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NAÇÃO RELIGIOSA, ESTADO SEM DEUS

LAICIDADE, IDENTIDADE CONSTITUCIONAL E DEMOCRACIA

Roberto Chateaubriand Domingues1

Sumário: I. Introdução; II. A formação da identidade do sujeito constitucional; III. A laicidade


estatal como comando constitucional; IV. O perfil religioso da população brasileira e
identidade constitucional; V. Estado Democrático, laicidade e religiosidade; VI. Conclusão;
Referências bibliográficas.

I – Introdução

A conformação religiosa do povo brasileiro apresenta raízes históricas associadas à


colonização portuguesa que, por séculos, impôs o Catolicismo como o credo oficial do Brasil,
especialmente durante o período imperial. Com o passar do tempo e, sobretudo após a
instituição do Estado Laico pela República, percebe-se a gradativa perda da hegemonia
católica no país com o surgimento e o fortalecimento de outras denominações religiosas que
passam a concorrer em um campo marcado pelo pluralismo. Mesmo plural o campo religioso
brasileiro se mostra acentuadamente cristão e capaz de produzir importantes efeitos de sentido
sobre a sociedade como um todo.
Observando-se o trato de questões coletivas polêmicas, seja no âmbito do Legislativo ou
no Judiciário, encontra-se, via de regra, o argumento moral-religioso, independente de sua
denominação confessional, como fundamento para a sua discussão e deliberação, seja por
parte dos parlamentares legitimamente eleitos como representantes do povo brasileiro e que,
por seu turno, encontram amplo apoio na sociedade, seja por parte dos juízes, cujas decisões
produzem efeitos de sentido normativo.
Como exemplos podem ser listados, de forma emblemática, o caso dos projetos de lei
em tramitação sobre aborto, prostituição e união civil de pessoas do mesmo sexo que
tramitam no Congresso, bem como a questão da ADI que discute a interrupção da gestação de
fetos anencéfalos.
Em todos esses exemplos se observa a mobilização de um grupo de interessados que
defendem posições, a princípio, sem lastro religioso e que convocam o preceito da laicidade
do Estado significativamente inferior ao clamor popular sendo este, via de regra, embalado
por argumentos metafísicos de cunho claramente religioso.

1
  Advogado, formado pela Escola Superior Dom Helder Câmara em 2007, militante de direitos humanos nas 
ONG Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS de Minas Gerais (GAPA­MG) e Davida ­ Prostituição, Direitos 
Civis e Saúde.
Nesse sentido, se faz urgente discutir a legitimidade dessas posições tendentes à
produção normativa, bem como o cenário que delineiam decisões que ainda estão por vir, que
atendem à maioria da população claramente inspirada pelos dogmas cristãos em detrimento de
argumentos técnicos ou científicos sustentados por uma minoria.
O pluralismo religioso, ao que parece, passa a ser amalgamado em um bloco, ainda que
diverso em sua constituição, apresentando Deus como argumento principal numa sociedade
dita complexa e plural. Nesse cenário, como se daria a formação da identidade do sujeito
constitucional pátrio, cujo desafio fático aponta para a harmonização do imperativo extraído
da Constituição da República no que tange à questão da laicidade do Estado em uma nação
composta por uma maioria claramente religiosa?
Objetivando construir respostas possíveis a esta indagação, buscou-se articular a
questão do Estado Laico e a formação da identidade do sujeito constitucional tendo em
perspectiva o projeto democrático pátrio, identificando as tensões necessárias presentes no
campo discursivo capazes de forjar argumentos idôneos e aptos a influenciar decisões
baseadas no entendimento entre aqueles que participam de sua elaboração e são afetados por
elas.
A primeira seção aborda, por meio de breves apontamentos, a formação da identidade
do sujeito constitucional tomando-se como base a teoria de Michel Rosenfeld (2003). Como
um processo cujo termo final nunca é alcançado, a formação da identidade do sujeito
constitucional pressupõe a existência de um campo discursivo dinamicamente tensionado por
interesses contrapostos, sustentados por grupos com idéias e concepções de mundo distintas
que deverão ser trabalhados e, na medida do possível, harmonizados, tendo em vista a co-
existência pacífica de todos sob o manto de uma lei única.
A segunda seção visa a discutir a laicidade estatal como comando constitucional
inafastável, cuja positivação constitucional remonta ao início da República no Brasil. Não
obstante a força normativa deste comando, especialmente em razão de sua localização
topográfica hierarquicamente superior, percebe-se a necessidade de sua afirmação constante e
permanente, tendo em vista as recorrentes violações sofridas sejam essas fáticas e concretas,
sejam simbólicas, porém não menos efetivas.
A terceira seção opera com o perfil religioso da população brasileira buscando analisar a
extensão de seus efeitos na formação da identidade do sujeito constitucional pátrio, a partir da
função atribuída ao sentimento religioso ao longo do processo de civilização de dada
sociedade.
A quarta e última seção apresenta o propósito de articular os conceitos de Estado
Democrático, laicidade e religiosidade visando problematizar o impacto do discurso moral-
religioso na concretização do princípio da laicidade do Estado e na consecução do projeto
democrático propugnado pelo texto constitucional de 1988.

