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BELO HORIZONTE
2007
Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania
I - Introdução
1
Regimento Interno da Câmara dos Deputados disponivel em www.camara.gov.br acessado em 13 de novembro de
2007.
ser esta comissão responsável pela dicção acerca da constitucionalidade, juridicidade e técnica
legislativa de dado projeto de lei. Via de regra, a CCJC não se conforma como sendo uma
comissão permanente da Câmara dos Deputados que avoca para si a competência para análise de
mérito dos projetos de lei que passam pelo seu crivo. Daí a necessidade de designação de uma
outra comissão permanente para cumprir o papel de análise de mérito dos projetos de lei que
tramitam na casa.
Na perspectiva de um Estado Democrático de Direito, circunscrever a discussão de um
projeto de lei a uma única Comissão Permanente da Câmara dos Deputados, tende a
comprometer o procedimento básico e indispensável na construção de acordos possíveis em uma
sociedade plural e complexa como a brasileira que é o debate ampliado com a participação de
atores que apresentam matizes ideológicos distintos. Quase que inevitavelmente, nesse cenário,
há uma redução do espaço para a exposição de argumentos consistentes e racionais, privando a
audiência da possibilidade de análise da questão pelos seus mais diversos ângulos. Por via de
conseqüência, tal processo restrito diminui a chance do surgimento do melhor argumento capaz
de provocar a adesão de todos em torno de uma decisão mais adequada e mais legítima.
Nesse sentido, se mostra pertinente, tanto quanto necessário, tecer considerações com
relação aos argumentos contidos no parecer aprovado e nos votos em separado apresentados
pelos Deputados no curso do debate travado na CCJC.
2
Portaria Nº 397, de 09 de outubro de 2002
Por fim, afirmar a inexistência de tipificação do contrato em espécie para lhe negar
proteção jurídica é desconhecer a possibilidade da constituição de contratos atípicos ou
inominados, de acordo com a mais balizada doutrina jurídica. Tal negativa constitui, ao fim e ao
cabo, uma grave violação ao princípio da igualdade insculpido no texto constitucional de forma
explícita e inquestionável como direito fundamental.
Isto posto, evidencia-se que a relação comercial estabelecida entre as(os) profissionais do
sexo e seus clientes configura-se, inequivocamente, como um negócio contratual. Sua atipicidade
encontra-se na imaterialidade de seu objeto, o que não altera a sua estrutura conforme nos
informa a Teoria Geral dos Contratos. Trata-se de um negócio jurídico bilateral, comutativo,
conformado pelo acordo de vontades firmado entre as partes envolvidas que, por questão de
justiça, deveria gerar direitos e deveres.
Como negócio jurídico contratual cuja faticidade é inegável, faz-se imperativo o
reconhecimento da incidência do princípio da função social dos contratos, já que este visa
conferir aos contratantes medidas ou mecanismos jurídicos capazes de coibir qualquer
desigualdade dentro da relação contratual Torna-se evidente, partindo da noção de função social,
que o Estado deve criar mecanismos de defesa que possam impedir que o mais fraco seja
espoliado pelo mais forte.
Na relação entre a(o) profissional do sexo e o seu cliente, sobretudo em razão da
clandestinidade que cerca todo o seu entorno, a identificação da parte hipossuficiente se mostra
inequívoca. A(o) profissional do sexo, ao ser contratada(o) para prestação de serviços sexuais
fica à mercê do cliente que pode se recusar a cumprir o acordado, pois não existe mecanismo
legal que o obrigue a fazê-lo. Rompe-se, dessa forma, também com o princípio da boa-fé
objetiva3, princípio estruturante de todo e qualquer negócio jurídico em uma sociedade que se
pretende justa e solidária.
A Constituição de 1988, mantendo em perspectiva os valores da solidariedade e da
construção de uma sociedade mais justa, respeitando, sempre, a dignidade da pessoa humana
consagrou o trabalho como o direito fundamental. Em momento algum, sobretudo em uma
leitura sistemática da Carta Magna, pode-se encontrar óbice à prostituição como atividade
profissional, tanto é que o relator não apontou inconstitucionalidade no texto do Projeto de Lei
em discussão.
3
Venosa, Sivio Salvo. Curso de Direito Civil – Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Ed. Atlas, 2004
Reafirma-se aqui o caráter de trabalho profissional, legítimo e lícito, buscando, em última
análise, a declaração de sua legalidade expressa e, por via de conseqüência, proteção jurídica de
seu exercício e dos direitos dela decorrentes.
Todavia, não foi este o entendimento do Deputado relator do PL 98/03, justificando a sua
posição a partir de argumentos morais, de cunho bastante próximo do discurso religioso. O
Deputado afirma que a relação estabelecida entre a(o) profissional do sexo e seu cliente atenta
contra a moralidade na qual a sociedade brasileira se apóia. O parlamentar parte da premissa de
que a sociedade possui uma base homogênea de formação moral que a antecede, sendo passível
de ser desvelada, em uma operação de auto-reflexão de seus integrantes.
