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Amazônia

ano 1000
Enquanto o Velho Mundo vivia
nas trevas da Baixa Idade Média,
civilizações experimentavam no
Brasil um florescimento cultural.
Contemporâneos dos incas e dos
maias, eram autores de uma arte
sofisticada. Só agora a arqueologia
começa a decifrar quem foram esses
antigos habitantes da terra brasilis.

POR EDUARDO NEVES


FOTOS DE MAURÍCIO DE PAIVA

30  Urna funerária da cultura Guarita (entre os séculos 9 e 16), civilização que viveu nas
proximidades da atual cidade de Manaus; museu amazÔnico, universidade federal do amazonas
O desmatamento revela na Amazônia sítios como os
geoglifos, estruturas geométricas perfeitas – este fica
próximo a Rio Branco, no Acre. Ainda não se sabe a
exata função dos geoglifos, mas eles provavelmente
não eram locais de habitação. Os arqueólogos
32  national geo graphic • maio 2010 especulam que poderiam serA Mcentros a n o 1000  33
A Z ôn iacerimoniais.
Os índios enawene-nawe, do Mato Grosso, têm
parentesco com civilizações que se estabeleceram
na região do rio Xingu ao redor do ano 1000. O fogo
ajudou os antigos a domesticar a floresta, e sinais
de carvão no solo são úteis para as pesquisas hoje.
34  national geo graphic • maio 2010 rodrigo baleia A M A Z ôn ia a n o 1000  35
Do alto do sítio eram compostas de povos que falavam línguas
arqueológico Laguinho variadas – mais diferentes entre si do que são
avista-se a várzea hoje, por exemplo, o português e o russo.
do Solimões. A fauna Em alguns aspectos, a Amazônia do ano 1000
aquática variada dos não era diferente da Europa naquele mesmo pe-
rios de águas brancas, ríodo. O francês Jacques Le Goff, um dos mais
como ele e o Madeira, importantes historiadores da Idade Média, mos-
atraíam os povos trou como seria possível identificar na Europa
antigos. Além disso, áreas de bosque entremeadas a pequenas cida-
nas cheias, as águas des, algumas delas fortificadas, conectadas por
fertilizam o solo redes de caminhos em que ocorria o comércio.
para a agricultura. Mas uma diferença entre a Amazônia e o Velho
Mundo era que, devido à escassez de rochas,
a matéria-prima para a construção na floresta
sempre foi a terra. É por isso que sítios arqueoló-
gicos com aterros ou valas são tão comuns na re-
gião. Muitos deles se encontram ainda cobertos
pelas matas que cresceram de novo após o início
da colonização europeia, quando houve queda
brusca na população nativa por causa da propa-
gação de doenças, da guerra e da escravidão.
Uma jornada ao longo do rio Amazonas pode
ser reveladora de como a população amazônica
– talvez mais de 5 milhões de pessoas – desapa-
receu de forma abrupta: desde Macapá, perto da
foz, até Tabatinga, na fronteira com a Colômbia
e o Peru, no alto Solimões, despontam incontá-
veis sítios arqueológicos, alguns deles ocupados
até o início do período colonial. Por outro lado,
o número de terras indígenas nessas mesmas
áreas é pequeno, com exceção da região do alto
Solimões. A explicação é simples: a calha do

