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g af [7 Erminia Maricato METROPOLE NA PERIFERIA DO CAPITALISMO ee ee ee tigere, Nossas cidades vém sendo erigidas sobre a exclusdo e, por isto, sobrea violencia. Como se sabe, quem semeia ventos colhe tempestades. A metrépole é temida. De objeto de desejo dos que aspiravam o con- sumo bésico ou o supérfluo, ela tornou-se simbolo da barbarie. Banali- Zaram-se assassinios, assaltos, abandono ou exploracao de criancas. Insidiosamente a dor, 0 desperdicio ou a destruicao da vida rotiniza- ram-se no cotidiano das filas, do transito congestionado, da poluigao, da moradia precaria. Para este livro, nao obstante a evidéncia desses trdgicos problemas, seu reconhecimento institucional inexiste. Nossas raizes escravistas € nos- sa tropical familiaridade com a acomodacao de contrérios vém per- mitindo que se fechem os olhos para 0 desmoronamento de nossas pretensées ao progresso civilizatério. O direito urbano, a administra- a0 publica e 0 saber técnico urbanistico, por sua vez, estdo progra- mados para tratar apenas com uma fatia da cidade: a que pode pagar 0 precos do circuito oficial do mercado. Ignoram-se, assim, as neces- sidades da cidade real dos despossuidos. Mas € possivel e urgente agir contra este estado de coisas. Mesmo por- que cresce a consciéncia e o rancor dos setores espezinhados, aos quais é preciso proporcionar o que é direito de todos: a vida urbana decente. Isto pode ocorrer sem planos inécuos, nem truques administrativos neoliberais. Na politica habitacional, por exemplo, cabe & gestdo urba- na tomar os carentes como prioridade e buscar, entre os numerosos programas ja experimentados, as solugées especificas mais adequadas para, em cada caso, dar melhor habitabilidade aos locais onde eles jé se encontrem instalados. A arquiteta Erminia Maricato, ex-secretaria da habitagao da cidade de Sao Paulo e professora da FAU-USP pode falar de catedra sobre essas questoes. Seu livro é um libelo contra a injustica, a inércia e a bruta- lizagao que nos cercam. Maria Irene Szmrecsényi (Capa: ERMINIA MARICATO € ETTORE BOTTINI sobre desenho de RENINA KATZ. Estudos Urbanos 10 diregao de Maria Irene Szmrecsanyi Milton Santos Série Arte e Vida Urbana 4 direcao de Maria Irene Szmrecsényi ESTUDOS URBANOS titulos publicados Pobreza Urbana, Milton Santos Ensaios Sobre a Urbanizacio, Milton Santos Pensando o Espaco do Homem, Milton Santos A Urbanizacao Brasileira, Milton Santos A Identidade da Metrépole: A Verticalizagao em Sao Paulo, Maria Adélia A. de Souza SERIE ARTE E VIDA URBANA ‘A Carta deAtenas, Le Corbusier Sao Paulo e Outras Cidades, Nestor Goulart Reis Filho Operarios da Modernidade, Maria Cecilia Franga Lourengo METROPOLE NA PERIFERIA DO CAPITALISMO: ILEGALIDADE, DESIGUALDADE E VIOLENCIA Erminia Maricato METROPOLE NA PERIFERIA DO CAPITALISMO: ILEGALIDADE, DESIGUALDADE E VIOLENCIA Estudos Urbanos Série Arte e Vida Urbana EDITORA HUCITEC Sao Paulo, 1996 © Direitos autorais, 1996, de Erminia Maricato. Direitos de publicagao reservados pela Editora de Humanismo, Ciéncia e Tecnologia HUCITEC Ltda., Rua Gil Eanes, 713 — 04601-042 Sao Paulo, Brasil. Telefones: (011/240-9318 e 543-0653. Vendas: (011)530-4532. Fac-simile: (011)530-5938. ISBN 85-271-0351-6 Foi feito 0 Depésito Legal. Fotos: NAIR BENEDITO/N- IMAGENS Editoragao eletronica: Ouripedes Gallene INTRODUCAO Parte I: URBANISMO NA PERIFERIA DO CAPITALISMO: DESENVOLVIMENTO DA DESIGUALDADE E CONTRAVENGAO SISTEMATICA. Fatos da cidade controversa Ratzes da ordem invertida: trabalho e terra Urbanizagao da “industrializacao com baixos salérios” Cidade, Estado e mercado: a modernizacao excludente Fim do desenvolvimentismo: globalizagao e violéncia nos anos 80 Parte Il: ENTRE O LEGAL E O ILEGAL — MERCADO E ESCASSEZ Segregagao ambiental e exclusao social Hlegalidade e exclusio Entre o legal e o ilegal, arbitrio e ambigiiidade Direito 4 ocupacdo, sim. Direito a cidade, nao Parte Il: SEGREGACAO AMBIENTAL, E VIOLENCIA URBANA. Violéncia urbana ‘Anova “(des)ordem internacional” ou “(des)ajuste global” ea explosio da violéncia ‘A-exclusdo é um todo Segregacao ambiental e violéncia Evidéncia cartogratica da segregacao ambiental 10 20 2 31 39 43 49 54 58 61 63 72 73 74 83 85 Sumo SUMARIO 8 no municipio de Sao Paulo A guisa de conclusao: um alerta militante Parte IV: AS TESTEMUNHAS DA CIDADE OCULTA, ‘AS IMAGENS DA CIDADE OCULTA BIBLIOGRAFIA Suni 94 101 106 18 136 Dedico este livro aos que se empenham em democratizar a justica no Brasil. Em especial aos juristas e advogados: Dr. José Afonso da Silva Dr. Marcio Tomaz Bastos Dra. Sonia Rao Dr. Paulo Lomar Dr. Eurico de Andrade Azevedo Dr. Miguel Baldez e também a Associagao dos Juizes para a Democracia. INTRODUCAO As idéias aqui desenvolvidas tiveram origem na perplexidade causada pelas contradi¢des vividas tanto em minha militancia em movimentos populares urbanos quanto em meu estagio na administragdo municipal de Sao Paulo. Ha um profundo descolamento entre a ordem legal ¢ a cidade real. H4 um profundo desconhecimento social sobre a cidade concreta. Esse descolamento entre a concretude e sua representacao, com as conseqiientes praticas dai decorrentes, vio manifestar-se coti- dianamente tanto no universo informal como no cora¢ao do aparelho de Estado, grande promotor da ruptura aludida. £ intrigante perceber as estratégias desenvolvidas pelo Estado e pela sociedade para conviver com 0 ocultamento da cidade real, mas é no sistema jurfdico porém, a quem compete oficialmente garantir a justica e os direitos universais previstos na legislacao, que as contradigGes s4o mais profundas. © reconhecimento da “cidade partida’, da segregacao espacial, do aumento da pobreza, do apartheid social, j8 constituem um avanco para uma sociedade que ¢ tao alienada em relacdo a dimensao dos excluidos. A chamada “violéncia urbana” é uma manifestago daquilo que se procura tanto esconder, mas que extravasou seus espacos de confinacao. A representagao elaborada pelas camadas dominantes, da cidade hegeménica ou da cidade virtual, como eu a chamo aqui, esta sofrendo um sério revés com 0 aumento da violéncia. A concretude escapa pelas frestas da habil construgao. Mas, além dessa constatacao que nao evita uma abordagem dual, hd um ardil que exige reflexio e que se encontra nas estratégias elaboradas para apresentar a realidade diferente do que é. De 1975 a 1983 militei em movimentos reivindicatérios urbanos, na zona sul da cidade de Sao Paulo. A regiao de Capela do Socorro j estava formalmente protegida pela Lei de Protegao dos Mananciais, mas era ai que numerosos loteamentos clandestinos eram abertos a luz do dia ¢ lotes totalmente irregulares eram vendidos a precos compativeis, com o poder aquisitivo de uma populacao pobre, recém-chegada & cidade e empregada, na maior parte, nas indiistrias da regido. A ilega- lidade era acompanhada de baixissima qualidade urbanistica jé que 0 investimento na abertura do loteamento era o menor possivel, pratica- InrRoUGAO " 2 mente restrito & abertura das ruas e demarcagao dos lotes. Os movimen- tos de terra raramente guardavam alguma compatibilidade com o sitio ou as condicdes geotécnicas do terreno, contribuindo com as erosées, para comprometer a represa que abastecia a cidade de agua. A ausén- cia de servigos e infra-estrutura urbanos e as imensas distancias a serem percorridas tornavam a vida um grande sacrificio. Foi baseada no bind- mio loteamento clandestino e dnibus urbano que a periferia da cidade de Sao Paulo se expandiu horizontalmente nas décadas de 40, 50, 60¢ 70. Em raras oportunidades a cidade ilegal foi tomada como tema para a intervengao projetual na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Sao Paulo, na qual eu dava aulas desde 1974. Aalic- nacdo nao era alimentada apenas pelo ardil social (ou pela forca do regime militar, mas também pelo suporte representado por livros € revistas de arquitetura que informavam mais sobre as tendéncias uni versais (leia-se, dos paises centrais) do que sobre a realidade que é vizinha a universidade. A atividade de criacdo se referenciava a uma globalidade que entretanto ignorava a concretude cientifica ¢ 0s confli- tos presentes na producao e apropriagao do territ6rio proximo, apesar da boa inten¢ao de muitos. Nao foram apenas os setores elitistas ou conservadores da academia que ignoraram essa produgao gigantesca ¢ ilegal da periferia urbana, A fuga em relacao a realidade concreta gerou também uma producao intelectual abstrata e alienada também por muitos dos que fizeram uma leitura critica do capital imobilidrio e da renda imobilidria, A literatura estrangeira sobre instrumentos reguladiores do desenvolvimento urba- 10 foi inspiradora de farta producao intelectual e, 0 que é mais grave, também do planejamento oficial. A idealizacao da relacao cidade e sociedade e também da relagao Estado e sociedade foi responsdvel por imensa quantidade de Planos Diretores indcuos (mas com evidente papel ideolégico) e grande arsenal regulatério que foi aplicado apenas ao mercado imobilidrio legal ou a cidade hegeménica (Villaga, 1995). Esse fato iria tornar-se mais evidente durante o periodo em que fui res- Memtoroce Na ruin 99 cars ~ Eman Manica ponsavel pela politica de habitacdo e desenvolvimento urbano do mu- nicipio de Sao Paulo. Uma legislacao rigorosa e detalhista sobre 0 uso do solo urbano convive com um proceso anarquico e desastroso de ocupacao do solo, causador de dramas e tragédias a cada chuva que apresente intensidade pouco maior. A propria estrutura da Secretaria de Habitacao e Desenvolvimento Urbano é partida. A Superintendén- cia de Habitaco Popular convive com a banalizacao das tragédias motivadas pela ocupacao clandestina, pobre e descontrolada do solo: incéndios em corticos e favelas, desmoronamentos de encostas habita- das com precariedade, desabrigados de enchentes, despejados de ter- renos privados, epidemias por falta de saneamento, etc. Do outro lado, os departamentos da secretaria que se ocupam da cidade formal fazem andlise minuciosa e detalhista de cada projeto que solicita licenca para a construcao dentro da ordem legal. O proceso pode levar, freqiente- mente, mais de um ano em sua trajet6ria por intimeros departamentos municipais, onde zelosos técnicos irao fazer a andlise baseados em diversificada e abundante normatizacao, para depois dar ou ndo a au- torizacao para a construcdo. A fragmentacdo na divisdo de trabalho isolando cada departamento em seu mundo e a especializacao na frag- mentacao pelos técnicos faz parte da estratégia de sobrevivéncia dian- te de um conjunto (a soma das intervenes na cidade real) que no admite unidade. A cidade real nao passa de referéncia longinqua e abstrata, Uma das certezas que adquiri nesse periodo foi constatar que a privati- zacao da estrutura de administragao publica nao € praticada apenas Por