II – A formação da identidade do sujeito constitucional

Segundo Michel Rosenfeld (2003), a identidade do sujeito constitucional apresenta-se


como um processo dinâmico e inconcluso, no qual se percebe uma contínua redefinição do
indivíduo no exercício, não apenas dos direitos públicos, mas também dos deveres de
cooperação para com a comunidade, expressão de seu exercício de cidadania. Este indivíduo,
que não se confunde com o sujeito constitucional, embora o conforme a partir de traços
identitários, deve ser percebido como o cidadão que se sujeita às regras postas, tanto por ser o
seu destinatário e, assim sujeitado a ela coercitivamente, mas, sobretudo, porque se
comprometeu a respeitar as ‘regras do jogo’, por ser delas o seu co-autor, reconhecendo a
legitimidade do sistema normativo como condição primeira da vida em sociedade.
A identidade do sujeito constitucional é apreendida não mais do que uma
potencialidade, um processo constituído ao longo do tempo, da linguagem e do exercício da
cidadania capaz de produzir efeitos de sentido que abrangem projetos intergeracionais. Dito
de outra maneira, a identidade constituída possui o condão de vincular tanto aqueles que
direta ou indiretamente participaram da construção deste acordo materializado na forma do
texto constitucional, quanto os membros das gerações vindouras. Estes, por meio do exercício
de interpretação, atualizarão os dispositivos que compõem a Lei maior à luz de seu tempo,
sem que isso signifique, necessariamente, o rompimento radical com a história de seu povo.
Para tanto, o processo de formação da identidade constitucional deve permitir o
exercício das opções plurais e potencialmente contraditórias, em um campo discursivo
mediatizado pelo direito, estabelecendo fluxos de informação aptos a compatibilizarem os
dissensos e, assim, possibilitar que a identidade seja marcada pela inclusão das diferenças e
pelo reconhecimento da existência legítima dos vários jogos políticos incidentes na esfera
pública.
Operando entre a filosofia e a psicanálise Michel Rosenfeld (2003) lança mão de
conceitos anteriormente trabalhados por Hegel, Freud e Lacan, em contextos próprios a áreas
do conhecimento distintas do Direito, sobretudo na formação da subjetividade do homem
enquanto ser, para apresentar e discutir o processo de formação da identidade do sujeito
constitucional. Desse modo, Rosenfeld transporta para o campo jurídico conceitos como
negação, metáfora e metonímia para tecer um paralelo entre a dinâmica da formação do
sujeito e a Teoria da Constituição.
Nesta perspectiva, o processo da formação da identidade constitucional se dá, em um
primeiro momento, a partir do mecanismo da negação que rejeita todo e qualquer traço
identitário anterior rompendo com os ditames da ordem política até então existente. Não
obstante o caráter imaginariamente absoluto atribuído ao poder constituinte ostentado pelo
sujeito constitucional, vê-se que nem mesmo ele consegue se impor enquanto uma auto-
imagem capaz de se sustentar a partir de uma vontade própria, destacada e autônoma de toda a
história.
Ainda que o processo de formação da nova identidade se dê por meio de uma radical
ruptura revolucionária, ecos da ordem política pré-revolucionária influenciam aquela outra
que se encontra em gestação, determinando significativamente os seus conteúdos. Portanto,
não há como supor a desconsideração do outro, neste momento entendido como a tradição,
durante a imposição da vontade revolucionária trazida a lume pelo autêntico eu constitucional,
a não ser que se pretenda a instauração do reinado do terror, absolutamente desvinculado dos
