Вы находитесь на странице: 1из 10
O que é memoria social? J6 Gondar Vera Dodebei ORGANIZA CAO CREA Equivocos da identidade (0 que é a antropologia? Sou o que se costuma clasifcar de “antropslogo social”. Mas 2 antro- pologia que pratico é ‘social’ (ou, se preferirem chamé-la assim, ‘cul- tural’) apenas porque a primeira questio com que ela se deftones ¢ determinar 0 que constitui, em extensio e em compreenséo, 0 concel- +0 deo social (ou ‘o cultural’) para © povo que o antropdlogo estuda, ou seja, qual é a antropologia dese povo ~ entenda-se, aquela que tem esse povo como agente e A30 como paciente testico. (© que estou dizendo ¢ que fazer antropologia ¢ comparar antropo- logias, « nada mais - nem menos. E se isso € verdade, entio a compa- ragfo nao é apenas nosso principal instrumento ani bém nossa matéria-prima € nosso horizonte wltimo, paramos sio sempre e necessariamente jd comparag6es. Se a cultura *{ea] consiste no modo pelo qual as pessoas estabelecem analogias entre os diferentes dominios de seus mundos”, entio toda cultura é um gigantesco €.m snsional processo de comparagio. E se a antropologia, ¢ agora cito, “estuda 2 cultura por meio da culrura”, entao “as operagdes que caracterizam nossa investigagio, elas quais forem, devem ser também propriedades gerais da cul Em " STRATHERN, Marilyn, Reproducing she future. anthropology, kinship, and the mew reproductive technologies. New York: Routledge, 1992, p. 47. * WAGNER, Roy. The inenson of culture. Chicage: Chicago Univesisy Pres, 1981, p. 35. 14s suma, 0 antropélogo ¢ 0 nativo esto engajades em “operagées inte- Jectuais diretamente compariveis”, e tais operagées sio antes de tudo operagies comparativas. Relagées intraculeurais, ou comparagies ine jolégica. Como restituir as analogias tragadas pelos povos amazbnicos nos termos de nossas préprias analogias? O que acontece com nossas comparagSes, quando as comaparamos com as com- paragoes indigenas? Proponho a nocio de equivcarda para reconceitualizar, com 0 auxt- lio da ancropologia perspectivista amerindia, esse procedimento emble- mético de nossa antropologia académica, a comparacio, A comparagio que tenho em mente nio é a comp®agao ex entre duas ou mais “culturas" com o fito de detectar constantes ou iddentificar variagoes concomitantes com potenciah nomotético; esse é apenas um dos procedimentes usados pelos io de que falo, ao contririo, é uma regra constitutiva da disci € 0 procedimento envolvido na tradug0 dos conceitos priticos € discursivos do “nativo” nos termos do dispositivo conceitual do antro- pélogo; em outros termos, falo daquela comparacio, na maior parte das ‘vezes implicita ou automdtica, que inclui necessariamente 0 discurso do antropdlogo como um de seus termos, e que comeca a se processar 2 partir do primeiro minuto de trabalho de campo, sero bem antes Hoje € certamente tum lugar-comum dizer que a tradugio cultural em saber 0 que exatamente ¢, pode ou deve ser uma “tradugio”, ¢ como tal operagio se realiza. E aqui que as coisas se complicam bas- tante, como mostrou Talal Asad em um notivel artigo‘. Eu adoto a jemations: anthropology as a practice of theory", Em: HER- 5). Anthropology: theoreical practice in euleure and society INESCO, 2002, p. 7. ‘Ver AAD, T. “The ennepe of cleus tanlation in Bish scl ancropolgy” 146 | oquctieounsocn? posiglo radical que é, penso, a mesma de Asad, e que resumno dizendo que, em antropologia, « companardo served tradusio endo 0 conteério. ‘A antropologia compara pare rradusir, e nio para explicat, i retar, contextualizar, revel ‘A boa traducio