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JERUSA PIRES FERREIRA Cultura e memoria O PENSADOR DE TARTU Em novembrode 1993, foi sepultado em Moscou um dos mais importantes pensadores das ciéncias sociais deste século. aquele que levou a pequena cidade de Tértu, na Est6nia, onde vivia, a ser cogitada como espécie de Meca do pensamento semistico, da reflexio renovadora sobre comunicagto, arte, sociedade. ‘Os jornais italianos que noticiaram e comentaramo fato destacaram a noticia presta- ram comovidas homenagens a Lotmane, no suplemento de cultura de La Repubblica (1) (29/10/93) ocupando uma pégina inteira,1¢-se,sobotftulo “Aquele Homem Formal”: “lini Mikhailovich Lotman que, a primeira vista, parecia com as velhas fotos de Einstein, devia dar-se conta disso. S6 que havia uma diferenca, Em vez.de ser um gtnio da fisica 0 era das Ciéncias Humanas, e para ser mais preciso, da Semidtica”. Nesse tom, dé-se conta do seu falecimento depois de prolongada enfermidade, aos setenta ¢ um anos, do mesmo modo que é referido 0 fundamental rigor com que ele desenvolveu seus modelos interpretativos, €,comosemioticista, apoiou-se num terrenohist6rico, filolégico, textual,no qual mantinha bem firmes os pés. Af mesmo se diz: “Na primavera passada, Foltrinelli publicou de'Lotman‘A Cultura e a Explosfo’, um ensaio, com muito sucesso. Mas quando em 1958 saiu seu grande estudo sobre Andrei Sergeievic Kajsarov ea luta socioliteraria de seu tempo, bem poucos prestaramatencao aojovem docente de Tértu. E, noentanto, o primeiro volume dos trabalhos de filologia eslava e russa, saindo no mesmo ano na mesma série da Universidade de Tartu, pode revelar retrospectivamente, qualquer que fosse a diregdo que andavam tomando resullando as pesquisas, aquele grupo de estudiosos da literatura russa. Os historiadores da semiologia soviética fazem remontar 0s comegos a um semindrio de 1962, e en- ‘quanto corria nas paginas das revistas soviéticas um debate sobre literatura ¢ cibernética (e de fato bastante preso 4 contraposigo ideologia x cincias exatas), em 1964 se realiza o primeiro Seminario do Verdo sobre ossiste- ‘mas modelizantes secundérios, cujos materiais eram recolhidos em volumezinhos artesanais, com as ridfculas tiragens de 250 500exem- plates, J6 no segundo, de 1966, o comité organizador (Lotman era JERUSA PIRES FERREIRA 6 protessora da ECA-USP @ da PUC- SP. E autora de, entre af o redator responsdvel) podia escre- ver: “Em dois anos, o desenvolvimento dascitnciasde mbitosemistico progre- div, de modo significative, Muito daqui- Jo que soava como pioneiro ¢ audaz foi aceito ou pelo menos bastante difundi- do’. Naqucles anos, imediatamente de- pois da queda de Khrusch6v, poderia parecer despropositadofundarna Riissia umaciéncieque,acertando ascontascom ‘omethorpensamentomodemo,simples- ‘mentendose punha interrogagdes sobre sua compatibilidade maior ou menor com o marxismo-leninismo (uma carac- teristica de grupo eraser-constitufdo por pessoas da mais heterog@nea posi¢ao ideol6gicac religiosa,equantoaLotman, le foi membro do Partido até 1942). A capa dos Semindrios de Verdo tinha titulo em grego Semiotiké, a mesma que desde 1964abrigava a série de trabalhios sobre sistemas signicos, inaugurada por um volume de Lotman: Ligdes de Poéti- co Estruturat; aqueles que se seguiram foram miscelaneas, sempre mais cons- tantemente repartidas entre os varios campos de indagagdo: 0 mito, folclore religido, semidtica da cultura, semi6tica da arte, poética, Um grande sigma logo apareceu na capa de uma