padrões apontados pelo constitucionalismo e pela democracia.
Tem-se, então, que a identidade constitucional se forja a partir do que não é, ou seja,
revela-se o Sujeito como carência, como vazio que se interpõe pela tensão produzida entre a
auto-imagem própria dos constituintes e aquela ostentada pela comunidade política
constitucional pluralista. Tal vazio tenderá a ser preenchido por meio da elaboração da
Constituição que, em última instância, representa a tentativa de elaborar um texto sob o qual
deverá surgir uma nova identidade comum circunscrita pelo discurso constitucional
devidamente balizada pelos ditames do Estado de Direito e a proteção dos direitos
fundamentais (ROSENFELD, 2003).
O processo de preenchimento do vazio na busca-tentativa de formar a identidade
constitucional no contexto de uma nova ordem política, se dá a partir da incorporação seletiva
de traços e substratos das identidades descartadas, porém, jamais desconsideradas, utilizando-
se, para tanto, de mecanismos análogos à metáfora e à metonímia propostos por Lacan no
campo da Psicanálise.
A metáfora se apresenta como instrumento de busca de similaridades e equivalências
entre elementos compartilhados por ordens políticas distintas no intuito de compatibilizá-los,
tendo em vista o novo contexto político-social que se apresenta.
Já a metonímia é entendida como mecanismo doador de sentido, a partir da
identificação de diferenças em determinados contextos impedindo que a identidade seja fixada
e garantindo, assim, a possibilidade efetiva do constante e dinâmico surgimento de novos
elementos e compreensões de mundo, por certo, sob certas condições, sem que isto signifique
a imposição de um dado estranho ou paradoxal à nova ordem (ROSENFELD, 2003).
Emblematicamente, pode-se ilustrar este processo a partir do esforço empreendido com
relação à religião na formação da identidade constitucional. Diante da inequívoca importância
do sentimento religioso e de suas práticas no seio de determinadas sociedades, pode-se
verificar que, em um primeiro momento, as religiões são afastadas de modo a possibilitar a
construção de um campo autônomo e fértil para o desenvolvimento de novas identidades.
As concepções e conteúdos morais ou metafísicos perdem sua força, sem, contudo,
desaparecer para, posteriormente, serem reincorporadas no universo pluralista, porém não
mais ocupando as mesmas posições que possuíam anteriormente. Em outros termos, as
religiões que compunham a ordem política pré-constitucional, como identidades parciais, são
readmitidas no novo contexto, em combinações originais, sob a condição de que não
apresentem ameaças a outras denominações religiosas ou aos não-crentes permanecendo no
âmbito da esfera privada.
O processo de formação da identidade do sujeito constitucional sofre incidência dos
múltiplos e, não raros, contrapostos interesses presentes na sociedade, por definição complexa
e plural, e possui o desafio de compatibilizá-los visando a garantir a adesão ao projeto
constitucional de todos os seus destinatários, sob pena de instituição de práticas ilegítimas de
exclusão de minorias não contempladas pelo projeto coletivo.
Nesta perspectiva, a identidade do sujeito constitucional deverá ser constituída por meio
da prática intersubjetiva de todos objetivando alcançar o entendimento que se opera a partir da
estruturação de processos discursivos livres, de formação da opinião e da vontade política,
impondo regras autorizadas pelos sujeitos destinatários. Tal processo, com pretensão de
legitimidade, dá-se para além das ações estratégicas voltadas apenas aos interesses pessoais e
se concentra em um discurso cooperativo em torno do melhor argumento.