aquela que consegue fazer com que os con alheios deformem e subyertam 0 dispositive conceitual do tradutor, para que a intentio do dispositivo original possa ali se exp: Pois bem, apresencarei um brevissimo resumo (traduzido) da te- oria da tradugio presente no perspectivismo amerindio, projeta uma imagem da traducio como processo de eguivocajiéo co rrolada — “controlada” no sentido em que se pode dizer que and: ccair de modo controlado. © perspectivismo indigena € uma teoria do eqvoco isto ¢, da alteridade referencial entre conceices homé- municagéo entre condigao de po Perspectivismo, Chamei de "perspe difundido na Amé car, como s¢ constitufsse uma “ Tal cosmologia imagi- na um-universo povoado por diferentes tipos de agéncias subjetivas, humanas e nio-humanas, todas dotadas de um mesmo tipo de alma, isco , de um mesmo conjunto de disposic6es cognitivas ev para * Ver VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Aan logis), Sho Palo: Cosae Naif, 2002. ‘ecuivocosoarmanane \ 147 A posse de uma al que faz com que toda mesma maneira; em panicular, si mesmos (e apenas a si mesm butos corporais © comportamentais sob a esj O que muda quando de passa de uma es © conrelato objetivo, a referéncia desses co as ongas véem como “cerveja de mandioca’ (a bebida prépria da gente, humana ou outra), nds humanos vemos como “sangue”; onde vemos um barreiro lamacento na beira do ro, as antas enxergam sua grande maloce ceri- monial, ¢ assim por diante. Tal divergéncia de perspectivas — no uma pluralidade de visdes de um mesmo mundo, note-se bem, mas uma tunica e mesma visio de mundos diferentes ~ no pode radicar na alma, uuma vez que esta ¢ 0 fundo comum do ser; a divergéncia estd localiza- dda nas diferengas corporais entre as espécies, pois 0 compo e seus afetos (n0 velho sentido e: ‘i diferenciagao ont Assim, enquanto nossa ontologia antropoldgica modema ¢ “multicul- turaista’, fandada como es na implicagio miitua da unidade da natu- reza ¢ da pluralidade dis cultura, a concepgio amerindia supe, 20 con- trério, uma unidade espiritual e uma diversidade corporal, ou seja, uma s6 ‘culrura’ ¢ miiliplas ‘narurezas. Nesse sentido, o perspectivismo no & um tipo de reativismo como os que conlecemos, um relaivismo subje- tive ou cultural, mas sim ur y objetiva © universal, exetior & representagéo; os amerindios propdem, 20 contriri, uma unidade representativa ou fenomenolégica puramente pro- rominal (qualquer espécie de sujeito pereebe a si mesmo e a seu mundo do modo como nds peroebemas a nés mesmas ¢ a nosso mundo; a “cul- tun” é 0 que (como) své de (a) si mesmo quando se diz ‘Eu”), aplicada sobre uma radical diversidade real, v4 | au EiRasooK? em imaginar que 0 se referindo& mesma humana para as tepresentagées que outras espécies de para falar de uma mesma Coiss; 0. propésto, ao contririo, de vista’ a diferenca oculta dentro de “homBnimos” equivocos enue nossa lingua e a-das outras espécies ~ pois nds e eles nunca estamos falando das mesmas coisas. © petspectivismo inclui uma ceotia de sua propria d antropologia, pois ele é uma ancropologia. As ontologias so intrinsecamente comparativas: ¢las pressupOem uma comparagao entre os modos pelos quais os diferentes tipos de corporalidade experi- ‘mentam “naturalmente” 0 mundo como multiplicidade afectual. Nesse sentido, elas séo uma sorte de antropologia invertida, ja que'esta pro- cede por meio de uma comparacio explicita entre os modos pelos quais diferentes tipos de mentalidade representa “culturalmente” 9 mundo, tomado como origem unitéria-ou foco virtual de suas diver- sas