Entretanto, na sociedade contemporânea não é este o fenômeno que se apresenta. Um
Estado Democrático de Direito é marcado pela complexidade, pluralidade e diversidade da
sociedade que o conforma o que implica no reconhecimento da necessidade de formulação de
acordos. A legitimidade destes acordos que normatizam a vida em comunidade pode ser aferida
pelo procedimento que os regulam, sendo indispensável a participação livre e em simétrica
paridade de todos os seus destinatários. Um debate, como é o caso em tela, em que o argumento
central de uma das partes se tece exclusivamente sob bases morais, têm-se ferida de morte a
lógica procedimental exigida. Diante de argumentos transcendentes, interrompe-se a cadeia
discursiva posta em movimento e se instala não o dissenso, mas o silêncio, seja este reverencial
ou cínico.
Em um Estado Democrático de Direito normas morais e normas jurídicas não se
confudem, embora se complementem. Uma ordem jurídica se legitima ao não contrariar
princípios morais, embora, é cediço que o código moral vigente não se construa de forma
espontânea no seio de uma dada sociedade, pois obedece, via de regra, ao comando da vontade
humana dirigida para tal fim. Percebe-se que não existe hierarquia normativa entre Direito e
Moral, não sendo possível destacar uma certa norma moral que o Direito não pudesse contrariar
ou o inverso4. Em outras termos, Direito e Moral não se auto-subordinam, ainda que
estabeleçam, entre sim uma nítida relação de complementariedade.
4
Vemos assim, a título exemplificativo, que ninguém poderia ser civil ou penalmente punido por
fumar em praça pública ou no interior de sua residência ainda que a fruição de tabaco venha
sendo, na atualidade, moralmente reprovado por uma significativa parcela da sociedade
brasileira.
Na concepção habermasiana, a ordem jurídica, buscando legitimar-se, não transcreve
platonicamente toda a ordem moral, embora busque nela alguns conteúdos. Entretanto, tais
conteúdos morais, neste processo de transmutação, passam a sofrer depurações necessárias
visando compor o conjunto de normas jurídicas que regulam vida em sociedade, a partir da
autonomia política de seus membros que podem desconsiderar parcelas significativas desta
mesma ordem moral5.
III - Sobre a a argumentação apresentada pelo Voto em Separado do Deputado Regis de Oliveira
5
MOTTA, Paulo Roberto Ferreira. Direito e Moral: Qual o conteúdo para a Constituição?.
Revista Diálogo Jurídico, número 11 - fevereiro de 2002. Salvador - Bahia.
Nesta prevalece o direito que melhor responde aos ditames da ordem social, sem que se tenha,
necessariamente, que afastar de todo o outro direito sucumbente.
Na discussão em tela, em que, aparentemente, colidem direitos fundamentais de proteção
à vida privada e intimidade, por um lado, e o acesso à justiça por outro lado, também se poderia
cogitar a utilização da ponderação de interesses, mas não parece ser o caso. É importante
recordar que estamos operando na seara de comportamentos praticados por sujeitos livres e
autônomos, cientes de suas obrigações e direitos e, como bem frisou o Deputado Régis de
Oliveira, não haveria óbice em encarar o sexo comercial dentre as hipóteses legais de
contratação. Assim sendo, ainda perquirindo a função social dos contratos acima mencionada, a
contratação de serviços sexuais mediante contraprestação pecuniária implica na observância do
dever de adimplemento dos termos negociados por ambas as partes. Como todo e qualquer
negócio, caso haja inadimplemento das condições acordadas nasce, para a parte lesada, o direito
de reclamar judicialmente o que lhe é devido. A responsabilização pelo descumprimento do
contrato e sua reclamação posterior configura-se como ônus ínsito ao ato praticado, a saber,
fruição gratuita de um serviço que se pretendia remunerado, ato este que se quer, a partir da
aprovação do PL 98, que seja considerado um ilícito civil.
Partindo do pressuposto defendido pelo Deputado Régis de Oliveira, em nome da
intimidade e da vida privada se institucionalizaria, pela via legal, o comumente denominado
“calote” toda vez que se tratasse de descumprimento de contratos relativos à esfera privada dos
indivíduos ou qualquer ato que a atingisse, uma vez que a sua reclamação implicaria em
desvelamento do ato repudiado socialmente, ainda que praticado de forma reservada.
Mais correto parece ser a hipótese de que, em nome da intimidade e da privacidade, a sua
melhor e maior proteção passa a ser a observância do que é correto e justo. Aplicando a assertiva
ao caso do contrato estabelecido entre profissional do sexo e seu cliente, o desejo legítimo de
manutenção do caráter de clandestinidade ao negócio realizado seria a prestação do serviço
contratado e seu respectivo pagamento, conforme acordo prévio. Nem mais, nem menos.
Garante-se, assim, o sigilo do negócio e a satisfação dos contratantes, sem riscos ou dissabores.
Não há como prosperar a argumentação do Deputado que, ao fim e ao cabo, demonstra
que o caráter inconstitucional reside na omissão do Estado em proteger os seus jurisdicionados.
Ao manter na clandestinidade e, portanto, fora do manto protetivo do Direito, negócios jurídicos
que geram incontestes efeitos fáticos o Estado, pela via de omissão legislativa, suprime os
reclamos de justiça há muito demandados.