interesses empresariais privados e pelos politicos profissionais que sio representantes do atraso. Parte dessa maquina ndo serve a ninguém sendo microinteresses sedimentados mediante a conquista de micropo- deres. Nao se trata do corporativismo moderno, mas de resquicios do arcaico que passa pelos privilégios pessoais. O rigor nunca alcancou as agées de controle geral urbanfstico, mas era uma regra quando se trata- va de detalhe, papel e gabinete. Num mesmo dia podfamos enfrentar conflitos como nao ter para onde levar uma dezena de familias retiradas de areas de risco (e era um ali- Innxo0ugho B * Alusto feita a expressio de Roberto Schwarz (Schwarz, 1973), dfinida ‘como a “combinacio amalucada de ‘normas prestgiosas da modesnidade ‘com relagbes sociais de base que discrepam muito delas. (Rev. Teoria © Debate, Sto Paulo, PT. Ano 7, n2 27, ez. 94-jan. 95) “ vio encontrar locais em outros barracos de favelas para que ficassem em seguranca) € conflitos advindos de um promotor imobilidrio que viu 0 inicio de sua obra atrasar meses porque a prefeitura cobrava a notago dos bebedouros (pequenos pontos portanto) na planta do shop- ping center, tal como exigia a legislacao. De um lado improviso, carén- cia de recursos diante da gigantesca demanda de problemas acumulados na cidade clandestina; de outro, rigor normativo e aco cartorial. Tudo debaixo do mesmo teto, no mesmo edificio de uma instituigao publica, mas separados por uma distancia infinita: 0 desconhecimento mituo. Abusca de compreender a l6gica das situagdes vividas (ou das “idéias, fora do lugar”)', cujos exemplos iremos abordar ao longo do texto, le- vou a um reencontro muito feliz com parte da producao intelectual brasileira que mereceria sem divida extravasar os limites estreitos da academia, para auxiliar a desvendar amplamente, democraticamente, a identidade da sociedade brasileira: Roberto Schwarz, Antonio Candi- do, Florestan Fernandes, Francisco de Oliveira, Otavio lanni, José de Souza Martins, Maria Silvia de Carvalho Franco, entre outros. Certa- mente a lista € bem maior e se ndo a completo aqui € porque seria muito extensa. Como parte integrante de um processo que € capitalista, sem divida, e de uma sociedade de classes, relacdes calcadas no favor, no privilégio e na arbitrariedade caracterizam a formagao da sociedade brasileira. Mais do que uma convivéncia entre o atrasado e o modero, a evolu- 40 dos acontecimentos se da com o “desenvolvimento moderno do atraso”. Nao se trata, como nota Maria Silvia de C. Franco, de “dualida- de integrada”, mas sim de “unidade contraditéria” (Franco, 1969). A relacao calcada no favor constitui a nega¢ao da universalidade dos direitos (embora previstos na ordem legal) ou a negagao da cidadania e da dignidade. Ela esté na esséncia da confusdo entre a coisa publica e 08 negocios privados, na confusdo entre governo e Estado, na dificul- dade de abstragio do Estado (pelas camadas pobres) submetido a rela- bes pessoais. [MerRorous Wa PRFERA D0 CARAS ~ ERs MARicaTO Desvinculado da violéncia que sempre acompanhou a esfera produti- va, 0 favor pode encobri-lae até alimentar interpretagdes mais amenas sobre a sociedade brasileira (Schwarz, 1973). As caracteristicas do cres- cimento econdmico, entretanto, nao deixam duvidas. Ele ¢ profunda- mente concentrador. Concentrador de renda, de terra, de poder. Ele é sempre profundamente excludente. Nao se trata da exclusdo que atin- ge a Europa e os Estados Unidos no inicio da década de 70. O fordismo periférico que se inicia no Brasil, apés a segunda guerra por exemplo, se desenvolve com exclusao social, diferentemente do que acontecera Tos paises centrais. Trata-se da modernizacao com exclusao. Na primeira parte deste livro, um conjunto de dados e fatos, embora ‘ndo-sistematicos pretendem destacar a articulagao contraditéria entre norma e infracdo no espaco da metrépole brasileira. Uma leitura ou representacao alienada da cidade perpassa Estado e sociedade, orien- tando discurso e pratica, antagdnicos. Especula-se acerca das raizes de situacdo tao extraordinéria quanto habitual. Sao feitas referéncias a al- guns aspectos fundamentais que marcaram a formacdo da sociedade brasileira, em especial a emergéncia do trabalhador livre, sem, entre- tanto, uma preocupacao com a sistematizacao ou 0 aprofundamento historiografico. O periodo que vai de 1930 a 1980, caracterizado por intenso proceso de industrializagao e urbanizacao, com forte intervencao estatal na vida econémica e politica, mereceu algumas referéncias numéricas com a finalidade de evidenciar tanto 0 crescimento econdmico quanto a con- centracdo das riquezas, com ébvio reflexo na construgao das cidades. Cinco décadas de acentuado crescimento populacional urbano marca- do pela dinamica expressa no bindmio “crescimento e pobreza" resul- tardo numa cruel heranga para os anos 80. Nessa década ela sera agravada pelo fim do desenvolvimentismo e pela emergéncia de novo arranjo internacional, que acarretara a ampliacao da desigualdade. A politica urbana implementada pelo Estado autoritario, tecnocratico e centralizador que tem origem em 1964, expressa especialmente pela riagdo e gestéo do SFH/BNH (Sistema Financeiro da Habitacao e Ban- Inarc0uGh0 5 16 €o Nacional da Habitagio) e o impacto da Lei federal 6.766/79, de parcelamento do solo, pretendem mostrar o carater excludente das me- didas modernizantes de produgao do espago urbano. As caracteristicas do ambiente construido por uma sociedade marcada pela desigualdade e pela arbitrariedade nao poderiam negé-la. O para- doxo que articula legislacao, arbitrariedade e exclusao social é explo- rado na segunda parte do livro. Destaca-se que a ocupacao ilegal de terras 6 informalmente consentida (ou por vezes até incentivada) pelo Estado que entretanto nao admite o direito formal de acesso aterrae a cidade. Isso se da por conta da articulacao entre legislag’o, mercado e renda imobilidria, A ocupagao é consentida mesmo em areas de prote- ‘co ambiental, mas raramente em éreas valorizadas pelo mercado imo- biliario calcado em relagdes capitalistas. E.ao contexto do ardil que a exclusdo sera referenciada. £ a cidade ocul- ta, disfarcada e dissimulada que deverd emergir na parte final deste tra- balho. Nao ha preocupacao rigorosa com a historicidade dos dados durante todo 0 texto, mas ha pretensao de fundamentar uma leitura da metr6pole em sua esséncia, e também uma leitura mais circunstanciada do periodo pés-80 na ultima parte, quando as manifestacdes de violén- cia criminal evidenciam 0 que as camadas dominantes insistiram em esconder: a desastrosa construcao socioecoldgica, a gigantesca concen- traczio de miséria que resultou de um processo historico de ocupacao excludente e segregadora do solo urbano, Nos anos 80 a desigualdade se aprofunda no Brasil, mas ndo s6 aqui. Agora ela se manifesta também 1nos pafses centrais que abandonam a era do “consenso social”. Aempre- a e 0 mercado substituem o papel outrora atribuido a patria — todos se ajudarem mutuamente contra os concorrentes (Lipietz, 1989). Mas 0 impacto do novo arranjo internacional, que tudo subordina a l6gica do mercado, tem evidentemente efeitos diferenciados jé que, no Brasil, ele encontra um cenério de exclusdo que é historico. Em meados dos anos 90, a chamada violéncia urbana é um dos temas fundamentais que preocupa todas as camadas sociais. O espaco, oter- Fitério, o ambiente fisico s4o partes intrinsecas desse quadro, embora Merxorott Na PERERA DO CARTAISAO - ERMA MARCATO freqiientemente esquecido e ignorado. A preocupacao aqui foi destacar © espaco fisico ou ambiente construido como objeto e sujeito desse proceso, Mais do que outros territ6rios, as metrépoles apresentam com maior evidéncia, embora nao com exclusividade, os conflitos e as con- tradicoes aqui tratados. Por isso as idéias desenvolvidas vao referir-se a elas sem uma preocupacao de abranger a todas nos dados apresenta- dos, mas buscando referéncias paradigmaticas. Sdo Paulo sera a refe- réncia principal do trabalho por causa da disponibilidade de informacoes € por causa também das dimensdes dos conflitos que apresenta. Alguns mapas do municipio de Sao Paulo, realizados com dados esta- tisticos coletados em varias fontes, mostram até que ponto podem che- gar a desigualdade e a segregacao na cidade de economia mais dinamica do pais, Essa megaconstrucao, até certo ponto desconhecida (em suas reais dimensdes socioeconémicas), cobra hoje, por meio da violéncia social, 0 preco da abstraao e do desconhecimento que acompanha- ram seu crescimento, Ninguém melhor do que os moradores da cidade oculta para descrevé- la, Isso é feito por meio das letras dos raps dos Racionais MC, morado- res de um dos bairros mais violentos de Sdo Paulo. A visio dos que estio no interior do “caldeirdo”, que comegam a ter voz, constitu no- vidade que atrai multiddes de jovens macicamente negros, aos shows que 0 conjunto musical apresenta na periferia de Sao Paulo. Os aparta- dos constroem sua identidade. Um ensaio fotografico de Nair Benedito mostra as insubstituiveis ima- gens dos bairros citados na letra de Mano Braun (Domingo no Parque) e também dos bairros que ocupam lugar de destaque quando se trata de indicadores de analfabetismo, mortalidade infantil, nimero de ho- micidios, conforme mostram os mapas. A maior parte desses bairros se localizam na zona sul da cidade de Sdo Paulo. Na mesma regio que viu 0s primeiros movimentos populares urbanos da década de 70, mo- vimentos de luta por condigdes mais dignas de vida, mobilizarem-se desafiando o Regime Militar. lwroougko wv As idéias aqui apresentadas, embora restritas ao cenario brasileiro, pre tendem contribuir para os estudos que buscam elementos de unidade entre as cidades, e mais exatamente entre as metr6poles do capitalismo periférico. A insisténcia na especificidade do caso brasileiro no quer significar a negacao de caracteristicas que so universais no mundo capitalista (se € que é possivel definir um “mundo capitalista” & parte neste final de século), ou caracteristicas que sdo proprias da periferia do capitalismo, ou dos chamados NICs — New Industrialized Coun- ou mesmo dos paises latino-americanos. Reconhecer especifici- dades s6 devera contribuir para entender melhor o que dé unidade a determinado conjunto e evitar generalizacdes apressadas como fazem muitos dos autores que tentam teorizar sobre 0 urbano nos chamados paises do sul ou mercados emergentes, termos que esto na moda para denominar os paises periféricos. O recurso as numerosas citacées bibliograficas visam compensar a au- séncia de uma pesquisa de cardter historiografico e compensar tam- bem a utilizacao de tantos fatos extraidos da minha experiéncia empfrica, Particularmente na gestao da Sehab/Prefeitura de Sao Paulo. O auxilio buscado em tantos ¢ téo licidos pensadores talvez tenha sido a tnica forma de a autora adquirir seguranga necessaria para tdo graves afirma- Ges aqui feitas. Resta alertar que dois textos de minha autoria, publicados em outrar oportunidades, serviram de ponto de partida para este livro e foran integrados ao conjunto ora apresentado: 1. “O urbanismo na periferi do capitalismo: desenvolvimento da desigualdade e contravencao sis tematica’, foi publicado em uma coletanea organizada por Maria Flore Goncalves sob 0 titulo O novo Brasil urbano, impasse, dilemas, pers- pectiva. