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JONATHAN CULLER Sobre a Desconsirugao Teoria ¢ critica do pés-estrufuralismo Tradugto PATRICIA BURROWES & orton Rosapos, ‘Tero, CPs Citogsonaeate Singsio Nasal doe Ets do Los, RL Calg, Jonathan carts Steven dent tarin rin do ‘tvtime fTonthon Culler, wadugto de Patten Burowes ~ Rode ane Rca Rest sos Tenpos, 197 Teadgia de On decors Tact biogata TSN #5979038 on theory and 1, Deseonstroao (Literatura). 2. Critica wera Ta, cop - 40195 wreas b0- #209 ‘Tilo original ineles ON DECONSTRUCTION: THEORY AND CRITICISM AFTER STRUCTURALISM Copyright © 1982 by Cornell Univesity Direitos exslusivos de publicagao em lingua portuguesa adquirdos EDITORA ROSA DOS TEMPOS ‘Um sel da DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIGOS DE IMPRENSA S.A. Rut Argentina 171 — Rio de Jair, RI’ 20921-380 ~ Tel: $85-2000 ‘que se reserva a proriedadeIterria desta tradugao impresio no Brasil ISBN 85.01-01388-5 PEDIDOS PELO Ri Caixa Postal 23,052 Rio de Jancro, RJ ~ 20922-970, MBOLSO POSTAL, Sumario Nota do Autor 7 Apresentagdo @ Edigo Brasileira 9 Prefécio 13 Introdugdo 21 Capitulo Um — Leitores e Leituras 39 1. Novos Destinos 39 2. Lendo como Mulher 52 3. Histérias de Leitura 77 Capitulo Dois — A Desconstrugio 99 1, Escrita e Logocentrismo 104 2, Sentidoe Iteragio 127 3. EnxertoseEnxerto 154 4, Instituigdes e Inversdes 179 5. Conseqiiéncias Criticas 206 Capirvro Trts A CRITICA DESCONSTRUTIVA Adiscusstio das implicagdes da desconstrugo para a critica literéria identificou uma série de possiveis estratégias e preocupagies, desde a austera investigacdo de como as hierarquias filos6ficas séio sub- vertidas no discurso literério até a busca de conexdes estabel por substituigdes de significantes & maneira da criptografia do Ho- mem dos Lobos. Uma vez que a critica desconstrutiva nd é a ap! cagiio de ligSes filos6ficas aos estudos literérios, mas sim uma ex- ploracio da I6gica textual em textos chamados literétios, suas possibilidades variam, e os comentadores sio irresistivelmente ten- tados a tracar linhas separando uma critica desconstrutiva ortodoxa de suas distorgées ouilicitasimitagSes ederivagées. Tomando Derrida ede Man como diferentes, porém autorizados exemplares da verda- deira desconstrugéo, os comentadores podem acusar outros crt cos seja de diluir percepgdes desconstrutivas originais, ou de copiar ‘mecanicamente os procedimentos desses dois mestres, Por um lado, 5 oponentes da desconstrugfo, escrevendo no Newsweek ou no Naw York Review of Books, de forma ecuménica concedem a de Man e a Derrida uma perversa originalidade, mas repreendem os estudantes graduados por mecanicamente imitarem o que esté fora de seu alcance; por outro lado, os defensores da desconstrugao, escrevendo em Glyph ou Diacritics, repreendem os eriticos desconstrutivos americanos por distorcer eenfraquecer as formula- ‘g6es originais de Derrida e de Man.’ idas Tage at 5 cia “profesor raticantes da desconsrso” como "or: midaveis homens de letras que dobraram a desconstrugio em favor de seus Individas = epriticos — propésitos’, mas avsa de suainfluénci sobre osestudantesgraduados re a Desconstrugi 261 Essa combinagio de repreensdes 6 familiar: €nesses termos que a escrita é descrita e posta de lado — como uma distorgéo e uma repetigo mecéinica da fala, Uma preocupagio com a puteza 6com- preensivel entre defensores da desconstrugao, que ficam consterna- dos com a recepgio dada as idias que eles admiram, mas erigit 0s escritos de de Man ou Derrida como a palavra originale tratar ou- tros escritos desconstrutivos como imitagSes decaidas é esquecer precisatiente o que a desconstrucao ensinou sobre a relagio entre sentido e iteragao © 0 papel interno de falhas e infelicidades, A desconstrucao é criada por repeticdes, desvios, desfiguragSes. Ela emerge dos escritos de Derrida ede Man apenas por forga da teragéo: imitagio, citagio, distorgdo, parddia. Ela persiste nfio como unfvoco conjunto de instrugées, mas como séries de diferengas que podem ser projetadas sobre varios eixos, tais como o grau em que a obra analisada é tratada como unidade, o papel acordado a leituras ante- totes do texto, o interesse em procurar ligagSes entre significantes ea fonte das categorias metalingtifsticas empregadas na andlise, A vivacidade de qualquer empreitada intelectual depende em grande parte das diferencas que tornam possiveis as argumentagées, en- quanto impedem qualquer distingdo definitiva entre o que esté den- tro e 0 que esté de fora dessa empreitada.? {gue podem comerer “0 erro pedagigico de permite que uma teria dalinguagem dete. imine sua resposta & grande literatura” (22 de junho de 1981, p. 83). The New York Review of Books, através de Denis Donoghue, reclama de estudantes graduados meee nicamente produzirem leituras desoonsirutives "A custa da teoria que eles deveriam endossar® ("Deconstructing Deconstruction”, p. 41). No Colloque de Cérisy, sobre Derrida, em 1980, houve mutes reclamagGes, especialmente de americanos, sobre 8 aplicagio mecdnica da desconstrucio de Dertida, na América, a estudos iterérios — ‘una insitucionalizagéo que o destiul de sua radial forga orginal (veja, por exempo, Les Fins de homme, org. por Lacoue-Labarthe e Nanc), pp. 278-81). O tema tornot se conhecido: a critica desconstrutiva americana apresentada como uma repotigao ot aplicagio, uma operagio mecdnica que distorce e destr a forcado original que repete "Deconstruction as Criticism’, de Rodolphe Gasché, ao reclamar das distorgdes Jos projetos filossticos origins de Derrida, fala das "muitas vezesingénuas © algumas vezes at, em seus incontrolives cindesejados efeitos colatrai,riacula apicagdes os resultados de dcbats filos6ficos no campo iterio”(p. 178). A convergéneta de ‘ponentes e pattidérios nessa intensa prooeupacio cm dstinguiro original do derivado um sintoma intrigante do jogo de forcas dentro das instituigSesertcas, Alem dos escitos dos ertcos discutidos neste capitulo, pode-ee, com Iucro, consular (8 trabalboslstados na bibliografia dos seguints autores: Timothy Baht, Cynthia Chase, Eugenio Donato, Rodolphe Gasché, Carol Jobs, Sarah Kofman, Richard Rand, Joseph Ride, Michael yan, Henry Sussman ¢ Andeae) Warminski Jonathan cunier Nao apenas a repetigdo produz o que pode entio ser visto como um método, mas os escritos criticos que so ditos imitar ‘ou desviar amitide fornecem exemplos mais claros ou plenos de uum método do que os supostos originais. Os escritos do préprio de Man, por exemplo, com freqiigncia asseveram, com autori ria conviegdo, afirmagdes que requerem demonstragao, mas, em ‘vez disso, so simplesmente aduzidas de modo a passar adiante para reflexes mais “avangadas”, Seus ensaios muitas vezes as- seguram a0 leitor que a demonstrago desses pontos nao seria dificil, apenas enfadonha, e eles fornecem, sim, bem detalhados argumento e exegese, mas essas lacunas na argumentagio po- dem ser bastante impressionantes. Frank Lentricchia, lendo de Man como um existencialista, reclama que seus ensaios sio “ar- ruinados em todos os pontos pela sugestio de que ele tem inquestiondvel, autorizada e verdadeira posse dos textos que le”, uma posigo que Lentricchia acredita que s6 um *historiador” pode ocupar (Afier the New Criticism p. 299). Embora a maior parte da prosa critica busque sugerir tal autoridade, a escrita de de Man especial — e com freqiiéncia especialmente irritante —em sua estratégia de omitir demonstragGes cruciais, de modo a colocar os leitores em uma posigiio na qual eles nfio podem lucrar com suas anilises, a nfo ser que concordem em acreditar rno que parece implausivel ou ao menos improvado. Como de Man diz das “dogmiticas assergGes” de Michael Riffaterre, “ao afirmé-las como ele o faz, nos mais amenos e apodicticos ter- mos, ele torna sua fungio heuristica evidente” (“Hypogram and Inscription”, p. 19). Uma exposigdo sobre a critica desconstrutiva nao pode, ob- viamente, negligenciar os eseritos de de Man, mas sua “ret6rica da autoridade” freqiientemente os torna menos exemplares do ‘que aqueles de criticos mais jovens, que devem ainda tentar de ‘monstrar o que desejam afirmar e que, portanto, podem fornecer uma visdo mais clara de importantes questdes ¢ procedimentos. Um bom ponto de partida é uma andlise elegante e relativamente simples, de um critico cuja pratica 6 mais perspicaz do que sua teoria. “Walden’s False Bottoms”, de Walter Michaels, dé uma Sobre a Desconstrucio 263 inflexio desconstrutiva aos procedimentos do New Criticism e nos ajudard, assim, a situar a critica desconstrutiva em uma tradi- gio da interpretagao literéria, Emerson reclamava de Thoreau, do seu “truque da ilimitada contradigo... Deixa-me nervoso e infeliz a0 Ié-lo”, Michael abor- da as contradigdes de Walden e as estratégias que 0s leitores ado- tam para evitar sentirem-se infelizes e nervosos. Walden 6 habi tualmente lido como uma busca de fundamentos, uma tentativa de arrancar 0 supérfluo e encontrar o fundo s6lido. Em seu Journal, Thoreau registra um projeto emblematico, cujos resul- tados sio mais tarde relatados em Walden: “Encontrar o fundo do lago de Walden e quais entradas ¢ saidas possa ter.” Uma famosa passagem de Walden insta-nos a encontrar um fundo sélido: “Vamo-nos afundar e forgar e calcar nossos pés para baixo, através da lama e do lodo de opiniées, e preconceito, e tra- igo, e ilusio, e aparéncia, aquele aluvido que cobre o glo- bo,... através da Igreja e do Estado, através da poesia e da filosofia e da religido, até que alcancemos um fundo sdlido € rochas assentadas que possamos chamar de realidade, € dizer, € isto, sem nenhum engano; ¢ entio comegar, tendo um point d’appui, abaixo da torrente e do gelo e do fogo, tum lugar onde se possa erguer um muro ou um estado ou fincar com seguranga um poste de luz, ou talvez um medi dor, néo um Nil6metro, mas um Realidémetro, que eras futuras possam saber quiio profunda torrente de impostu- ras e aparéncias se havia juntado de tempos em tempos” Icap. 2} Esse fundo s6lido 6 0 solo natural, um fundamento na natureza, anterior ou exterior as instituigdes humanas, a realidade que deve- mos tentar apreender. Mas hé outro fundo s6lido em Walden: “Nao me traz satisfagdo alguma”, comega Thoreau, “comegar a erguer uma abdbada antes de ter uma fundagio s6lida, Nao nos facamos de melindrosos. Hé um fundo solido em toda parte.” E ele prossegue com uma anedota ilustrativa, sobre um viajante eee ar que perguntou a um menino “se o pantano diante dele tinha um fundo sélido. O menino respondeu que sim. Mas imediatamente © cavalo do viajante afundou até a cilha, e ele disse ao menino: “Bu pensei que voc’ tivesse dito que esse lamagal tinha um fundo s6lido.’ E tem’, respondeu o primeiro, ‘mas vocé ainda nfo che- gou nem A metade do caminho até ele.’ Assim é com os lamagais areias movedigas da sociedade”; Thoreau conelui, “mas aquele que o sabe é um velho menino” (cap. 18) ‘Como Michaels observa, embora o tema das duas passagens seja semelhante — “o explorador em busca de uma fundagéo s6lida — o sentido foi um tanto dramaticamente mudado” (‘Walden’s False Bottoms”, p. 136). Ambas as passagens con- trastam 0 fundo sélido com a lama e 0 limo sobre ele, mas a cstrutura dos valores muda; na primeira passagem, o sébio atra- vvessa a lama ¢ o limo para chegar ao fundo; na segunda, o sabio € aquele que sabe o suficiente para manter-se distante, e o her6i- co aventurciro da primeira passagem é transformado no tolo via- jante que afunda, Uma complicagéo maior ocorre na descrigfo de Thoreau da busca pelo fundo do lago de Walden. “Como eu estava desejoso de recuperar 0, hé muito perdi- do, fundo do lago de Walden, pesquisei-o cuidadosamente, antes que o gelo quebrasse, no comego de 1946, com com- ppasso, corrente e uma linha de sonda. Muitas hist6rias fo- Tam contadas sobre o fundo, ou melhor, falta de fundo, desse lago, que certamente nfo tinham fundamento em si. E.no- tével por quanto tempo os homens podem acreditar na falta de fundo de um lago, sem se dar ao trabalho de sondé-lo. Eu visitei dois desses lagos sem fundo em um passeio por essa vizinhanga, Muitos acreditaram que Walden atrave sasse até o outro lado do globo... Outros vieram da vila, ‘com um cingienta e seis e um caminhfo lotado de corda de medida, mas ainda assim falharam em encontrar fundo; pois ‘enquanto o cingiienta e seis estava parado na estrada, eles soltavam corda na vi tentativa de sondar sua capacidade de maravilhamento verdadeiramente imensurdvel. Mas eu posso ‘assegurar aos meus leitores que Walden tem um fundo ra- Zoavelmente firme a uma no irrazodvel, embora incomum, Sobre a Desconstrucao 265 profundidade, Eu 0 sondei facilmente com um cabo... A ‘maior profundidade era exatamente cento e dois pé...” [eap. 16] i Até aqui, o padrdo é claro: Thoreau dé-nos a lama e o limo das. opinides (a tola crenga na falta de fundo, que ¢ sem fundamento) e sua propria determinagao teimosa de chegar ao fundo das coi- sas, de produzir um fato e dizer, € isso, sem nenhum engano, Mas ele imediatamente continua: “Essa é uma notével profundi- dade para tao pequena rea; no entanto, nem uma polegada dela pode ser dispensada pela imaginagdo. E se todos os lagos fossem 1808? Isso nao reagiria sobre as mentes dos homens? Sou grato que esse lago tenha sido feito puro e profundo como simbolo, Enquanto os homens acreditarem no infinito, alguns lagos se acteditar’o sem fundo.” A oposigdo entre a realidade de um fun- do firme ¢ uma crenga iludida na falta de fundo transformada em uma oposigao entre uma pouca profundidade, associada & presenga de fundo, ¢ um infinito, associado a falta de fundo. A profundidade do lago é celebrada por sua impressio de falta de fundo, que poderia ser eliminada pela descoberta de um fundo efetivo. Michaels ndo tenta dissipar essas contradig6es, mas explora ‘© modo como sao reproduzidas nas discussées posteriores de Thoreau sobre os fundamentos naturais ¢ a natureza como fun- damento. O mesmo movimento, que aqui elimina o fundo como valor assim que é encontrado, ocorre quando Thoreau repudia quaisquer verdadeitos “simbolos de valor natural que sua socie~ dade fornece”. A atragio da natureza como um fundo firme ou ponto final depende de sua alteridade, de modo que qualquer fundo particular deve provar-se raso e inspirar um desejo de maior profundidade, “A categoria do natural torna-se vazia”, escreve Michaels, Mas isso nao significa que a distingGo entre o natural e © convencional seja abandonada. “Muito pelo contrério: quanto mais dificil se torna identificar princfpios naturais, mais privilé- gios se agregam a uma posigio que pode ser definida somente em oposigio teérica ao convencional ou institucional” (pp. 140- 266, 41), Esse jogo de fundos 6 confirmado em uma passagem que Michaels nao cita. No pardgrafo que se segue & exortagao a for- gare calcar nossos pés para baixo até um point d'appui, Thoreau continua: “O tempo no é mais do que um riacho onde vou pes- car. Eu bebo