Buscando sustentar o seu posicionamento ideológico, o Deputado Régis de Oliveira alega
que a sociedade brasileira não se encontra em um estágio evolutivo, sociologicamente falando,
apto a conviver com a legalização da prostituição em seu seio, embora não consiga demonstrar
elementos fáticos que comprovem a sua afirmação. De acordo com o seu voto em separado, a
sociedade brasileira, não obstante sua constante e veloz evolução, ainda demandaria
amadurecimento para acatar uma inovação dessa magnitude.
A atenta observação do Deputado, ao que parece, não possui a acuidade que a análise da
complexa realidade de nosso país exige, tendo em perspectiva o seu caráter plural e diverso,
senão vejamos.
Desde 1989 o Ministério da Saúde demanda a participação das(os) profissionais do sexo
na elaboração e implementação de políticas públicas de prevenção às Doenças Sexualmente
Transmissíveis e AIDS. Ao contrário do que observava na primeira metade do século XX,
quando as prostitutas eram destinatárias de ações de controle sanitário, nos últimos anos
verificou-se uma mudança estrutural na relação desse segmento social e o Estado. Atualmente,
mulheres e homens profissionais do sexo atuam na prevenção de DST e AIDS para além das
estratégias de educação de pares, pois desenvolvem trabalhos, de norte a sul do país, junto a
segmentos diversos da sociedade com grande desenvoltura e êxito, além de ocupar assento em
órgãos de controle social, definindo políticas públicas que gerarão efeitos na população como um
todo.
Na contemporaneidade temos o glamour da ficção retratando o cotidiano de profissionais
do sexo, com maior ou menor fidedignidade, a ponto de transformar uma impensável
personagem, ‘garota de programa’, em inegável protagonista de uma novela exibida em horário .
Fenômeno semelhante é observado a partir do inequívoco desejo voyuer de milhares de
exemplares de livros que relatam as aventuras e desventuras de uma profissional do sexo, cuja
história rende dividendos à sua protagonista até a presente data, quando inicia-se a sua adaptação
para o cinema.
Todavia, emblemático é o surgimento, expansão e sucesso da grife carioca DASPU, de
autoria e gestão de prostitutas que lutam pelos direitos civis de sua categoria profissional através
da arte e moda. Desde o seu lançamento, em 2005, a grife vem conquistando mercado estando
presente em diversos pontos de venda no país, comercializando um número expressivo de peças
por mês. A marca destas peças remete ao estilo de vida das prostitutas e vem sendo consumida
por homens e mulheres, sem distinção de classe social, idade ou raça, demonstrando a adesão da
população à iniciativa das prostitutas cariocas.
No portifólio da DASPU, além dos desfiles promocionais promovidos pelas prostitutas-
modelos, estão listadas participações no São Paulo Fashion Week e Rio Fashion, principais
vitrines da moda no país, recebendo elogios e ampla divulgação pelos meios de comunicação de
massa. Além disso, a Bienal de Arte Moderna realizada no MAM, na cidade de São Paulo, expôs
uma das criações da DASPU durante a sua edição de 2006, revelando a importância do
fenômeno representado pela grife elevando a moda das prostitutas cariocas ao estatuto de arte
contemporânea.
A mudança radical e perceptível na sociedade brasileira quanto a sua representação com
relação à prostituição pode ser ainda aferida a partir da reação popular frente aos casos de
agressão às mulheres identificadas como prostitutas, veiculados pela grande mídia em 2007. As
inúmeras manifestações públicas de repúdio às alegações que tentaram justificar a violência
contra mulheres em função de uma suposta identificação delas como profissionais do sexo
demonstram que a sociedade civil não mais aceita o tratamento desigual que até muito pouco
tempo era dispensado a esse segmento social. Nota-se que existe um reclamo nacional em
direção à concretização dos direitos fundamentais expressos pelo texto constitucional, sobretudo
a igualdade de todos diante da lei.
7
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988.
4ª edição. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2006.
Ao fim e ao cabo, podemos chegar a conclusão de que a criminalização sistemática da
prostituição é uma estratégia moral e legal de controle da sexualidade das mulheres que espanca,
além pressuposto republicano central acima mencionado, o princípio da igualdade insculpido no
art. 5o, Caput, da Constituição da República.
Reivindicar a tutela do Estado para regular atividade desprovida de desvalor relativo às
relações sociais, conforme nos indica o próprio relator do PL 98/03, é retirar dos sujeitos a sua
autonomia, implicando, em ultima ratio, na desconsideração de sua capacidade cidadã de se
auto-determinar em sociedade. Em outros termos, é a afirmação de uma tutela estatal tendo em
vista um grupo social considerado, formalmente, incapazes para a vida civil.
Não nos parece ser este o encaminhamento mais prudente e adequado, como bem
demonstra estarmos todas(os) aqui, nesta esfera pública de discussão, participando como sujeitos
iguais, autônomos e livres, buscando encontrar o adequado caminho para realizar, e garantir, os
preceitos constitucionais que guiam e orientam nossa vida em sociedade.