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1995, e 2. “Exclusao social e reforma urbana”, que faz parte de um némero especial da re- vista Proposta, n° 62, editada pela Fase, Rio de Janeiro, em setembro de 1994. ‘Apesar das dimensdes modestas deste livro os agradecimentos envol- vern um grande ntimero de entidades: Proaim— Programa de Aprimo- [METROPOLE NA PRE 00 CARTALSMO - Ex MACAO ramento das Informagées de Mortalidade no Municfpio de Sdo Paulo/ Servico Funerario; Seade — Fundagao Sistema Estadual de Anilise de Dados; Fipe — Fundacao Instituto de Pesquisas Econémicas da FEA- USP; Cesad — Laboratorio de Dados/FAUUSP; Sempla — Secretaria Municipal de Planejamento do Municipio de Sao Paulo; NEV-USP — Nicleo de Estudos da Violéncia/USP; IBGE — Instituto de Geografia e Estatistica; CAP — Coordenadoria de Analise e Planejamento/Secreta- ria de Seguranga Publica do Estado de Sao Paulo; Instituto Lidas. Agradego também aos funciondrios da FAUUSP Elizabeth Aparecida Casemiro e Claudio Faria Sarti; aos alunos Marcio Luiz e Cid Blanco Junior; a historiadora Vera Lcia Vieira; ao urbanista Flavio Villaga e a0 cientista social Ricardo Neder. Erminia Maricato Sao Paulo, 1995 Inmoougio 19 Parte I URBANISMO NA PERIFERIA DO CAPITALISMO: DESENVOLVIMENTO DA DESIGUALDADE E CONTRAVENCAO SISTEMATICA Fatos da cidade controversa © uso ilegal do solo e a ilegalidade das edificagdes em meio urbano atingem mais de 50% das construcdes nas grandes cidades brasileiras, se considerarmos as legislacdes de uso e ocupagao do solo, zonea- mento, parcelamento do solo ¢ edificacao®. O profundo descolamento entre a norma e o fato suscitam estranheza a qualquer analista diante deste concreto ignorado. A pretensdo da cidadania burguesa é de que o Estado se organize para cumprir a norma e puna os que a contrariam. Quando, porém, 0 contrério predomina e a impunidade ou a punigao aleatéria se generaliza, estabelece-se um “faz-de-conta” geral das insti- tuigdes que se estruturam baseadas numa legislacao que se diz regula- mentadora da globalidade urbana. Aconstrugao ideolégica hegeménica da representa¢ao do urbano pro- cura ignorar a articulagao contraditéria entre norma e infracdo. Essa conceituacao que filtra, mediando, a realidade concreta, perpassa 0 Estado e a sociedade incluindo-se af intelectuais e técnicos do planeja- mento urbano. Antes de buscar o nexo da unidade do conjunto fratu- rado e suas possiveis raizes, vamos procurar elucidar o fato: sua ambigiiidade, suas contradigdes, seu descolamento, ou seja, vamos buscar esclarecer a fratura, que esta na base da relacdo tensa entre o urbano real e 0 urbano virtual, mesmo que correndo risco de lancar mo, temporariamente, da abordagem dualista, Comecemos pela re- presentacao que a maquina governamental municipal faz do urbano, cujo controle do desenvolvimento é de sua competéncia, de acordo com a Constituigao brasileira. Grande parte das dreas urbanas ocupadas nao existe nos cadastros municipais. No municipio de So Paulo, cidade-nticleo da area metro- politana, havia em 1989 aproximadamente 30.000 ruas ilegais que, portanto, nao tinham nome, o que nao dava dieito aos moradores (em sua maioria de loteamentos ilegais) de terem sequer enderego. Em 1990 moravam nos loteamentos ilegais do municipio de Sdo Paulo 2,4 mi- Unwrosio NA PRR DO CATALIN 2 Essa afirmagSo se basela no nosso conhecimento empirico adquirida profissionalmente em diversas prefeituras. Em relac3o ao municipio d Sio Paulo, ver: cadastio de favelas em Habi/Sehab, cadastro de loteamentos Ilegais no ResoloSehab, previsdes sob populago moradora de cortgos na Sempla,estimativa sobre iméveisilegai CCasefSehab. Estima-se que a ilegalidad anja 70% dos iméveis do municipio. 2 2 Ihdes de pessoas de acordo com estimativas do Resolo/Sehab. Apesar da importancia da a¢ao do municipio na regularizacao de loteamentos (ela é condicao para o registro legal do imével), a gestio municipal do periodo 1985/88 fechou o drgao especifico que tinha essa competén- cia e desinteressou-se pelo assunto causando desorganizagao de cadastro de 2.600 processos de regularizagao de loteamentos em an- damento na Prefeitura. Essa cidade ilegal inexiste, freqiientemente, para o planejamento urba- no oficial. Embora as grandes cidades brasileiras contem com respeité- vel ntimero de profissionais envolvidos com o tema, ndo raramente estes trabalham com uma realidade virtual mediante representacoes nos gabinetes, longe do territério sem lei, sem seguranca ambiental, sem saneamento, constituido pelas areas de moradias pobres. A pratica do planejamento urbano oficial tem irresistivel atracao pela regulamentacao do mercado imobiliario por meio de leis detalhadas de uso do solo e zoneamento (Giaquinto, 1995). O fascinio exercido pela proposta do “solo criado” nos debates que envolveram até mes- mo pensadores de esquerda (durante os anos 1970 a 1980 0 assunto quase que monopolizou os debates académicos, influenciados por intelectuais franceses) contrasta com o pouco acumulo nas andlises € busca de solugdes para os graves conilitos entre a propriedade priva- da e a ocupacao ou parcelamento ilegal do solo urbano, ou seja, a exclusdo, a segregacao territorial que se da por meio das relacdes juridicas. Os Planos Diretores — PDs tém-se prestado a busca idealizadora da unidade e da totalidade do urbano tao ao gosto do urbanismo moder- nista. A incorporagao do conceito pés-moderno de fragmentacao, va- lorizando o desenho urbano, nao implica, necessariamente, a visio alienada do planejamento oficial, encarar a cidade real que exige in- tervencao emergencial, menos generalizante e abstrata. Para grandes areas do territ6rio urbano essa regulamentacao nada significa. Gestéo € nao simples regulamentacao, operacdo, aco administrativa e nao apenas planejamento de gabinete, é 0 caminho para a prevengao das (MetROPOLE WA RIERA D0 CAPTALSMO - Extn MaRicaTO tragédias cotidianas que vitimam moradores dos morros e encostas que deslizam a cada chuva, ou moradores das beiras dos cérregos atingi- dos por enchentes, ou bairros inteiros atingidos por epidemias. Enotivel o distanciamento entre quem pensa a cidade nos executivos municipais e quem exerce o controle urbanistico. A aprovacao de plantas € 0 poder de policia sobre uso e ocupacao do solo esto diluidos em uma estrutura fragmentada que favorece, numa ponta, a a¢ao do pla- nejamento alienado e, na outra, a ago dos “pragmaticos” fiscais, cuja pratica € bastante mediada pela corrupcao (Maricato, 1993). ‘OCédigo de Obras de Sao Paulo (Lei 8.266), vigente de 1975 até 1992, fixava, por exemplo, exigéncias em relacao a dimensao de uma sala de espera para uma cabeleireira que se instalasse em qualquer bairro da cidade (desde que a lei do zoneamento © permitisse, ¢ claro). Fixava ainda a espessura das paredes externas e intemnas ou do lastro para 0 piso nas edificagdes. Para mudar uma porta de lugar ou executar pe- uenas reformas no interior da residéncia o morador deveria abrir pro- cesso € solicitar permissao a Prefeitura, respeitando todos os procedimentos formais (e informais) que costuma caracterizar a obten- (20 de alvards para edificios. A Lei de Andincios do Municipio de Sao Paulo proibe, por exemplo, andincios em empenas cegas de edificios (parede continua, sem abertu- ra de janelas), mas eles estéo presentes por toda a cidade. Alegislagao detalhista e “rigorosa” contribui para a pratica de corrup- Gio e constitui exemplo paradigmético da contradi¢ao entre a cidade dodireito e a cidade do fato. Pois em um ambiente em que “a infracao, além de infragao é norma e a norma além de norma é infracéo, como se deveria esperar de uma Contravencao sistematica”, qual é 0 papel das leis que pretendem regulamentar procedimentos detalhados do universo individual do interior da moradia, quando a maior parte das moradias e do contexto urbano constituem imenso universo clandesti- no que ignora normas mais gerais e basicas?? (Unnioasig MA PRR 00 CATAL 2 Durante 0 govern de Luiza Erundina, ‘quando atingidos por alguma medida Sancatlra, os agentes vistres de $30 Paulo (iscais manicipas de uso € cocupacio do sole, se vingavam aplcando a lei “indiscriminadamente”, multando quisquer moradores da cidade legal e jogendo-os contra a prefeitra. © universo dome gal 6 aioe do que o legal nas metpoles brasileicas como jd eegistamos.£ por isso que utllaamos aqui a expresso de Roberto Schwarz — "contravencso Sistematica” — 1a fase consruida por ‘Arantes. A expresso est fora do contest (Schwarz se rela 9 ete brasileira promotora do tfico de afecanos), mas é bastante adequada 30 Uubanismo perifrico, Schwarz, 1991; Arantes, 1992. 23 © Legislativo também tira partido dessa situagdo. Em vez de buscar adequar a legislacao a realidade ou a realidade a lei, podemos afirmar que, mais como regra do que como excecdo, parlamentares se apro- veitam desse descolamento entre norma e conduta na produgao e uso do espaco, para “beneficiar” vastas camadas da populacdo com anis- tias periddicas para os iméveis ilegais. Alias, 0 assentamento ilegal re- sidencial constitui inesgotavel fonte de clientelismo politico que é historicamente praticado no Brasil pelo Legislativo e também pelo Exe- cutive Se a ambigilidade e a contradi¢ao marcam profundamente a aco do Executivo e do Legislativo, o que nao dizer do Judiciario? O que nao dizer dos sistemas jurfdicos encarregados de assegurar os direitos pre- vistos nas leis? A criacdo de leis historicamente articuladas a formacao do mercado imobilidrio e os conflitos que emergem na aplicagao dessa legislacao as areas ocupadas ilegalmente, com especial destaque & aco contradi- toria do Judicidrio, sao relatados em um estudo elaborado por Falco Neto & Almeida Souza (1985), cuja analise empirica € centrada na cidade do Recife, © Recife apresenta aproximadamente 50% de sua popula¢ao vivendo em mocambos desde 0 inicio do século XX até seu final. Segundo o estudo citado, em 1914 essa proporgao era 43% e em 1960, 60%. Em 1988 essa taxa era de aproximadamente 50% segundo outra fonte: 0 projeto de lei do Plano Diretor, enviado a Camara Municipal nessa data. Recife é a metr6pole brasileira que apresenta maior proporcao de moradores de favelas em sua populagdo. Vamos acompanhar o relato do referido estudo: As leis do Império, as ordenagGes, os alvards, tinham validade apenas para as transacdes