vetsGes conctituais. Uma descrigao culturalista (ito é, antropolégica) do perspectivismo implica necessariamente, portanto, a nega lesle- gitimagio de seu objeto, sua retroprojegio como um tipo “fetichizado” de pensamento antropolégico, © que proponho como programa experimental € a inversio dese inversio, que partiria da pergunta: o que seria uma descrigio perspec: ita da comparacio antropoldgica? Como aqui no tenho tempo para responder a.ela com exemplos detalhados de ‘equivocagio con- trolada', discutirei apenas seus principios getais. Orequivoco ea perspectiva ‘Um as ponttos de parcida para minha primeira andlise do perspecti- tqviocosonoeroWe | 1 vismo, publicada conta em Raga ¢ histdria. Ela 967, foi uma anedota que Claude Lévi-Strauss ra ese pessimista de que perten- cce & natureza humana a recusa de sua prépria universalidade. Uma avareza narcisica congénita, que impede a atribuicio dos predicados da natureza humana ao conjunto da espécie, parece ser parte desses préprios predicados. O etnocentrismo, em sumia, como 0 bom senso (de que ele talvez seja a tradugio sociolégica) é a coisa mais be hada do mundo. Lévi-Strauss ilustra a universalidade de antiuniversalista com uma anedota baseada em Hirtéria, de Oviedo, que teria se passado em Porto Rico: ‘Nas Grandes Antilhas, alguns anos apésadescoberta da América, enquan- to osespanhSis enviavam comissées de inquésito para investiga se of indi- sgenas tinham ou no alma, estes se dedicavam a afogar os brancos que aptisionavam, a fim de verficar por uma demorada observagéo, se seus cadévereseram ou ndo sueitas& purefigao.® . cdo da pardbola obedece 4 um esquema isbnico familiar, mas nem por isso menos contundente. © favorecimento da prépria humanidade ‘em detrimento da humanidade de outrem manifesta uma semelhanga ‘com esse.outrem desprezado. E assim, porque o Outro do Mesmo (do europen) se revela o mesmo que o Outro do Outro (do indigena), 0 Mesmo termina se mostrando, 3 sua revelia, exatamente © mesmo que © Outro, A anedota foi recontada pelo autor em Thistes rdpicos. Ela ali, 0 choque cosmoldgico produzido na Europa quinhen: descoberta da América. A moral da pardbola continua sendo a do livro anterior, a saber, a mutua incompreensio indios ¢ espa- his, igualmente surdos & humanidade de seus outros inaudicos, Mas introduz no segundo livro uma assimetria, 20 ob- servar com ironia que, em suas investigagbes sobre a humanidade do ‘outto, 0s brancos invocavam as ciéncias saciais, ao passo que os indios confiavam mais nas ciéncias nacurais; e que, se os primeires conclufam que 05 indios eram animais, estes se contentavam em suspeitar que 7 Dara a versio desenvalvida deste ensaio de 1995, ver VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, inonsénce da alma longer: conta: eno deaneropolaga). Ob. ci * LEVISTRAUSS, Claude, "Race er histoire” (1952). Em: Anthropologie tracturale deux, Pais: Plo, 1973, p. 384 150 | ‘oquetmevénasocir 105 brancos fossem deuses. “Dada a igual ignorincia", conclu 0 au- tos, a diltima atitude era mais digna de seres humanos?, Mas se é assim, entio, apesar de uma igual ignordncia sobre o Outro, « Ouira do Outro nao era exatamente 0 mesmo que 0 Ouro do Mesmo, Foi a0 meditar sobre essa diferenga que comecei 2 forn hipétese de que o perspectivismo indigena situava as diferengas cru ‘nite 0s divetsos tipos de sujeito no plano do corpo ¢ nao do cspirita, Para os europeus, 0 diacritico ontoldgico era a alma (0s indios sio para ;, © corpo (os europeus sio huma- . Os europeus nunca duvidaram de que os tndios tivessem corpos (os animais