III - A laicidade estatal como comando constitucional

O Estado Democrático de Direito pressupõe a separação entre Estado e Religião, sendo


afastadas aquelas disputas operadas em um campo marcado pelo inexplicável ou
transcendente, em favor do debate fundado em uma racionalidade compartilhada, sob pena de
tornar toda e qualquer discussão refém de argumentos que se fundam em uma autoridade
auto-entronizada e infalível interrompendo, portanto, a cadeia discursiva.
O rompimento com a lógica do Estado Laico faz ruir o edifício da democracia e da
liberdade fundado na pluralidade de atores e de discursos, cuja convivência se torna possível a
partir do debate de posições divergentes, minimamente inteligíveis direcionado ao
entendimento (GALDINO, 2006).
Não obstante se possa, ao menos em tese, imaginar uma comunidade livre e autônoma
organizada segundo preceitos e definições religiosos, tem-se, diante da realidade
contemporânea e das evidências que apontam para a conformação social marcada pela
diversidade e pluralidade de pensamentos, crenças e opiniões, uma probabilidade bastante
remota e, até mesmo ficcional, de se ter tal hipótese concretizada.
Nesse cenário fragmentado por definição, as tensões sociais se apresentam inafastáveis,
tanto quanto legítimas, exigindo-se do Estado uma prestação de proteção aos mais variados
atores que se expressa, e tão-somente se realiza, a partir de sua posição isenta diante das
inúmeras possibilidades de crenças e posições ideológicas.
No Brasil, a laicidade estatal é inaugurada formalmente, a partir da promulgação da
Constituição Republicana de 1891 rompendo com a total indistinção entre Estado e Religião,
sendo esta, oficialmente, a Católica Apostólica Romana.
A Constituição Imperial de 1824 propugnava os direitos à liberdade garantindo em seu
Art. 179 a liberdade de ação em geral, de pensamento e opinião, incluindo a liberdade
religiosa, mesmo que tal direito fosse limitado pelo Art. 5º que instituía a religião Católica
como aquela Oficial adotada pelo Estado. Cumpre ressaltar que essa Constituição foi a única
na história do país a estabelecer uma religião oficial para o Brasil, sendo que, a partir da
Proclamação da República todas as demais constituições, promulgadas ou outorgadas,
mantiveram positivado o princípio da laicidade do Estado dentre os direitos fundamentais à
liberdade (GALDINO, 2006).
Na Constituição de 1988 o princípio da laicidade pode ser extraído a partir da leitura
dos comandos presentes no Art. 5º, caput e incisos, que dispõem sobre o direito à igualdade e
à liberdade, pressupostos intrínsecos e necessários para a concretização efetiva do referido
princípio, bem como no Art. 19, inciso I, que impõe limites ao Estado no tocante às suas
relações com instituições religiosas, seja no sentido da não interferência quanto a sua
organização, seja no sentido de proibição de alianças ou relação de dependência tendentes a
promover privilégios ou discriminações entre credos.
A partir desses dispositivos constitucionais pode ser aduzido o caráter não confessional
do Estado brasileiro que, mesmo não sendo explícito, torna-se evidente em razão da obrigação
da laicidade na Constituição em vigor (GALDINO, 2006).
Desta forma, o Brasil não apenas garante a liberdade de crença aos seus cidadãos,
inclusive a liberdade de não-crença, como se abstém de professar qualquer religião impondo
aos seus agentes políticos e administrativos a proibição de utilização de fundamentações
religiosas para sustentar discriminações juridicamente válidas capazes de definir rumos
políticos e jurídicos do país.
No entanto, mesmo presente há mais de 110 anos nos textos constitucionais pátrios, a
laicidade do Estado brasileiro ainda é questionada quanto à sua efetividade ou observância, a
começar pela redação dada aos preâmbulos das constituições desde então, passando pela