S
Amazonas e do Solimões estava repleta de índios
e pudéssemos voltar no tempo e visitar a Amazônia de mil anos atrás, eram espaços de moradia e rituais. E, no que é até o século 16, mas eles foram os primeiros a pe-
a Amazônia boliviana, poderíamos contemplar recer com a colonização. Atualmente, as maiores
veríamos um mundo diferente. Não haveria a grande área desmatada um labirinto de diques, barragens e canais distri- terras indígenas no Brasil ficam longe da calha
buído por milhares de quilômetros quadrados. do Amazonas, em locais como o alto rio Negro,
e ocupada por pastagens e cultivos do sul e do sudeste da região, no Ao contrário da imagem corrente de que a Roraima, Acre, Rondônia ou o alto Xingu.
atual Pará. Em trechos hoje cobertos por selvas densas, se destacariam Amazônia sempre foi indômita e escassamente
ocupada, a maior floresta tropical do planeta es- enquanto a europa vivia a Baixa Idade Mé-
sinais claros de ocupação humana: grandes aldeias ou mesmo cidades, cer- tava, no ano 1000, repleta de sociedades indíge- dia e lutava para reconquistar a península Ibérica
cadas de áreas de roças e de matas secundárias, ligadas umas às outras por nas. Algumas eram hierarquizadas, lideradas por dos árabes, os povos da Amazônia vivenciavam,
chefes supremos, capazes de comandar um exér- nessa mesma época, profundo florescimento
largos e longos caminhos. Em alguns locais, centros cerimoniais desenha- cito de guerreiros. Outras estavam resumidas a cultural. Alguns séculos antes de a Renascença
dos por alinhamentos de pedra estariam dispostos em circulos. Em pontos grupos pequenos e nômades de caçadores e cole- surgir na Itália, cerâmicas com padrões gráficos
tores que usavam zarabatanas para matar macacos sofisticados eram produzidas em Marajó e nas
distantes como a ilha de Marajó é do Acre, por exemplo, aterros artificiais e outros animais. Acima de tudo, tais sociedades regiões de Manaus e Santarém – esta última,

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ÁREA AMPLIADA

A Amazônia antes dos europeus '5)!.! !2!515)./)$%


No início da era cristã surgiram as evidências de crescimento !-!:>/.)!
populacional e de mudanças sociais profundas na bacia "2!3),%)2!
amazônica. Essas transformações culminaram, ao redor 6%.%:5%,!
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As mais populosas ficavam ao longo dos grandes rios.
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fonte: projeto amazônia central

38  national geo graphic • maio 2010 A M 0Akm 88


Z ôn ia a n o 1000  39
Uma das questões da arqueologia na Amazônia é descobrir o tamanho da população que ocupou a região antes dos colonizadores.

Os arqueólogos Manuel Arroyo e Edimar Silva (acima) escavam o sítio Hatahara,


nas margens do Solimões, onde um cemitério (à esquerda) pode ocultar mais
de 35 indivíduos. Como é típico dos sítios de terra preta, fragmentos cerâmicos
misturam-se à matriz escura do solo. A composição química desses solos
diminui a sua acidez, favorecendo a preservação de materiais orgânicos.