com os sobrados. As negociacdes que envolviam os mocambos eram regidas por usos, normas e costumes néo formaliza- dos pelo Estado. Os dois sistemas conviviam na produgio do espaco social da cidade do Recife. Merncroxe Na FER 90 CARTISAO - Eta MARCO Enquanto a cidade manteve espaco fisico dispontvel no seu interior, 0 desenvolvimento urbano permitiu uma convivéncia contraditéria entre o direito (de fato) de moradia das populacdes de pouco ou nenhum valor econémico e o direito (legal) de propriedade, que regulava as transagdes nas éreas mais valorizadas (p. 77). Quando essa condicao se esgotou 0 conflito tornou-se inevitavel, com ocorréncia de grande nimero de ocupacoes de terra, fruto de acdes coletivas que faziam surgir novas favelas da noite para o dia. Existe uma diferenga essencial entre esse tipo de agao (que no mesmo perio- do, meados dos anos 70 em diante, ocorreram nas principais cidades brasileiras) e a ocupacao lenta e tradicional que marcou o surgimento das favelas ou das periferias urbanas ilegais durante décadas. Diante dos conflitos relativos & ocupagao de terra, como reagiu o Judi- ciério? Continuemos com o relato sobre os mocambos do Recife: Ao contrario do que se pode pensar, os conflitos dela resultantes rara- mente foram solucionados por meio de violéncia ilegal de proprieté- rios ou da policia, ou pela aplicagao judicial do Codigo Civil e da legislacao pertinente. Na imensa maioria dos casos, a solu¢ao foi nego- ciada: dentro, fora, ou 4 margem da lei (p. 77). ‘Aquestdo ganha relevancia, segundo os autores, porque nao setrata de um ou outro caso, mas inimeros casos cujas negociacdes envolveram, durante anos, os governos estadual, municipal e o Poder Judiciario. Nao faltou até mesmo, no relato, 0 caso de um juiz que sentenciou as partes s6 julgar 0 processo quando estas entrassem em acordo. E 0s autores concluem: (..) diante do agravamento do conflito urbano, o Poder Judiciério tem aparecido como instancia onde se tenta nao sé fazer cumprir o direito de propriedade, como também nao fazé-lo cumprir (p. 77). Essa impressdo de que o Judiciario age de modo “‘lexivel” no que se refere a aplicacao da lei aos casos de ocupagGes de terras urbanas de- Urea NA PERF D0 CARTALSHO 235 “+ Em alguns casos 05 jutzes exigiam dos proprietirios tempo para a busca de alternativas, caminhoes para mudangas € ainda cesta bésica de alimentos para o ‘ocupantes. N2o fol incomum encontrar comandantes de policia, além de juzes, preecupados e desejosos que uma solucio fosse encontrada antes da ago de despejo, sobretudo depois do confito da “Vila Socialista", no ‘municipio de Diadema, em 1990, cuja ‘eintegracio de posse pedida pelo overno do estado transormou-se em uum conflito armado com a ocorréncia de uma morte vitiosfeidos, entre 0 ‘quais estava um vereador que perdew uma das mas, 26 saparece diante de outros relatos, os quais apontam para outras con: clusdes. Durante os anos 80 acirrados conflitos na disputa pela terra urbana suscitaram diferentes reagdes dos executivos ou judiciarios. Em Sao Paulo pudemos participar (como governo) de negociacées entre ocupantes e proprietarios, legitimadas por juizes sensiveis & possibili- dade de ocorréncia de conflitos violentos nos despejos executados por ordem judicial’. Outros casos, entretanto, tomaram rumos diferentes. Durante uma agao de despejo que teve lugar na zona leste de Sao Pau- lo, um trator contrataclo pelo proprietario do terreno colocou abaixo casas de alvenarias que ainda abrigavam moradores no seu interior (pessoas idosas e criancas neste caso). Essa a¢do foi acompanhada (as- sistida) por forga policial. Diante da esdrixula situagao na qual o proprio Judiciario aplica ou nao a leie por vezes, em vez de aplica-la, propde a negociacao (na methor das hipéteses), surge uma indagacao: afinal, qual é o critério de aplica- ¢40 da lei? Voltamos a situacao apontada inicialmente: unidade articu- lada entre norma e infracao abre espaco para a subjetividade, 0 clientelismo, o favor, a arbitrariedade. A decisao judicial é socialmente muito valorizada nessa situacdo. A lei pode ser aplicada ou nao, de- pende de cada caso. Ela esta a mao para ser usada ou ndo. E além dos aspectos apontados, ela cumpre seu papel em relacdo ao mercado imo- biliario capitalista formal, restrito e concentrado. Enquanto os iméveis nao tém valor como mercadoria, ou tém valor ittis6rio, a ocupacao ilegal se desenvolve sem interferéncia do Estado, A partir do momento em que os iméveis adquirem valor de mercado (hegeménico) por sua localizacao, as relagdes passam a ser regidas pela legislacao e pelo direito oficial. E 0 que se depreende dos dados historicos e da experiéncia empirica atual. A lei do mercado € mais efetiva do que a norma legal. Deixemos momentaneamente a esfera do Estado em sua relacio como urbano para verificar qual é a representagao da cidade que predomina em certos setores da sociedade. (MerRoPOUr a merenn D0 cams - Een MaRicaro O desconhecimento da cidade real pelas classes médias e dominantes da sociedade é reforcado pelo seu confinamento a uma drea de circu- lacdo restrita pelas “ilhas de primeiro mundo”. A concentragao de in fra-estrutura € equipamentos urbanos aliada ao mau funcionamento dos transportes publicos vao determinar a ocupacao densa da cidade hegeménica. Esses circuitos fornecem a ilusdo de um espaco relativa- mente homogéneo, contando com comércio e servigos requintados. Nao séo apenas a estrutura administrativa municipal, os cadastros ur- banos e 0 orcamento puiblico que se organizam em virtude desse espa- ¢0 restrito. Uma imprensa dedicada ao “estilo de vida” ai existente reforca a idéia predominante que toma o global pela centralidade oficial Entre 1989 e 1992, os empresrios imobilidrios reunidos em torno de seu sindicato, 0 Secovi, se opuseram a aprovacao do projeto de lei relativo a regularizacao fundiaria de favelas em Sao Paulo, proposto pela Prefeitura e modificado por vereadores da Camara Municipal em negociacdo com os movimentos de favelados. Suas idéias foram ex- presses ra revista do Secovi (sobretudo em dois artigos publicados no ano de 1992). Neles, empresérios imobiliarios propunham a remocao das favelas de areas publicas e a devolugao dessas dreas a0 uso puibli- £0. Uma posicao pretensamente correta — incorporar ao patriménio pablico éreas ocupadas privadamente por moradias — revela o desco- nhecimento da impossibilidade de aplicar tal medida a uma cidade na qual quase 20% da populagao, ou mais de um milhao e meio de pes- soas, mora em favelas A populacao favelada tem crescido a taxas muito maiores que a popu- lacdo da cidade como um todo. No inicio da década de 70, menos de 1% da populacao do municipio morava em favelas. Em 1987 essa taxa era de 8% (Shab, 1987). Em 1993 levantamento da Fipe resulta em uma taxa de 19,4%. O crescimento de favelas foi espetacular em rela- Gao & populacao total do municipio de Sao Paulo, nas décadas de 70, 80, e mantém aumento progressivo nos anos 90. Durante esse periodo ‘ou mais exatamente de 69 a 89 a Prefeitura promoveu a construcao de aproximadamente 97.000 unidades de habitacdo pela Cohab-SP, ou seja, durante vinte anos a Prefeitura, contando com recursos federais, Ursroaso nn PRR 60 CARTALIMO a7 28 hoje escassos, construiu moradias para um ntimero equivalente a apro- ximadamente metade da populagio moradora de favelas em 1987. Ela nao conseguiu sequer frear 0 crescimento das favelas quanto mais eli- miné-las. (Sem contar 0 crescimento de cortigos e adensamento dos loteamentos da periferia.) Certamente algumas razGes levaram os representantes do Secovi aessa atitude, jé que muitos dos terrenos ocupados por favelas estao situados no niicleo hegeménico, pressionando para baixo o valor dos iméveis do entorno. Muito possivelmente eles ndo estavam referindo-se a todas as favelas do municipio, mas apenas as que estavam situadas na 4rea eleita como o novo “filé-mignon’ do capital imobilidrio em Sao Paulo, situadas nos arredores do rio Pinheiros. O empenho da gestao do pre- feito Paulo Maluf, agindo em parceria com empreiteiras e demais em- presarios da regiao, em retirar ou dar nova fachada as favelas localizadas, exatamente nessas areas, durante 0 ano de 1995 € no inicio de 1996, mostram que nao se tratou de simples coincidéncia ou necessidade técnica relacionada as obras vidrias (Fix, 1996). As politicas saneadoras que, a julgar pelos discursos e exposigao de motivos, se destinavam a resolver problemas sociais de moradores de favelas e corticos, no Brasil, se ocuparam concretamente, desde 0 co- meco do século XX, em retira-los das areas mais valorizadas pelo mer- cado imobilidrio, sem nunca apresentar nenhuma eficacia em relacao A questo social. Foi assim nas reformas urbanas higienistas do inicio da Repablica, foi assim durante 0 populismo varguista e foi assim du- rante 0 regime militar (Sevcenko, 1993; Vaz, 1994; Barboza, 1995, Maricato, 1995). Mas, além do interesse econdmico, esta presente tam- bém boa dose de desinformacao sobre a dimensdo da miséria urbana e as condi¢des de habitago. Se a exclusdo social é omitida no discurso utilizado € porque a auséncia de informagbes na chamada opiniao pa- blica permite a mistificagao. Arepresentagao que muitas entidades ambientalistas, situadas em opo- sigao ao capital imobilidrio fazem da cidade, revela também notivel desinformacao. MeTROPOLE NA PRFERA 00 CARTS ERAN, MABICATO Por ocasiao do Tribunal das Aguas, encontro promovido em 17/11/90, pela ativa Apedema — Assembléia Permanente de Entidades em Defe- sa do Meio Ambiente do Estado de Sdo Paulo, que discutiu 0 conflito entre habitago e mananciais, diversas entidades ambientalistas reivin- dicavam a remo¢ao de populagao que habita a area da bacia da repre- sa de Guarapiranga. A regio foi ocupada por loteamentos clandestinos durante a vigencia da Lei Estadual de Protec dos Mananciais, promulgada em 1975. Crescentemente ocupada por trabalhadores pobres que nao contam com alternativas no mercado privado legal ou nas politicas piblicas, contando com a conivéncia da fiscaliza¢ao municipal e estadual, au- sentes, a regido apresentava o maior indice de crescimento populacio- nal do municipio de $a0 Paulo, no final dos anos 80 (8,88% a.a. no Subdistrito de Parelheiros — Fonte Seade). Em 1990 a Prefeitura de Séo Paulo procurou tracar uma estratégia para, antes de mais nada, diminuir progressivamente a taxa de ocupa¢ao da bacia mediante fiscalizacao integrada com o governo estadual. Em se- Buida, como parte do programa de saneamento e recuperago ambien- tal da bacia, buscou-se definir 0 saneamento e urbanizagao das reas de ocupacao jé consolidadas, removendo apenas os domicilios indis- pensveis para o saneamento ambiental, apontados em levantamento técnico, para depois colocar em pratica um plano de desenvolvimento sustentavel?. Nao foram raros os representantes