também os tém); os momento puseram as almas dos curopeus em qh Sinai rites também as tém). Em suma, o etnocentrismo curopeu consis- tia no duvidar que outros corpos possulssem uma alma como os seus (hoje, chamariamos a “alma’ de “mente"). O etnocentrismo amerindio, a0 contrétio, consistia em duvidar que outras almas possuissem 0 mes- mo tipo de coxpo. A anedota das Antilhas me parecia, assim, jogar luz sobre um dos elementos centrais da “mensagem” perspectivista — a renga inscrita nos'corpos, ¢ a idéia de corpo como sistema dispos! de afetabilidade (os europeus apodrecem ou nfo?) antes que morfo- logia material. $6 hi pouco tempo, porém, dei-me conta de que a anedota nio era apenas “sobre” 0 perspectivismo, mas era ela prépria perspectivista, instanciando a mesma estrutura manifesta nos int ‘meros mitos amerindios que tematizam 0 perspectivisme interespe- cffico. O que tenho em mente € aquele tipo de mito em que. por exemplo, o protagonista humano se perde na maga, chega em uima aldeia estranha, cujos moradores 0 convidam a se refrescar com uma ccuia de “cerveja de mandioca’, que ele aceita com gosto, ¢, para sua surpresa horrorizada, seus hort Ihe pGem A fiente uma cuia chela até a borda de sangue humano. Tanto 2 anedota quanto 0 mito giram em torno de um tipo de dis) iva em que os inteslocutores nio falam a mesma coisa, ¢ no sebem disso (no caso da anedora, 0 ‘didlogo’ se trava no plano do raciocinio comparativo de Lévi-Strauss sobre 0 etnocenttismo reciproco). Assim como os jaguares ¢ os huma- rnos dio o mesmo nome para duas coisas muito diferentes, tanto 0s > LEVI-STRAUSS, Claude, Tries mpigu Past: Pon, 1995, p l-3. rouocosDalpeNiDADE Jas europeus quanto os indios “estayam falando” da humanidade, isto &, estavam se perguntando sobre 2 aplicabilidade desse conceito auto- descritivo 20 Outro; mas aquilo que europeus e indios entendiam como sendo 0 critério definidor do conceito (sua intenséo ¢, conse- ailentemente, sua extenséo) era radicalmente diverso, Em suma, tan- to a ancdota de Lévi-Strauss quanto 0 mito giram em torno de um equivoco. Se pensamos bem, a anedota das Antilhas é semelhante a intiie- ras outras que podemos encontrar na literatura etnogréfica ou em nnossas préprias reminiscéncias do trabalho de campo. Na verdade, penso que ela resume a situagdo ou 0 evento antropolégico por exce- Iéncia, exprimindo a quintesséncia de nossa disciplina. E possivel ver, por exemplo, no arquifamoso episédio da morte do Capi Cook, tal como analisado por Marshall Sahlins", uma transformacio estrutural dos experimentos cruzados de Po : watase de duas verses do motivo antropoldgico arquetipico, a equlvocidade inter- cultural. Esse motivo, por sua vez, visto da Amazéni i uma variante transformacional da mitologia perspéetivista sobre a equi- vocidad A vida, como sempre, 0 so a incompet empatia pessoal, a indiscrigio grosseira, a ingen mercantilizagio da informacio, a mentira, a mani esquecimento, e outras tantas deformagGes ou caréncias que podem afli icamente a enunciagio antropolégica, Ao contritio des- sas patologias contingentes, 0 equivoco ¢ uma categoria propriamente transcendental da antropologia, é uma dimenso constitutiva do pro- jeto de tradugio cultural prdprio da disciplina."'Ele exprime uma escrutura de jure, uma figura imanente da antropologia; néo é uma mera facticidade negative, mas sim uma condigio de possibilidade do discurso antropolégico ~ ele é aquilo que justifica a existéncia da an- ica, 2 ignoréncia do contexto, a fata de idade literalista, a "Ver SABLINS, Marshall. lend of hor, Chicago: University of Chicago Press, 1985. "" Estas considerages se inspiram, por analogia, em ide Detevze, Gilles 6¢ GUATTAR, Félix. Quertce quel pilonophie| 991,p. 53-1. 