talvez, a cidade mais antiga do Brasil. A civiliza- jornada quase mística: as árvores são imensas to da natureza mas também resultado concreto mados à baixa temperatura. As terras pretas têm
ção marajoara protagonizou quase mil anos de e ultrapassam a altura média da copa da floresta, da presença humana ancestral na Amazônia. outra propriedade: são solos estáveis, capazes de
história, tendo desaparecido antes da chegada pilhas da casca da fruta da castanha (os ouriços) Entre outros sinais visíveis de atividades anti- manter por décadas ou séculos condições de alta
dos europeus. Seu apogeu, no entanto, parece espalham-se pelo chão e animais como as cutias gas, talvez os mais conhecidos sejam as chamadas fertilidade. Essa condição é uma anomalia em
ter ocorrido ao redor do ano 1000. Esculturas podem ser vistos correndo de um lado para ou- “terras pretas de índio”, os melhores marcadores contextos equatoriais, onde, devido à ação das
de pedra eram esculpidas na foz do rio Trom- tro. Uma castanheira demora décadas para cres- arqueológicos do surgimento de modos de vida chuvas e da evaporação, os solos não conseguem
betas, próximo da atual Oriximiná, onde havia cer e começar a frutificar. Muitos castanhais têm sedentários no passado amazônico. Trata-se de preservar por muito tempo seus nutrientes.
também centros de produção de muiraquitãs, centenas de anos de idade. solos muito férteis, de coloração escura, sobre É comum que solos tropicais sejam ácidos
pequenas esculturas lapidadas em pedra polida Sabemos hoje que a dispersão dessas árvores e sob o qual normalmente se dispõem milhares e pouco férteis. As terras pretas, por outro lado,
em forma de animais ou seres humanos. No alto ocorreu a partir de um centro original no les- de fragmentos cerâmicos. Podem ser espessos têm pH quase neutro, são férteis e mantêm suas
Xingu, grandes aldeias circulares eram cons- te do Pará. E também sabemos que existem na e chegar a mais de 2 metros de profundidade. condições de fertilidade. Como explicar tal esta-
truídas com urbanismo igualmente sofisticado natureza apenas dois animais que conseguem Devido a sua fertilidade, as áreas de terra preta bilidade? Não há ainda resposta satisfatória, mas
e inovador, assim como outras aldeias floresciam quebrar a casca do ouriço e dispersar sua cas- são procuradas por agricultores contemporâ- a cada dia fica mais claro que a concentração de
no Acre, marcadas com estruturas geométricas tanha: a cutia e o Homo sapiens. Assim, é certo neos, que reconhecem suas propriedades e sabem fragmentos de cerâmica sustenta uma estrutura
agora conhecidas como geoglifos. que a dispersão dos castanhais se deu por meio que existem ali melhores condições de cultivo. física – uma espécie de “esqueleto” que contribui
A pesquisa em sítios arqueológicos é o cami- da atividade humana. Ao mesmo tempo, a bai- Durante muito tempo, esses solos foram con- para que o solo se mantenha estável.
nho óbvio ao estudo dessas diferentes histórias xíssima variabilidade genética entre castanheiras siderados “naturais” por cientistas. Apenas nos Arqueólogos aceitam sem grande problema a
de ocupação. No entanto, resistem no presente localizadas em pontos distintos da Amazônia, últimos 20 anos, graças às pesquisas pioneiras de ideia de que a Amazônia foi densamente ocupada
amazônico outras evidências, às vezes tão antigas como se os espécimes tivessem sido clonados, Dirse Kern, do Museu Paraense Emilio Goeldi, no passado e que as populações antigas da re-
quanto os próprios sítios, que também podem sugere que o processo de dispersão foi recente demonstrou-se que os componentes químicos gião deixaram sinais de seus modos de vida nos
nos revelar dados sobre o passado. Um exem- e começou 2 mil anos atrás – em sincronia com o resultam de antigas atividades humanas. O fosfa- sítios arqueológicos e nas paisagens contem-
plo: as matas de castanhais abundantes. Quem processo de florescimento cultural, indicado nos to, por exemplo, é oriundo dos ossos de animais porâneas. No entanto, uma das questões mais
já andou em um castanhal sabe que essa é uma sítios. Ou seja, castanhais são não apenas produ- ali depositados e dos fragmentos de carvão quei- importantes da arqueologia na Amazônia é tentar

40  national geo graphic • maio 2010 A M A Z ôn ia a n o 1000  41


Os antigos povos da floresta FLORESTA MANEJADA
O ambiente da Amazônia
de hoje resulta da ação
O sítio arqueológico Laguinho, ilustrado aqui, foi habitado por pelo menos três sociedades humana. Árvores frutíferas
distintas entre os anos 400 e 1300. As sociedades amazônicas não possuíam a instituição ocupavam as imediações
das aldeias, em áreas
política do Estado, mas havia graus de chefia e organizações de poder diferentes dos abertas pelo fogo.
atuais modelos ocidentais – eram em geral mais libertários e igualitários. Os povos viviam
situações sociais antagônicas, com guerras entre grupos nômades e sedentários.

PALIÇADA
Vestígios encontrados
nas escavações – manchas
escuras no solo – indicam a
existência de uma paliçada
defensiva composta de
troncos de árvore. ATERROS
Da ilha de Marajó ao Acre, eram
construídos montículos de terra
e pedaços de cerâmica, que
serviam para sustentar moradias.

VÁRZEA DE RIO
O solo fértil das cheias
permitia a agricultura
intensiva, assim como
era aproveitada a rica
oferta de proteína da
variada fauna aquática.