de entidades ambienta- listas que se colocaram contrarios a urbanizacio e regularizacao das areas ocupadas exigindo a remocao da populacao de um modo geral Certamente havia uma desinformacao sobre a dimensao da populagao moradora na area da bacia, ou entéo despreparo a respeito do que significa remover aproximadamente 600.000 pessoas de seu lugar de moradia, em termos sociais e econdmicos. Muitos dos que defendiam essa proposta argumentavam que era necessario cumprir a lei, sem aprofundar muito a discussao sobre os aspectos que a impediam de ser cumprida, A defesa de propostas formais inviaveis, que abstraem a base social, Unseen RETR 00 CAMA * Ver a respeito 0 Programa de Saneamento Ambiental da Bacia de Guarapiranga, elaborado sob a coordenacio da Secretaria de Energia e Saneamento do govero estadual de S30 Paulo, com a partcipacto da Sehab/ PMP. 29 30 econdmica e fisica a qual se referem, nao pode ser generalizada a cha- mada militancia ecol6gica. Podemos afirmar, entretanto, sem temer exageros, que a abstracdo em relacdo a realidade urbana brasileira, que esta presente em toda a sociedade, esta também fortemente pre- sente nas entidades ecoldgicas que, embora reconhecendo os males de uma concentracao demografica considerada “excessiva”, desconhece a real dimensdo da ocupagao andrquica do solo ¢ as contradigées que sio inerentes a esse proceso. Esse “desconhecimento” da realidade proxima é acompanhado de uma construcao ideol6gica da representa- Gao sobre 0 urbano, que repete a marca das “idéias fora do lugar”, também entre muitas das entidades ambientalistas, atrasando a urgente e necessaria defesa do meio ambiente. Toda temporada de chuvas é acompanhada anualmente por tragédias urbanas no Brasil. Enchentes e desmoronamentos com mortes fazem parte do cotidiano da populacao pobre que habita as grandes cidades A midia repete continuamente acontecimentos desse tipo, sem fazer, entretanto, nenhuma referéncia ao processo anarquico de uso ¢ ocupa- 40 do solo. A auséncia do saneamento basico 6 o fator principal da disseminacao de epidemias. A rede hidrica e os mananciais transfor mam-se em depésitos de esgotos comprometendo a captacio de agua. Além das conseqiiéncias que sao percebidas, nao existe a consciéncia social sobre o fio que une esses fatos: a dimensao da tragédia urbana brasileira, A violéncia que eclodiu a partir dos anos 80, nas metrépoles brasilei- ras, com mais visibilidade na cidade do Rio de Janeiro, é que finalmen- te tem atraido atencao para a imensa massa de excluidos do mercado de trabalho e do mercado de consumo regular, além de excluida dos servigos ¢ infra-estrutura urbanos. © desempenho recessivo da econo- mia brasileira durante os anos 80, o aumento da pobreza, esto mos- trando aos setores privilegiados da sociedade que nao ha condominio fechado, seguranca privada, dispositivo de seguranca, edge cities, zo- neamentos segregados e demais normas urbanisticas, que a protejam da realidade concreta, IMETRCPOLE NA PERERA D0 CARAS - ERMINA MARIO Os movimentos urbanos, mais frequentes e crescentes a partir de mea- dos dos anos 70, também contribuiram bastante para revelar a ponta do iceberg (dimensao da pobreza urbana), porém, fora a ocupacao de terras privadas que acarreta conflitos envolvendo proprietarios e Esta- do, a violencia urbana contida nos assaltos, roubos, chacinas tem sido mais eficaz para trazer a tona essa realidade de exclusio. Raizes da ordem invertida: trabalho e terra (..)insistiremos ainda um pouco na ambivaléncia ideolégica das elites brasileiras, um verdadeiro destivn>. Estas se queriam parte do Ocidente progressista e culto, naquela altura jé francamente burgués (a norma), sem prejuizo de serem, na pratica, e com igual autenticidade, membro beneficiério do Gitimo ou peniiltimo grande sistema escravocrata do Ocidente (a infragdo). Ora, haveria problemas em figurar simultanea- ‘mente como escravista ¢, individuo esclarecido? (Schwarz, 1990, p. 4)). A evolucao urbana no Brasil contrariou a expectativa de muitos, da superacao do atraso, do arcaico e da marginalidade, pelo moderno capitalista. O processo de urbanizacao, acelerado e concentrado, mar- cado pelo “desenvolvimento modemo do atraso”, cobrou, a partir dos anos 80, apés poucas décadas de intenso crescimento econdmico do pais, um alto preco, mediante a predaco ao meio ambiente, baixa qualidade de vida, gigantesca miséria social e seu corolério, a violén- cia, O desenvolvimento urbano desigual em vez de eliminar a heranga do atraso, reproduziu-a e deu-Ihe novas conformagées. Segundo Martins, (..) 0 capitalismo na sua expansdo, ndo s6 redefine antigas relacées, subordinando-as 4 reproducao do capital, mas também engenda rela- 6es nao capitalistas igual e contraditoriamente necessarias a essa re- producao (Martins, 1979, p. 19). Unuaesio Na PUR D0 CARTALIMO a +05 mesmos efeitos dinamicos do padrdo dependente de moderizagso acarretam a necessidade da perssténcia fda revitalizagio de dinamismos que 130 sio especficamente ‘modemos’, cembora sejam essencias, em graus vatiiveis, 3 eficécia dos fins visados através da modernizacio dependente, Isto quer dizer que a modernizaci0 processa-se de forma segmentada © segundo riimos que requerem a fusko do ‘modemo’ com 0 ‘antigo’ ou, entéo, do ‘enoderno’ com 0 ‘arcaico’, operando-se ‘que se poderia descrever como a ‘modernizagso do arcaicc’ ea simultinea ‘arcaizacio do moderna" (Fernandes, 1977, 9. 210), 2 A reprodugao do atraso pela moderniza¢ao, ou como tembra Florestan Fernandes, a “modernizagao do arcaico” que é simultanea a “arcaiza- 40 do modemo”, constitui marca do capitalismo periférico que acaba por Ihe conferir caracteristicas proprias (Femandes, 1977)*. A compreensao de que os paises capitalistas chamados de centrais so como sao porque o proceso de acumulagao € global (e no final do século XX esse fato é muito mais evidente, nao deve impedir a busca das especificidades que caracterizam 0 capitalismo dito perifé- rico. A relacao de dependéncia é biunivoca mas alguns ganham mais com ela. ‘Aambigitidade foi a marca da sociedade colonial. A producao na Co- lonia nao foi pré-capitalista e nem feudal ja que combinava producao para subsisténcia e produgao para o mercado internacional. Isto é, a produgao colonial era capitalista sem ser. O produtor colonial no era burgués e nem senhor feudal. Aemergéncia do trabalhador livre em substituicao a mao-de-obra es- crava nao implicou trabalho assalariado, e aqui novamente as rela- {G6es nao sio definidas como capitalistas apesar de fazerem parte do proceso de acumulacao de capital (Martins, 1979). Relacdes basea- das no mando, na dominacao pessoal e no favor, sobreviviam (e ain- da sobrevivem) num mundo em que se afirmavam os direitos civis: igualdade perante a lei, direitos individuais, liberdade de expresso etc. Assim a ligacao do Pats & ordem revolucionada pelo capital e das liber- dades civis, ndo s6 ndo mudaram os modos atrasados de produzir, como 05 confirmava e promovia na pratica, fundando neles uma evolugao com pressupostos modernos (...) (Schwarz, 1991, p. 37). A convivéncia do ideério liberal europeu com relagées de trabalho que 9 contradiziam marcou a formacao ideolégica e moral da sociedade brasileira, segundo Schwarz. Citando Felipe de Alencastro, aquele au- tor lembra que, durante a negociacao para o reconhecimento diploma- IMaerorous ware 90 CARAS - ERM Macro lico da Independéncia, o novo governo brasileiro buscando legitimar- se prometia, externamente, a abolicao e intemamente a continuidade da escravidao. Ser abolicionista ou nao, dependia da ocasido. No mais das vezes era-se as duas coisas. ‘As autoridades, apesar de eventuais declaracées em contrario, faziam vista grossa a pirataria que facultava o transporte de carne humana, formalmente ilegal desde o acordo com a Inglaterra em 1826 ¢ a lei regencial de 7 de novembro de 1831 (Bosi, 1992, p. 196). Entre 1830 e 1850, entraram no pais, segundo Bosi, 700.000 africanos. O contetido do liberalismo brasileiro se definia no plano econdmico por: comércio, producao escravista, compra de terras (apés 1850). Eno plano politico por: eleigdes indiretas e censitarias. Tratava-se do libera- lismo dos possuidores, ou do respeito 2 individualidade e autonomia do cidadao proprietario. Um liberalismo adaptado as “circunstancias” eas “peculiaridades” nacionais (Bosi, 1992). O surgimento da burgue- sia brasileira nao se faz em oposi¢ao aos privilégios do sistema colo- nial, mas sim em oposi¢ao ao “jugo colonial”. Com a destrui¢ao da ordenacao juridico politica deste, os demais privilégios ndo s6 subsis- tiram, mas foram até reforgados (Fernandes, 1977). ‘A forma como se deu a passagem do Brasil-colénia para 0 pais inde- pendente, o final da escravidao, a substituigdo dos escravos pela forca de trabalho imigrante européia e a emergéncia do trabalhador livre so de fundamental importancia para entender o processo de industrializa- go e a formacao do proletariado urbano. Caio Prado lembra que a produgao escravista afastou 0 trabalhador livre da atividade produtiva: Quem nao fosse escravo e nao pudesse ser senhor, era um elemento desajustado que nao podia se entrosar normalmente no organismo eco- nomico e social do pais (Prado, 1956, p. 203). (Unaroaso na run 00 C¥RTALSHO 3B a” De uma populagao de trés milhdes de pessoas residentes no Brasil do século XVIII, quase a metade estava na condicao de livre ou liberto, a qual, praticamente excluida da producao organizada, vivendo da cul- tura de subsisténcia ou de tarefas ocasionais (embora cumprindo papel importante para a dinamica econémica), era tida pelo pensamento pre- dominante como composta de vadios, indolentes e imprestaveis para 0 trabalho (Franco, 1969). A maneira como os senhores tratavam o cativo, passivel de ser explora- do até os limites de sua sobrevivéncia, influenciava tanto a percepcao que os livres tinham acerca do trabalho disciplinado e regular como a percepcao que os proprietérios faziam da utilizacao da mao-de-obra livre (Kowarick, 1994, p. 42) Para o trabalhador livre, o trabalho organizado nessas condigées era visto como degradante. Allibertagao dos escravos se consumou apés muitas resisténcias, quan- do o processo de sua substituicao pelo trabalhador imigrante europeu j@ estava em curso, por um caminho que tentou, novamente, marginali- zar 0 trabalhador brasileiro da produgao organizada. No limiar da Reptblica, parte da forca de trabalho fabril era escrava e 68 trabalhadores assalariados recebiam parcela da remuneracéo em espécie (Reis, 1994). Essa pratica fez parte da relacao dos fazendeiros com as primeiras levas de trabalhadores imigrantes. Ela sobrevive ain- da apés 1930, especialmente no campo, nao atingido pela regulamen- tagio das relacdes de trabalho promulgadas em 1935. No final do século XX, 0 pagamento em espécie e, o que é mais grave, o trabalho escravo ainda s4o encontraveis no campo brasileiro. ‘A questo fundisria teve papel central em todo esse processo. Se antes de 1850 a terra nao exigia “cautelas juridicas” nem da Coroa portuguesa e nem do Império brasileiro, sendo a ocupacao ou posse praticas legitimas para adquirir a propriedade, apés essa data o Estado METROPOXE NA PORERIA DO CARTALSWO - ER MARICATO passa a regular o acesso a terra. Antes de 1850, “a terra era praticamen te destituida de valor” (auséncia de mercado imobilidrio e abundancia de terras devolutas), ao passo que o escravo, sim, era mercadoria que contava entre os bens do seu proprietario, ndo como capital, mas como renda capitalista (Martins, 1979). Aterra nao tinha importancia econémica sem os escravos, que, inde- pendentes da terra, eram valiosos, utilizados também como objeto de penhores e hipotecas. Hé uma perfeita articulagao entre o processo de extingao do cativeiro do homem eo processo subseqiiente de escravizagao da terra (Baldez, 1987). Oano de 1850 é marcado pelo fim do trafico de escravos e pela Lei de Tetras n.