manutenção, inclusive por força de decisões judiciais, de símbolos religiosos ostentados em
locais de prestação de serviços públicos que, de forma direta ou oblíqua, produzem efeitos de
sentido sinalizando a influência religiosa presente nos atos do legislativo (GALDINO, 2006).
No âmbito do Poder Judiciário diversos órgãos conservam crucifixos em salas de
sessão, bem como em espaços eminentemente públicos, sendo esta tradição mantida,
inclusive, no Supremo Tribunal Federal (STF). Este fato revela a ausência de uma reflexão
crítica acerca da herança cultural da umbilical relação estabelecida entre os espaços religioso
e jurídico-estatal, provocando uma confusão simbólica que tende a comprometer a percepção
pública acerca da imparcialidade do judiciário (SARMENTO, 2006).
Ademais, símbolos sacros, mesmo aqueles compartilhados por credos diversos, como o
crucifixo, podem materializar, ainda que potencialmente, um obstáculo à necessária filtragem
racional das pré-compreensões não seculares dos magistrados, em especial no julgamento de
causas que tangem questões de cunho moral-religioso, como são os casos relativos à
sexualidade e direitos reprodutivos (SARMENTO, 2006).
No tocante aos preâmbulos das constituições da República, apenas as Cartas de 1891 e
1937 não trazem em seu texto a invocação a Deus, constatação que faz doutrinadores
afirmarem ser da ordem da história constitucional brasileira a referida prece, além de não
representar nenhuma agressão ao princípio da laicidade por ser um chamamento ecumênico
em consonância à conformação pluralista e não-confessional de nossa sociedade (NÓBREGA,
1998).
Não obstante a posição adotada pelo STF quanto à concepção que nega qualquer
eficácia jurídica ao preâmbulo da Constituição de 1988, estatuindo-lhe caráter meramente
político, persiste a concorrência de outros entendimentos, inclusive contrários, que advogam
pela sua plena eficácia ou pela função interpretativa que lhe é atribuída.
Seja qual for o entendimento esposado, fato é que o preâmbulo constitucional, ainda que
revestido apenas de força política, apresenta um inconteste valor simbólico dotado de
suficiente poder para inspirar decisões ou posicionamentos que reverberam no seio da
sociedade.
Uma das hipóteses para este efeito simbólico pode ser buscada a partir do
reconhecimento de elementos presentes no preâmbulo constitucional, que se estendem ao
longo de seu texto, fazendo crer que seu intróito condensa axiologicamente os demais
conteúdos que serão, posteriormente, melhor detalhados. Estão presentes as ideologias da
democracia, da liberdade, da igualdade, da justiça, da fraternidade, dentre outras, que servem
de instrumentos balizadores à interpretação da Constituição (ARAÚJO, 1999).
A decisão do STF acerca da ausência de normatividade do preâmbulo constitucional
corrobora, em certa medida, este entendimento, pois dispõe que os termos, expressões e
palavras presentes no texto introdutório da Constituição somente possuirão força normativa
caso sejam reproduzidas em artigos constitucionais subseqüentes, o que, sem nenhuma
sombra de dúvida, ocorre com a expressão “sob a proteção de Deus” (MARTEL, 2007).
Todavia, a proteção de Deus, invocada no preâmbulo constitucional, supostamente
sintetizaria todas as ideologias presentes em nossa Carta maior, tornando-as inquestionáveis, o
que justificaria a invocação divina de forma quase auto-explicativa (ARAÚJO, 1999).
Nesta perspectiva, no momento em que princípios e ideologias passam a ser dotados de
um valor absoluto e supremo, oferecido por uma divindade transcendente, extingue-se a
possibilidade de se estabelecer qualquer debate, pois as bases constituintes deste cenário é
uma argumentação excludente e autoritária, incapaz de oferecer um ambiente favorável à
expressão de posições divergentes ou dissonantes ao que é posto por ela.