dele; mas enquanto bebo, vejo 0 fundo arenoso ¢ detecto 0 quanto ele 6 raso, Sua fina corrente se vai, deslizando, mas a eternidade permanece. Eu beberia mais profundamente; pescar no céu, cujo fundo 6 salpicado de estrelas” (cap. 2). O fundo que se pode ver é muito raso. A figura do eéu como lago combina o desejo de um fundo com infinita profundidade. A es- curidio do céu o melhor fundo natural. Nasérie de passagens que Michaels explora — sobre nature- za e fundamentos — “o desejo de um fundo sélido é deixado claro, mas a tentativa de localizé-lo ou especificar suas caracte: risticas envolve o escritor em um emaranhado de contradigoes". “O que tentei descrever até aqui”, continua, “&uma série de relagGes no texto de Walden — entre nature- za e cultura, finito e infinito ¢ (ainda por vir) linguagem lit ral e figurativa — cada um dos quais ¢ imaginado todo 0 tempo hierarquicamente, ou seja, os termos nfo coexistem simplesmente, um é sempre pensado como mais bisico ou ‘mais importante do que o outro. As hierarquias esto sempre se quebrando, As vezes a natureza ¢ 0 solo que autotiza a cultura, as vezes é apenas outra das criagdes da cultura. As vezes a busca de um fundo sélido 6 apresentada como a ativi- dade central de uma vida moral, &s vezes a mesma busca apenas fard daquele que procura um mértir vigilante da pe- dia fundamental, Essas nao resolvidas contradig6es so, eu acho, o que nos deixa nervosos ao ler Walden, e a nsia de resolvé-las parece-me um grande fator motivante na maior parteda critica de Walden” (*Walden’s False Bottom”, p. 142), Se as tentativas de resolver as contradigées distoreem Walden, poder-se-ia ficar tentado a deixé-las nao resolvidas em uma sus- pensfio estética e apreciar a rica ambigtiidade da obra de Thoreau. Essa nao 6, no entanto, uma escolha inocente, pois o modelo de valorizagéo contraditéria é estendido, na obra, dos fundos e da bre a Desconstrucio 267 natureza para a leitura, Um capitulo intitulado “Leitura” con- trasta 0 6pico (particularmente a Iliada) com o que Thoreau cha- ma de “livros rasos de viagem” (cap. 3). O épico 6 profundo, Suas palavras sdio “uma preservada e seleta expressao, significante demais para ser escutada pelo ouvido”, e ao descrevé-las, Thoreau retoma a imagem, usada alguns pardgrafos antes, do “céu cujo fundo 6 salpicado de estrelas”: “As mais nobres palavras escritas esto habitualmente to longe, além ou acima, da fugaz lingua- gem falada, quanto o esté o firmamento com suas estrelas, por trds das nuvens. Ld estdo as estrelas, e aqueles que sabem podem 1e-las,” Em contraste com os livros rasos de viagem, 0 épico re- quer uma leitura figurativa: o leitor deve estar preparado para conjeturar “um sentido maior do que o uso comum permite”. Portanto, diz Michaels, “a oposigdo entre 0 épico ¢ 0 livro de viagem ajustou-se a ‘uma oposigdo entre o escrito e o oral. Em cada caso, o pri- iro termo da oposicao € privilegiado, e se voltamos ten- tativa de sondar as profundezas do Iago de Walden, pode- ‘mos ver que esses so todos valores do que chamei sem fundo. Um lago raso seria como um livro raso, ou seja, um livro de viegem, feito para ser lido literalmente. Walden escrito ‘profundo e puro como sfmbolo’. Mas esse padrio de valorizagéo, embora convincente, nfo é de modo algum ubiquo ou definitivo. O capitulo so- bre ‘Leitura’¢ sezuido de um chamado ‘Sons’, que sistema~ ticamente reconsideta as categorias jd apresentadas e que reafirma os valores do fundo sélido” (p. 144) A linguagem figurativa dos livros ¢ contrastada desfavoravelmente com os sons literais da natureza, “a lingua”, escreve Thoreau, “que todas as coisas e eventos falam sem metafora” (cap. 4), e cuja realidade, solidez e literalidade o leitor é instruido a preferir, do mesmo modo como o capitulo anterior enaltecia a leitura fi- gurativa. O leitor nao pode simplesmente aceitar essa contradicio, porque ler é, de toda forma, escolher; escolher entre leituras lite 205 Jonathan cutter rais e metaféricas, por exemplo, ou entre a busca de um fundo sélido © a apreciagio da falta de fundo. “Nossa vida inteira”, escreveu Thoreau, “é assustadoramente moral, Nunca hé um ins- tante de trégua entre virtude e vicio” (cap. 11), Ele ataca em particular aqueles que pensam que ndo tém escolha, Walden ten- ta, diz Michaels, “mostrar-nos que ainda nos restam escolhas e, quebrando hierarquias em alternativas contradit6rias, insistit em que as fagamos. Mas essa quebra, que cria a oportunidade, ou melhor, a necessidade de escolha, serve, ao mesmo tempo, para solapar a racionalizagéo que poderfamos dar a qualquer escolha particular” (pp. 146-47). Isso nao é menos verdadero quanto & Ieitura do que quanto a outras escolhas, “Se nossa leitura reivin- dica encontrar um fundo sélido, s6 0 pode fazer de acordo com principios que o texto tanto autoriza quanto repudia; assim, cor- remos 0 risco de nos afogarmos em nossas certezas, Do contré- rio, se abragamos a idéia de falta de fund... fracassamos no pri- meiro teste de Walden, a aceitacao de nossa responsabilidade moral como leitores intencionais. E: cara, ganho eu; coroa, vocé perde, Nao € & toa que o jogo nos deixa nervosos” (p. 148). Aleitura de Michaels investiga o tratamento de diversas ques- tes centrais ¢ relacionadas em Walden e descobre-as como terpretagées criticas habitualmente o fazem, complexas ambigii dades; mas as ambigiiidades descobertas so de um tipo mais perturbador do que o habitual: nio so apenas divisées entre sentidos alternativos, mas divisdes entre duas atitudes em rela- ‘go aos sentidos e diferenca de sentidos. Ao insistir nas dimen- 86es exortativas ¢ éticas do texto, Michaels identifica a produgio pela obra de um duplo vinculo, em que se 6 instado a escolher, enquanto a possibilidade de escolha correta eliminada. Sua anélise também diverge das costumeiras nogées criticas de uni- dade. ‘A estrutura essencial de um poema”, escreve Cleanth Brooks em The Well Wrought Urn [A bem forjada urna), “ um Padrio de énfases resolvidas... A unidade caracteristica de um Poema esté na unificagio de posturas em uma hierarquia subor- dinada a uma postura total e governante” (pp. 205, 207). Aq ho entanto, as hicrarquias so desfeitas e, embora a estrutura de Sobre a Desconstrucio 269 contradig6es tenha um certo efeito unificador, ela produz nao uma total e governante postura, mas a divisio de qualquer possf- vel postura, Finalmente, essa anélise levanta os riscos da leitura, cconcentrando-se em elementos no texto com implicagées metalin. sgilfsticas, o que fornece matéria e vocabulério— “fundo sélido” e “sem fundo” — para uma discussio de sentido ¢ interpretagio, Em vez de procurar por simbolos de poesia ¢ pela imaginacao literdria, o critico investiga o que a obra diz, implicita e explicita- mente, sobre leitura, Muitos argumentariam, com alguma justificativa, que a le tura de Michaels, embora interessada na quebra de oposigoes hierdrquicas, nao é genuinamente desconstrutiva, mas uma ex- ploragio que deixa contradiges esteticamente nao resolvidas, € ‘ndo mostra nenhum efeito do nervosismo que afiema que Walden ria, Embora investigando a relagGo entre o que a obra diz sobre aleitura ea leitura que extrai, o ensaio de Michaels nfo busca as implicagGes da lingua e da retérica do modo caracteristico de grande parte da critica desconstrutiva, Além disso, poder-se-ia considerar Walden um caso fécil demais para quem procura con- tradigdes. Sua linha narrativa 6 relativamente fraca e os criticos com freqiiéncia 0 consideraram como uma série de espetacula- res fragmentos. Para uma leitura desconstrutiva de um texto te- cido de forma mais coesa, que parece ter pleno controle de sua estrutura narrativa e temética, podemos considerar a diseussio de Barbara Johnson de Billy Budd, “Melville's Fist: The Execution of Billy Budd”, em seu livro The Critical Difference. Billy Budd € a hist6ria de um jovem marinheiro lindo e ino- cente em um navio de guerra brit{inico. Erroneamente acusado de conspiragio sediciosa por Claggart, o desonesto mestre-de- armas, Billy, sua fala impedida por uma gagueira, mata Claggart na frente do capitio Vere. O capitéo, um homem honesto, ins- truido ¢ sétio, esté de acordo com Billy, mas convence seus ca- maradas oficiais de que, diante das circunstancias — a Gri- Bretanha esti em guerra, ¢ houve outros motins — Billy deve ser enforcado, 0 que de fato ocorre, sendo as tiltimas palavras por ele pronunciadas, “Deus abengoe o capitio Vere!”. Cada perso- Z10 Jonathan Culler nagem é explicitamente aquinhoada com qualidades morais, mas, Johnson observa, “o destino de cada personagem 6 o direto i verso do que se é levado a esperar de sua ‘natureza’. Billy é doce, inocente e inofensivo; no entanto, mata. Claggart é mal, perver- tido e falso; no entanto, morre como vitima, Vere 6 perspicaz ¢ responsivel; no entanto, permite que seja enforcacio um homem que ele sente ser inocente” (The Critical Difference, p. 82). ‘A questio na histéria é, portanto, nfo s6 a relagdo entre 0 ‘bem e o mal, mas antes entre os cardteres dos personagens ¢ 0 que eles fazem; entre ser ¢ fazer. “Bastante curiosamente”, es- reve Johnson, 6 precisemente essa questio de ser versus fazer que é le- vantada pela tinica frase que jamais vemos Claggart dirigir diretamente a Billy Budd. Quando Billy derrama sem que- ret sua sopa no caminho do mestre-de-armas, Claggart jo- cosamente replica: ‘Belo feito, meu rapaz! E belo é como bolo fez também!’ A expressio proverbial belo é como belo faz, da qual essa exclamacao salta, postula a possibilidade e ‘uma relacSo continua, previsivel e transparente entre ser € fazer... Mas € mesmo essa continuidade, entre 0 fisico e 0 moral, entre a aparéncia e a ago, ou entre ser e fazer, que Claggart questiona em Billy Bud. Ele avisa ao capitao Vere ue nfo se deixe levar pela beleza fisica de Billy: “Vocé no- tou nfo mais do que sua clara face. Uma armadilha pode estar sob as margaridas frescas e rosadas” [pp. 83-84]. Suas suspeitas so confirmadas quando ele repete sua acusagfo diante de Billy, e 0 rapaz de faces coradas 0 mata, Para investigar o que esté em jogo nesse drama, Johnson retine as evidéncias que Melville fornece de que a oposigio entre Billy e Claggart é uma oposigdo “entre duas concepgdes de lingua ou entre dois tipos de leitura”. Billy é um simples literalista, um crente da transparéneia da significado. “Lidar com duplos sentidos e insinuagdes de qualquer tipo”, escreve Melville, “era completa- mente estranho a sua nstureza.” Para ele, “a ocasional palavra civilizada e agradével era o que elas pretendiam ser, 0 jovem ile Soure a Desconstrucio 2m matinheiro nunca tendo ouvide falar ainda do ‘homem por de- mais civilizado". Ele nfo consegue acreditar que poderia haver uma discrepdincia entre forma e sentido. Claggart, por outro lado, no s6 é uma personificagao da ambigitidade e da duplicidade, mas um crente da discrepincia entre forma e sentido, Ele apren- deu, escreve Melville, “a exercitar uma desconfianga com vee- méncia proporcional a beleza da aparéncia”. Claggart acusa Billy de duplicidade, de uma discrepdncia entre aparéncia e realidade; Billy nega isso acertando-the um golpe, que na verdade ilustra a pr6pria discrepincia que ele nega, revelando a armadilha fatal sob as margaridas. Ele demonstra a verdade da acusagio de Claggart pelo ato de negé-la “Ahist6ria, assim, tem lugar entre o postulado de continui- dade entre significante e significado (‘belo é como belo faz’) © 0 postulado de sua descontinuidade (‘uma armadilha pode ‘estar sob as margaridas frescas e rosadas’). Claggart, cujas acusagdes de incipiente amotinamento so aparentemente falsas e, portanto, ilustram a prépria duplicidade que atri- buem a Billy, 6 contestado por proclamar a mentira sobre Billy, que 0 ato de contestaglo de Billy paradoxalmente prova ser verdade” [p. 86] Essa descrigao da oposigao entre os dois personagens ¢ sua arti- eulagio de modelos contraditérios de significagio e interpreta- Go também identifica os dois modos de leitura envolvidos em querelas criticas sobre a hist6ria, Alguns criticos sao intérpretes desconfiados, como Claggart, indesejosos de aceitar a bondade de Billy pelo valor aparente. Eles podem inferir a latente homos- sexualidade de Claggart, interpretando o tratamento que dispen- sa a Billy como uma reprimida forma de amor. Eles freqiiente- mente propGem descrigées psicanaliticas da inocéneia de Billy como uma pseudo-inocéncia e de sua bondade como uma re- Pressio de sua propria destrutividade, que vem & superficie no Solpe fatal. Com efeito, na cena da confrontagio, Claggart é re- tratado como um psicanalista, movendo-se em diregio a Billy “com 0 passo medido, o ar calmo e sereno de um médico de 22 Jonathan Culler hospicio se aproximando, no saguiio comum, de algum paciente que comega a dar indicagdes de um paroxismo préximo”. Ou- tos criticos se perfilam com Billy, como crentes da continuidade entre ser ¢ fazer, e aceitam as designagdes moreis dos persona- gens: Claggart é mau; Billy é bom; Vere é sabio. Ambos os gru- ‘pos tém interpretagdes persuasivas do crucial evento da hist6ria, © golpe fatal: “se Billy representa a pura bondade, entdo seu ato &ndo-intencional, mas simbolicamente justo, uma vez.que resul- tana destruigao do ‘mau’ Claggart. Se Billy é um caso de repres- so neurética, entio seu ato é determinado por seus desejos in- conscientes e revela a destrutividade da tentativa de se reprimir a propria destrutividade. No primeiro caso, o assassinato 6 aci- dental; no segundo, é a realizacao de um desejo” (pp. 90-91). O ponto crucial aqui 6 que, em cada caso, a interpretagao do golpe é baseada em premissas que minam a afirmagio que a in- terpretagdo apéia: Billy ¢ os literalistas, erentes da continuidade da motivagao, devem tratar o golpe como acidental e imotivado, de modo a preservar a bondade de Billy e a simbélica retidao do golpe. Para Claggart e outros intérpretes desconfiados, crentes da discrepaincia entre aparéncia e realidade, o golpe é prova da malévola duplicidade de Billy somente se for motivado e, portan- to, um exemplo da continuidade entre ser e fazer, Assim, a coe réncia de cada esquema interpretativo € desfeita pelo principio de significagdo ao qual deve recorrer, de modo a incorporar golpe em sua descrigtio. O golpe destréi cada posigao — as de Billy e Claggart tanto quanto as dos literalistas e ironistas. Ele rompe qualquer descricdo interpretativa porque o que significa 6 desfeito pelo modo como significa Se a critica tenta arbitrar a disputa entre Billy e Claggart ou entre literalistas e ironistas, ela se encontra na posig&io do capi- tiio Vere, que € descrito como um leitor instrufdo € judicioso. Sua “tarefa 6 precisamente ler a relagdo entre ingenuidade e pa- ranéia, aceitagao e ironia, assassinato e erro”, e ele lé de um modo diferente de Billy e Claggart, Eles nao tm passado e futuro, que no tém nenhum papel em suas leituras: eles gem em busea de motivagao ¢ sentido. Vere focaliza, ao contrério, sobre preceden- a ore a Desconstrugao 23 tee conseqiiéncia: “A inteng&o ou nfio-intengio de Budd nada € para a determinagdo”, declara. Ele Ié em relagio a circunstancias politicas e hist6ricas e em relagio a textos anteriores, a Biblia e a Lei do Amotinamento. Reunindo poder e conhecimento, Vere determina as relagGes entre outras interpretagdes e atos com aque- Je julgamento. E julgar Billy culpado é maté-lo. A leitura de Vere 6 um ato politico, que funciona convertendo “uma situagiio ambfgua em decidivel. Mas ela o faz conver- tendo uma diferenca interna (Billy como dividido entre sub- missio consciente e hostilidade inconsciente, Vere como dividido entre pai compreensivo e autoridade militar) em uma diferenga enire (entre Claggart e Billy, entre a Nature- za ¢ o Rei, entre autoridade e criminalidade)... O contexto politico em Billy Budd € tal, que em todos os niveis as dife- rengas inferaas (motim no navio de guerra, a Revolugéo Francesa como ameaga as ‘duradouras instituigdes’, a hos- tilidade inconsciente de Billy) séo subordinadas a diferen- gas entre (o Bellipoient versus o Athée, Inglaterra versus Fran- a, assassino versus vitima)” [pp. 105-6] Leitores e criticos discordam com violéncia em seus julgamentos desse leitor, Vere, que parece compelido pelas circunstncias a errar de um modo ou outro e que é um leitor parcial, precisa- mente porque deve levar em conta, em seu julgamento, as conse- aiiéncias desse julgamento, Sera que nés, como leitores de uma obra literdria, nao podemos nos sair melhor? Nao podemos fazer tum julgamento mais apurado e desinteressado do que Vere? “Se alei a forgosa transformagio da ambigilidade em decidibilidade, serd possivel”, pergunta Johnson, “ler a ambigiiidade como tal, sem que essa leitura funcione como um ato politico?” (p. 107). Até mesmo sobre isso, conclui ela, Melville tem algo a dizer, “pois hd um quarto leitor em Billy Budd, alguém que ‘nunca interfere em nada e nunca dé conselhos’: 0 velho Dansker. Um homem de “poucas palavras, muitas rugas’ e a ‘compleigéio de um antigo pergaminho” (p. 107). Ele v8 e sabe, Assediado por Billy em bus- cade conselhos, ele oferece apenas a observagiio de que Claggart l 214 Jonathan Cutler esté “implicando com" ele; mas isso, junto com sua recusa em dizer mais, tem conseqiiéncias determinéveis e contribui para a tragédia. O Dansker “dramatiza uma leitura que tenta ser tao agugada cognitivamente e to neutra performativamente quanto possivel”, mas “a tentativa de saber sem fazer pode em si funcio- nar como uma agfio”. © Dansker, assim como Vere, ilustra tanto a inseparabilidade do conhecimento e da ago quanto a impossi- bilidade de sua harmoniosa fusio, pois em cada caso, como Jonhson escreve, “a autoridade consiste precisamente na impos- sibilidade de conter os efeitos de sua prépria aplicagao”. Nenhum dos personagens pode evitar imprevistas conseqiiéncias que com- Plicam e viciam 0 ato de cognigao e julgamento, Billy Budd, conclui Johnson, é “muito mais do que um estudo do bem e do mal, da justiga eda injustica. & uma dramatizagdo das deturpadas relacdes entre saber ¢ fazer, falar e matar, ler ejulgar, que tornam o entendimento politico tao problemético... © ‘espaco mor tal’ ou ‘diferenga’ que atravessa Billy Budd néo esté local zado entre 0 conhecimento e a ago, a realizagao e a cognigio. E aquilo que, dentro da cognigao, funciona como tum ato; é aquilo que, dentro da aco, evita que jamais sai- bbamos se o que atingimos coincide com o que entendemos, isso € 0 que torna o sentido da tiltima obra de Melville tf0 arrebatador” (pp. 108-9], Essa diltima frase da sentenga que conclui o artigo ilustra um as- ecto dessa critica que nao esté bem representado nas passagens ue citei: 0 uso de expressées do texto, com freqiiéncia fazendo trocadilhos, para conectar eventos do texto com eventos da leitura eda escrita, O golpe de Billy é um evento arrebatador na hist6ria, uma complexa estrutura de sentido ¢ um ato de conseqiiéncias constrangedoras; o sentido da obra, como foi elucidado, também fem uma qualidade performativa com conseqiiéncias das quais no € facil escapar. Conexio semelhante é feita pelo titulo do capitulo, “Melville's Fist: The Execution of Billy Budd”, que relaciona trés atos de fala performativos: 0 ato de Melville de escrever (“Seu [de Sobre a Desconstrug 215 ‘Claggart] retrato eu tentarei, mas nunca o acertarei”, escreve ele), a negacdo pugilstica de Billy e o julgamento mortal de Vere, Ao empregar a linguagem do texto como metalinguagem, os criticos continuam um processo que 0 texto j4 comegou, mas as leituras desconstrutivas variam consideravelmente na exploragéo dessa possibilidade. Derrida desdobra de forma agressiva significantes do texto para descrever uma légica textual. De Man, 20 contrério, evita as categorias oferecidas pelo texto e agilmente relaciona os momentos que Ihe interessam com termos metalingiifsticos da re- t6rica eda filosofia. A contida explorago de Johnson desse recur- so produz o que parecem trocadilhos. O segundo aspecto da desconstrugio que esse exemplo ilus- traé uma suspeita da vontade dos criticos de celebrar a ambigii- dade como uma riqueza estética. Quando defrontada com duas interpretagdes ou duas possibilidades, Johnson pergunta pelas premissas sobre as quais cada um se apéia e investiga as relagdes entre as premissas e as conclusGes, descobrindo que, com fre- agiiéncia, as leituras so minadas pelas préprias hipteses que as tornam possfveis. Tais descobertas fornecem, entio, pontos de partida para uma investigagio dos enquadramentos dentro dos uais tais leituras so extrafdas. As leituras desconstrutivas po- dem, assim, se recusar a fazer da riqueza estética um objetivo. Aonde quer que se chegue ao que possa parecer um ponto de interrupgaio — um bom paradoxo ou uma formulacao simétrica — essa posigéo é devolvida ao texto, perguntando-se 0 que a obra tem adizer sobre a conclusio alcancada, Depois de analisar 0 julgamento de Vere, Johnson pergunta o que o texto tem a di zer sobre 0 ato de julgamento em si, ¢ depois de extrair conclu- 86es sobre o julgamento como um ato de violéncia, que busca, sem possibilidade alguma, controlar suas préprias conseqiién- cias, ela pergunta o que o texto teria a dizer sobre a critica esté- tica do julgamento politico que parece estar emergindo de sua leitura, Ela, entao, analisa a proclamagao do velho Dansker como mais um enquadramento da questao da interpretagao. Com seus “bolsos invaginados”, o texto tem algo a dizer sobre qualquer conclustio que se esteja tentado a tirar dele 216 Jonathan Culler Terceiro, o ensaio de Johnson levanta os riscos da “leitura” ao atentar para a impossibilidade de separar ago e julgamento da questo da leitura, Em um sentido, Billy Budd demonstra que il n'y a pas hors texte”: a ago politica é revelada aqui como um tipo particular de leitura que tenta em vio fazer das conseqiién- ias de uma leitura seu fundamento, Explorando a conexao entre a violencia dos meios e a predicagio dos sentidos (ou entre a suposiggo de continuidade entre meios e fins e a suposigao de que tudo deve ter um sentido), Billy Budd produz uma critica da autoridade como tal — da lei, por exemplo, incluindo a lei da significago —e ilustra a textualidade do julgamento, de modo semelhante ao que de Man faz, em outros termos, em sua leitura de Nietzsche (Allegories of Reading, pp. 119-31), Por fim, o ensaio de Jonhson mostra-nos a critica descons- trutiva buscando estruturas que com freqiiéncia se provam du- plos vinculos. No ensaio de abertura de The Critical Difference, ela comenta a decisfio de Barthes em S/Z de quebrat 0 texto, de traté-lo como “uma galaxia de significantes”, mais do que como uma estrutura de significados: ‘A pergunta a fazer € se essa fide- lidade ‘anticonstrucionista’ (como oposto de ‘des-constru- cionista’) ao fragmentado significante tem éxito em desnudar a pluralidade funcional do texto de Balzae ou se, em diltima andl se, um certo nivel sistematico de diferenga textual nao é também perdido ¢ achatado pela recusa de Barthes em reordenar e re- construir 0 texto” (p. 7). Resumindo seu proprio procedimento nas “Observagies iniciais” de seu livro, Johnson escreve: “A leitura aqui procede por idemtificar e desmantelar dife- rengas por meio de outras diferengas, que néo podem ser plenamente identificadas ou desmanteladas. ponto de partida é com freqiiéncia uma diferenga bindria que, subs Giientemente, se mostra como uma iluséo criada pela ago de diferencas muito mais diffceis de apontar. As diferengas entre entidades (prosa e poesia, homem e mulher, literatura ¢ teoria, culpa e inocéncia) mostram-se baseadas em uma repressiio de diferencas internas as entidades, os modos pe~ los quais uma entidade difere de si mesma. Mas 0 modo Sobre a Desconstrugio 2 como 0 texto assim difere de si mesmo nunca 6 simples: tem uma certa Iogica rigorosa e contraditéria, cujos efeitos podem, até certo ponto, ser lidos. A ‘desconstrugio’ de uma oposigéo bindria, portanto, nfo é uma aniquilagao de todos os valores ou diferencas, mas sim uma tentativa de seguir os sutis e poderosos efeitos das diferencas que jé agem dentro a ilusdo de uma oposigdo bindria” (pp. x-xi]. Sea critica desconstrutiva uma busca de diferengas — diferen- a8 cuja supressao ¢ a condigao de qualquer entidade ou posigéio particular —, entéo ela nunca pode alcancar conclusdes definiti- vvas, mas péra quando no pode mais identificar e desmantelar as diferengas que agem para desmantelar outras diferengas, Aleitura de Johnson de Billy Budd € peculiar na crftica descons- trutiva por sua abrangéncia — uma virtude facilmente super- valorizada —, mas ela nao explora aqui, como faz em seu Défigurations du langage poétique, as detalhadas implicagdes das figuras ret6ricas. Introduzindo a colegdo sobre “The Rhetoric of Romanticism”, em que seu ensaio sobre Billy Budd apareceu pela primeira vez, Paul de Man escreve, “é um gesto habitual e produ- tivo de todos esses trabalhos sobrepujar a proximidade [closeness] da leitura que lhes foi apresentada como exemplo e mostrar, len- do as close readings de modo mais préximo, que elas nfio eram nem de longe préximas o bastante” (Introduction, p.498). Pode- mos caracterizar melhor a critica desconstrutiva seguindo duas ‘questdes que esse comentério sugere: O que faz de uma leitura ‘uma close reading? E qual é 0 papel de leituras anteriores para a critica desconstrutiva? Johnson Ie de modo mais pr6ximo quan- do detalha a l6gica da significagdo em certos momentos-chave do texto, O que mais a proximidade poderia envolver? Aclose reading, para de Man, requer escrupulosa ateng&io a0 que parece acess6rio ou resistente ao entendimento. Em seu pre- facio de The Dissimulating Harmony, de Carol Jacobs, ele fala da paréfrase como “um sin6nimo do entendimento”: um ato que converte o estranho em familiar, “encarando aparentes dificul- dades (sejam de sintaxe, da figuragio ou da experiéncia) 218, Jonathan Culler dando com elas exaustiva e convincentemente”, mas suprimin- do, ocultando e desviando o que est4 no caminho do sentido. “O que aconteceria”, pergunta, “se, uma finica vez, se revertesse 0 ethos da explicacao e tentasse ser realmente preciso”, buscando “uma leitura que nio mais se submeteria cegamente & teleologia do sentido controlado?” (pp. ix-x) O que aconteceria, isto &, se em vez de supor que os elementos do texto sio instrumentos subservientes de um sentido controlador ou de uma postura total € governante, os leitores explorassem toda resisténcia & signifi- cagiio? Os pontos basicos de resisténcia poderiam ser o que cha- mamos de figuras ret6ricas, uma vez que identificar uma passa: gem ou seqiiéncia como figurativa é recomendar a transformagéio de uma dificuldade literal, que pode ter interessantes possibilida- des, em uma paréfrase que se ajuste ao sentido que se supde governar a mensagem como um todo. Como vimos em nossa discussdo de Derrida, a leitura retérica — a atengao as implica- Ges da figuralidade em um discurso — é um dos prinefpios da desconstrugao. Considere, por exemplo, o modo como de Man lida com uma passagem de A la recherche du temps perdu, de Proust, em que Marcel resiste ao pedido de sua avé de que saia para brincar ¢ permanece em seu quarto, lendo. O narrador afirma que através da leitura ele pode ter acesso mais verdadeiro as pessoas e as paixSes, assim como permanecendo dentro de casa pode apreen- der a esséncia do verio mais intima e efetivamente do que se estivesse de fato do lado de fora: “O escuto frescor do meu quar- to... dava & minha imaginagio o total espetdculo do verdo, en- quanto meus sentidos, se eu estivesse dando um passeio, poderiam apenas té-lo gozado em fragmentos.” A sensagio do verdo é trans- mitida a ele “pelas moscas que executavam diante de mim, em seu pequeno concerto, a mésica de camara do vero: nao evocativa A maneira de uma melodia humana que, ouvida casualmente du- rante o vero, depois nos faz relembrd-lo, mas unida ao verdo por um elo mais necessario; nascida de belissimos dias, ressusci- tando apenas quando eles voltam, contendo algo de sua essén- cia, ela nao s6 desperta sua imagem em nossa meméria; cla ga- Sobre a Desconstrucio 219 rante seu retorno, sua presenga verdadeira, persistente e imedia- tamente acessfvel”. A passagem de Proust 6 metafigurativa, ar- gumenta de Man, porque comenta sobre as relagGes figuradas. “Bla contrasta dois modos de evocar a experiéncia natural do verdo e sem ambigiiidade afirma sua preferéncia por um desses modos sobre o outro: 0 ‘necessério elo’ que une o zumbido das moscas a0 verdo torna-o um sfmbolo mais ef tivo do que a melodia ouvida ‘casualmente’ durante o ve- to. A preferéncia € expressa por meio de uma distinglo que corresponde & diferenca entre metéfora e metonimia, necessidade e acaso, sendo um legitimo modo de distinguir analogia de contigtiidade. A inferéncia de identidade e tota- Tidade que € constitutiva da metéfora esté faltando ao con- tato metonimico puramente relacional... A passagem é so- brea superioridade estética da metéfora sobre a metonimia, No enianto, é preciso pouca perspicécia para mostrar que 0 texto nio pratica o que prega. Uma leitura retSrica da pas- sagem revela que a préxis figurativa ea teoria metafigurativa no convergem, e que a assergao do predominio da metéfo: ra sobre a metonimia deve seu poder persuasive ao uso de estruturas metonimicas” [Allegories of Reading, pp. 14-15]. Para demonstrar que podemos experimentar “o total espetdéculo do verdo” através de uma transferéncia metaférica de esséncia Marcel deve explicar como o calor e a atividade caracteristicos do cenétio exterior sio trazidos para dentro. O escuro frescor de meu quarto, escreve ele, “s'accordait bien & mon repos qui (grdice aux aventures racontées par mes livres et qui venaient émouvoir) supportait, pareil au repos d’une main immobile au milieu d’une eau courante, le choc et animation