ARTE CORPORAL
Pinturas sofisticadas
continham representações
sociais – como a de ARTE DE EBER EVANGELISTA;
consutoria de luiz iria
pertencer a clãs, ter grau ESTA ILUSTRAÇÃO FOI RECRIADA
de poder e fazer parte COM BASE NA PLANTA TOPOGRÁFICA

42  national geo graphic A M A Z ôn ia a n o 1000  43


E na LOCALIZAÇÃO de VESTÍGIOS
• maio 2010 de uma ordem religiosa. DA OCUPAÇÃO DO SÍTIO laguinho.
Séculos antes de a Renascença surgir na Itália, cerâmicas com padrões gráficos sofisticados já eram produzidas na amazônia.

foi inspiradora. Em julho de 2009, fui a campo demonstraria certa estratificação social entre
acompanhar os trabalhos. Reuniam-se ali mais os ocupantes do sítio. Nas semanas subsequen-
de 30 estudantes do Brasil e do exterior, distri- tes, continuamos a escavação e verificamos que
buídos em diferentes partes do sítio. Laguinho o alinhamento era maior do que pensávamos:
é tão grande e complexo que certamente volta- ao fim dos trabalhos, ele tinha mais de 40 metros
remos muitas vezes para lá. Seu perímetro está de comprimento e atravessava um istmo que
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recoberto por uma plantação de ma- conecta a área central do sítio, que está numa
mão, além de pomares e áreas de mata. O lugar é península, à terra firme. Ou seja, o alinhamento
como um mirante, de onde se veem o Solimões não era de uma casa, mas sim de uma paliçada
e seus baixios alagados. As várzeas de um rio de defensiva, uma cerca de madeira que fechava
águas brancas como esse são ricas em peixes, pás- e protegia a área central da antiga aldeia. Como
5 cm de altura 2,5 cm
saros e répteis. Os habitantes de Laguinho se apro- sempre ocorre na arqueologia, procurávamos
veitavam dessa fartura de recursos, agora visível uma coisa e encontramos outra, diferente.
nos ossos de animais achados nas escavações. Os dados obtidos no sítio Laguinho, por sua
Estar no alto do sítio Laguinho sempre me vez, devem ser combinados com os obtidos nos
inspira a visualizar o passado. A imaginação voa mais de 100 sítios já identificados pelo Projeto
longe. Na época de sua ocupação, os lagos que Amazônia Central, coordenado por mim, para
o cercam estavam todo o tempo cheios de cano- que possamos esboçar um quadro paleodemo-
as, com pessoas partindo ou chegando de suas gráfico mais elaborado da região. Eles indicam,
roças ou de visita a outras aldeias na região. Nos conforme a escavação de vestígios de paliçadas
caminhos que levavam da beira dos lagos ao alto similares de outros sítios, que a época do ano
do morro onde fica o sítio, homens e mulheres 1000 foi marcada por conflitos nessa área.
subiam e desciam carregando peixes, cestos com
frutas – o açaí já era extraído – e animais caçados. da amazônia central ao oceano Atlântico,
20,5 cm 54 cm
Na parte alta, crianças corriam de um lado para perto do qual se localizam importantes centros
Donos de um gosto artístico refinado, os povos da Amazônia pré-colonial outro, sujando seus pés na terra preta do chão. cerimoniais – caso do Rego Grande, no Amapá
lapidaram pequenos amuletos de pedra conhecidos como muiraquitãs (um Vestígios indicam que o sítio foi ocupado por –, erigidos centenas de anos antes da catedral de
sapo e um peixe, no alto) na região de Oriximiná. Também no Pará, já foram pelo menos três povos, em intervalos distintos, Notre-Dame, em Paris, o rio Amazonas se trans-