° 601, de 18 de setembro. Nao é por coincidéncia que as duas leis s0 promulgadas com uma semana de tempo entre uma e outra. De acordo com a lei, as terras devolutas poderiam ser adquiridas apenas mediante compra e venda, o que afastava a possibilidade de trabalha- dores sem recursos tornarem-se proprietarios. Dessa forma garantia-se a sujeicao do trabalhador “livre” aos postos de trabalho, antes ocupa- dos por escravos (Martins, 1979; Baldez, 1987). O proceso de definigio da terra como mercadoria, que caminhou pa- ralelamente ao processo da emergéncia do trabalhador livre, foi mar- cado, como este, por muitos conflitos, como mostra Roberto Smith (Smith, 1990). Atransferéncia do sistema portugués de sesmarias para a realidade da Colénia significou, 14 como aqui, a concessao da terra pela Coroa, em troca de lealdade. Diferentemente de outros paises da Europa, a monar- quia portuguesa controlava as atividades econdmicas e as terras. Caso a exigéncia de ocupar, produzir e pagar os tributos nao fosse satisfeita, a terra se tornaria devoluta, isto 6, a concessao seria cancelada e ela retornaria para o Estado. As regras que regulamentavam a aplicacao das concess6es no Brasil nao foram aplicadas rigorosamente em virtu- [Urs NA FRA DO CARTALSIMO 35 36 de da abundancia de terras. Mais importante do que a relacao legal, era a capacidade de ocupar a terra e nela produzir, ¢ esta estava vincu- lada 4 propriedade de escravos. Os colonos, senhores de terra, proprietarios de escravos, compunham as Camaras Municipais. Definidos como “homens bons’ além de gran- des produtores rurais, eles deveriam, segundo as normas, residir na ci- dade, adotar a religiao catélica, apresentar a pele branca e oficio ndo-manual. Como autoridade municipal e representante da Coroa, esses latifundirios, juntamente com os burocratas administradores, ti- nham autoridade sobre o destino das coisas e das pessoas (incluindo 0 poder de policia). Eles podiam até mesmo doar terras, as “datas”, por- Ges do territério que faziam parte do patriménio publico municipal, sob a forma de uma gleba de terra (denominada rossio), que acom- panhava a concessio da autonomia municipal (Marx, 1991). Apratica atbitraria do poder exercido dessa forma, confirmou-se no Império, quando 0s latifundiarios tornaram-se autoridades militares como coro- néis da Guarda Nacional. Nio faltou motivo, portanto, para fortes manifestacdes contrarias, a pri- meira tentativa de regularizar a propriedade da terra, em 1795. O siste- ma de sesmarias continuou em vigor até 1822 quando foi suspenso, mas foi somente em 1850 que a Lei de Terras foi promulgada. Entre 1822 e 1850, com a indefinicao do Estado em rela¢ao a ocupacao da (erra, esta se dé de forma ampia e indiscriminada. E nesse periodo que se consolida de fato o latiftndio brasileiro, com a expulsao de peque- 1nos posseiros por poderosos proprietarios rurais. Apesar do fim das ses- marias, algumas provincias continuaram a fazer concess6es, irregulares e arbitrarias. A demorada tramitagao do projeto de lei que iria definir a comerciali- zacao e a propriedade da terra devia-se ao medo dos latifundiarios em ndo ver “suas” terras confirmadas. Rejeitaram também o imposto tert torial que constava na primeira reda¢ao do anteprojeto de lei Divisao de Terras e Colonizagao, de 1843. -MerRO*Oue NA PERERA 00 CATALIN ~ ENA MARCATO A proposta liberal que alimentou o longo debate sobre a definicao da Lei de Terras, pretendia, em sintese, utilizar as terras devolutas para com sua venda financiar uma colonizagao branca (com imigrantes europeus), baseada na pequena propriedade. Dela, na redacao final da lei, pouco sobrou sendo uma pomposa e avancada exposi¢io de motivos fundamentada nas virtudes do progresso das relagdes capita- listas (Smith, 1990). Novamente aqui esté a marca da fratura entre intencdo manifesta e pratica concreta. Como foi anteriormente men- cionado para 0 caso da proibicao do trafico de escravos, a argumen- tacao liberal encobriu a manutencao das relades de poder. Apenas no sul do pats, a colonizacao branca, vinculada & pequena proprieda- de, foi implementada. No restante do territ6rio, os imigrantes substi- tuiram a mao-de-obra escrava no latifandio, que passava a constar como propriedade privada ‘Ademora na demarcacao das terras devolutas deveu-se as resisténcias eimprecisées com que as solicitagGes do governo central eram respon- didas pelo poder local. Durante esse processo, um vasto patrimonio piblico, sob a forma de terras rurais e urbanas, passou para maos pri- vadas. Murilo Marx lembra que até 1911 a Camara Municipal de $0 Paulo apresentou iniciativas de concessao de terras municipais. Apenas em 1917, com 0 Cédigo Civil, a proibigdo dessa pratica se consolida. ‘Apés a promulgacao da Lei de Terras, de 1850, é engendrada, segundo o jurista Miguel Baldez, “uma densa malha de leis, regulamentos e for- mas processuais” com a finalidade de costurar “em torno da proprieda- de, um sistema de protecao eficiente e gil, capaz de assegurar-Ihe 0 carater preponderante de mercadoria” (Baldez, 1987). Apesar da pou- ca importancia do mercado fundiario urbano, a partir de meados do século XIX, surgem as necessidades, até entdo desprezadas, de dar maior precisao ao loteamento, suas fracdes e suas dimensdes, 0 alinhamento das fachadas, 0 nivelamento das vias e o que era chao ptiblico ou pri- vado. Como lembra Murilo Marx, o lote comercializado passa a ser 0 médulo dominante quadrangular e ortogonal, que orienta a producao do espaco urbano. Tudo mudou a partir dai (Marx, 1991). [Unrousio NA PERFERIA D0 CAPITALS 37 38 O aparato legal urbano, fundiario e imobiliério, que se desenvolveu na segunda metade do século XIX, forneceu base para 0 inicio do merc do imobilidrio fundado em relagées capitalistas e também para a ex- clusao territorial. Os Cédigos de Posturas Municipais de Sao Paulo (1886) e Rio de Janeiro (1889) proibiam a construgao de corticos ou “edifica- ges acanhadas” nas reas mais centrais (Maricato, 1995). As exigén- cias da propriedade legal do terreno, plantas, responsavel pela obra, tudo obedecendo as normas dos cédigos, afastou a maior parte da massa pobre do mercado formal. A atividade empresarial imobiliaria é regu- lamentada em 1890 (Reis, 1994). E com 0 inicio da Republica que se afirma o urbanismo modemista segregador. As cidades brasileiras mais importantes, em especial o Rio de Janeiro, passam por grandes transformagdes que procurarao adapt: las aos novos tempos, isto é, as novas necessidades econdmicas liga- das & administracao e exportacdo dos produtos agricolas, em especial © café, eo combate as epidemias por meio do saneamento. Um cenario que nao é determinado apenas pela eficdcia econémica e sanitaria acom- panha as mudancas. Busca-se adequar as cidades a fachada progressis- tae modernizante que a Republica requeria e sepultar a simbologia do passado escravista. Annecessidade de se afirmar levou o Estado republicano a incentivar uma sucessao de reformas urbanisticas nas cidades do Rio de Janeiro, Sao Paulo, Manaus, Belém, Curitiba, Santos e Porto Alegre, reformas essas que se inspiraram no que o Bardo de Haussmann fizera, alguns anos antes, em Paris. As cidades adquiriram importancia que nunca tiveram antes, como lugar da crescente producao industrial e como mercadoria, elas proprias, por meio de um mercado imobilidrio cres- centemente importante. Com 0 objetivo de eliminar os resquicios da sociedade escravista, er- guer um cenario modernizante e consolidar © mercado imobilidrio, as reformas urbanisticas expulsaram a “massa sobrante” (negros, pedin- tes, pessoas sem documentos, desempregados de modo geral) dos lo- cais urbanos mais centrais ou mais valorizados pelo mercado em _MerRO®OuE NA PRFERA 00 CAPTALSMO ~ EBAINIA MARICATO transformacao. Mais do que a cidade colonial ou imperial, a cidade, sob a Republica, expulsa e segrega (Vaz, 1986). As epidemias provoca- das pela densidade habitacional e pela falta de saneamento forneceu 0 argumento para a “limpeza” social que implicava nova disciplina ética e cultural, novo tratamento estético e paisagistico, além da remogao dos pobres com seu estilo de vida, para as periferias, morros, varzeas, suburbios (Sevcenko, 1993). A repressio que se seguiu a revolta da vacina, quando a massa enfurecida tomou conta das ruas no Rio de Janeiro, por trés dias, durante o ano de 1903, terminou coma expulsdo, para 0 exilio no Acre, ndo s6 dos lderes da revolta, mas também de uma parte da “massa sobrante”. Aurbanizagao da “industrializagao com baixos salérios”” ‘\ industrializagao brasileira, que se afirma decisivamente a partir da chamada Revolugio de 1930, combinou crescimento urbano industrial com regimes arcaicos de producao agricola. Um “pacto estrutural” entre antigos proprietarios rurais e a burguesia urbana garantiram mudangas sem rupturas e a convivéncia de politicas contraditérias® Anova correlagao de forcas sociais, correspondem a reformulacao do aparelho estatal, a regulamentagao da relagao capital/trabalho e as no- vas regras de expansao do mercado interno. Um Estado centralizador, interventor e protecionista da acumulago urbano-industrial institui, de cima para baixo, legislacao trabalhista e regula o preco da forca de trabalho, privilegiando o trabalhador urba- no, em detrimento do trabalhador rural. Examinando a participacao do “salario no produto industrial” de qua- renta paises (capitalistas centrais ou periféricos, além de socialistas), Joao Eduardo Furtado (Unesp — Universidade Estadual Paulista) revela que o Brasil esté situado no Gltimo lugar juntamente com o Kuwait (citado em Schilling, 1994, p. 66). Essa “industrializacao com baixos [Unaroasu 9n PeReERA DO CAPTASMO » Medeiros, 1992. * Ao contriio da revolusio burguesa ‘clissca’, a mudanga das classes proprietirias rurais pelas novas classes ‘burguesas indusviais, no exigirs, no Brasil, uma ruptura total do sistema, nfo apenas por razdes genética, mas estrturais” (Oliveira, 1972, p. 34). 