d'un torrent d’activité” [con vinha ao meu repouso que (gracas 2s aventuras narradas nos meus livros e que haviam agitado minha tranqiiilidade) suporta- va, como a calma de uma mao mantida imével em meio a uma correnteza, 0 choque € a animago de uma torrente de ativida de]. A expressao “torrent d’activité”, que traz a aquecida ativida- de do vero, funciona metonimicamente, no metaforicamente, argumenta de Man. Ela explora a contigiiidade, ou o acidental, 280 Jonathan Culler em oposigao as conexdes essenciais, de trés modos: primeiro, a imagem baseia-se na contingente associagao das palavras torrent € activité em um cliché ou expressio idiomética (as qualidades literais ¢ essenciais de “torrent” nio sio importantes para o idio- ma); segundo, a justaposigio do cliché torrent d'activité com a imagem da mao na 4gua desperta, como um efeito de contigiii- dade, a associagio de forrent com Agua; ¢ terceiro, torrent ajuda a trazer calor para a passagem através de sua contingente associa- go com o significante torride. “O calor est, portanto, inscrito no texto”, escreve de Man, “de uma mancira ardilosa e calada.. Em uma passagem que abunda em metéforas bem-sucedidas sedutoras e que, além disso, afirma explicitamente a superior efi- cAcia da metéfora sobre a metonfmia, a persuasio é conseguida por um jogo figurativo no qual figuras contingentes do acaso ‘mascaram-se enganosamente como figuras da necessidade” (pp. 66-67).3 Uma leitura retérica mostra como o texto se apSia nas relagdes contingentes que afirma rejeitar: “precisamente quando as mais altas afirmagGes esto sendo feitas sobre o poder unificante da metéfora, essas mesmas imagens se baseiam, de fato, no enganoso uso de padrées gramaticais semi-automati- 0s” (p. 16), Em uma discussio similar sobre The Birth of Tragedy, de Man observa que “a desconstrugio no ocorre entre afirma- ges, como em uma refutagao légica ou uma dialética, mas em vez disso acontece entre, de um lado, afirmagSes metalingiifsticas [dentro do texto} sobre a natureza retérica da linguagem e, de outro, uma préxis retdrica que pde essas afirmagdes em ques- 180” (p. 98). A close reading aqui envolve atengio ao estilo ret6rico ou & condigio de importantes detalhes. Uma leitura temética da passa- 3Poderse-iaargumentar qu a figura oposta& metonfma na passagem € nfo ametéfora (Gubstituigo com base na semethanga), mas a sinédoque (ubstituieso da parte pelo todo): as moseas evocam o verso nBo poraue se aseemelham a cles may pongue cio ‘consideradas parte essencial dole. O que impede tis consderagoet de invalidorcin argumento de de Man 60 insistent contraste da passagem ents iguras essence de Ssubstituigio e figuras contingentes de substituigdo, um conteastegecalmtene entice do, na Recherche, ssi como em outros hgnes, com cposgso ene metre ¢ ‘etonimia. Ou seja, esca pascagem assimila uma sinédogue ao modelo da metéfora (como figura bescada na apreensio das esséncias) que a cra clabora em outea parte Sobre a Desconstrucio 281 gem de Proust iria mais provavelmente comentar a espléndida fu- ‘sfo entre frescor e calor em “torrent d’activité”, sem inquirir a base retdrica desse efeito ou suas implicagées filoséficas. De Man nao tenta, éclaro, mostrar que toda afirmagao temética é solapada por seu meio de expresso; sua close reading concentra-se em estrutu- ras retéricas cruciais, em passagens com uma fungdo meta- lingiistica ou implicagSes metacriticas: passagens que comentam diretamente as relagSes simb6licas, as estruturas textuais ou os pprocessos interpretativos, ou que, por sua discussio de oposigées filoséficas das quais as estruturas retGricas dependem (tais como esséncia/acidente, interior/exterior, causa/efeito) tém uma cone- xo indireta com os problemas de ret6rica e leitura. Muitas das anélises de de Man sao dirigidas contra a totalizagiio metaférica: a afirmagio de controlar um domfnio ou fenémeno através de uma substituigéo que apresenta sua esséncia. Tais momentos podem depender da supressao de relagdes contingentes, assim como, nos termos do livro anterior de de Man, as percepgées criticas resul- tam de cegucira critica. “A metéfora”, escreve ele, “torna-se uma ‘metonimia cega” (Allegories of Reading, p. 102). Mas as demons- tragdes de de Man do papel de processos mecfinicos de gramética, caso e contigiiidade nao produzem, insiste ele, um conhecimento ue interrompa o processo de desconstrugio. Quando lemos essa passagem de Recherche como desconstruindo a oposigio hierér- quica entre metéfora e metonimia, devemos entio observar que “o narrador que nos fala da impossibilidade da metéfora é ele mes- mo, ou isso mesmo, uma metéfora, a metéfora de um sintagma gramatical cujo sentido ¢ a negagdo da metéfora afirmada, por antifrase, como sua prioridade” (p. 18). A assercao da prioridade da metdfora (que provou sob anéllise demonstrar sua dependéncia da metonimia) é atribufda a um narrador que 6 um constructo metaf6rico, um sujeito gramatical cujas propriedades sao transferidas de predicados contiguos. O derradeiro resultado, con- clui de Man com grande seguranca, 6 “um estado de ignordncia suspensa” (p. 19) 'ssas leituras movem-se, com incomum rapidez, dos deta- Ihes textuais para as mais abstratas categorias da ret6rica ou da 282 Jonathan Culler metafisica. Sua “proximidade” parece depender de sua investi gacdo das possibilidades que seriam negligenciadas ou elimina- das por outras leituras, e que sfo negligenciadas precisamente porque romperiam com o foco ou a continuidade das leituras que sua eliminagao possibilita. As linhas concludentes de “Among School Children”, de Yeats, por exemplo, so em geral lidas como ‘uma questio retérica que assevera a impossibilidade de diferen- iar o dangarino da danca. O chestnut-tree, great rooted blossomer Are you the leaf, ihe blossom or the bole? O body swayed to music, O brightening glance, How can we know the dancer from the dance?* “E também possivel”, escreve de Man, “ler a diltima linha mais literalmente do que figurativamente, enquanto fazemos, com al- guma urgéncia, a pergunta... como seria possivel fazer distin- gGes que nos abrigariam do erro de identificar o que nao pode ser identificado?... A leitura figurativa, que supe ser a pergunta ret6rica, é talvez ingénua; enquanto a leitura literal leva a uma maior complicagao do tema e da afirmagéo” (p. 11) Diante dessa sugesto, um critico poderia inclinar-se a per- guntar qual das leituras melhor se harmoniza com 0 resto do poe- ma, mas precisamente esse lance que esta em questo: nossa inclinago em usar nogdes de unidade e coeréncia temstica para excluir possibilidades que so manifestamente despertas pela Iin- gua, e que colocam um problema. Se um leitor ouvisse “bow!” (tigela) em vez de “bole” (tronco), isso poderia nfo combinar com a interpretagdo que se desenvolvia, mas a leitura literal da pergun- taconcludente de Yeats nao pode ser descartada como irrelevante. “As duas leituras devem combater uma & outra em confrontagaio direta”, observa de Man, “pois uma leitura 6 precisamente o erro denunciado pela outra e deve ser desfeita por ela... a autoridade do "adugio Mga O castanheira, grande florescente enraizada/ Voc8 6 a felha a for ‘040 tronco?/O corpo balangado pela mésica, © luminado olhar/Como podemos ite Fenciar 0 dancarino da danga? i Sobre a Desconstrucio 283 sentido engendrado por uma estrutura gramatical é plenamente obscurecida pela duplicidade de uma figura que clama pela dife- renciagiio que oculta” (p. 12). O problema da relagiio entre o dan- arino e a danga, ou entre a castanheira e sua manifestagio, € semelhante a eesté entrelagado com o problema da relagiio entre a estrutura gramatical literal, e seu uso ret6rico. Interpretar “How can we know the dancer from the dance?” como uma pergunta retGrica € tomar por garantida a possibilidade de distinguir exata- mente entre a forma de uma enunciacdo (a estrutura gramatical da pergunta) e a realizagio ret6rica daquela estrutura aqui; sumir que podemos diferenciar a pergunta em si de sua realizagio ret6rica. Mas ler a pergunta como uma pergunta ret6rica é preci samente assumir a impossibilidade de distinguir entre uma entida- de (0 dangarino) ¢ sua atuagao (a danca). A.assergao que 0 poema foi interpretado como fazendo — a afirmagio de fusio ou conti sgiiidade — € subvertida pela descontinuidade que deve ser supos ta de modo a inferir aquela assergio. “A desconstrugao”, declara Derrida entre parénteses em uma entrevista, “nao 6 uma operacao critica. A critica é seu objeto; desconstrugao sempre diz respeito, em um momento ou outro, & confianga investida no critico ou no processo critico-te6rico, isto 6, no ato de decidir, na possibilidade final do que pode ser deci- dido” (“Ja, ou le faux bond”, p. 103). Decis6es sobre sentidos — necesséirias ¢ inevitdveis — eliminam possibilidades em nome do principio de decidibilidade, “Uma desconstrugio”, esereve de Man, “sempre tem como alvo revelar a existéncia de articulagdes ¢ fragmentages ocultas dentro de totalidades assumidamente monddicas” (Allegories of Reading, p. 249). No capitulo anterior, identificamos algumas nogées totali zantes que as leituras desconstrutivas trabalham para desfazer. A critica literdria desconstrutiva, freqtientemente focalizada so- brea literatura do perfodo romintico, colocou desafios particu- lares a0 padrfio genético da historia literdria e as totalizagbes exigidas pelos modelos orgiinicos que as narrativas genéticas em geral empregam. Os criticos compreendem a literatura empre- gando narrativas hist6ricas, agrupando obras em seqiiéncias atra- éas- 284 Jonathan Culler ‘vés das quais alguma coisa — um género, uma modalidade, um tema, um tipo particular de entendimento — pode ser dita para desenvolver-se. Assim, Julie, ou la Nouvelle Héloise, de Rousseau, 6 incorporado as Confessions e ao Réveries du promeneur solitaire, e lido como um romance de interioridade reflexiva, de modo que possa funcionar como a inauguragio de um importante tipo de romance. “O investimento hist6rico nessa interpretacao de Rousseau é considerdvel, e uma das mais intrigantes possibilida. des inerentes a uma releitura de Julie 6 uma releitura paralela de textos que supostamente pertencem a linha genealégica que se diz ter comegado com Rousseau. A existéncia de ‘linhas’ hist6ri cas pode ser a primeira vitima de tal leitura, que dé uma grande volta para explicar por que esté sendo frustrada” (Allegories of Reading, p. 190). Um dos principais efeitos da critica desconstrutiva tem sido romper o esquema hist6rico que contrasta a literatura romantica com a pés-romantica e vé a diltima como uma sofisticada ou ir6. nica desmistificaco dos excessos e enganos da primeira. Como tantos padres hist6ricos, esse esquema 6 sedutor, especialmen- te porque, enquanto prové um princfpio de inteligibilidade que parece assegurar o acesso & literatura do pasado, associa a pro- gressio temporal com o avango do entendimento e nos coloca, ¢ 8 nossa literatura, na posico de maior consciéncia e autoper- cepcio. A estratégia de muitas leituras desconstrutivas tem sido mostrar que a desmistificacao irénica, supostamente peculiar & literatura p6s-roméntica, j4 é encontrada em obras dos maiores romanticos — particularmente Woodsworth e Rousseau — cuja prépria forga faz com que sejam consistentemente deslidas.> A tradigdo critica trabalhou transformando uma diferenga interna em uma diferenga entre, analisando como diferengas entre mo- dalidades e periodos, uma heterogeneidade que age dentro dos textos. Dentro de uma hist6ria literdria organicista e perio- dicizante, por exemplo, o romantismo tem sido visto como a pa 5Ygjacasels emma de de Man sobre Rousseau em Allegories of Reading; de Ellen Burt, “Rousseau the Scribe" de Prances Fensuson, Wodsworh: Language as Counter-Spiit, ‘ede Cynthia Chase, “Accidents of Disfiguration” como exempos dessa reavaliag. ie outro n Sobre a Desconstrucio 285 sagem de um conceito mimético de arte para um conceito gené- tico ou organico, Se, como de Man sugere, a literatura roménti- ca trabalha para solapar o sistema de categorias conceituais as- sociadas ao organicismo e ao geneticismo, “pode-se bem indagar que tipo de historiografia poderia fazer justiga ao fenémeno do romantismo, uma vez que o romantismo (em si um conceito de perfodo) seria entéo o movimento que desatia o principio genéti- co subjacente a toda narrativa histérica” (p. 82). As leituras desconstrutivas caracteristicamente desfazem os esquemas nar- rativos, focalizando, em vez disso, diferengas internas. As leituras desconstrutivas também se ocupam das simplif cages efetuadas por decisdes sobre a referencialidade. A opos ao entre fungGes referenciais e ret6ricas da lingua € persistente ¢ fundamental, sempre em questo no ato de leitura, que requer decisdes sobre o que é referencial e o que é ret6rico. J. Hillis Miller argumenta em Fiction and Repetition que, em romances, poderosas assergdes teméticas sobre a fungao mimética da lin- gua instam os leitores a interpretar detalhes como representa- Ges de um mundo, mas ao mesmo tempo hé outras indicagdes, que variam de tipo de um romance para o outro, de que nao se pode confiar na referencialidade de nenhuma instdncia lingifst a particular. As ilusdes e desilusdes dos personagens, por exem- plo, so freqtientemente apresentadas nos romances como 0 re- sultado de tomar figuras literalmente ou de tomar por engano ficgGes ret6ricas pela realidade, Miller analisa Middlemarch, nesses termos, como um caso de “a autoderrotante reviravolta do ro- mance para solapar seus pr6prios fundamentos”, expondo a pre- sunco de representago na qual se baseia como uma ficgiio em que nao se pode confiar (“Narrative and History”, p. 462). “Entender significa, basicamente, determinar 0 modo referen- cial de um texto”, escreve de Man, “e nés tendemos a tomar como garantido que isso pode ser feito... Desde que possamos distin- guir entre sentido literal e figurativo, nés podemos traduzir a figura de volta para seu referente adequado.” Identificar algo como uma figura é assumir a possibilidade de toné-lo referencial em el e, assim, “postular a possibilidade da significagao 286, Jonathan Culler referencial no telos de toda a lingua. Seria bastante tolo assumir que se pode, despreocupadamente, afastar-se do constrangimen- to da leitura referencial” (Allegories of Reading, p. 201). A leitura de de Man de La Nouvelle Héloise explora a complexidade desse problema, mostrando como o romance solapa qualquer determi nago particular de referencialidade e assim poe em questo a pos- sibilidade de distinguir o referencial do retérico, mas de modo al- gum capacita a leitura a dispensar a referencialidade, que sempre reaparece. O Prefiicio, por exemplo, debate a condigio referencial do romance: ele 6 uma representagio da vida real — uma série de cartas reais, por exemplo— ou é uma construgao de cartas fictici- as que funciona, como referencial, em outro nivel, para descrever