encontradas cerâmicas com decorações plásticas e pinturas elaboradas do ano 400 ao 1300. A parte mais densa, a extre- forma em uma via fluvial altamente ocupada.
em Santarém e na ilha de Marajó (acima, na ordem). midade sul, fica em uma península: ali ainda há Ao longo da desembocadura do rio Tapajós,
muitos fragmentos de cerâmica, visíveis até na ao redor do ano 1000, no mesmo local em que
superfície. E vários aterros artificiais, que che- hoje está Santarém, havia talvez outra cidade,
descobrir o tamanho da população que ocupou Todavia, a descoberta é em si uma notícia mara- gam a quase 3 metros de altura, os quais serviam parcialmente destruída pelo próprio crescimento
a região antes da chegada dos colonizadores por- vilhosa. Esse é justamente um dos objetivos da de base para a construção de malocas onde vi- de sua equivalente moderna. Se pensarmos sob
tugueses e espanhóis, no século 16. Essa área de etapa de escavação: identificar e escavar vestígios viam famílias. Em 2006 e 2007, nós já havíamos esse aspecto, Santarém é a cidade mais antiga
pesquisa é chamada de paleodemografia. de supostas moradias no sítio arqueológico La- estudado essas partes do sítio e, em 2009, deci- do Brasil e talvez a única cujas origens remon-
guinho, algo que nos ajudaria a ter uma ideia da dimos escavar a área ao norte do istmo, onde a tam a nossa história pré-colonial. Nesse senti-
“são manchas escuras no meio da terra cla- população local mil anos atrás. concentração de cerâmica é menor. O objetivo do, ela se junta à companhia ilustre de Cusco,
ra”, escuto. Estou em São Paulo e, pelo telefone, O sítio Laguinho sempre me impressionou. era entender o tamanho das casas para ter uma no Peru, antiga capital do Império Inca, ou da
analiso a descrição que meu aluno faz do sítio na Nós já havíamos escavado ali em outras opor- ideia do tamanho da população dessa pequena Cidade do México, erguida sobre a Tenochtitlán
cidade de Iranduba, perto de Manaus. “As man- tunidades, ao lado de outro orientando, Már- cidade. Foi quando Tamanaha encontrou a pa- dos astecas. As semelhanças com essas duas cida-
chas estão alinhadas e dispostas no solo como cio Castro. É um sítio de 25 hectares sobre um liçada defensiva que me fez lembrar as cidades des, no entanto, dizem respeito a suas histórias:
buracos de postes”, continua ele. O jovem arqueó- barranco com mais de 30 metros de altura que fortificadas da Europa. Cusco e Tenochtitlán eram capitais de impérios
logo Eduardo Kazuo Tamanaha, que coordena as despenca sobre dois lagos da várzea na margem Com a descoberta do alinhamento de man- ou Estados centralizados que abrigavam a nobre-
escavações, imagina ver vestígios de uma casa. esquerda do rio Solimões, no Amazonas. O lugar chas de buracos de postes no sítio Laguinho, za, os sacerdotes e uma burocracia organizada.
Desconfio: essas casas não poderiam ter a estru- é lindo, e o melhor período para as escavações parecia que, finalmente, identificaríamos sinais Esse não foi o caso de Santarém. Até o mo-
tura alinhada na forma como ele me descreve... é o seco mês de julho. A descoberta de Tamanaha de casas ocupadas na periferia da cidade. Isso mento, não se identificaram ali, ou em qualquer