refinada série da casa editorial moscovita Iskusstvo, dedicada aos estudos semidticossobre a teoriadaarte, quenoanode 1970¢inau- gurada com a “Postica da Composicao’ de Botis Uspénski, professorda Univer- sidade de Moscou. Outros colaborado- res fixos dos semindrios e trabalhos de Tértucramde Leningrado, por exemplo Boris Mylack, ¢ além disso Lotman ti- nha estudado ali. Nos anos seguintes, alguns volumes de Semiotiké foram de- dicadosaalguma personalidaderussado passado recente, que tinha marcado os estudos russos sovidticos de Teoria Hiist6ria da Cultura. 1971 - Emmeméria de Viadimir Propp;1973- Mikhail Bakhtin, 1975- PiotrBogatinév, marcandoassimum ‘mapa dos principais pontos de referéncia da Escola de Lotman, certamente a0 lado da tradiglo dos formalistas (Chilovski, ‘Tynianov) e uma linha genética, aguda- mente identificada por D'Arco Silvio ‘Availe que, em 1980, preparouum nme ro memorivel de ‘Strument Citic!‘ dedi- cado a cultura de tradigio russa dos séeu- los XIX eXX, que provém de Potebni e ‘Vesselévaki, passando por Baudouim de Courtenay, Rornan Jakobson ¢ Nikolai Trubersk6i” (2). Na introdugo a um dos mais recentes livrosdetrabalhosde Itri Loman, Universe of the Mind (3), ao apresenté-lo e, situando sua dimensfo e o alcance de suas teses, co- menta Umberto Eco que seus trabalhos vio da andlise dos fenmenos culturais,como 0 uso dos jeans, As observagdes sobre demonologia, da leitura de textos poéticos, da consideragao dos problemas da inter- pretacdo até incursdes nos dominios da matemitica ¢ da biologia. Alias, o prefécio se Eco 6 importante para situar, com clare- za,a atuagao de Lotman e fazer um peque- no mas agudo histérico dessa aventura des- bravadora num todo. Recentémente, e em sua homenagem, escreveu V. V. Ivanov (4) que Lotman éum capitulo inteiro da hist6riada cifncia,desta- sando sua luta continua contra o ¢stabliskment, apontando ao lado de seu herdico papel de batalhador por novasidéi- 3s 0 profundo senso de humore a devoro aciencia e A literatura. UMA TIPOLOGIA DA CULTURA Atesecentralde Lotman,emmatériade tipologia da cultura (5), uma de suas pro- postes, é ade que é possivel adotar,a priori, como quadio de classificagio dos eédigos da cultura, sua relagdo do signo aos signos ¢ aos sistemas de signos -e que a sucessio de e6digosdominantes da culturaseré,a0mes- mo tempo, uma penetragdo, cada vez mais profunda, da consciéncia cultural coletiva, ‘nos prineipios que regem os sistemas de sig- nos. Aproximando, de modo exemplar, Cultura, Hist6ria, Comunicagdo, enquanto procedimentos semidticos, ele nos instige: “A cultura no é um depésito de informa- gdes;€ um mecanismo organizado, de modo exiremiamente complexo, que conserva as informagdes,elaborandocontinuamente os procedimentos mais vantajosos e compati= veis. Recebe as coisas novas, codifica ¢ decodifica mensagens, traduzindo-as a um outro sistema de signos”. ‘Ao abordar cultura como informago, ele nos deixa passar por algumas idéias vi- vas, como por exemploa de que a culturaé Revista USP. Sto Paule (24)* 114-120. desembrsifevereire 1994195 © mecanismo complexo ¢ dictil da consci- tncia eque o ambito dacultura 0 teatro de uma batalha ininterrupta de ténues desencontros e conflitos de toda ordem, lu- tando-se pelo monopélioda informaglo. E af nos diz que definir a esséncia da cultura como informagao significa colocar 0 proble- marelacional entre acultura eascategorias fundamentais de sua transmissdo ¢ conser- vagio, € as nogdes de lingua ¢ texto. O seu conceito de texto cultural, muito difundido ¢ 20 mesmo incorporado na linguagem uni- versitéria, fala'da cultura como um sistema designos que organiza de um modoe naode outro as informages recebidas. Assim. que ela no se contrapse & natura mas a nio- cultura, aqueles conjunios cujos pressupos- tos de organizagio experimentam uma ou- tra ordem, ouseja,a desordem. A cultura € tum feixede sistemas semnidticos (linguagens) formalizados historicamente e que pode assumit a forma de uma hierarquia ou de ‘uma simbiase de sistemas autonomos. ‘Traduzir um certo setor darcalidadeem linguagem, transformé-1a num texto, isto ¢, numa informagdo codificada de um certo modo, introduzirestainformagaonamemé- ria coletiva ¢ para ele um ponto fundamen- tal. Num crescendo, vai nos mostrando que culturaé informacio, codificacdo, transmis sli, meméria, e conclui, de forma a ao deixar lapsos: somente aquilo que foi rradu- zido num sistema de signos pode vir a ser patrimbnio da meméria. Neste sentido foi muito importante a publicacao no Brasil de dois dos textos de Lotman em Semiética Russa (6) - “Sobre 0 Problema de Tipologia da Cultura” e “So- bre Algumas Dificuldades de Princfpio na Deserig&o Estrutural de um Texto”; no pri- meiro, nos é passada, com bastante clareza, a nogdo fundamental de eSdigos principais ¢ secundirios que permanecem ¢ se reite- ramnacriagdodenovostextos. Alids,essaé, de certo modo, a base de uma avaliagto do sistema adaptative que venho fazendo no universo da literatura oral, quando compa- roa passagem de matrizes impressas as cri- ages orais, Lotman nos passa importan- tes tomadas, rumo & percepgio, ¢ sedimenta seu conceito de texto tinico, a0 referir-se a0 grande texto oral e popular: “Antes de mais nada é preciso notar que qualquer texto cultural pode ser examin: dotantocomo uma espécie de texto tinico ‘com um c6digo tnico, quanto um conjun- tode textos com determinados conjuntos de cbdigos correspondentes”, ele nos diz, CULTURA E MEMORIA ‘OU CULTURA E MEMORIA Lotman afirma queacultura,em essdn- Gia, se dirige contra o esquecimento. Seu pensamento parece estar muitas vezes par- tindo de uma dialética, que aliés tem preo- cupado muitos pensadores da Cultura e da ‘Arte: a meméria ¢ sua contrapartida, 0 €s- quecimento (7). Entram em consideragao os barradores, 0s elementos que propiciam a lembranga, os virios tipos de lembranga, as ostratégias € os impasses que geram 0 esquecimento. Assim, Freud, Lacan, Lévi- Strauss, Vernant, Zumthor, cada um a seu modo, trouxerem importantes contribui- ‘goes. Recentemente foi realizado em paris um semindrio, “Politicas do Esquecimen- to”, em que Paul Zumthor, num rico texto, ‘consegue recuperar algumas importantes formulagdes de Lotman e Uspénski, perqui- indo os mecanismos de selegdo ourejei¢do dasinformagbes,no grandetextoda memd- ria de um grupo. © proprio Paul Zumthor nos fala de uma energiaimemorial ese apro- xima bastante de Lotman, 20 seguir os mo- dos pelos quais a comunidade expulsa os clementos indesejéveis ¢, mais claramente, ele nos lembra que 0s dois semioticistas, esbogando os principios de uma tipologia da cultura, enfatizam de que modoo esque- cimento¢ummecanismo exploradopor uma instituigdo hegemdnica, tendo em vista ex- luir da tradig&o os elementos indesejaveis da meméria coletiva. E é interessante ver como af o esquecimento pode se transfor- ‘marnummecanismodememsria pois"“uma cultura concebe-se a si prépria como exis- tente, identificando-se com asnormas cons- tantes da propria meméria”,sendoqueeles Constatam e nos passam a nogdo de que'a continuidade