12 | oquetnenonnsocn? tropologia (guid juri2). Traduzir € instalar-se no espago do equivoco € habité-lo. Nao para desfazé-o, pois isso suporia que ele nunca existiu (de jure), mas, 20 contririo, para enfatizé-lo ox potencializé-lo, isto &, para abrir e alargar 0 espaco que se imaginava no exi linguagens conceituais em contato ~ espago que, justamente, 0 equi- ‘voco ocultava, © equiveco nio é © que impede a relagio, mas aquilo que a funda e que a propele: uma diferenca de perspectiva, Traduzir & presumit que hé desde sempre e para sempre um equiivoco; é comunicar pda diferenga, em vez de silenciar 0 Outro, ao presumir uma univo- calidade origindria e uma redundancia ultima ~ uma ’semelhanga es- sencial ~ entre 9 que ele e nds “estévamos dizendo”, ‘M. Herafeld observou recentemente que “a antropologia se ocupa dos equivocos {misundentanding|, inclusive os equivocos nds mesmos 08 antropélogos, pois a equivcidade é em gerd, o resultado dz inco- mensurabilidade métua entre as diferentes noses do que scja 0 senso comum ~ ¢ este € nosso objeto de estudo"*. Concordo em género, rimero e grat. Insstzia apenas sobre a idéia de que se a antropologia existe (de jure), € apenas porque isso que Herefeld chama de “senso ia também que a g8es" em confronto, longe de ser um im= dade, é exaramente © que a permite jus- tifica, como argumentou noravelmente Michae! Lambeke®, Pois «6 vale 4 pena comparar o incomensurével ~ comparar o comensurivel é uma tarefa pare contadores, nfo para antropélogos. Por fim, observo que concebo a idéia de misundentanding no sentido especfico de equivecidade que podemos encontrar na cosmologia perspectivista amerindl equlvoco nao apenas um “defeito de interpretacéo", mas uma d énda no compreender que as interpretagbes so necessariamente Bentes, € que elas dizem respeito no 2 modos imaginétios de “ver 0 mundo”, mas aos mundos reais que esto sendo vistos. Na cosmologia amerindia, 0 mundo real das diferentes espécies depende de seus " HERZFELD, Michael: Oscnatons anuhopology as. price of theo”. En: HER- ZFELD, Michael (org), Amshpolog: theoretical practice in eure and se. Ob. 2 '* Ver LAMBEK, Michael. ‘Body and mind in mind, body and mind in body: some anthropological interventions in along conversation”. Em: STRATHERN, Andtew 8 LAMBEK, Michae! (orgs). Bodis and perions: comparative peripetivs from Africa and Melanesia. Cambridge: Cambridge University Pres, 1998, ‘avvocos aero | 183 ;pontos de vista porque o “mundo em geral” consiste nas diferentes espécies, é 0 espaco abstrato de divergéncia entre clas como pontos de vista: nio ha pontos de vista sobre as coisas ~ as coisas ¢ os seres E que so pontos de vist A antropologia, entéo, “trata de equivocos”. Mas, como disse la darmente Roy Wagner sobre suas relagée “sua incompreensio de mim nfo era a mesma que minha incompreensio dees", O ponto crucial aqui nio ¢ o fato empitico das incompre- censbes, mas o “fato transcendental” de que elas no cram as mesmas. A questio, pois, néo é saber quem esté etrado, ¢ menos ainda quem esté enganando quem. Um equivoco nao é um erro, um engano, um Jogro ou uma falsidade, mas o fundamento mesmo da relagio que 0 ica, e que € sempre uma relagao com a exterioridade, Um erro ou uum engano s6 pode se determinar como tal dentro de um dado jogo de linguagem, enquanto o equivoco € 0 que se passa no futervalo entre jogos de linguagem diferentes. O engano ¢ 0 erro