44   national
fotos geo
dos muiraquitãs de graphic
wagner maio
souza e silva,•todas 2010
as peças são do museu de arqueologia e etnologia da universidade de são paulo A M A Z ôn ia a n o 1000  45
A sociedade moderna não descobriu a fórmula que reproduza o conhecimento enterrado nos sítios de como lidar com a floresta.

O barco levava 55 mil


tigelas de cerâmica
produzidas para
exportação (à direita).
A maioria tem de 15 a
20 centímetros de
diâmetro, e estavam
acondicionadas em
cântaros (acima).
Peixes, flores, símbolos
religiosos e poemas
desenhados com
esmalte adornam os
objetos.

Caboclos da Amazônia colhem a fruta do guaraná (acima) e a palha da


piaçava (à direita). O cacau, a mandioca, o cupuaçu, a pimenta e a castanha
são outros exemplos de plantas economicamente importantes que foram
domesticadas pelos antigos. As matas eram manejadas pelo fogo – a floresta
de hoje é produto dessa atividade exercida ao longo de milênios.

outro lugar da Amazônia, estruturas que indi- em Belém, o Nacional da Universidade Federal séculos anteriores à colonização europeia, ocor- Em Caral, o centro cerimonial mais antigo das
cassem algum grau de centralização política do Rio de Janeiro e o de Arqueologia e Etnologia ria intensa circulação de ideias, pessoas e bens Américas, no litoral do Peru, construído cerca de
ou desigualdade social compatíveis com Esta- da Universidade de São Paulo. A maior coleção, atravessando fronteiras culturais, políticas e ét- 5,5 mil anos atrás, dispõe-se uma série de es-
dos ou impérios. Mesmo assim, a arqueologia de ou talvez a mais bela, está longe do Brasil, embo- nicas pela América do Sul. As semelhanças na truturas monumentais de pedra – evidências de
Santarém mostra um registro bem diferente que ra muito bem guardada – no Museu das Cultu- iconografia de objetos produzidos em locais tão agricultura no vale do rio Supe, próximo do qual
a hipótese de limitações ecológicas nos levaria ras do Mundo de Gotemburgo, na Suécia. Foram distantes poderiam ser entendidas com base nes- está o sítio –, mas não há cerâmica associada.
a supor: as populações que ali viviam, conhe- coletadas e enviadas para lá na década de 1920 sa hipótese. Fora da Amazônia, no sul do Brasil,
cidas como tapajônicas, permaneceram séculos pelo etnólogo alemão Curt Nimuendajú. é sabido que aventureiros portugueses, como até hoje é difícil plantar na Amazônia.
no mesmo local. Eram, portanto, sedentárias. As estatuetas da região de Oriximiná, além de Aleixo Garcia, ainda no século 16, acompanha- Quando se pensa na agricultura pré-colombiana,
Embora em estilo diferente, os tapajônicos sua beleza, têm outro atributo intrigante: a forte ram índios guaranis em ataques a guarnições é comum que se esqueça de um aspecto tecno-
produziram cerâmicas tão sofisticadas quanto semelhança com as estruturas megalíticas en- incaicas no distante território da atual Bolívia. lógico fundamental: não havia instrumentos de
as marajoaras. Nessa mesma região, na margem contradas na região de San Augustín, nos Andes É também na região de Santarém que se en- metal para a derrubada de áreas de cultivo. Todo
oposta do rio Amazonas, próximo às cidades de colombianos. San Augustín fica a milhares de contraram o que talvez sejam as cerâmicas mais o trabalho de derrubada, limpeza, preparação
Óbidos e Oriximiná, perto da foz do rio Trom- quilômetros de Oriximiná, embora se encontre antigas das Américas, nos sítios de Taperinha e cultivo era feito com objetos de pedra lascada
betas, há sítios onde se encontraram cerâmicas tecnicamente próximo às cabeceiras do rio Ca- e da Caverna da Pedra Pintada, com datas que ou polida, madeira, mãos e fogo.
parecidas, embora não idênticas, às tapajôni- quetá, um afluente do rio Solimões. As estátuas podem chegar a 6000 a.C., mais antigas que as Estudos comparativos realizados por antropó-
cas. Esses sítios são, também, ricos em outros de San Augustín são grandes, podem ter 2 me- encontradas na foz do Amazonas. Tradicional- logos mostram que o investimento de tempo na
achados: raríssimas estatuetas de pedra polida, tros de altura. Como explicar tais semelhanças, mente, arqueólogos correlacionam o início da derrubada de árvores com machados de pedra é
de até 50 centímetros de altura, com represen- uma vez que nada parecido foi encontrado ao produção cerâmica com o advento da agricultu- muito superior ao feito com machados de metal.
tações de seres humanos e animais, sugerindo longo dos rios Caquetá, Solimões e Amazonas? ra. Na América do Sul, tal correlação não é tão Assim, faz sentido pensar que os assentamentos
algum tipo de transe xamânico. Restam poucas Até o momento, o tema não foi estudado com simples: na Amazônia e em outras partes, parece indígenas da Amazônia pré-colonial eram está-
estatuetas desse tipo conhecidas. Algumas estão cuidado. As semelhanças indicam uma possibi- claro que o início da domesticação de plantas veis e sedentários. Os dados do Projeto Amazô-
em museus brasileiros, como o Emilio Goeldi, lidade interessante: o fato de que, nos últimos antecedeu o início da produção de cerâmica. nia Central corroboram essa hipótese. Datações

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Para a arqueologia, Santarém é a cidade mais antiga do Brasil, com origens pré-coloniais. É a nossa Cusco, a nossa Cidade do México.