da meméria ¢ ada existéncia nesse caso coincidem. Acobservarastrans- formagdes sociais ¢ ao discorrer sobre os mecanismossemidticos da cultura, fala-nos, por excmpio, Iuri Lotman, da decidida cle- vagao de semioticidade do comportamen- to, oquesepodeseguirnatransformacaode nomes, marcas, efc., mostrando que a lita contra velhos rituais poderd assumir um cardter duplamente titualizado ¢ Revista USP, Sto Paulo (24): 114-120, derembrolfevereire 1994195 semiotizado. Entdo vé a cultura, enquanto memsria nio-hereditéria (sic) da comuni- dade, expressanum determinadosistemade interdigdes e de prescrigbes. Num 6timo texto sobre os mecanismos semidticos da cultura (em Tipologia della Cultura) surge uma definigao desta como a Memoria da Coletividade pondo-se em ter- mos gerais 0 acompanhamento de como a experiencia da vida do género humano se faz cultura. E, nessa ordem de raciocinio, ‘nos diz. que o problema da cultura, enquan- tomecanismo voltado para a organizagioe conservacao das informagoes, ¢ 0 da longevidade. Convida-nosentaoadistinguir alongevidade dos textos na meméria cole- tiva cados cSdigosina memsria scletiva das comunidades. Toda cullurase criacomoum modelo inerente a duracdo da propria exis- téncia, nos diz, ¢ & continuidade da propria meméria. Emtal sentido, todo texto contri- bui tanto para a memoria como para 0 es- quecimento. E um texto nao é entdo a “re- alidade” mas os materiais para reconstruf- ta, J6.0.csquccimento se realizaria também em sentido contrario. A cultura exclui,em continuacao, no proprio Ambito, determi- nados textos, levando cm conta todos os ti- pos de injungao. Instiga-nos ainda uma vez, quando nos, lembraque a hist6ria intelectual dahumani- dade (¢ cu acrescentaria a da criagdo, seja popular ounao)se podeconsiderar wma ina pela memdria. A origem da hisi6riac, antes, do mito como detorminado tipo de consci- éncia € uma forma de meméria coletiva. E emtal sentido, mostra-nos como sao impor- tantes as crdnicas medievais russas, que re- presentamummodo extremamenteinteres- sante de organizar a experiéncia historica de uma coletividade. A cronica era, na tea- lidade isomorfa,como nos afirma,e oregis- tro anval do fatos consentia construir um texto, sem limite final, que se acrescia, continuamente, ao longo eixo do tempo. A nogdo de fim trazia um toque escatolégica, que vinha coincidir com aidéia fixade tem- po, isto €,0tempoda terra. A modelizagao fundada sobre princfpios de causa ¢ efeito trouxe, no entanto, o fim do texto ¢ 0 faz passar da crOnica a histéria ¢ ao romance. Fala-nos que a transformagao da vida em texto nfo é interpretagio masa introdugo deeventos na memériacoletiva, Lotman ve ostextos de crdnicas ¢ daquilo que conside- ra seus contiguos, como inscrigdes, signos comemorativos, etc., como 0 préprios sig- nos da existéncia. E ent&o que nos fala da capiagdodomundo, mediante sua transfor- mago em texto.cultural. ‘Comenta que, em tal sentido,no entan- to, todo texto contribui tanto para amemé- tiaquanto para oesquecimento, que poderé realizar-se de formas diferentes. Ao notar que se excluem da cultura, em seu proprio Ambito,determinados textos, verifica-se que a hist6ria desta destruigdo, de sua retirada da reserva de meméria coletiva, se move paraiclamente & criagio de novos textos culturais. E-¢ interessante observar esta di- nfimica recriadora Mas 0 que fica cm varias passagens res- saltado 6 que de um modo ou de outro a cultura se dirige contra 0 esquecimento. Vive-o, transformando-onum dos mecanis- mosdamemdria. Porconseqeacia,podem- se