sufiGem premissas j4 constitufdas, ¢ constitufdas como homogéneas, ao passo que o cqui- ‘yoco no “supée” apenas a heterogeneidade das’ premissas em jogo: cle as p6e como heterogéneas, e as pressupe como premissas, O equi voco determina as premissas mais que ¢ determinado por elas. Por conseguinte, 0 equivoco nao pertence ao mundo da contradicio dia- lética, pois sua sintese € disjuntiva ¢ infil antes, recursivo: tomd-lo como objeto determina um outro equivo- co. montante, € assim por disnte, O ‘equivoco, em suma, ndo é uma falha subjetiva, mas um disporitvo de objetvagio, Ble no & um erto ou uma ilusio ~ nio se trata de ima- discurso do antropéloge ¢ o discurso do nativo. Assim, 0 conceito antro- poldgico de cultura, por exemplo, como argumentou Wagner, é 0 equi- vvoco que surge como tentativa de solugio para a equivocidade inter: “ DELEUZE, Gilles, Le pl. Leibniz ele baroque. Paris Minuit, 1988, p. 203. 'SYWAGNER, Roy. The invention of culture, Ob. cit, p. 20. 184 | ‘oquetamncnn scons? cultural; ¢ ele ¢ equivoco porque assenta no “paradoxo criado ao se ima- ginar uma cultura para um povo que nfo a imagina para si mesmo”'S, Por isso, mesmo quando as incompreens6es se transformam em 6s" ~ quando 0 antropélogo transforma a sua incompre- ‘ensio inicial sobre os nativos na “cultura deles", ou quando os nativos compreendem, por exemplo, que aquilo que os brancos chamavam de “presences” sfo na realidade “mercadorias’ ~, eles permanecem nao sendo'0 mesmo: © Outro dos Outros & sempre outro. E se 0 equivoco nio € erro, ilusio ou mentira, mas a propria forma da positividade relacional da diferensa, seu oposto ndo &2 verdade, mas o unisoeo, Duas imagens da relagso Gostaia de discatin, 4 gus de conc mento fizera uma viagem & Amaz6nia guiado por amigos meus que ttabalham no Instituto Socioambiental (ISA). Um dos pontos altos da viagein fora uma estada de cerca de duas semanas entie os Kexi- da calorosa dos Indios. De volta ao litoral, decidit: usar uma palavra indigena como titulo do disco que gravava. A palavra escolhida foi txai, que os Kaxinawa haviam abundantemente empregado para se mn € 20s outros membros da expedigio, Quando o album Tai escava para ser langado, um dos meus 2 gos do ISA me pedi para escrever uma nota de contracapa. A idéia cra explicar aos fas de Milton o que significava o titulo: “Seri que voc® rio poderia dizer algo sobre o sentido de frarernidade expresso pelo rermo sai, sobre ele significar “irméo", e assim por diant Respondi que nao cabia escrever a nota nesses termos, visto que tai podia querer dizer tudo, salvo, justamente, “irmao”, Expliquei que fai é um termo que um homem aplica a certos parentes: a seus "tidy p. 27. rquivocosomDeNTIDNOF | 155 primos cruzados, 20 pai de sua mée, os filhos de sua filha e, em geral, conforme o sistema de “alianca presritiva” kaxinawe, a todo homem cuja iemi Ego trata como equivalente & sua esposa, ¢ vice-versa”, Em ssuma, acai significa algo como “cunhado”; ela se refere aos cunhados reais ou possiveis de um homem, e, quando usado como vocativo amigavel para falar a estrangeiros nio-Kaxinawa, a implicagio & que esses sio uma espécie de afins. De resto, esclareci, nio € preciso ser amigo para ser suai; pode bastar ser um estrangeiro ou até, e mesmo de preferéncia, ser um inimigo: assim os Inca, na mitologia kaxinawa, so ao mesmo tempo monstros canibais e suai arquetipicos, com of quis, diga-se de passagem, nio se deve ou se pode “Mas assim nao vai funcionar”, disse meu amigo; “Milton pensa que teal quer dizer irmao, e, de qualquer modo, seria bastante