Crianças brincam com falantes de línguas da família tupi-guarani, dentre


fragmentos cerâmicos os quais os tupinambás e os guaranis que ocupa-
em Parintins, no vam o litoral atlântico e o sul do país na época do
Amazonas – muitas início da colonização europeia.
comunidades se Se as terras pretas não foram intensamente
dispuseram sobre cultivadas, temos então um paradoxo interes-
sítios arqueológicos. sante, que diz respeito às visões construídas pela
Os estudos em curso ciência e pelo senso comum ao longo dos anos
na Amazônia podem acerca da Floresta Amazônica e de seus povos.
mostrar um patrimônio Tais visões são baseadas em perspectivas de es-
extraordinário de cassez: na Amazônia ancestral, a ausência do Es-
povos que souberam tado, da agricultura e da centralização política
ocupar a floresta por foi interpretada por muitos arqueólogos como
milênios de maneira indicador de uma história incompleta – como se
sustentável. as sociedades indígenas da Amazônia fossem in-
telectualmente incapazes se comparadas a outras
sul-americanas, como aquelas que, por exemplo,
ocuparam os Andes centrais. No entanto, o rico
legado artístico que essas sociedades nos dei-
xaram, visíveis nos artefatos que produziram,
mostra que essa perspectiva está errada.
Uma herança ainda mais rica pode ser apre-
ciada no estudo de suas práticas de vida milena-
res, estáveis e bem adaptadas às condições ecoló-
gicas complexas da Amazônia. Nossa sociedade,
apesar dos avanços tecnológicos admiráveis que
tem alcançado, não descobriu ainda uma fórmu-
la que reproduza, com o mesmo sucesso, certas
formas sofisticadas de conhecimento, hoje enter-
radas nos sítios arqueológicos da região.
As terras pretas ocultam um tesouro de in-
formações sobre os modos de vida ancestrais,
além de outros sinais mais sutis do processo de
por carbono 14 realizadas em escavações de dife- aparentemente usados na agricultura, como ciados a camadas arqueológicas com abundan- ocupação dos sítios. Para entender esses sinais,
rentes sítios mostram que alguns foram ocupados explicar sua formação e posterior uso? tes vestígios de lâminas de machado de pedra serão necessários ainda muitos anos de pesqui-
por séculos, aparentemente de maneira contínua. Talvez a melhor hipótese seja a de que as ter- polida. A presença das lâminas indica aumento sas na Amazônia. Rios inteiros, como o Juruá,
Nada, portanto, mais distante da imagem de que ras pretas se constituíram como consequência na derrubada de árvores e abertura de clareiras, mal foram estudados. À medida que as pesqui-
tais sítios teriam sido ocupados por populações de um processo de mudança que teve a ver com isto é, ações de manejo mais intensas da floresta. sas avancem, novas surpresas sobre o passado
nômades com grande mobilidade. o estabelecimento da vida sedentária na bacia A associação desse tipo de artefato com a for- surgirão. Porém, apesar do ritmo lento com que
Os povos antigos da Amazônia tinham cons- Amazônica. Tal processo ocorreu, ao longo da mação de terras pretas mostra que nessa época trabalham em campo, escavando sepultamentos
ciência da alta fertilidade dos solos de terra calha do Amazonas, há cerca de 2 mil anos, que ocorreu ali um processo de sedentarização que ao longo de dias sob o sol escaldante dos trópi-
preta. Todavia, em muitos sítios arqueológicos é a idade dos sítios com terras pretas mais antigas depois se espalhou por outras áreas da Amazô- cos, arqueólogos na Amazônia apostam agora
tais solos estão associados apenas a áreas de nessa área. No entanto, há locais da Amazônia nia. É possível que não seja coincidência que a uma corrida contra o tempo: a velocidade frené-
habitação, não de cultivo. Isso quer dizer que, onde elas são ainda mais velhas, como a bacia bacia do alto Madeira tenha sido também a área tica de ocupação da região coloca pressão sobre
em vários contextos, as terras pretas não eram do alto Madeira, em Rondônia. Nessa região, de domesticação de plantas economicamente im- o patrimônio arqueológico. A ocupação desen-
utilizadas na agricultura, pelo menos não na o pesquisador Eurico Miller escavou depósitos portantes, como a mandioca e a pupunha, bem freada da Amazônia pode destruir não só o seu
intensiva. Se esses solos eram férteis, mas não de terras pretas, datados em 4,5 mil anos, asso- como o centro de origem e dispersão dos grupos futuro mas também o seu passado. j

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