amor? Embora o Preficio deixe a questo sem solucao, os leito- 6s estdo inclinados a optar pela segunda solugao, tratando os per- sonagens, por exemplo, como figuras do amor. Mas a descrigaio do amor dada no Prefacio e na obra, argumenta de Man, mina essa referencialidade. “Como ‘homem’ [em Discours sur lorigine del'inégalité e Essai sur Vorigine des langues, de Rousseau, ‘amor’ 6 uma figura que desfigura, uma metéfora que confere a ilusio de sentido adequado sobre uma estrutura semdntica suspensa e aber- ta” (p. 198). O romance diz, por exemplo, que: “O amor é uma mera ilusio: ele modela, por assim dizer, outro Universo para si; ele se rodeia de objetos que nfo existem ou que ganharam sua existéncia do amor somente; e uma vez que afirma seus sentimen- tos por meio de imagens, sua linguagem é sempre figurativa.” “E ndo s6 possivel, mas necess4rio”, escreve de Man, “ler Julie desse modo, assim como colocar em questo a possibilida- de referencial do ‘amor’ e revelar sua condico figurativa” (p. 200) (0 que faz dessa mais uma das “narrativas desconstruti dirigidas as sedugSes metafSricas” de Rousseau). Mas como a obra solapa a condigio referencial do amor, tratando-o como um tropo, ela empresta um impressionante pathos ao desejo e faz ‘com que o patios do amor e 0 pathos do desejo do autor o repr sentem como referente. “O préprio pathos do desejo (indiferente de ser valorizado positiva ou negativamente) indica que a pre- senga do desejo substitui a auséncia de identidade e que, quanto Sobre a vesconstrucio 281 mais 0 texto nega a verdadeira existéncia de um referente, real ou ideal, e quanto mais fantasticamente ficticio se torna, mais se torna a representagiio de seu préprio pathos” (p. 198). No dislogo do Prefiicio de Rousseau, um dos interlocutores procura interromper o diferimento e o reaparecimento da referen- cialidade, encontrando “alguma afirmagio no texto que estabe- Jeca uma margem entre texto e referente exterior” e determine a modalidade referencial do texto. “Vocé nao ve”, diz N., “que sua epfgrafe entrega tudo?” Essa decisiva evidéncia é uma citagio de Petrarca, que ¢ por sua vez uma adaptacdo livre da Biblia, ¢ cuja modalidade problemdtica como qualquer pergunta que cla seja usada para resolver. Pode ser empregada para estabelecer inteligibilidade, mas no tem nenhuma autoridade especial. De Man conclui: “Os indimeros escritos que dominam nossas vidas tornam- se inteligiveis por um preordenado acordo quanto & sua au- toridade referencial; esse acordo, no entarfto, é meramente contratual, nunca constitutivo. Pode ser quebrado todas as vveres, e cada coisa escrita pode ser questionada quanto sua modalidade ret6rica, assim como Julie esté sendo ques- tionado no Prefacio. Quando quer que isso aconteca, 0 que a princfpio parecia ser um documento ou um instrumento, torna-se um texto e, como conseqiiéncia, sua legibilidade & posta em questo. © questionamento aponta de volta para textos antetiores ¢ engendra, por sua vez, outros textos que afirmam (e falham) fechar 0 campo textual. Pois cada uma dessas assergdes pode, por sua ver, tornar-se um texto, as- sim como a citagio de Petrarca ou a afirmagio de Rousseau de que as cartas foram ‘colecionadas e publicadas” por ele podem ser transformadas em texto — néo simplesmente pela afirmagao de que so mentiras cujos opostos poderiamn ser verdade, mas pela revelagdo de sua dependéncia de um acordo referencial que, discriminadamente, tomou sta ver- dade ou falsidade como garantida” [pp. 204-5). O contraste nao é entre acreditar ou negar algo que um texto diz, mas entre outorgar a esse momento uma fungio referencial, de 288 Jonathan Culler modo que possa ser verdadeiro ou falso, e traté-lo como uma figura, de modo que 0 inevitvel momento de referencialidade seja adiado. Finalmente, aeritica desconstrutiva atenta para as estruturas que resistem ao esquema narrativo de um texto. Esse € 0 projeto de muitos dos ensaios de J. Hillis Miller: depois de descrever a confianga dos romances em “linhas” narrativas que conectam origens efins, revelando retrospectivamente uma lei que os amarra todos juntos em uma seqiiéncia unificada, Miller segue para ex- plorar os diferentes modos como os romances delineiam l6gicas narrativas contréias ou expGem suas figuras organizadoras como imposigées sem justificativa,* Poderfamos tomar como nosso exemplo, no entanto, “Narcissus in the Text”, de John Brenkman, ‘uma andlise do rompimento dos esquemas narrativos na histéria de Narciso, nas Metamorphoses de Ovidio. Este primeiro apre- senta um belo e orgulhoso Narciso, depois conta como a ninfa Eco ficou restrita a repetir as palavras de outras pessoas — uma unico imposta por Juno. Eco é desprezada por Narciso e seu corpo se esvai, deixando apenas sua consciéncia e a voz; mas Narciso encontra sua rufna quando se apaixona por seu proprio reflexo. Percebendo a impossibilidade de seu desejo, “ele pousou sua fatigada cabega e a morte fechou os olhos que tanto haviam admirado a beleza de seu dono”, Pensamos em uma forma literdria bem-sucedida como uma sintese entre mythos, dianoia e ethos; assim, a interpretagio crf- tica busca uma totalidade unificada em que a trama, os persona- gens eo sentido denunciam um ao outro. “E claro”, escreve Brenkman, “que descrever a organizacéo narrativa (mythos) e sua uni- dade temética (dianoia) requeriré especificar a relagio en- te Eco e Narciso. Tomadas separadamente, suas historias ion andthe Narrative Lin de Miller sobre esse topo esta programada pare publi Enquanto iso, Fcton and Repetition analisa rmentos de suas prépriss contnuidades, Uma colegio dos ensaios ‘como Ariadne’ Thread. es ingloses como esclarec Sobre a Desconstrugio 280 relacionam-se uma a outra através de um paralelismo deslo- cado — um paralelismo em que cada personagem 6 empur- radoem ditegio& morte quando o desejo nfo € correspondido pelo outro, um paralelismo deslocado em que, para Eco, 0 outro € outro como ela, enquanto para Narciso, o outro é sua imagem espelhada, Em ambas as instfincias, a unio sexual no ocotre, primeiro porque Narciso a recusa e depois por- que é impossivel. Suas hist6rias se cruzam de um modo que dé sentido a essa diferenga, A imagingria captura de Narciso 6 apresentada como a ‘punigdo’ por sua recusa em retribuir 0 desejo de outros, ¢ seu encontro com Eco é obviamente o exemplo mais desenvolvido de tal recusa na narrativa. Em resumo, a recusa em retribuit o desejo é respondida pela im- possibilidade de ter 0 desejo retribuido” [p. 297]. Annarrativa 6 bastante explicita ao designar o destino de Narciso como uma punigao estruturalmente adequada. Depois de inter- pretar os ecos de sua prépria voz como expressio do desejo se- xual de Eco, ele a rejeita. “Conseqiientemente, alguém que fora evitado, elevando as méos para o céu, disse: ‘Entdo que possa ele mesmo amar e no possuir o que é amado!’ Némesis concordou ‘com suas justas preces. Havia um pogo...” A tarefa da interpretagio é entender o paralelismo deslocado que a narrativa estabelece entre Eco e Narciso. Hé duas puni- Ges: a de Eco e a de Narciso; duas formas de repetigdo: a repe- tigdo vocal da fala de Eco e a repetigéo visual do reflexo de Nar- ciso; dois enganos: Narciso confundindo os ecos de sua propria voz com a voz de Eco, e confundindo seu prOprio reflexo com outro corpo; € duas representagdes da morte: a morte do corpo de Eco, que deixa para trés a voz.e a consciéncia, e a morte de Narciso, que o retira para o mundo inferior. Como 6 que a estrutura da narrativa explora as diferengas nesses paralelos e que significdncia Ihes atribui? Considere pri- meiro 0 caso de Eco. Ao condenar Eco a repetigao, a punigao de Juno poderia ter destrufdo a relagdo entre o self ea lingua, torna~ do Eco incapaz de falar seus desejos ¢ tornado-a inteiramente ininteligivel como personagem. Ao inventar um conjunto de enunciages tais que, ao ecod-las, Eco de fato expressa seus de- 290 Jonathan Culler va de Ovidio intervém para restaurar a rela entre a lingua e o self. (Por exemplo, quando Narciso grita: “Que ossa eu morrer antes que minha opuléncia seja sta!”, Eco repe- teas ditimas palavras, st sbi copia nostri, “que minha opuléncia seja sual”) “Podemos dizer”, escreve Brenkman, “que a histéria de Eco emerge dentro da narrativa maior como o drama da iden- tidade e da integridade restaurada do self. O que poderia ter sido um mero jogo de significagdes deixadas desatadas por um locu- tor, um personagem, uma consciéncia, torna-se o outro lado de um efetivo didlogo entre locutores autonomas, entre dois perso- nagens igualmente imaginados” (p. 301). Embora a “voz” de Eco seja apenas uma vazia e ecoante re- petigao das palavras de Narciso, que ele toma por outra voz, é crucial para a unidade temética e estrutural da narrativa supri. mir 0 fato do engano e da repetigéo vazia, dizendo-nos que os ecos de Eco expressam sim seu desejo, assim restaurando sua or, seu self e sua inteligibilidade, E crucial, pois se o destino de Narciso é ter uma punigio adequada, Eco deve ser um persona. gem que tenha expressado seu desejo e sido rejeitada A supressio da ameaga ao eu colocada pela mera repetigio depende do contraste entre os tipos de repeti¢ao envolvidos nos dois castigos. No caso de Eco, em que voz repete voz, a narrativa pode tratar a segunda voz como independente (como do mesmo tipo que a primeira) e apresentar a repeti¢ao vocal como um did- ogo entre sujeitos independentes. Quando a imagem de Narciso 6 repetida no pogo, no entanto, “6 por meio de um engano que 0 outro aparece como um outro como o eu... a imagem refletida ¢ © que ela reflete estdo divididas por uma absoluta diferenga”. A tepetigio de Eco é vox como a vox que repete, enquanto no caso de Narciso “o original é corpus, mas seu reflexo nfo mais do que umbra ou imago [termos de Ovidio]. O outro ndo é um ou- ‘tro como 0 eu, mas 0 outro do eu” (p. 306). Aopasicao entre tala € reprodugio visual, bem estabelecida por uma tradigdo que Brenkman sucintamente delineia, é essencial para a unidade es. trutural e temética da hist6ria. “Ela regula o sistema narrativo e sela a unidade entre mythos, dianoia e ethos. Todos os aspectos Sobre a Desconsirucio 201 da narrativa dependem da possibilidade do eco tornar-se fala: a estabilidade de Eco como personagem ou consciéncia; a deter- minagio de cada elemento da dianoia — eu e outro, justiga e lei, sexualidade, morte; o sentido da captura imaginéria de Narciso, ea hicrarquia voz-consciéncia/corpo/reflexo” (p. 308) A decisiva intervengao narrativa que faz dos ecos de Eco a expressio de seus pensamentos suprime, como dissemos, a re- petigéo vazia de significantes e transforma o engano de Narciso em compreensio correta, “Essas supressGes sfo essenciais para o sistema narrativo e temiético, que prepata o encontro de Narciso no pogodesig- nando-o como uma punigio. Essa designagio serve para determinar 0 sentido do episédio — isto 6, para orientar suas méltiplas significagdes em diregGo a um sentido que permaneceré consistente com os constructos teméticos da narrativa, Esse gesto requer também uma supressio desig- nada para assegurar a estabilidade e os valores do sistema narrativo?... Sea cena de Narciso produz significagées que 6 sistema narrativo tem de suprimir, elas podem ser deto: nadas apenas se ignorarmos ativamente a designagio ¢ a determinacéo que orientam essa cena” [p. 510] Se de fato ignoramos ativamente a designagéio orientadora, “o que lemos é um texto que excede os limites determinados para ele pelo manifesto sistema tematico da narrativa” Hé dois aspectos nessa leitura mais préxima: a elaboragao do que deve ser suprimido para que o texto alcance sua unidade narrativa ¢ temética ¢ a investigagéo de como esses elementos secundérios ou marginais rompem a hierarquia da qual a estru tura temética depende ao reinscrever o drama em termos deslo: cados. “Ao designar a cena de Narciso como punig&o, a narrativa a restringiria a ser um drama secundério ou mesmo falso do self, ‘um drama de mero logro, futilidade e morte” (pp. 316-17). Mas quando observamos o que é apresentado como momento do reconhecimento, descobrimos que Narciso reconhece o reflexo como uma imagem de si mesmo porque ele vé o movimento de 202 Jonathan Culler seus labios, mas nfio ouve a fala: Narciso diz: “Voc® devolve pa- lavras que niio me alcangam os ouvidos. Eu sou esse.” “Iste ego sum” — marcando o momento em que Narciso no s6 reconhece a imagem como imagem, mas também reconhece ele mesmo (como imagem), abtindo caminho para a realizagio da profecia de Tirésias de que ele viveria até uma idade avangada “si se non noverit” ["se ele no se co- hecer”] — essa articulago enlaga o eu como outro e com espacial. Este enlagamento € aqui irredutivel, uma vez que © auto-reconhecimento nio ocorre, a nfo ser em relago a0 outro e 20 espaco. E precisamente esse momento no drama do self de Nar- ciso que a descrigao metafisica do self deve excluir {p.316] No entanto, o texto de Ovidio ndo apenas nos diz. que o self & conhecido como outro em um estdgio de espelho, mas também apresenta essa cognigao como dependendo da silenciosa, espa- cial e visivel repeticao da voz. “Agrupada ao redor da imagem refletida esta uma multidao de predicados que foram tradicional- mente atribufdos a escrita... Como a no-vivente representacZo da voz, a escrita instala uma relago com a morte dentro do pro- cesso da linguagem” (p. 317). Assim, “o drama de Narciso— se destitufdo de sua designacio como punigéo, como o irénico reencenar de um crime que se anula, e lio como um drama do self — coloca o self em primordial relago com 0 outro, com a espacialidade, com a morte, com ‘escrever’” (p. 320). O outro que Narciso descobre “é um ndo-sujeito que afeta o self, um néo- sujeito sem o qual o self no poderia aparecer a si mesmo ou reconhecer-se” (p. 321), Essa descrigio do self, que a estrutura narrativa ¢ temética suprimem ao determina o sentido do epis6- dio final, nao é simplesmente uma complicagao interessante que ‘ocupa as margens do texto; ela reativa os elementos suprimidos do episddio anterior e mostra que, também para Eco, Iste ego sum: o self 6 constituido por uma repetigaio puramente mecanica (aqui, do som) em que Eco conhece, ou reconhece, ela propri Brenkman explora outras conseqiiéncias — momentos da Sobre a Desconsirugao 293 narrativa que so reinscritos com uma forga diferente por essa transgressdo da estrutura narrativa e temética, Sua leitura mos- tra 0 texto desconstruindo o modelo de didlogo que a narrativa promove, um modelo “que protegeria a identidade do self ¢ a primazia da voz”; mas o resultado néo é uma nova leitura unificada ou uma unidade alternativa, Brenkman escreve, “o episédio de Narciso rompe o autofechamento do sistema narrativo — mithos, dianoia, ethos —, que entao se torna, nao a unidade formal que controla toda a signi do texto, mas sim o limite perpetua- mente transgredido por eles” (p. 326). Essa leitura confirma o que vimos