IV – O perfil religioso da população brasileira e identidade constitucional

A sociedade brasileira é caracterizada pelo pluralismo religioso que se apresenta tanto


no plano quantitativo quanto na variedade das formas. O perfil religioso da população
brasileira, revelado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) após a
conclusão do Censo populacional realizado em 2000, se mostra alterado apresentando uma
nova conformação, em especial no tocante ao declínio numérico na base de adeptos das
religiões consideradas tradicionais como os católicos, os luteranos e os devotos das religiões
afro-brasileiras, em especial os umbandistas.
Segundo dados do IBGE, uma comparação entre os censos de 1991 e 2000 revela que,
em apenas nove anos a porcentagem de católicos caiu de 83% para 73,8%, totalizando 124,9
milhões; já os luteranos, que era considerado o maior ramo entre os protestantes históricos,
teve a sua participação relativa no total reduzida de quase 8% para 4%, enquanto os
evangélicos, principalmente pentecostais e de igrejas independentes, aumentaram sua base de
membros de 9% para 15,4% da população do país, o que representa 26,1 milhões de
brasileiros. A umbanda sofreu, da mesma forma, uma redução dramática em seus quadros
passando de 0,44% para 0,34% – em termos absolutos, representa uma perda de mais de cem
mil fiéis em um curto espaço de tempo (PIERUCCI, 2004).
A porcentagem de pessoas “sem religião” também aumentou no Brasil entre 1991 e
2000, passando de 4,8% para 7,3% da população, o equivalente a 12,3 milhões,
principalmente nos centros urbanos, entre pessoas de nível elevado de educação e jovens.
Diversas são as hipóteses que tentam explicar o quadro atual do campo religioso
brasileiro. De um lado encontra-se o impacto da modernidade promovendo um claro processo
de desagregação e desfiliação da cultura tradicional, em que as pertenças sociais e culturais do
indivíduo tornam-se tanto opcionais quanto sujeitas a críticas e revisões, movimento típico
das sociedades pós-tradicionais (PIERUCCI, 2004). Por outro lado encontra-se a história do
catolicismo brasileiro, em grande parte constituída por devoções aos santos, transmitidas de
geração em geração no ambiente rural e nas famílias, mas pouco assistidas pastoralmente por
um clero escasso e mal distribuído.
Independente desse quadro, que já era antevisto desde a primeira metade do século XX
(PIERUCCI, 2004), o declínio das religiões tradicionais e o aumento de outras confissões
beneficiárias deste fenômeno não altera, substancialmente, os efeitos produzidos pelo campo
de força representado pelo poder exercido pelo discurso religioso nas relações sociais de um
modo geral.
Ainda que, tecnicamente, se possa falar em pluralismo religioso, os dados trazidos a
lume pelo Censo de 2000 revelam uma nação hegemonicamente cristã, composta por adeptos,
entre católicos e evangélicos, que chegam a 89,2% da população em geral. Porém, se forem
contabilizados os devotos das religiões afro-brasileiras, que, por meio do sincretismo, lançam
mão de santos, símbolos e signos cristãos, essa soma chega a ultrapassar a casa dos 90%.
Desse modo, o Brasil é rondado pelo espectro do monoteísmo que influencia o modo de se
representar, pensar e agir da população (PIERUCCI, 2002).
A religião, seja qual for a sua denominação, pode ser compreendida como um
importante fator constituinte da formação e da manutenção da civilização, operando como
reguladora dos limites do ser humano, especialmente por meio da repressão de instintos,
variando suas formas de controle de acordo com o contexto histórico e cultural, porém,
sempre exercendo o que se denomina poder simbólico, ou seja, aquele poder que não se deixa
conhecer dada a sua invisibilidade e cujo exercício se opera por meio da cumplicidade
acrítica de todos os afetados por ele (BOURDIEU, 2007).
Na perspectiva da psicanálise, a experiência religiosa se constitui enquanto um pacto
sutil que guia os indivíduos para fins comuns, fazendo-os abdicar de suas tendências
egocêntricas. O projeto civilizatório conta com o sentimento religioso como instrumento de
coerção da mesma forma que se utiliza das leis para a manutenção da ordem social, sendo
que, estas regulam e punem os homens de forma mais explícita enquanto aquele opera
mecanismos de regras que fazem com que os próprios indivíduos se punam pelo sentimento
de culpa advindo da irrupção do desejo (FREUD, 1927).
Nesse sentido, a argamassa social representada pela incidência das religiões na
construção do edifício cultural de uma sociedade mostra-se intimamente relacionada com o
processo da formação da identidade do sujeito constitucional que nela se desenvolve,
sobretudo quando se pensa acerca da força moral representada pela indisfarçável presença de
um bloco hegemônico cristão capaz de alterar a dinâmica do campo religioso posto,
inicialmente, como campo de forças no qual interesses plurais tenderiam a disputar maior
espaço e poder.
Considerando o Censo de 2000, cujo resultado aponta que apenas 2,4% da população
brasileira professa outras crenças que não a cristã e que 7,28% se declaram sem religião, tem-
se um contingente ínfimo que se conforma como identidade plural nesse campo religioso. De
certa forma, esse bloco minoritário representa um grau mínimo de tensão e resistência durante
o processo dinâmico e contínuo de negação, identificação de similaridades e diferenças o
qual se põe em movimento para a formação da identidade do sujeito constitucional.
Todavia, ainda que minoritária e por si só incapaz de fazer valer o seus direitos à
igualdade de tratamento e liberdades, essa parcela da sociedade compõe o conjunto de sujeitos
que participam do jogo político que define as feições identitárias do sujeito constitucional. O
reconhecimento desta posição e de seu valor, tão-somente se dará de forma satisfatória, a
partir da articulação do processo de formação da identidade do sujeito constitucional com o
constitucionalismo e com o irrestrito respeito aos direitos fundamentais, sob pena de, no caso
em discussão, se promover a perpetuação de uma tradição carente de legitimidade.