criar hipoteses sobre precisas limitagdes no volume: da meméria coletiva que deter- minaram a substituigd0 de uns textos por outros. Mostra queexiste umprofundo abis- moentreo esquecimento enquanto clemen- tode meméria e enquanta instruments de destruigo desta moméria, Ocorre levar em conta que uma das formas mais agudas de luta social na esferada cultura ¢ aimposigao de uma espécie de esquecimento obrigaté- rio de determinados aspectos da experitn: ciahistorica. E claro que estaafirmacao tem deserrelativizada,ché dese pensar que nao existe passividade que acolha um “esqueci- mento obrigatério”, imposto por um siste- ma politico oupelacomunicaglodemassas. Retomando o ponto de vista de que a continuidade da memériaé a da existéncia, pensa que cultura ¢ a memoria longeva de umacomunidade,considerando acapacida- de de mudar elevando em conta osestados precedentes. Distingue nessa ordemde idéi- aso-aumentodovolume de conhecimentos, a redistribuigio, quando h4 uma mutagao do conceito daquilo que € um “fato memorizével”, € a valorizagao hierérquica daquilo que € registrado na meméria, Oesquecimentoseriaa terceiractapada seqUencia. A transformagiodetextosnuma cadeia de fatos ¢ acompanhada inevitavel- mente dasclegdoedafixaao de determina- dos aspectos a serem mantidos. © que depreendemos, ¢ que nos serve pararefletirsobre uma série de quesiSescom que nos vernos as voltas, €a idéia de que ha umesquecimento que nioé pardialéticoda lembranga, aquele que € nflo-cultura, mas que €desordem e fragmentacto, Perde-se a nogdo de nicleo e de unidade. Depois de nos ter feito perceber a din&mica damobili- dade, chegamos & conclusio de que um dos conceitos em que se firma 0 textocultural é © da unidade. e Lotman chega a nos falar que acultura necessita de prineipios de uni- dade,¢ para colocarem ato sua fungiosoci- al hd de se apoiar numa trama de principios construtivos unitérios. A Semidtica da Cultura ndo consiste apenas no fato de que a cultura funciona ‘comoum sistema de signos. E arelagao sig- nofsignicidade que representa uma das ca. racteristicas fundamentaisda cultura, eq valendo a um mecanismo que cria um con- junto de textos. Prosseguindo, ¢ muito inte ressante a nogdo traduzida por Lotman de que acultura nose contrapdc aocaos mas aumsistemade signosoposto, porexemplo, aquele que opie ao santo 0 anticristo. O diabo é para ele 0 falso cordeiro, o guia da malvasia, Na Idade Média, cle vé uma cor- relagdo espetacular entre aquilo que era considerado correto € o errneo, portanto ‘08 textos repudiados sio-exatamente os tex- tos sacros aos quais foi aplicado um sistema de substituigdes antitéticas. A questiocvo- ca diretamente 0 caso das oragbes 20 con- trétio, o credo As avessas que constatei, a0 estudar 0 Livro de Sdo Cipriano (8), como forma de intensificagéo de sentido, o pro priotemadaconverstioreligiosa(turco-cris- t8o, pecador-santo, herege-converso, etc.). Ointeressante ¢ também a identificagdo de Apoloaodiabo,eadefiniciododiabocomo ‘0 ser malévolo que resolve consciente ou inconscientemente 0 seu poder sobre 0 ho- mem, Numa criativae instigante seqléncia, traz-nos Lotman a vozde Santo Agostinho, definindoodiabocomo uma forgacega,umia entropia dirigida objetivamente contra hamem, por causa de sua fraqueza rincia, E assim, para ele ¢ em sua interpre- 1aga0, 0 diabo € aquele que se contrapde & cultura, Em outro sentido, e se fugissemos desse dualismo escravizante, o diabo pode- gerar cultura, em sua rebeldia € irreveréncia. Mas continuando com as ra- zéesde luri