-matemtica e apresenta-se diante de ns como um poeta lrico. O prprio Heine triunfara sobre Hitler e Goebbels. Outros revolucionrios dessa linha tambm sobrevivero e, mais cedo ou mais tarde, triunfaro sobre aqueles que tudo fizeram para apagar a sua lembrana. (...) Todos esses pensadores e revolucionrios tiveram certos princpios filosficos em comum. Embora variem suas filosofias, claro, de sculo para sculo e de gerao a gerao, todos eles, de Spinoza a Freud, so deterministas. Todos sustentam que o universo dirigido por leis inerentes sua prpria existncia e governado pelas Gesetzmssigkeiten (pelas leis). No veem a realidade como um amontoado de acidentes ou a histria como um conjunto de caprichos e fantasias dos governantes. No h nada fortuito, diz Freud, nos nossos sonhos, loucuras e mesmo nos lapsos de nossa fala. A lei do desenvolvimento, afirma Trotski, retrata-se atravs de acidentes. E, ao dizer isso, aproxima-se bastante de Spinoza. Todos so deterministas porque, tendo estudado muitas sociedades e observado maneiras de viver em perodos determinados, compreenderam as regularidades bsicas da existncia. Suas diferentes formas de pensar so lgicas, porque, vivendo dentro de fronteiras de vrias naes e religies, veem a sociedade em estado de fluidez. Concebem a realidade como dinmica e no esttica. Aqueles que esto fechados dentro de uma sociedade, de uma nao ou de uma religio, tendem a imaginar que a sua prpria maneira de viver e de pensar tem validade absoluta e imutvel e que tudo o que contraria seus padres , de alguma
forma, anormal, inferior e maligno. Aqueles que, por outro lado,
vivem dentro dos limites de vrias civilizaes compreendem mais claramente o grande movimento e a grande contradio entre a natureza e a sociedade. Todos esses pensadores concordam sobre a relatividade dos padres morais. Nenhum deles acredita no absolutamente bom ou absolutamente mau. Todos observaram sociedades aderindo a diferentes padres de moral e a diferentes valores ticos. O que era bom para a Inquisio catlico-romana, sob a qual viveram os avos de Spinoza, no o era para os judeus: o que era bom para os rabinos e os mais velhos judeus de Amsterd era mau para o prprio Spinoza. Heine e Marx experimentaram, em sua juventude, o tremendo choque entre a moralidade da revoluo francesa e a da Alemanha feudal. Quase todos tinham, ainda, outra grande ideia filosfica em comum a ideia de que o saber, para ser verdadeiro, deve ser atuante. Isto, alis, se relaciona com seus pontos de vista sobre tica, pois se o saber inseparvel da ao, ou da prxis, que, por natureza, relativa e contraditria, ento a moral o conhecimento do bem e do mal inseparvel da prxis e tambm relativa e contraditria. Spinoza disse que ser fazer e saber fazer. Isso estava a um passo apenas do que Marx proclamava: "at agora os filsofos intepretaram o mundo; de agora em diante tratase de transform-lo. Finalmente estes homens, de Spinoza a Freud, acreditavam na verdadeira solidariedade do homem e isto ficou implcito em suas atitudes a respeito do judasmo. Agora, observemos esses crentes da humanidade, atravs da sangrenta nvoa dos nossos tempos Olhamo-nos atravs da fumaa da cmara de gs; fumaa de gs; fumaa que nenhum vento dispersa de nossas vistas. Esses judeus no-judeus foram essencialmente otimistas; e o seu otimismo alcanou pontos dificilmente atingveis em nosso tempo. No imaginavam que a civilizada Europa mergulharia nos abismos da barbrie, quando simples palavras como solidariedade humana soassem como brincadeira perversa aos ouvidos dos judeus. (...) O que vem recriando constantemente essa conscincia judaica e injetando-lhe, sempre, nova vitalidade tem sido o hostil ambiente no-judeu que o cerca. H trezentos anos Spinoza no via nada de milagroso no fato de que os judeus resistam a uma disperso e a uma perda do seu estado. Diz Spinoza que eles incorreram em dio universal por se colocarem parte dos outros povos2. Atribui sua sobrevivncia, em grande parte, s hostilidades dos no-judeus e lembra que, quando o Rei da Espanha forou os judeus a aceitar a religio oficial do reino ou a ir para o exlio, grande nmero deles abraou o catolicismo romano, aps o que lhes foram outorgados privilgios e honrarias iguais aos dos outros cidados. Os judeus em breve se identificaram com os espanhis e, em poucos anos, misturaram-se com a populao local. Em Portugal ocorreu o
oposto. Quando Manoel I forou os judeus a aceitar a sua religio,
eles se converteram, mas el rei no os julgava ainda dignos de quaisquer honrarias; ento, eles, judeus, continuaram a viver separados da comunidade portuguesa. (...) 1 uma sria desvantagem, resultante do grande triunfo externo do Cristianismo, o fato de que os pensadores da cristandade s muito raramente entraram em contato com outras religies e com outros tipos de orientao mundial. A conseqncia dessa inexperincia consiste em que as coisas comuns foram tomadas como verdadeiras pela forma crist de encarar o mundo... O mais ousado e original pensador foi Spinoza que se colocou acima dos preconceitos teolgicos, dos quais os outros no puderam libertar-se completamente (A Correspondncia de Spinoza. Introduo escrita por A. Wolf). 2 Tratado sobre Religio e Poltica. (Captulo III).