39 salarios” é predat6ria com a forga de trabalho, incidindo em altas rota- tividades, auséncia de treinamento e mas condicdes de trabalho. A in- corporacao crescente dle mulheres e criangas ao mercado de trabalho é uma estratégia para fazer frente a crescente queda do poder aquisitivoe aumento da demanda de consumo por produtos industriais modernos que ¢ produzida pelo modo de vida urbano. ‘A manutengio de relagées arcaicas de propriedade rural resulta, no final do século XX, numa situacao de profunda concentragao fundisria: 14,16% da Area rural do pats, ou aproximadamente 58,3 milhées de ha, estdo distribufdos entre 2.174 estabelecimentos ou 0,04% do ni- mero de propriedades. As propriedades rurais de mais de 1.000 ha cor respondem a 43,77% das terras rurais (Schilling, 1994). ‘Alguns fatos esto na base do gigantesco processo de migracao que ocorreu no territério brasileiro, neste século, do campo para as cidades: a referida concentracao fundiaria em primeiro lugar, seguida da intro- dugao de tecnologia em certos setores da produgao rural destinada so- bretudo a exportacao e também o desprezo pelo avanco das relacdes trabalhistas no campo. De 1940 a 1980 a populagao urbana passa de 26,35% do total para 68,86%. No final desse periodo, aproximadamente quarenta milhdes de pessoas (33,6% da populacao) haviam migrado do lugar de origem. Somente entre 1970 e 1980 se incorporam a popula¢ao urbana mais de trinta milhdes de novos habitantes. Em 1960 havia no Brasil duas cida- des com mais de um milhao de habitantes — Sao Paulo e Rio de Janeiro. £m 1970 havia cinco, em 1980 dez e em 1990 doze (Santos, 1993, p. 74). Crescimento industrial ligado ao fenémeno da metropolizacao é uma constante nos chamados NICs — New Industrialized Countries. Segun- do Lipietz, o desenvolvimento do chamado fordismo periférico nao se estendeu a todo o territério, mas se reduz e se concentra em alguns pontos do pafs, a0 contrario do que aconteceu nos paises centrais (Li- pietz, 1985). Esse process, entretanto, tem impacto em todo 0 territé- rio nacional, sem davida, METROPOLE NA PRIFEUA DO CARTALSMO - Exnbun MARAT Industializacao, urbaniza¢ao, expansao da classe média, assalariamen- to, produgao de bens de consumo duravel, o Brasil pés-anos 50 consti- tui osimulacro da modernidade. Ha uma ampliacao da integragao do territ6rio (infra-estrutura de transportes e comunicagao) e do mercado interno, Uma nova divisio social do trabalho, a partir dos anos 60, trouxe mudangas no padrao de urbanizacao, nas dinamicas regionais, coma modemizacao agricola (sul, sudeste, leste e centro-oeste), agro- industria (sudeste, sul e leste) e expansdo metropolitana industrial (nor deste, lest, sudeste e sul) (Santos, 1993). Os simbolos do consumo pos-moderno extravasaram as regides metropolitanas e podem ser en- contrados, por exemplo, nos centros urbanos do interior do Estado de Sao Paulo, Minas Gerais, Parana, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, ‘que crescem e se industrializam. De 1940 a 1980 o PIB brasileiro cresceu mais de 7% ao ano. Os indi- ces de natalidade e mortalidade apresentam quedas espetaculares. ‘Apesar disso, o aprofundamento da desigualdade se acentuou, inicial- mente pela cooptacao que caracterizou 0 “populismo desenvolvimen- tista” e, depois de 1964, sob a repressao do regime militar. ‘Atabela da pagina seguinte mostra a variag3o do poder aquisitivo do salario minimo real regulamentado por lei, entre 1940 e 1980: Uneanso NA PER 00 CARTALHO a a VARIAGAO DO SALARIO MINIMO REAL — BRASIL 1940/80 Indice ‘Ano Indice 98,02 7960 . . 100,30 89,35 y961 | 11,52 80,22 1962... 101,82 7878 1963. | .89'51 33,19 1964 || 192.49 67.03, 1965. 89,19, 5882 1966 | 76,03 44,94 1967 |. 171,92 4161 1968 || -70,39 4219 1969. | 67,73, 39,84 1970 || 68,93 36.80 1a7t 165,96 98,77 1972 || .6478 28135 1973 |. .59,36 198/88 1974.54.48, 11,04 1975 |. 18791 11281 1976. 5654 122,65, 1977.58.92 106,70 1978 | 16070 119,45 1979 | 61.27 1980 Fonte: Dieese £m 1981, no final do periodo referido, de intenso crescimento indus- trial, 0 1% mais rico da populagao concentrava 13% da renda nacional a0 passo que os 10% mais pobres receberam 0,9%. Mediante a con- centracao da renda foi possivel criar um mercado de consumo para os bens industriais modernos e luxuosos. Como lembra Alain Lipietz: (...) quando se & 120 milhdes, é suficiente que 20% da populagao se aproprie de dois tercos da riqueza para que se constitua um mercado para os bens durdveis e mesmo luxuosos, equivalente a um pais médio da Europa do Norte (Lipietz, 1985, p. 30). Se a maior parte da populagio nao constitul mercado para os bens lu- xuosos, ern compensa¢ao constitui ampla oferta de mao-de-obra bara- ta para a sua producao. MerRceous nn PFERA DO CARLIE - Exnbn Manco Cidade, Estado e mercado: a modernizagao excludente ‘As cidades refletem 0 processo industrial baseado na intensa explora- so da forga de trabalho e na exclusao social, mas o ambiente cons- truido faz mais do que refletir. Como parte integrante das caracteristicas que assume o processo de acumulacao capitalista no Brasil, 0 urbano se institui como pélo moderno ao mesmo tempo em que 6 objeto e sujeito da reprodugao ou criagao de novas formas arcaicas no seu inte- rior, como contrapartidas de uma mesma dinamica. Nao é somente o trabalhador do extensivo e atrasado tercidrio urbano informal (e que tantos autores denominaram de “inchado” nas analises comparativas), que habita as favelas, ocupando ilegalmente a terra € langando mao do expediente arcaico da autoconstrucao para poder morar em algum lugar. Nossas pesquisas mostram que até o trabalha- dor da inddstria fordista (automobilistica), é levado freqiientemente a morar em favelas, j4 que nem os salérios pagos pela industria e nem as politicas publicas de habitagao sao suficientes para atender as necessi- dades de moradias regulares, legais (Maricato, 197). Em 1980, 57,3% dos chefes de familia ativos, moradores das favelas de Sao Paulo traba- lhavam no secundério (Taschner, 1993). Trata-se do “produtivo exclui- do” (MNMMR, 1994). A produgao ilegal de moradias e o urbanismo segregador esto, portanto, relacionados: as caracteristicas do proces- so de desenvolvimento industrial — uma vez que o salario do operario industrial nao o qualifica para adquirir uma casa no mercado imobilié- rio legal; as caracteristicas do mercado imobilidrio capitalista— sobre cujos agentes nao pesa nenhum constrangimento antiespeculativo como seria 0 caso da aplicacao da funcao social da propriedade, e também as caracteristicas dos investimentos publicos — que favorecem a infra- estrutura industrial e 0 mercado concentrado e restrito. Aanalise do SFH — Sistema Financeiro da Habitagao e o BNH — Ban- co Nacional da Habitacao fornece um exemplo muito adequado da modernizacao excludente. (Unsresso Na prin 00 Comtausve a “ Criados pelo regime militar, em 1964, 0 SFH € 0 BNH foram estratégi os para a estruturacao e consolidacao do mercado imobilidrio urbano capitalista. O investimento de vultosa poupanga, parte compulséria (FGTS) e parte voluntaria (SBPE) no financiamento a habitacao, sanea- mento basico e infra-estrutura urbanos, mudou a face das cidades bra sileiras, fnanciando a verticalizacao das areas residenciais mais centrais; contribuindo para 0 aumento especulativo do solo; dinamizando a pro- mogao e a construcao de iméveis (0 mercado imobilidrio atinge novo patamar e nova escala); diversificando a indistria de materiais de cons trugao; subsidiando apartamentos para as classes médias urbanas; pa- trocinando a formagao e consolidacao de grandes empresas nacionais de edificacao e mesmo de construcao pesada, nas fara6nicas obras de saneamento basico (Maricato, 1987). Apesar de 0 SFH ter financiado 4,8 milhdes de moradias ou pratica mente 25 % do incremento do nimero de habitagdes construfdas no Brasil entre 1964 a 86 (estimativa), 0 ndimero de moradores de favelas cresceu acentuadamente no periodo, Das 4,8 milhes de unidades resi- denciais, financiadas pelo SFH, um tero foi objeto da promocao piibli- ca (conjuntos habitacionais) supostamente destinados a moradores com tenda menor que cinco salérios minimos. (A “distribuigao” das mora- dias populares foi uma das maiores fontes de troca de favores que con- tribuiu para reeleicdes sistematicas de politicos clientelistas, além de contribuir também para a alta inadimpléncia no pagamento das presta- GOes, j4 que a relagdo de favor nao permitia a cobranca mais rigorosa.) Nunca é demais lembrar que essa politica foi criada e praticada em nome dos desassistidos e que grande parte dos recursos assim utiliza- dos vieram do FGTS, espécie de seguro desemprego que “flexibilizou" as relagdes de trabalho no mercado formal, promovendo a rotatividade no emprego e barateando as demissdes. Sobre esse fundo incidem ju- ros abaixo dos de mercado. Os trabalhadores subsidiaram um dos ca- pitulos mais vergonhosos das politicas pablicas brasileiras, no qual a Corrupsao, 0 superfaturamento e o uso do dinheiro pablico para fins privados se generalizaram. Tudo leva a crer que a extingao do BNH em 1986 e o incéndio do seu arquivo, ento no Ministério da Habita- -MeTRoPOLE WA PRFERA D0 CHETAN ~ ERANIA MAICATO 50 e Desenvolvimento Urbano, nao foram acidentais (Maricato, 1987). A politica praticada pelo SFH combinou 0 atendimento dos interesses dos empresarios privados (construcao, promotores imobiliarios, ban- queiros e proprietarios de terra) com interesses de politicos clientelistas (overnadores, prefeitos, deputados, vereadores), quando nao aconte- ceu de estes fazerem parte daquele grupo. Na verdade essa politica foi fundamental para a estruturacao de um mercado imobilidrio de corte capitalista. Ela constituiu também um dos expedientes de concentra¢ao derenda, uma vez que privilegiou a produgao de habitacao subsidiada para a classe média em detrimento dos setores de mais baixa renda. Durante a vigéncia do regime autoritario essa equagao era clara apenas para 0s pesquisadores académicos que a descreveram em um sem- nero de trabalhos a partir da tese pioneira de Gabriel Bollafi (Bollafi, 1975). A partir do momento em que se deu a instala¢ao regular do Conselho Curador do FGTS, em 1989, 0 qual contou com a participa- lo da bancada de representantes de trés centrais sindicais (Forca Sin- dical, Central Unica dos Trabalhadores e Confederagao Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Crédito), a manipulacao dos recursos de acordo com a troca de favores ficou evidente para o movimento sindical. Os dados detalhados podem ser encontrados nos trés relat6- rios elaborados pela bancada de trabalhadores do Conselho Curador do FGTS, de abril