anteriormente: a “proxi- midade” das leituras desconstrutivas nfo esta no comentiirio palavra-por-palavra ou linha-a-linha, mas sim na atengo ao que resiste a outros métodos de entendimento, Encontramos, por exemplo, uma énfase nas formulagées literais empregadas em pontos do texto nos quais as compreens6es unificadoras encora- jam pardfrases ou interpretacao figurativa, De Man toma literal- mente a pergunta que conclui “Among School Children”; Bren- kman enfatiza a letra da exclamagio de Narciso: Iste ego sum, mais do que “Essa nfo outra pessoa” ou “Isso é0 meu reflexo”, sendo que ambos seriam suficientes para a interpretagiio temética unificadora. A formulagio literal de Ovidio, irrelevante para a interpretagio que a obra parece encorajar, é explorada pela criti- ca desconstrutiva porque concorda com as oposigées hierirqui- ‘eas das quais a compreensio unificadora depende. Para calcular ‘anatureza e as conseqiiéncias dessa concordéncia, o critico deve salientar as oposig6es filoséticas nas quais 0 texto se baseia, e 0 trabalho exegético que isso envolve ird variar consideravelmente. Acontece que a vox é proeminente no texto de Ovidio, mas as hierarquias em que figura ¢ os interesses dessas hierarquias s40 trazidos a tona pelo seguimento de varias linhas do texto e pelo Tecorrer a tradicao filosética. (Brenkman prové uma sucinta des- crigdo de momentos relevantes em Kant, Husserl, Heidegger ¢ Derrida.) Punindo Narciso por amor a si mesmo, a hist6ria de Narciso Pressupde 0 self, mas como Brenkman mostra, ela identifica 0 204 Jonathan Culler self como um constructo tropolégico, uma denominagio substi- tuta baseada na semelhanga: Iste ego sum. O texto de Ovidio seria, ento, o que de Man chama de uma “pardbola de denomii nacdo” ou narrativa tropol6gica (Allegories of Reading, p. 188). “O paradigma de todos os textos consiste em uma figura (ou um_ sistema de figuras) e sua desconstrucao.” “Narrativas descons- trutivas fundamentais, centradas nas figuras, e basicamente sem- pre na metéfora’, sio narrativas tropol6gicas que contam a hist6- ria da denominagao e seu desfazer (p. 205). passagem de Proust analisada anteriormente 6 uma hist6ria da metifora e sua sub- versio. Billy Budd usao golpe de Billy paranarrar a desconstrugio de uma logica de significagio. A histria de Narciso retrata 0 auto-reconhecimento como uma enganosa denominagao, “Uma narrativa”, escreve de Man, “conta infinitamente a hist6ria de ‘sua propria aberragdo denominacional” (p. 162). Tais narrativas desconstrutivas parecem “alcangar a verdade, ainda que pela via negativa de expor um erro, uma falsa aspira- Géo... Parece que terminamos em um humor de negativa convic- do que é altamente produtivo para o discurso critico” (p. 16). Na verdade, no entanto, esse modelo de uma figura e sua desconstrugio “nao pode ser encerrado por uma leitura definiti- va” “e engendra, por sua vez, uma superposigao figurativa suple- mentar que narra a ilegibilidade da narragdo anterior”. Tais nar- rativas de segundo grau sfo alegorias de leitura — na verdade, alegorias de ilegibilidade. “Narrativas alegéricas contam a hist6- ria do fracasso em ler, enquanto narrativas tropol6gicas, tais como [de Rousseau] Second Discourse [Segundo discurso], contam a histéria do fracasso em denominar” (p. 205). Narrativas desconstrutivas fundamentais nao podem ser encerradas em um onto de convicgdo negativa como a exposigio de um tropo, por- que, de Man sugere em observagdes sobre Proust e sobre Julie Citadas acima, a hist6ria da desconstrucio — a desconstrucao da metéfora do “amor” — é produzida pelo narrador da obra, ¢ esse narrador é o produto metaférico de um sistema gramatical. ‘A histéria que desmascara um constructo tropolégico, assim, depende de um tropo, deixando nao uma conviegao negativa, Sobre a Desconstrucio 205 ‘mas sim um injustificdvel envolvimento ou, como de Man o chama, talvez com menos felicidade, “uma ignordncia suspensa” diante de uma alegoria de ilegibilidade. De Man afirma que a mudanga da desconstrugao de figuras para alegorias de leitura é inerente a logica das figuras, mas alguns textos, tais como o de Rousseau, ativa e brilhantemente provem alegorias de sua ilegibilidade, Julie 6 um bom exemplo. Na metade do livro, Julie escreve uma carta decisiva a Saint-Preux rejeitando © amor ¢ prenunciando a desconstrugao do amor como figura, uma mistificada troca de propriedades entre o interior e o exterior, corpo ¢ alma, eu ¢ outro. A primeira metade da narrativa esgotou as possibilidades de substituigGes praticdveis dentro de um siste- ma de oposigdes especulares, ¢ Julie anuncia que todas essas subs- tituigdes estavam fundadas em uma aberracdo agora passada, Ela escreve, por exemplo: “Eu pensei ter reconhecido em seu rosto os vestigios de uma alma que era necesséria para a minha, Pareci me que meus sentidos agiam apenas como érgdos de um sent mento mais nobre, ¢ eu amava vocé nfo tanto pelo que pensei ver em voo’, mas pelo que senti em mim mesma,” Essa linguagem de exaltado sentimento oferece, de fato, uma precisa andlise da légica figurativa do amor, elucida o processo de substituigao do qual a histéria até aqui dependeu e tematiza o desmascaramento desconstrutivo de uma figura pela obra, ‘A narrativa também extrai conclusdes dessa descoberta de uma aberracio, “No lugar de ‘amor’ baseado nas semelhangas substituigdes de corpo e alma ou self e outro, aparece o acordo contratual do casamento, imposto como uma defesa contra as paixGes e como a base da ordem politica e social” (p. 216). Mas, como de Man também argumenta em sua leitura de Proust, a lucidez da desconstrucdo da figura produz problemas maiores. “No momento em que Julie adquire um maximo de percepgiio, o controle sobre a retérica de seu proprio discurso € perdido, para nés tanto quanto para ela” (p. 216). O resultado é uma ilegibilidade que surge de varias manei- ras: tematicamente para os personagens; lingiistica ¢ alegorica- mente para 0s leitores e “autores”. Primeiro, ha a inabilidade de 290 Jonathan cutter Julie para entender sua prOpria desconstrugio. Ela imediatamente comeca a repetir 0 mesmo envolvimento figurativo ilusério que ‘Go lucidamente expusera, dessa vez substituindo Saint-Preux por Deus. “A linguagem de Julie imediatamente repete as nogdes que ela apenas vinha denunciar como erros... ela 6 incapaz de ‘er’ seu prOprio texto, incapaz de reconhever como set modo ret6rico se relaciona com seu sentido” (p. 217). Segundo, hé um insistente discurso ético que os leitores e eriticos tém considerado dificil de ler: 0 tom moralizante de partes de Julie e da longa discussao de R, no segundo Preficio, sobre o bem que seu livro fard aos leitores sio indicagdes da alegoria de leitura, “As alegorias so sempre éti- cas”, escreve de Man. “A passagem para uma tonalidade ética no resulta de um imperativo transcendental, mas € a verso referencial (€, portanto, inconfidvel) de uma confusio lingiifstica”, a inabi dade de ler e calcular a forga de uma narrativa desconstrutiva (p. 206). Terceiro, a afirmacio de R no Preficio, de nfo saber se es- creveu ou nao a obra, alegoriza, de Man declara, “o rigoroso ges- to... pelo qual o escritor se mantém a parte da inteligibilidade de seu proprio texto” (p. 207). “A afirmagao de R de sua incapacida- de seu prOprio texto 6 similar & recaida de Julie em modelos metaféricos de interpretagéo nos seus momen- tos de insight” (p. 217n). Os aspectos de Julie que leitores fre- giientemente consideraram entediantemente ilegiveis funcionam como uma alegoria de ilegibilidade, uma combinagio de refina- mento epistemoldgico e ingenuidade utilitarista, que é em si dificil de ler e resulta da incapacidade dos personagens e do autor de ler seus proprios discursos. Poder-se-ia dizer, de modo mais geral e cruel, que as obras que se tornam entediantes e sentimentais ou moralistas em suas segundas metades, tais como Julie, Either/Or [Ou/Ou] ou Daniel Deronda, e que parecem regredir das percepgSes que alcangaram, sio alegorias de leitura que, através de movimentos éticos decisiva ‘mente incoerentes, expdem a incapacidade das narrativas descons- trutivas de produzir um conhecimento estabelecido. “As descons- trugGes de textos figurativos engendram narrativas lticidas, que produzem, por sua vez e como se fosse dentro de sua prépria tex. i 5 Sobre a Desconsiragde 00 tura, uma escuridéo mais terrfvel do que o erro que dissipam” (p. 217). O problema, ao que parece, é “que uma lingua totalmente iluminada... 6 incapaz de controlar a recorréncia, em seus leitores tanto quanto em si mesma, dos erros que expée” (p. 219n), Minha exposigao da critica de de Man, como todas as expo- sigées da desconstrugao, 6 enganosa, niio porque perca algum je nne sais quoi da critica desconstrutiva ou hereticamente cometa a paréfrase de complexos escritos, mas porque a légica do sumé € da exposigao leva a que se focalizem conclusées, pontos de chegada —e, portanto, na auto-subversio ou aporia ou igno- rancia suspensa — como se fossem o desenlace. Uma vez que a desconstrugao trata qualquer posig&o, tema, origem ou fim como ‘uma construgao, e analisa as forgas discursivas que os produ- zem, 0s escritos desconstrutivos tentardo pér em questo qual- quer coisa que poderia parecer uma conclusio indiscutivel e ten- taro tornar seus préprios desfechos peculiarmente divididos, paradoxais, arbitrérios ou indeterminados. Isto quer dizer que esses desfechos nao sao o desenlace, embora possam ser enfati- zados por uma exposig&o suméria, cuja I6gica leva a que se re- construa a leitura em vista de seu fim. As realizagGes da critica desconstrutiva, como os mais perceptivos leitores viram, esto antes no delineamento da légica dos textos do que nas posturas ‘com as quais ou nas quais os ensaios criticos terminam. E fécil tomar conclusdes criticas como afirmagées do sentido de uma obra quando, como nos exemplos até aqui considerados, 0 ensaio aborda uma obra em particular, langando mao ocasional- mente de discursos te6ricos para identificar os interesses de cer- tas oposig6es hierdrquicas; mas explorando como, em um texto ‘em particular, elementos que um entendimento unificante repri miu funcionam para desfazer as estruturas das quais parecem ser marginais. Contudo, as leituras desconstrutivas podem ser conduzidas em um espago intertextual, e af torna-se mais claro que seu objetivo nao é revelar o sentido de uma obra em particu- Jar, mas sim explorar as forgas e as estruturas que se repetem na Ieitura e na escrita 208 Jonathan cutter Assim, a critica desconstrutiva pode analisar uma obra como leitura de outra —nas palavras de Derrida como “uma maquina com méiltiplos eabegotes de leitura para outras obras” (“Living On”, p. 107) —, buscando a l6gica de um significante ou com- plexo significante & medida que se desloca através de uma varie- dade de obras, ou usando as estruturas de uma obra para revelar ‘uma energia radical em passagens aparentemente asfixiantes de uma outra, “Nés sugerirfamos”, escreve Jeffrey Mehlman em Revolution and Repetition, “que uma leitura de um texto fosse avaliada acima de tudo em termos de sua capacidade de ‘ler’ ou- tros textos, de liberar energias que do contrério estariam conti- das em outra parte, Além disso, na medida em que uma leitura é radical, a qualidade daquela energia deveria ser determindvel como ‘uma multiplicidade de surpresas inteiramente locais” (p. 69). Em uma anélise que ele chama de “decidida e perversamente super- ficial” (p. 117), Mehlman joga superficie contra superficie para produzir uma convergéncia do revolucionério Marx e do reacio- nério Hugo em seus escritos sobre revolugao. Elementos tais como tocsin (campainha de alarme) e seus homéfonos, e imagens de toupeiras e ttneis subterraneos estabelecem conexdes entre os dois discursos, que se mostram surpreendentemente produtivos no despertar ou identificar de Iégicas compardveis, pelas quais as oposiges fundamentais e 0 movimento de sintese dialética em cada obra sfio subvertidos. A aplicagao dessas superficies uma 2 outra emite uma bizarra, no entanto compardvel, afirmagao de heterogeneidade de cada uma das duas obras, que parecem de didamente dedicadas a totalizagio. Lendo Marx com Kant, como Mehiman Ié Marx com Hugo, Richard Klein usa a andlise de Marx do ouro e da “forma equiva- lente” para descobrir que o momento de mais procminente mau gosto na teoria estética de Kant, a bajuladora celebracio da su- blime beleza de um poema de Frederico, O Grande, em que o rei ‘se compara ao sol, tem a mesma estrutura que a “sublime infinitude da forma equivalente” em Marx ¢, portanto, nao é um infortunado lapso a ser desconsiderado, mas a chave da organi- zagdo que a est6tica pressupée ("Kant’s Sunshine”). Le Scandale Sobre a Desconstrucde 209 du corps parlant: Don Juan avee Austin ou ta seduction en deux langues, de Shoshana Felman, arma uma complexa interagio de textos, lendo o Don Juan, de Moliére, como uma teoria mais pers- picaz dos atos de fala, do que a teoria de J. L. Austin e expondo Austin como um arquissedutor. Mas se Austin seduz, Lacan ca- tiva, uma vez que Felman descobre que Austin diz “A peu prés la méme chose” como Lacan, ¢ inscreve o projeto, que seus segui dores tentam completar, dentro de uma organizagio geral que impede sua complementagio. Abordando um tipo diferente de problema ao estudar obras intimamente relacionadas cujas relagdes foram redutivamente definidas, Barbara Johnson Ié os poemas em prosa de Baudelaire contra seus equivalentes em verso, Suas Défigurations du langage poétique investigam como os poemas em prosa internalizam e problematizam as supostas diferengas entre prosa ¢ poesia. O “embate de cddigos" entre verso ¢ prosa tem lugar dentro dos préprios poemas em prosa, em uma série de complexos movi- mentos que ela segue com mestria, Porém, mais do que sumarizar tais discuss6es, poder-se-ia considerar um tipo diferente de ensaio, notavel por seu tato — nenhuma declaragio de que isso desconstr6i aquilo — e por seu sucesso em incluir na série textual algum material biogréfico fas- cinante e uma rede de relagGes humanas. A leitura intertextual de Neil Hertz de “Freud and the Sandman” toma como ponto de partida a parte de “The Uncanny” em que Freud analisa a narra- tiva de Hoffmann, ligando seu poder literdrio & compulsio a re- Petigdo que ele recentemente postulara e, assim, estabelecendo uma relagio entre tipos de paralelismos e repetig6es habitual- ‘mente em agao em composigées literdrias e uma forga fisica po- derosa e mével. Os materiais de Hertz para explorar a conjungio do literério e do psicol6gico incluem: a narrativa de Hoffmann, que se torna um agente de iluminagdo, além de um objeto de estudo; 0 ensaio de Freud; a descrig’o metapsicolégica da compulsio a repetigéio em Beyond the Pleasure Principle; ¢ as evidéncias biograficas que contam a hist6ria das relagGes de Freud com seu discfpulo Victor Tausk e duas mulheres: primeiro, a ad- 300 Jonathan