Lotman,aestruturahierérquica de uma cultura se constr6i como uma com- binacao de sistemas altamente ordenados e Reis de sistemas que admitem um grav varie de desorganizacao, Se, diz ele, um modelo nu- clear do mecanismo da cultura fornece um sistemasemistico perteito que apresentaos nexos estruturais de todos os niveis, ou melhor, se fornece © maximo posstvel de aproximagao dquele “ideal” nas condigies historicas dadas, entdo as formag&es que © Gireundam podem vir construfdas como cul- turas que violam os niveis de tal estrutura ¢ ttm necessidade de umaconstante analogia com 0 niicleo. Esta construgéo ndo-finita, estaordenagioincompletadacultura,éuma condigao de seu préprio funcionamento. Diz-nos,ento, que otexto nao é@apenas © gerador de novos significados mas um condensador de meméria cultural, e que 6 ‘sempre para quem percebe a metonimia de umsentido integral reconstitiuido,um signo discreto de esséncia ndo discreta. Ele nos fala também, ¢ afjé.em fase bem adiantada de sua obra, que hé todo um espago de sig- nificagSes que o texto incorpora das rela- Bes com a meméria cultural (tradig&o) jé formada na consciéneia de quem ouve ou ve. Como resultado, nos diz, otextoadquire vida semidtica. Refere-se tambémao fatode toda cultu- ya ser constantemente bombardeada por textos isolados que caem como um chuva de meteoritos ou de invasdes disraptivas, € parece que, procurando romper oesquema iddico em que muitas vezes se deixa aprisio- nar, consegue ver rio processo de criagao, dentrode uma cultura, uma reservade dina- mismos. Afirmaque otexto temeapacidade de acumulacao e reserva de meméria, con- seguindo exemplificar de modo primoroso: hoje Hamlet,diz ele, nioé apenas umapega de Shakespeare mas é a memdria de todas as suas interpretagdes e, ainda mais, a me- mdria de todos os eventos histéricos que ‘ocorreram fora do texto mas cujas associa- gdes a pega de Shakespeare pode evocar. ‘Tudo conta, o que sabiam os coetineas ¢ 0 que aprendemos desde entio. Assim é que nos lembra quea comunicago com outrem 86 € possivel se hé algum grau de memoria comum, ¢ um texto se definte pelo tipo de memiria que ele necessita para ser entendi- do. Reconstruindo 0 tipo de memétia co- ‘mum que partilhamo texto e seu consumi- dor, descobre-se a imagem daleituraescon- dida nele. A antitese da simples memoria comum a todos os membros de uma comu- USP, Sao Paulo (24): 114-120, desembrolferercire 1994195 8 Quw1o 4 Sto Coriano So aso, Purepectra, 1002 ne nidade A meméria extremamente individu- alizada de uma pessoa particular pode ser ‘comparadaa relagacdiscurso oficial/discur- ‘so fntimo. Otemiadequemeocupoagora,odapres- suposigdode umaespéciede memériaicdnica, seja.a captacio de representages visuais na oralidade, tem em Lotman seu apoio, na medida em que ele organiza os prinefpios de uma “ret6rica iodnica”. A transformagéo do mundo dos objetos em mundo dos signos funda-se,dizele,napressuposichoontaldgica deque 6 posstvel fazernéplicas: que aimagem Tefletida de uma coisa recorta-se de suas as- sociagies prticas (espago, contexto, inten- lo, etc.). Ao dizer que uma palavra oral & muito mais icdnica do que na lingua escrita, fala-nos, de falo, de uma palavra visivel,sen- do queo textoserealizanum espagoicbnico. Discemea tradigdocomoumsistemadetex- tos, preservados na meméria dc uma dada cultura, subculturaou personalidade,emos- tra que-a geraco de novas significagbes é a mais importante tarefa dos textos no siste- ma cultural, raciocinio provocante e alicia- dor. Parte entéo para confrontar o