ridt- culo dar a0 disco um icado de sxai como ‘outro’ ou afim’ "0 resultado da conversa foi que 0 disco continuou a se intitular Tai, € que a nota acabou sendo escrita por outra pessoa. Notem que o problema desse equivaco sobte suai néo reside no fato de que Milton Nascimento © meu amigo estavam erados a respeito do sentido da palavra kaxinawa. O problema, ao contritio, & que eles esta- vam cerzor~ em certo sentido. Eles estavam, em outras palavras, equivo- cados. Os Kaxinawa, como tantos outrot povos indigenas da AmazSnia, sam termos cuja tradugio mais direta é “cunhado", ou “primo eruzado”, em varios contextos em que os brasileitos e outros povos ge tradigéo eurocristd realmente esperariam algo como “irméo”. Nesse sentido, Milton estava certo. Tivesse ets me lembrado, teria dito a meu interlocutor que 0 equivoco jf fora antecipado por uma etndloga dos Kaxinawa. Ao falar da diferenga entre a filosofia social desse povo ¢ aquela prépria aos brancos que os cercam, Barbara Keifenheim concluiu: “A Mensagem ‘todos os homens so irmaos’ encontrava um mundo em que a expressio mais nobre das rclagées "Ver KENSINGER, Kenneth, Hew real people ought olive: the Cathinabua of Eastern Per, Prospect Hights: Waveland Pres, 1995, p. 157-74 * Ver MCCALLUM, Cecil." th, dying and personhood” ‘Trabalho apresentado ao XLVII International Congress of Amevicanists, New Orieans, 1991 156 | oaueeMencensoon? humanas é a relacio de cunhados mesmo que “irméo” nio é uma traducéo adequsda de guém que um Kaxinawa dificilmente chamaria de prio irmao. Txai significa “afim", no “consangiifn do empregado com propésito similar 20 nosso, quando nos diriginos 4 um estranho como “irmao", Se os propésitos podem ser similares, os pressupostos decididamente néo 0 sio, Meu acidente de tradugio soard, com certeza, completamente banal a0s ouvidor dos americanistas, que hé muito tempo se inte- ressam pelas iniimeras ressonincias simbélicas do idioma da afini- dade na Amazénia, O interesse dessa anedota no presente concerto, entretanto, € que ela patece exprimis, na propria diferenca entre os idiomas do “irmao” ¢ do “cunhado”, dois modos inversos de conce- Bem dito. Mas é por isso i se hid al- da antropologia e © modo multinaturdista do per As poderosas metdforas ocidentais da fraternidade privilegiam cer- tas propriedades Idgicas dessa relagio. © que sio inmios em nossa cultura? i mo, 0s genitores ou seus andlogos funcionais. A relacéo entre dois itmios deriva de sua relago equivalente a uma origem que os englo- bs, e cuja idemtidade Ihes identifica. Essa identidade comum faz com que os irmaos ocupem o mesmo ponto de vista perante 0 mundo exterior, derivando sua similaridade de uma relagio similar a uma ‘mesma origem, rerdo relagées “paralels” (para usarmos uma imagem. antropol6gica) com todo o resto, Assim, pessoas sem relagio, quando concebidas como relacionadas em um, sentido genérico, s6 0 sio em termos da comum humanidade que nos fax todos parentes, isto é, itmaos:ou, ao menos, para continuarmos.com a imagem, primos pa- ralelosirmios clasificatSrios filhos de Adio, da Igreja, da Nagao, do Genoma ou de qualquer outra figura da transcendéncia, Todos os homens sto irméos em algo, pois a fratemidade em si é a forma geal da Relagdo. Dais parceiros de uma relagio qualquer sio definides como ligados quando podem ser concebidos como tendo alguma eaisa em comum, isto é; como estando na meima relacio a um terceito termo. Relacionar ¢ assemethar, unificar, identifica. "KEIFENHEIM, Barbara. “Identicé et altrité cher Sect des Amricarizts, LXXNT, 1992, p. 9 indiens