a agosto de 1991. Entre a extincdo do BNH, em 1986, ea instalacdo do novo conselho do FGTS, a administraco dos recursos se deu de forma ilegal. Instado legalmente a responder sobre a situacao dos recursos do FGTS, pelo entdo deputado federal Luiz Ignacio Lula da Silva, o presidente da CEF — Caixa Econémica Federal, Paulo Mandarino, respondeu que, na ocasido, nao tinha como esclarecer a questo j4 que a CEF nao tinha informagdes completas sobre 0 fluxo de caixa dos recursos do FGTS, que administrava, o Estado ga- Combinando investimento piblico com acao regulador: i lista para uma rante a estruturacao de um mercado imobil Unaansno Na penn Do cAaisMD 45 46 parcela restrita da populagao, ao passo que para a maioria restam as opcées das favelas, dos corticos ou do foteamento ifegal, na periferia sem urbanizacao, de todas as metr6poles. Estudando a construcao do mercado imobilirio em Salvador, Maria Brando mostra a articula¢ao entre a nova legislago urbanistica segre- gadora, a quebra da velha estrutura fundiaria, a produgao ilegal da pe- riferia e 0 financiamento do SFH, nos anos 60. Como a cidade passou por relativa estagnagao, resultante das caracteristicas da economia re- gional, a Prefeitura pemaneceu como proprietaria da maior parte das terras municipais até meados do século XX. Até esse periodo a ocupa- a0 de dreas ociosas era consentida e mesmo estimulada pelos proprie- tarios e enfiteutas que buscavam extrair alguma renda dos ocupantes. Com a chegada de alguns grandes projetos industriais & regido, a situa- G40 se modifica. No final da década de 50, a questo fundiaria assume a configuracao de crise politica. O Estado populista intervém ambigua- mente como era de se esperar. Essa atitude vai mudar, entretanto, com © autoritarismo do regime militar. Em 1968 é aprovada lei municipal que “abriria a aquisi¢ao particular em propriedade plena milhées de ‘metros quadrados de terras municipais”. Acompanhava o projeto de lei arrazoado técnico fundamentado no “desenvolvimento da cidade” E esgotam-se 0s vazios — terras devolutas, terras publicas, terrenos com donos ausentes, terrenos de posse pouco esclarecida — passados a outras maos. Solda-se assim toda a estrutura de controle privado do solo, sem deixar brechas, exceto escassas reas ainda sob controle pii- blico com destinagao prevista (Brando, 1981). Complementando o processo de monopolizacao da terra, ou de parte dela, a parte que interessava, os governos investem em infra-estrutura, especialmente a vidria, a qual dara condicdes indispensaveis para 0 acesso e para a realizagio da renda fundisria Nos anos 70, ainda segundo Brandao, metade dos domicilios da cida- de so construgdes ilegais. As mudangas na estrutura fundiaria e a aber- tura da rede vidria produziram, paradoxalmente, a escassez. MeraGrote na extn Do CARAS ~ Ex, MARCATO Outro fato que, ao lado da criacao do sistema SFH/BNH, foi paradig- matico para modernizacao nas relacdes de producao do espaco urba- no € que, ao mesmo tempo, acarretou o crescimento de favelas foi a promulgacao da Lei federal 6.766, em 1979. Achamada Lei Lehman estabelece regras para parcelamento do solo urbano, Apesar da concep¢o embasada em anilise correta, 6 0 tipo de acao reguladora que acarretou significativa restrigao da oferta de mo- radias para a populagao trabalhadora. O loteamento ilegal, combi nado a autoconstrucao parcelada da moradia durante varios anos, foi a principal alternativa de habitacao para a populacdo migrante instalar- se em algumas das principais cidades brasileiras. Dessa forma foram construfdas as imensas periferias de Sao Paulo e Rio de Janeiro. (Até a década de 70, a favela nao representava alternativa importante para a populagao pobre em Sao Paulo, como acontecia no Rio de Janeiro. No final dos anos 80 podemos dizer que tanto a favela cresceu de impor- tancia em Sao Paulo como o loteamento ilegal no Rio de Janeiro.) £m 1981 a Secretaria Municipal de Planejamento de Sao Paulo identi- ficou 3.567 loteamentos ilegais, ocupando 35% da area do municipio. Em 1989, apés oito anos de uma politica assistematica de regulariza- 0, com a utilizacao da nova lei, a Secretaria de Habitacdo e Desen- volvimento Urbano do municipio constatou a existéncia de aproxima- damente 2.600 processos de loteamentos ilegais onde vivem perto de 2,4 milhdes de pessoas. ‘Apoiada pela luta de movimentos de moradores de loteamentos irregu- lares, a Lei federal 6.766/79 atende a uma reivindicagao popular: cri- minalizacao do loteador “clandestino”, possibilidade da suspensao do pagamento para efeito de viabilizar a execugao de obras urbanisticas e atribuigdo, a0 municipio ou Ministério Pablico, da representacio das. comunidades por meio do interesse difuso. A lei contribuiu para a mobilizacdo popular e a politizagao do direito de aco como destaca Miguel Baldez (Baldez, 1986). E nossa hipstese entretanto que, em Gl- tima instancia, ela contribuiu também para o fortalecimento do merca- do capitalista formal e para a segregacao ambiental, ao evitar que a Unsreasino NA Pere Do CARMI a 48 terra urbana, bem cada vez mais escasso nas metr6poles, fosse parce- lada irregularmente (mercado informal) por causa de exigéncias urba- nisticas e burocraticas. De modo geral as leis municipais de parcela- mento do solo so mais exigentes do que a lei federal. Mas ela trouxe a novidade da criminalizacao do loteamento ilegal. Hé evidente correlacao entre a diminuigao da oferta de lotes ilegais no ‘municipio de Sao Paulo e a explosao do crescimento das favelas. Du- ante o periodo de 1989 a 1992 a Prefeitura de Sao Paulo aprovou o des- prezivel ntmero de dois projetos de loteamentos residenciais por ano, € todos se destinavam a classe média ou de nivel de renda superior. Apesar das intengées louvaveis, a Lei 6.766 56 conseguiu entravar, no dia-a-dia, as negaciagdes e interacées que tinham fortes motivagdes légicas para ser como eram. Resultado: o parcelamento desenfreado de franjas e periferias parou, é bem verdade. Em compensacao, nao se esta registrando qualquer indicio de ocupa¢ao e adensamento de va- ios intermedirios. Se nao estio mais sendo oferecidos lotes irregula- res e desprovidos de servicos e infra-estrutura aos pobres, também cessou de haver alternativas. A médio prazo ha grandes ameacas de colapso, pois $6 esto restando as intervengdes oficiais, que so minimas, e as favelas, relativa novidade longe dos nacleos dos grandes aglomerados (Santos, 1986, p. 10). Mas € preciso acrescentar também que nem a abertura de loteamentos ilegais estancou totalmente apés a promulgacao da Lei federal 6.766/ 79, nem se tem noticia de que os poderes piblicos se esforcaram em sua aplicagao rigorosa, Talvez o esgotamento de terra pouco valorizada no municipio de Sio Paulo, que é central na regido metropolitana, tenha contribuido mais para a queda da oferta de loteamentos ilegais do que a propria lei. Esse exemplo mostra claramente que 0 avanco das relacdes formais capitalistas trazem no seu bojo, no processo de acumulagao brasilei- 0, a exclusio. O loteamento ilegal, predatério ao meio ambiente e (Mertcrote a PER D0 CAPTALSHO ~ ERIN MABiCATO que acarreta deseconomiay profundas para as metropoles brasileiras, uma vez que promove ocupacdo extensiva sem servicos, infra-estru- tura urbana ou Areas livres, era (e ainda continua sendo nos muni pios periféricos das metrépoles), a forma de acesso do trabalhador pobre a propriedade urbana. A lei fechou essa alternativa que est muito longe de satisfazer requisitos satisfatorios de qualidade am- biental, sem que outra fosse aberta. Por outro lado ela assegura que 0 estoque de terras ainda existente fique submisso a producao capitalis- ta formal. Esta envolve a participacao de diversos capitais: incorpora- dores, construtores e financiadores, ao passo que no parcelamento ilegal participam apenas alguns personagens pré-modernos: 0 pro- prietério de terra e 0 loteador, mais freqiientemente. O mercado tam- bem nao é mais 0 mesmo (massa de trabalhadores pobres), mas sim compradores com poder aquisitivo para pagar o que a lei e uma me- thor localizacao exigem. Num processo de urbanizacao assim engendrado, a exclusdo é estrutu- ral, o que exige teflexao mais aprofundada sobre o papel da regulacao urbana na construgao da cidadania ou da qualidade ambiental urbane para todos. O fim do desenvolvimentisma: globalizagao e violéncia nos anos 80 O Estado e seu projeto desenvolvimentista dos anos 30/50 estao mor- (os Fiori, 1994, p. 143). De 1981 2 1992 o PIB cresceu 1,3% ao ano ao passo que o crescimen- to populacional foi de 1,9%. O crescimento da informalizacao na rela- 0 de trabalho tem correspondéncia direta com 0 desempenho econémico nacional. Do inicio ao fim do periodo, cai o némero de trabalhadores com carteira assinada nas seis principais regides metro- politanas do pafs e cresce o ntimero de trabalhadores por conta pro- pria. Em So Paulo, cidade com menor grau de informalidade nas relacdes de trabalho, havia em 1982 aproximadamente 64% da popu- (Urmeso NA Pun 00 CATAL 9 50 lagdo ocupada com carteira assinada. Em 1992 essa relacdo é proxima 2 58%. Os trabalhadores por “conta propria” compunham aproxima- damente 5% no inicio do periodlo considerado e aproximadamente 20% no final. Segundo Jo3o Saboia, de quem extraimos os dados aqui utili- zados sobre mercado de trabalho, independente da regiao do pais, a evolucao do mercado de trabalho nas metrépoles apresenta configura~ go semelhante, (..) com a substituicdo de empregados com carteira assinada, por em- pregados sem carteiras e/ou trabalhadores por conta prépria, em perio- dos de recessao e comportamento simétrico em periodos de recuperacio (Saboia, 1993, p. 7). Saboia chama atencdo para 0 dinamismo do mercado de trabalho no Brasil, demonstrado pela capacidade surpreendente de absorgao da PEA — Populacao Economicamente Ativa, e pelo baixo nivel de de- semprego aberto (em torno de 6% em seis regiGes metropolitanas). Esse comportamento do mercado de trabalho difere bastante do que ocorre ‘nos paises de economia desenvolvida, em que o quadro é mais estatico € 0 desemprego aberto maior. O fim dos recursos externos no final dos anos 70 € o inicio do paga- mento da divida externa marcaram 0 comeso da recessao. Outro dado da conjuntura internacional, a elevagao da taxa de juros (0s emprés- timos foram feitos a juros flutuantes) causou forte explosio da divida brasileira. De 1983 para 1992, ela cresceu de US$93,5 bilhées para US$135 bilhdes, apesar de o pais ter desembolsado US$67,7 bilhdes como pagamento. De 1981 a 1989, a concentragao da renda continua a se aprofundar, seguindo a tendéncia apontada: DISTRIBUICAO DA RENDA — BRASIL 1981/89 ‘50% mais pobres.. 10,496 da renda 01% mais ricos... _17,3% da renda Fonte: Prad/BGE. [Mernorott na FERRER 0 CARMAN - ERuta Mascaro

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