V – Estado Democrático, laicidade e religiosidade

A título de argumentação, mostra-se fundamental trabalhar o conceito de democracia


que se apóia em condições procedimentais mínimas que tornam possível a formação da
opinião e da vontade, de maneira discursiva e dialógica, criando espaços de participação aos
afetados, tanto na criação quanto na concretização da norma jurídica (HABERMAS, 2003).
A idéia de Estado de Direito, como concepção política e jurídica, se apresenta como
algo incompleto e inacabado que clama por uma real participação democrática dos cidadãos e
se baseia em uma noção procedimentalista do Direito, cuja pretensão de legitimidade é o
objetivo último da ordem jurídica. Nesta perspectiva, em ambientes em que diversas
pretensões de validade convivem, não raramente em relações conflituosas, a legitimidade de
uma posição política ou jurídica sustenta-se em pressupostos comunicativos que se
desenvolvem em condições específicas, tendo em vista o processo de formação de opinião
pública (HABERMAS, 2003).
A tensão existente entre projetos políticos em disputa na esfera pública pode ser
dirimida, tendo em vista a concepção de que os indivíduos de uma comunidade jurídica
somente podem ser autônomos se forem, ao mesmo tempo, autores e destinatários das normas
que disciplinam suas condutas e garantam seus direitos. Nota-se que, no pano de fundo dessa
discussão, encontra-se a idéia de que a autonomia pública e a privada não concorrem entre si,
ao contrário, são interdependentes, havendo, portanto, um nexo interno entre soberania
popular e direitos humanos (HABERMAS, 2003).
Em um Estado Democrático de Direito esse nexo pode ser vislumbrado a partir da
possibilidade de os cidadãos fazerem uso da autonomia pública, desde que sejam
suficientemente independentes em virtude de uma autonomia privada assegurada
uniformemente, do mesmo modo que só podem usufruir da autonomia privada se puderem
fazer uso adequado da autonomia política. Por essa razão, direitos fundamentais liberais e
políticos são indissociáveis (GALUPPO, 2002).
A democracia depende da institucionalização de processos e condições de comunicação
para a formação livre da opinião e da vontade, de modo que, a política deliberativa não fique à
mercê de uma comunidade de cidadãos que compartilhem valores éticos comuns e sejam
capazes de ação política, mas sim dos correspondentes procedimentos e pressupostos
comunicativos indispensáveis à formação racional da vontade.
O ideário do constitucionalismo traz em seu bojo a rejeição de toda e qualquer idéia
tendente a articular democracia com supremacia da vontade da maioria, em especial no
tocante à proteção dos direitos fundamentais. Por definição, o respeito aos direitos
fundamentais pressupõe limites ao poder da maioria como forma de garantir a sua plena
fruição, inclusive, pelos grupos minoritários (SARMENTO, 2006).
A laicidade do Estado, como princípio constitucional positivado, se articula com os
direitos fundamentais, em especial com os direitos à igualdade e liberdade, portanto, deve ser
protegida das intempéries provocadas pelas oscilações da vontade da maioria cuja expressão
não implica, necessariamente, em estabilidade.
No Estado Laico, a fé deve estar circunscrita à esfera privada dos cidadãos, o que prevê,
de antemão, mecanismos de contenção capazes de impedir o seu transbordamento para a
esfera pública, espaço reservado a posições e construção de acordos baseados em razões
igualmente públicas, ou seja, passíveis de serem aceitas sem a imposição de dogmas
religiosos ou metafísicos.
Essa limitação não significa, necessariamente, a exclusão da participação de sujeitos
inspirados, ou mesmo motivados, pelo discurso religioso na esfera pública, uma vez que esta
medida contrariaria os pressupostos ínsitos a um projeto constitucional com pretensões
democráticas.
No entanto, a participação de discursos religiosos na esfera pública pressupõe a
observância de requisitos mínimos de modo a garantir a equalização e potência dos
argumentos expostos para que eles possam concorrer em condições de igualdade com os
demais argumentos apresentados.
Esses requisitos se impõem na medida em que a fundamentação religiosa é estranha ao
espaço público secular, porém não desconhecida já que em algum momento na história os
seus autores, a saber, os cidadãos crentes, já aceitaram, por meio de boas razões, a
constituição do Estado secular e reconhecem que não mais vivem no seio de uma sociedade
homogênea na qual compartilham o mesmo sentimento religioso (HABERMAS, 2007).
Daí se faz necessária uma operação de tradução secular dos argumentos de fundo
religioso trazidos à esfera pública pelos devotos, dotando-os de condições para o seu
reconhecimento como participantes dos processos de produção de acordos e decisões
públicas.
É sabido que inexistem mecanismos capazes de obrigar os cidadãos devotos a
traduzirem o conteúdo de seus argumentos em uma “linguagem” acessível e compreensível a
todos, seja por desconhecimento ou dificuldade de se proceder a essa operação.
Não se pode olvidar o caráter constitutivo da fé que faz com que o religioso interprete o
mundo a partir dela e por ela. Ademais, esta obrigação é endereçada ao Estado e aos seus
agentes que, por força do comando constitucional da laicidade, não podem agir de outra
forma. Assim sendo, cabe aos interlocutores seculares colaborarem, por meio da boa vontade
e interesse voltado ao entendimento, para que o conteúdo possa ser trabalhado e o que for
passível de tradução seja incorporado ao espaço público discursivo, tornando todos nele
incluídos (HABERMAS, 2007).
O processo de filtragem de conteúdos religiosos e sua subseqüente tradução secular, a
qual deve ser, obrigatoriamente, realizada de ofício pelos agentes do Estado no processo de
tomada de decisão em qualquer de seus níveis, desempenham dúplice papel. De início garante
a participação de todos na esfera pública deliberativa, na qual o quantitativo numérico é
irrelevante, da mesma forma que inibe a imposição de discursos baseados em argumentos de
autoridade, religiosos ou não, pretensamente validados pela imposição da vontade geral da
maioria, não raramente tirânica, tendentes a instaurar regimes ditatoriais que se revestem de
legitimidade ficta em razão da numerosa base que os sustentam.
Mais uma vez evidencia-se a compreensão de que normas e decisões políticas somente
serão legítimas se puderem ser questionadas e aceitas em um discurso de cidadãos livres e
solidários, empreendido em uma esfera pública que pressuponha igualdade entre eles,
tornando-os construtores e destinatários das normas às quais passam a dever obediência.