Pano’, Journal de la £QUVOCSDADENTIOADE 1s7 © modelo amazénico da Relagio néo poderia ser mais diferente disso. postulam a diferenga, antes que a identidade, como cionalidade, B ¢ precisamente a diferenca entre os di funda a relacio que tenco estabelecer en modo amerfndio de comparar traduzir. ‘A palavra comum para a relaséo, nos mundos amaz6nicos, € a que se tradusitia por “cunhado” e/ou “primo cruzado”. E por cla que cha- ‘mamos a quem nfo sabemos o que chamar, 2queles com quem descja- ‘mos estabelecer uma relacio genérica. Em suma, “primo-cunhado” ¢ 6 termo que cria uma relagio onde havia nenhuma: ele ¢ a forma pela qual 0 “desconhecido” se dé a conhecer. ‘Quis sio as propriedades légicas do vinculo de afinidade que rece- bem destague nesses usos indigenas? Como modelo geral da relzcéo, 0 Jago de cunhadia fi-la aparecer como uma conexio cruzada a um termo mediados, que é visto pelos pélos da relagio de mnodos diame- tralmente opostos: minha irmé tua esposa e/ou vice-versa. As partes envolvidas se acham, aqui, unidas por aquilo qué’as divide, ligadas por aquilo que as separa. Minha relaco com meu cunhado se funda fem ‘ewestar em uma out relacdo que ele com minha irma ou minha esposa’, A relagdo amertndia é uma diferenca de perspectiva, Se nés pa- recemos conceber a acao de relacionar como um descartar das diferen- ‘as em favor das semelhangas, © pensamento indigena vé 0 processo de um outro angulo: 0 opasto da diferenga nio é a identidade, mas a indiferenga. Escabelecer urva relagio como a dos Kaxinawa com Mil- ton Nascimento € diferenciar a indiferenga, pér uma diferenga ali onde a indiferenga era supo: € € por elas que con- a melhor das hi Pois bem, se o antropdlago parte do metaprinelpio de que “todos os homens sio irmios”, ele pressupde que seu discurso e o discurso do nativo manifesta uma relagio de nstureza, em dlsime instancia, “fraternal”, © que funda a relacio de sentido entre os dois discursos — ™STRATHERN, Matlyn. "Reproducing the future: anthropology, kinship, and the technologies”. Ob. ct, p. 99-100, 188 | oe twononasocnr «, porranto, justfica a operacio de tradugio — ¢ sua referéncia comumn, da qual os dois apresentam visoes "parlelas™ de uma Nature- za externa € anterior, l6gica e cronologicamente, 3s culturas que @ representam parcialmente desempenha aqui o papel do Genitor que funda a relagio entre os dois (E aqui poderfarmos imiginar pretacio hierérqui mo fracerno, com 0 an- tradugo s6 € possivel porque os discursos sio compostos de mos”, eles exprimem a mesma refertneia “patent cendéncia qualquer com estaturo de Ni Gene, a Cognig0, o Discurso, a Econom encontrar 0 que os discursos tém em comum, ¢ que s6 esid “dentro Traduzir € presumir a redundincia. ‘Mas se todos os homens séo cunhados antes é,sea imagem do lago social nfo ¢ a do compa comum (um algo-em-comum a secvir de fundamento), mas, a0 con- tririo, a da diferenca entre os termos da relagio, ou melhi renga entre as diferencas que constituem os termos da relagdo, sé pode haver relagio entre o que difere, ¢ porque difere. Nesse ciso, 2 traducéo passa a ser uma operagio de diferenciagio ~ de produsao plenamente, de fato e de direitos 20 contrétio dos via, entendo que cada texte em seu pr6prio hors-texte). Nesse suma, a tradugio cultural no € um processo de indugao — achat os ontos comuns em detrimento das diferengas ~, nem muito menos qulvocos ox toenooe | 139 (no sentido em que palvra rem na tenria da visio) € integrado ao sistema de resoligio ese torna condigo de significagio. Nio hé empobrecimento

Вам также может понравиться