sistema do criador ao sistema do leitor ou do recep- tor do textocultural, distingdobasica sobre- tudo quando se leva em conta a mobilidade estes e a integracdo possivel dos varios sis- temas. Detecta 0s iposem queseconcentra um alto grau de semioticidade c aos quais se relacionam alguns conccitos: o santo, 0 ¢a- valeiro, 0 louso. Scsiaimposstvel dar conta dariqueza da contribuigdo de Lotman, sobretudo nas nuances do relacionamentocoletivo/indivi- dual. Ele observa, por exemplo, que rium texto irdo trabalhiar dois mecanismos: um deles servird paramanterna conscigncia do receptorou do auditério ameméria de uma certa organizagéo tradicional do texto, for- necendo-Ihe com isso alguma estrutura es- perada: 0 outro ird destruir essa estrutura, dessemantizando a percepgioe constituin- do 0 individual. Como o faz Paul Zumthor, niodescarta emsua observacdoa mobilida- de dos sentidos e a nogio de tuta na violentago dos oédigos. Chega a nos falar, ‘em seus trabalhos mais recentes, de {ndices energcticos, propondo que, ao analisar a ‘obra de arte, se atente para esse momento encrgético, Nao estaria muito distante de Walter Benjamin,convidando-nosa pensar atensdocriadoracomoa superagiode algu- ma distAncia semintica, concluindo que quanto maior for esta distAncia mais alto indice energetico do texto, Universeofthe Mind(9)éumlivroprovo- inteligente e, sintomaticamente, se divide em tts partes. Na primeira, procura entender os textos culturais em seus meca- nismos narrativos como “géneros”, aprofundando nogtes para o entendimento dos modos de ser da comunicagiio, Particu- larmente inovadora 6 reflexio sobre 0 dis- logo, que discute as processos de autocomunicago,odidlogointerno,molada linguagem dialogada e da propria criagio. A segunda parte é aquela que cle denominade semiosfera,conceito queinaugura umasinte- se de algumas das formulagdes esparsas so- bre tempo etugar. Alids, Paul Zumthor vem também se interessando por esta dimensio, ¢ de tal forma intensifica sua busca, que aca- bade publicar La Mesuredu Monde (10),um belo texto de quinhentas paginas, tratando, soseumodo estapreocupagiaretomadapela pottica dos tempos-cspagos. Também Aron Gurevitch (11) que em suas Categorias da Cultura Medieval, inevitavelmente, se preo- cupa como o fizera Bakthin, a0 criar seus cronotopos, com os temposiespagos na semioticidade delinguagens criadas. Nocaso de Lotman, a semiosfera abriga 0 espaco seiisticoe os desenvolvimentos dosimbsli coc da trama, no espago geografica ¢ social. Afseredinem, com felicdade, osemioticista cohistoriador. Na terceira parte, que ele denomi “Memoria Cultural, Historia ¢ Semidtica”, concentra, de fato. a observagdo numa pre- ocupagioqueé,emgeral, adossemioticistas criticos em relagdo ao préprio percurso: a insergdo do diacrOnico na estrutura. ‘Vencendoosdesafios, superando-te asi mesmoa.adapasso,quer ratedomedicvo, do iluminismo ou do confronto entre am: bos, nas dé este pensador, a partir de suas prépriss conting&ncias, algumas respostas fundamentais para se pensar os modos de ser dos passos que nos norteiam, a'constru- ‘Glo e a desconstrugio do que se mantém ¢ renovae do que se esfacela ¢ se perde. Ao ligar Cutnera © Mernoria faz-a sintese que se ajusta a um pensar que se transmite, ¢ fora do qual sé se encontram estilhagos. A Hu- manidade, imorsa cm seu espago cultural, sempre criaem tornodesiumaesfera espa- cial organizada, € o que ele nos lembra Revista USP, Sto Paule (24): 114-120, deaembrolfevereire 199495

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