VI – Conclusão

A história republicana brasileira atesta e garante, por meio de todas as Constituições


promulgadas ou outorgadas após o fim do Império, ser o país um Estado Laico. No entanto, a
tradição religiosa que data do descobrimento do Brasil caracteriza as formas de agir, pensar e
se representar da população.
O processo de formação da identidade do sujeito constitucional, cujo desenvolvimento
pressupõe um sofisticado e complexo jogo de força entre interesses contrapostos, sob o manto
da tradição e da cultura, sofre os efeitos do poder simbólico exercido pelo sentimento
religioso cristão exteriorizado por uma ostensiva parcela da sociedade.
Desta forma, de modo a não sacrificar os direitos fundamentais de uma minoria que
professa crenças distintas ou mesmo nenhuma, tal processo é instado a encontrar saídas
alternativas que visem a acolher o pluralismo discursivo presente no seio da sociedade,
possibilitando a produção de normas que deverão ser reconhecidas por todos, tanto como seus
destinatários quanto como seus autores.
Tendo em vista o projeto democrático propugnado pela Constituição de 1988, que não
se confunde com a vontade da maioria e se articula com os pressupostos do
constitucionalismo e com a defesa dos direitos fundamentais, tem-se como alternativa mais
adequada a inclusão de todos os cidadãos como legítimos participantes na esfera pública
deliberativa, por meio de mecanismos de tradução secular, pelos quais conteúdos sacros
possam ser incorporados ao discurso compartilhado como argumentos inteligíveis e validados
por todos.
Referências bibliográficas

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