Culler miradora de Freud ¢ amante de Tausk por algum tempo, Lou Andreas-Salomé, e, depois, a analista de Tausk e analisanda de Freud, Helene Deutsch. pargrafo de abertura do ensaio de Freud identifica 0 su- jeito do estranho como uma remota provincia da estética, do tipo que um psicanalista pode, em raras ocasides, sentir-se impelido a investigar. Uma vez que Hoffmann € o “mestre incompardvel do estranho na literatura”, suas hist6rias oferecem o material para ‘uma investigagao psicanalitica das bases de certos efeitos liter4- rios. A leitura de Freud focaliza um padrao de repeticao em que uma figura paterna (0 Homem da Areia, Coppelius/Coppola) bloqueia as tentativas de Nathanael de amar (com Klara e Olympia). A nogdo de Nathanael de que ele 6 “o horrfvel brin- quedo dos poderes da escuridiio”, e a nogo do leitor do estra- ho sio identificadas como efeitos do velado, mas insistente, complexo de castragio, “O sentimento de algo estranho”, escre- ve Freud, “esté diretamente ligado a figura do Homem da Areia, isto 6, Aidéia de ter os olhos roubados”; e elementos de repeti¢ao que de outra forma parecem “arbitradrios e sem sentido” tornam- se inteligiveis logo que ligamos 0 Homem da Areia com “o temi do pai de cujas maos a castragio é esperada” (“The Uncanny vol. 17, pp. 230, 232). Aeescritura de “The Uncanny” esti em si entrelagada com o problema da repetigio. Em maio de 1919, relata Freud, ele reto- mou e reescreveu um rascunho anterior, e pensa-se que o tenha feito como resultado do novo entendimento da compulsdo & re- petigdo que ele adquiriu em margo ou abril de 1919, enquanto trabalhava em um rascunho de Beyond the Pleasure Principle. Além disso, a identificagio de Freud em “The Sandman” de um repetido tridngulo baseado no medo da castracio (Coppelius/ Nathanael/Klara e Coppola/Nathanael/ Olympia) sugere um ator- mentador paralelo com uma repetigfo triangular que emerge nas préprias relagdes de Freud com seu discipulo Tausk, em que pa- rece haver fortes sentimentos de rivalidade edipiana em ago. No primeiro trigngulo (Freud/Tausk/Salomé), Salomé e Freud con- versavam longamente sobre o sentimento de rivalidade de Tausk ed Sobre u Desconstrugto 301 e sobre o desconforto de Freud quanto a originalidade equanto a ter discipulos. No segundo (Freud/Tausk/Deutsch), Freud re- ‘cusou admitir Tausk para uma anilise de supervisdo (com receio de que Tausk imaginasse que as idéias que ele aprendera em suas ssess6es com Freud fossem do préprio Tausk) o enviou para Helene Deutsch, que estava cla propria em anélise com Freud ‘Tausk falava sobre Freud em suas sess6es com Deutsch, e Deutsch falava sobre Tausk em suas sessdes com Freud, até que Freud ‘exigiu que ela interrompesse a anélise de Tausk. Trés meses de- pois, na véspera de seu casamento, Tausk se matou, deixando ‘um bilhete para Freud cheio de expresses de respeito e gratidio. ‘Tiés pontos que tornam tentadora a superps gulos séo, primeiro, a combinagio do temor de Freud quanto & riginalidade e ao plégio com sua efetiva intervencfio nas relagées de Tausk com mulheres; segundo, a “coincidéncia” segundo a qual Freud, como ele coloca, “tropegou em” uma nova teoria do instin- to de morte exatamente na época do suicidio de Tausk; ¢ terceiro, ofato de que “oretirar-se de Freud de uma relacao triangular com Tausk e Deutsch coincide com o comego de seu trabalho no pri- meiro rascunho de Beyond the Pleasure Principle, isto €, no texto fem que ele pela primeira vez formula uma confusa teoria da repe- tigo” (“Freud and the Sandman”, pp. 316-17). Freud, entao, retorna 20 seu trabalho sobre o estranho e o reescreve, propondo a descoberta de que o que quer que nos lembre dessa compulso interna a repeticao é percebido como estranho” e citando, como exemplo dessa sorte de compulsdo, a seqiiéncia de relagées trian- gulares em “The Sandman”, Aqui, continua Hertz, “pode-se co- mecar a sentir o chamado da tentagio do intérprete”; Serd que podemos sobrepor essas duas séries de triéngulos? “E se pensamos que podemos — ou desejamos que pudés- semos —, entio, 0 qué? Nés podemos fazer uma hist6ria disso? Nao poderiamos nos sentir ‘o mais fortemente com pelidos’ a fazé-lo {como o narrador do “The Sandman’ diz de seu impulso de contar a histéria de Nathanael}, para ar- Tanjar esses elementos em seqliéncias temporais e causais? 302, Jonathan Culler Por exemplo, poderfamos dizer que a teoria da repetigéio que Freud elaborou em margo de 1919 seguiu de perto — foi uma conseqiiéncia de — sua percepgfio de que ele esta- va novamente preso em um certo relacionamento com ‘Tausk? Poderfamos acrescentar que Freud inevitavelmente perceberia aquela relagdo como estranha — niio exatamen- te lterstia, mas ndo exatamente real tampouco, as engrena- gens da compulsio vislumbradas ‘através’ de uma conscién- cia de algo-sendo-repetido?” {p. 317] A formulagio de Hertz alude a afirmagio de Freud de que 0 es- tranho resulta nfo de ser lembrado de seja Id o que esteja sendo repetido, mas do vislumbrar ou ser lembrado dessa compulsio & repeticéo, que seria mais provavel acontecer em casos em que 0 que quer que seja repetido parece particularmente gratuito ou excessivo; o resultado de nenhuma causa, mas uma bizarra ma- nifestagao da repetigao em si, como se pelo efeito literdrio ou ret6rico, Parte da estranheza do caso diante de nés — as rela- (gGes de repetigdo entre as estruturas da narrativa, os processos ¢ conclusdes da escrita de Freud, e os padrdes de suas relagdes com outros — pode vir do fato de ela soar como um modelo literdrio, que seria violado pela busca de uma causa psicol6gica, de um original do qual essas repetigGes seriam repetigées. Até 0 ponto em que esse modelo ainda nos solicita e ainda resiste a solugio, Hertz escreve: “N6s somos mantidos em um estado em algum lugar entre a ‘seriedade emocional’ e anteprazer literario, conscientes de vacilar entre a literatura e a ‘nfio-ficgdo’, nosso senso de repetigdo-em-agdo matizado pelas Iiridas sombras da agressao, da loucura e da morte violenta” (pp. 317-18). A tentagio do intérprete, em tais situagbes, ¢ dominar esses efeitos de repeti¢ao, moldando-os em uma histéria, determinan- do suas origens e causas e dando-lhes coloridos draméticos e significantes. Assim Freud falara de Tausk como tendo causado nele uma “estranha” impressio; para nds, definir e explicar isso como, especificamente, um medo do plégio— um medo de que Tausk roubasse e repetisse suas idéias — é focalizar econtrolar a repetigao por meio de um conto lirido, Poder-se-ia esperar, Sobre a Descor truco 303 tio, que um intérprete do estranho em “The Sandman”, tal como Freud, também encontraria um modo de controlar as repetig&es que, através de sua retoricidade, fornecem vislumbres da propria repetigao. O que Hertz mostra, na verdade, 6 que a negligéncia de Freud quanto ao narrador e ao enquadramento narrativo em sua leitura de “The Sandman” é uma significativa fuga, pois as acrobacias autoconscientes do narrador no comeco da histéria estabelecem um confuso paralelismo entre “as forgas que dirigem Nathanael e seja lé 0 que esteja impelindo o narrador” a tentar repetir ou representar a historia. As atividades dos personagens e do narrador, incluindo aquelas de Nathanael quando ele tenta es- crever ou representar sua condig&o, estdo ligadas por uma série de imagens envolvendo a transmissao de energia. “Como resul- tado das manipulagdes de Hoffmann”, escreve Hertz, “um leitor € levado a sentir, confusamente, que a vida de Nathanael, seus escritos, o contar histérias do narrador, a escrita de Hoffmann e 4 propria aquiescéncia fascinada do leitor por ela so impelidos pela mesma energia, ¢ impelidos de modo preciso, para repre- sentar aquela energia, para colorir seus contornos mal discerni- veis” (pp. 309-10). A histéria, em resumo, apresenta um ator- doante espectro de repeticdes, situando o apelo de Nathanael no contexto de uma repeti¢ao generalizada; mas aquilo que € repe- tido aqui, e que assim representa ou colore a repetigéio, é precisa- mente 0 impulso de representar energias, de preencher seus con- tornos. Ao desviar-se das repeticdes “lterdrias” internas a obra para concentrar-se nas repetigdes dentro das historias de Nathanael — repetig6es que ele atribui ao complexo de castra- lo —, Freud esté seguindo um padrao repetido na historia: te: presentando energia, colorindo-a de um modo liirido (como medo repeticao ando 0 medo da castracao para emprestar um poderoso colorido emocio- nal A repetigio que ele analisa, Freud focaliza e circunscreve a repeticiio, desse modo “domesticando a hist6ria precisamente a0 enfatizar seu lado escuro e demonfaco” (p. 313) da castragéo). Evitando a mais transtornante e eva — que pode prover vislumbres da repetigaio em si — nathan Culler 304 Em cada um desses casos encontramos a nogio de colorir — aquilo que empresta visibilidade, definigio ou intensidade ao in- definido, como a linguagem figurativa é dita colorir, tornar visf- vel e intensificar conceitos que so dificeis de apreender.” Freud observa, por exemplo, que os impulsos fundamentais que ele postula, tais como o instinto de morte, sao visiveis apenas quan- do “tingidos ou coloridos” pela sexualidade. Similarmente, o que 6 repetido age para colorir e tornar visivel (e dar colorido afetivo a) a compulsao & repeticdo. Freud também identifica suas cate- gorias tedricas, tais como a propria nogdo da compulsio a repe- tigo, como linguagem figurativa, que torna visivel o que nomeia, Desculpando-se em Beyond the Pleasure Principle por “ser obri- gado a operar com os termos cientificos, quer dizer, com a lin- guagem figurativa peculiar A psicologia”, ele observa que “nao poderfamos de outra forma descrever de todo os processos em questo, e deveras nfo poderfamos nos ter tornado conscientes deles” (vol. 18, p. 60). A mais impressionante referéncia ao colo- rir — conferir visibilidade, intensidade e definigéo — vem na conclusao da andlise de Freud de “The Sandman”. Podemos ten- tar negar que medos da perda de um olho sejam os medos da castragio, escreve Freud, mas uma argumentagao racional sobre o valor da vista nao dé conta da relagao de substituicdo entre 0 olho eo pénis em sonhos e mitos; “nem pode dissipar a impres- slo de que a ameaca de ser castrado excita em especial uma emo- Gao particularmente violenta e obscura, € que essa emogao & 0 que primeiro dé & idéia de perder outros érgaios esse intenso co- lorido” (vol. 17, p.231). Assim como o medo da castragao prové intenso colorido, também a evocagio da castracio prové intenso colorido e drama a uma historia de repeticao. Parece que nos diferentes tipos de material que Hertz reuniu, temos uma série de coloridos que representam ou dio defini XLaitores podem coisiderar minha énfase no colorir uma tentativa de tornar mew 0 ‘acmirével ensaio de Hertz, assinando sews mas deisivos momentos. Sem dévida, nada farei para dissipar essa crenga ao relatar que me tomou um tempo extreordinariawent® Jonge para descobrir que o colori era, de fto, a chave para a eompreonsdo do stile dlfclargumento de Hert bre a Desconstrucio 305 ¢ intensidade as forcas que de outra maneira poderiam ser index finidas ou, no minimo, menos intensas e palpveis. Em outra parte, Hertz escreveu sobre o modo como, quando conftontados ‘com proliferagdes de qualquer sorte, somos tentados a dramati- zat ¢ exacerbar nosso estado, para produzir um momento de blo- queio — o que Kant em sua descricéo do sublime matemético chama de “um verificar momenténeo das forcas vitais” —, para que a proliferagéo ou a repetigao ou uma seqiiéncia indefinida sejam resolvidas em um obstaculo que produza algo como uma confrontagio um-para-um — uma confrontago que assegure a identidade c a integridade do eu que experimenta 0 bloqueio. A indefinigio, a proliferacao, a repetigéo tornam-se menos amea- gadoras caso sejam concentradas em um adversdrio ameacador ‘ou em uma forga poderosa, tal como o pai castrador; pois essa concentragao possibilita uma confrontagéo especular que, em- bora traga terror ou derrota, confirma a condigéo do eu que a Tepeticao e a proliferacao ameagavam, “O objetivo em cada caso”, escreve Hertz, “é 0 momento edipiano... quando uma seqiiéncia indefinida e desordenada € resolvida (qualquer que seja o sacriff- cio) em uma confrontagéo um-para-um, quando o excesso nu- mérico é convertido naquela excessiva identificacéo com o agen- tebloqueador, que é aquele que garante a integridade do eu como um agente... A passagem ao limite pode parecer Itirida, mas tem Seu Us0s éticos e metafisicos” (“The Notion of Blockage in the Literature of the Sublime”, p. 76). O demonfaco ou o edipiano — 0 colorido da castragio, por exemplo — pode de fato ser reconfortante, através de seu foco e de sua domesticagao (trazer de volta ao pai) da repetigao, que de outra forma poderia parecer indefinida, ret6rica, estranha, gratuita, Por exemplo, a interpre- tagio de Freud da estranheza de Tausk como uma ameaga de légio, quando tomada com outras passagens em que Freud rei- Vindica ou modestamente renuncia & originalidade, sugere “que ‘divides’ e ‘incertezas’ mais fundamentais — devidas sobrea compreensio que qualquer linguagem figurativa tem sobre os principios primeitos, especialmente quando os prin- 300 Jonathan Culler cfpios primeiros incluem um prinefpio de repeti¢o — po- dem estar em aco, gerando a ansiedade, que é entiio ence- nada no registro da prioridade literdria. A especificidade desse especiro de desejos e medos — o desejo de ser origi nal, o medo de plagiar ou ser plagiado — agiria para estru- turare tornar mais controlével, ndo importa quo melodra- maticamente, 0 mais indeterminado afeto associado & repetigio, marcando-o ou colorindo-o, conferindo ‘visibil dade’ As forgas da repeticao ¢, ao mesmo tempo, disfargan do a atividade dessas forgas do sujeito em si” (“Freud and the Sandman”, p. 320) ‘No caso das repetigdes que ligam as relagdes de Freud com Tausk seus escritos e sua leitura de “The Sandman”, estarfamos do- mesticando o cardter curiosamente ameagador e quase-literério desses padrées, se os fossemos transformar em uma histéria so: bre uma mortal rivalidade edipiana, muito como Freud deixa de lado as repetigdes literérias de “The Sandman” para atribuir seus efeitos ao medo da castraco. Quanto mais intenso 0 colorido desses dramas, com mais sucesso evitam o problema da repeti- G0, cuja estranheza pode se fazer mais bem sentida em momen- tos menos motivados e mais “ret6ricos”: 0 que parece “mera- mente” literério pode colocar alguém em contato com a repetigao mais profundamente, Mas o que mais se anseia nos dramaticos coloridos da repetigio, argumenta Hertz, é a tentativa “de isolar a questdo da repetigio da questo da linguagem figurativa em si” (p. 320), As discussées de Freud, que tratam a sexualidade, 0 que € repetido, o medo da castragdo e seus prdprios termos téc- nicos como coloragées, sugerem a impossibilidade de desenre- dar essas duas questdes: “ao tentar chegar a termos com a ‘compulsio 8 repeticio, descobre-se que a irredutivel figuratividade de uma lingua é indistinguivel da infundada e aparentemente inexplicdvel nogdo de compulsdo em si. Em tais momentos, 0 desejo de deixar de lado a questo da linguagetn figurativa pode~ ria afirmar-se como uma contraforga as mais poderosas apreen- s86es de alguém quanto A compulsio de repetir, e poderia tomar a forma que toma na leitura de Freud de ‘The Sandman’, a forma bre a Desconsirucio 301 de um desejo de néo encontrar ‘nenhuma literatura’ ali” (p, 321) Hertz Ié essa negligéncia do literdrio e finalmente dos aspectos intertextuais da repetigo (as repetigdes salientadas pela inseri- gio das relagdes pessoais de Freud e pelos seus prdprios atos de escrita dentro desta singular série textual) como uma defesa contra ‘ou uma compensagao pelo obscurecimento de tais relagGes pela teoria da repetigo de Freud. Seu ensaio € um sutil exemplo do modo como a critica desconstrutiva pode explorar os casos de repeticdo intertextual. O ceixo final sobre o qual se devem mapear as verses da critica desconstrutiva é 0 uso de leituras anteriores. De Man fala de seus seguidores lendo clase readings anteriores para mostrar que elas nao eram nem de longe préximas o suficiente, e nés vimos como as anélises desconstrutivas desfazem posig6es ou conclu- 86es aparentemente afirmadas por uma obra ¢ convenientemen- te manifestadas em suas leituras anteriores. No entanto, a maior parte das criticas faz. algo similar, contrastando uma obra com leituras anteriores para mostrar onde elas erraram e procurando corrigir ou completar. Como a desconstrugio é diferente, caso seja diferente? Alguns dos exemplos que discutimos sugerem que a tentativa de corrigir leituras anteriores é uma versio da tendéncia geral de ‘converter uma diferenca dentro em uma diferenca entre: um pro- blema dentro do texto € transformado em uma diferenga entre 0 texto e sua interpretagio critica. Embora as andlises desconstrutivas Tecorram muito as leituras anteriores e possam divergir impres sionantemente dessas leituras, elas podem tratar essas leituras menos como acidentes externos ou desvios a serem rejeitados do ue como manifestagdes ou deslocamentos de forgas importantes dentro da obra. Ensaios como “The Frame of Reference”, de Barbara Johnson, sugerem a infinita regressiio da corregdo e tor- znam os eriticos mais inclinados a situar as leituras do que a con gi-las. Derrida e de Man fazem considerdvel uso das leituras ante- riores de Rousseau, de modo a identificar as linhas inescapaveis u os problemas internos aos escritos de Rousseau 308 Jonathan cuter No entanto, o modo como leituras anteriores séo situadas por ensaios desconstrutivos varia de forma considerével. J. Hillis Miller, por exemplo, freqiientemente fala da relacao entre a leitu- radesconstrutiva e o que ele ds vezes chama de leitura “metafisica” ow, segundo M. H. Abrams, “leitura dbvia ou univoca”, como uma relagio de tensa coexisténcia. The Triumph of Life, de Shelley, escreve ele, “contém em si, lutando irreconciliavelmente um com © outro, tanto o logocentrismo quanto o niilismo. Nao é por aci- dente que criticos discordaram sobre ele. O sentido de The Triumph of Life nunca pode ser reduzido a qualquer leitura ‘unfvoca’, nem a uma leitura ‘6bvia’, nem a uma sincera leitura desconstrucionista, se pudesse haver tal coisa, que nao ha” (“The Critic as a Host”, p. 226). “As grandes obras de literatura”, es- creve Miller em outro ensaio, “provavelmente estarao adiante de seus criticos. Elas ja esto 1d. Elas anteciparam explicitamente qualquer desconstrugéo que o critico possa alcangar. Um eritico pode desejar, com grande esforgo, e com a indispensével ajuda dos préprios escritores, elevar-se ao nfvel de sofisticagéo lingiifs- ticaem que Chaucer, Spenser, Shakespeare, Milton, Woodsworth, George Eliot, Stevens ou mesmo Williams jé esto. Eles ja estio 14, no entanto, necessariamente de um modo tal que suas obras esto abertas a mistificadas leituras” (“Deconstructing the Deconstructors”, p. 31). tarefa do critico, entio, é “identifica tum ato de desconstrugao que, em cada caso diferentemente, foi sempre realizado pelo texto sobre si mesmo”. As leituras an- teriores eas leituras desconstrutivas, ambas enfocam os sentidos € as operagées “tematizados no proprio texto sob a forma de afirmagGes metalingiisticas” que aguardam ali, em tensa coexis- téncia, atos de identificagdo que as trardo a luz, Em suas leituras de Die Wahlverwandischafien, por exem- plo, Miller esboca uma tradicional “interpretagdo religio-estét ca-metafisica do romance”, que o préprio Goethe parece ter au- torizado, mas entio argumenta que certos “aspectos do texto Jevam a uma leitura inteiramente diferente dele” e produzem uma irredutivel heterogeneidade, na medida em que essas leituras, ambas tematizadas na obra, articulam “duas nogées inteiramen- Sobre a Desconstrugio 30 te incompativeis da nossa tradigdo” sobre eus e relagées pessoais ("A ‘Buchstibliches’ Reading of The Elective Affinities”, p. 11). O que ele chama dea “leitura ontol6gica” ea “leitura semiética” estiio ambas “entretecidas no texto, articuladas ali, uma linha negra entrelagada com uma vermelha, O texto € heterogéneo. As linhas de auto-interpretagao do romance contradizem-se mutua- mente. O sentido do romance est na necessidade dessa contra- digo, no modo como cada uma dessas leituras gera sua contraparte subversiva e é incapaz de aparecer sozinha” (p. 13). Essa relagio de tensa coexisténcia faz de “Die Wahlverwandis- chaften outra demonstrago da auto-subversiva heterogeneidade de cada grande obra da literatura ocidental, Essa heterogeneidade de nossos grandes textos literdrios 6 uma manifestagdio impor- tante da equivocidade da tradigéo ocidental em geral” (p. 11). Aqui, 0 sentido de uma obra é visto como a combinagéo nao sintetizavel de leituras anteriores com a nova leitura que Miller oferece — uma combinagao que representa as combinagdes he- terogéneas de nossa tradigéo, Outras anélises desconstrutivas situam essas Ieituras ante- riores de forma um tanto diferente. A discussio de Shoshana Felman de The Turn of the Screw, de James, prop6e-se a mostrar, por exemplo, que quando os criticos afirmam estar interpretan- do a hist6ria, posicionando-se fora dela e nos dizendo seu verda- deiro sentido, eles esto, na verdade, presos nela, fazendo um papel interpretativo que jé esté dramatizado na histria. Desen- tendimentos entre os criticos sobre a hist6ria so, na verdade, uma estranha repeticdo transferencial do drama da hist6ria, de modo que as mais fortes estruturas da obra emergem nfo no que 08 criticos dizem sobre a obra, mas em sua repeticao ou em suas implicagoes na hist6ria. O leitor de The Turn of the Screw, escre- ve Felman, “pode escolher entre acreditar na governanta e, as- sim, se portar como Mrs. Grose, ou ndo acreditar na governanta, € assim se portar precisamente como a governanta. Uma vez que 6a governanta quem, dentro do texto, faz 0 papel do leitor des- confiado, ocupa o lugar do intérprete, desconfiar desse lugar € dessa posigio é, portanto, assumi-lo. Desmistificar a governanta 310 Jonathan Cutter 86 & possivel sob uma condigfo: a condigio de repetir o proprio gesto da governanta” (“Turning the Screw of Interpretation”, p. 190). Assim, por exemplo, “6 precisamente proclamando que a governanta est louca que [Edmund] Wilson, inadver imita amesma loucura que denuncia; queinvoluntariamente toma parte nela” (p. 196). De acordo com a descrigdo psicanalitica da transferéncia e da contratransferéncia, as estruturas do inconsciente sfo revela- das nao por afirmagGes interpretativas do discurso metalingiifstico do analista, mas pelos efeitos percebidos nos papéis que os ana- listas se vem fazendo em seus encontros com 0 discurso do pa- ciente, “Le transfert”, diz Lacan, “est la mise en acte de la réalité de linconscient” [A transferéncia 6 a encenagao da realidade do inconsciente] (Les Quatre Concepts fondamentaux de la psycha- nalyse, pp. 133, 137). A verdade do inconsciente emerge na tran: feréncia e na contratransferéncia, conforme o analista é preso em uma repetigdo de estruturas-chave do inconsciente do paci ente, Sea transferéncia é uma estrutura de repetigao ligando os discursos do analista e do analisado — do paciente ou do texto —, temos algo compardvel na situagdo que Felman descrev intérprete faz voltar um padrao do texto; a leitura 6 uma repe (go deslocada da estrutura que ela procura analisar. Nesse caso, as leituras anteriores que um intérprete confronta nfo sfo erros ‘a serem descartados nem verdades parciais a serem complemen- tadas por verdades contrérias, mas reveladoras repetigdes de es- truturas textuais. O valor dessas leituras emerge quando um critico posterior — aqui, Felman — transferencialmente antecipando uma relagéo transferencial entre 0 critico eo texto, Ié The Turn of the Screw como antecipando e dramatizando as querelas e joga- das interpretativas de eriticos anteriores. A analise do que Barbara Johnson chama de “a estrutura transferencial de toda leitura” tornou-se um importante aspecto da critica desconstrutiva. Em “Melville's Fist” Johnson acha que © contraste entre Billy ¢ Claggart é também uma oposigao entre dois modelos de interpretacio, e que a tradigao de interpretacoes dessa historia é uma reencenagio deslocada da histéria, As in- Sobre a Desconstrucio Bi terpretagGes conflitantes, baseando-se nas hipSteses conflitantes que produzem a confrontagfo entre Billy e Claggart, entram em conftonto a propésito do golpe, que nfo sé destr6i Claggart e con: dena Billy, mas também atinge as duas posig6es criticas, uma vez que, como vimos, o modo como ele significa para cada interpreta- gio contradiz.o que ele significa para cada interpretagéo. Movi- mentos interpretativos posteriores também repetem posigdes ins- critas na hist6ria, como quando os criticos tentam — como Vere — julgar a questio da inocéncia ou culpa ou quando eles tentam alcangar uma visio distanciada e irdnica, em uma reprodugio do papel do Dansker. A leitura desse texto, no contexto de suas inter- pretag6es, permite ao analista descobrir certos efeitos constantes, do tipo que Johnson descreve em uma espetacular discussfio de uma série coordenada de leituras: Derrida sobre Lacan sobre Poe Detalhando a repeticao de Derrida dos movimentos que ele anali- sa e critica em Lacan, Johnson traz & luz. o que ela chama de “a transferéncia da compulsio & repetigéo do texto original para a ‘cena de sua leitura” (""The Frame of Reference”, p. 154). A estru- tura transferencial da leitura, como a critica desconstrutiva veio a analisé-la, envolve uma compulsio a repetir independente da psi- cologia dos criticos individualmente, bascadaem uma curiosa cum- plicidade da leitura e da escritura, ‘A mais complexa relagio com leituras anteriores, no entanto, surge nos escritos de Paul de Man, Os leitores tém ficado impres- sionados pelo modo como seus ensaios se voltam contra leituras que convincentemente expuseram, com frases tais como “Antes de ceder a esse muito persuasivo esquema, devemos...” (Allegories of Reading, p. 147). Essa formulagdo sugere que nés, necesséiria ou inevitavelmente, cederemos a este esquema, mas que ceder é ain- da um erro, Nao estamos lidando aqui, pareceria, com a tensa coexisténcia de verdades parciais, mas com uma combinagio de erro e nevessidade que € dificil de descrever. Nos primeiros escri- tos de de Man, os erros de leituras anteriores eram vistos como perceptivos e produtivos. “Les Exégtses de Holderlin par Martin Heidegger” elogia a perceptividade da leitura de Heidegger, néio obstante o fato de Heidegger ter tomado Hélderlin precisamente 312 Jonathan Culler de trds para a frente, encontrando em seus poemas uma nomea- go do Ser em vez de um repetido fracasso em capturd-lo. “Hlderlin diz exatamente o oposto do que Heidegger o faz di zer.” Mas “nesse nivel de reflexiio”, observa de Man, “6 dificil dis- tinguir uma proposigdo do que constitui seu oposto, Dizer 0 opo to é ainda falar sobre a mesma coisa, embora na direcio oposta, ¢ {4 € alguma coisa, em um dislogo dessa ordem, quando dois locu- tores conseguem falar sobre a mesma coisa”. O grande mérito das Ieituras de Heidegger sobre Hélderlin “6 ter identificado com pre- cisio a preocupagao central de sua oeuvre” (p. 809). O que permi te essa percepedo é “a cega e violenta paixiio com que Heidegger trata o texto” (p. 817), ¢ embora o ensaio de de Man possa sugerit que o erro de Heidegger pode ser dialeticamente revertido em ver- dade, a solidariedade entre cegueira e percepeao 6 claramente indicada, O elogio de de Man da “errénea” leitura € explicdvel apenas se o erro é de algum modo necessério A percep. A dependéncia da percepgao sobre o erro € mais extensiva- ‘mente discutida em Blindness and Insight, em que de Man anali- sas leituras de alguns criticos — Lukécs, Blanchot, Poulet, cer- tos adeptos do New Criticism — e conclui que, em cada caso, ppercepgdo parece... ter sido obtida de um movimento negativo que anima o pensamento do critico, um principio no declarado que conduz a sua linguagem para longe de sua posigao afirmada, pervertendo e dissolvendo seu compromisso declarado até o ponto em que ele se torna esvaziado e sem substincia, como se a pré pria possibilidade de assercdo tivesse sido posta em questo. No entanto, 6 esse negativo e aparentemente destrutivo trabalho que leva ao que poderia legitimamente ser chamado de percepgio” (p. 103). O compromisso declarado, a posigdo afirmada ou o principio metodolégico tem um papel crucial na produco do movimento negativo de percepgo que o solapa. Foi por estarem comprometidos com uma nogao coleridgiana de forma orginica, que os adeptos do New Criticism puderam chegar a uma desc go da linguagem literéria como inescapavelmente irGnica e am- bfgua — uma percepeao que “aniquilou as premissas que leva- ram a ela” (p. 104). “Todos esses criticos”, conclui de Man, Soore a Desconsirucio 313 “\parecem curiosamente fadados a dizer algo completamen- te diferente do que queriam dizer. Sua posigao critica — 9 profetismo de Lukécs, a crenga de Poulet no poder de um cogito original, a afirmagio de Blanchot de uma impessoa- lidade metamallarmiana — é derrotada pelos seus préprios resultados criticos. Uma penetrante, porém dificil, percep- glo da natureza da linguagem literdria sucede daf. Parece, no entanto, que essa percepsao s6 pode ser atingida porque 8 criticos estavam tomados por essa curiosa cegueira: sua linguagem pode tatear em dirego a um certo grau de per- ‘cepgiio somente porque seus métodos permaneceram bvi- (05 8 apreensio dessa percepcio. A percepeio existe apenas para um leitor na privilegiada posigo de ser capaz. de ob- servar a cegueira como um fendmeno em seu préprio dire to —sendo a pergunta sobre sua propria cegueira algo que ele 6, por definigéo, incompetente para fazer — e, assim, sendo capaz de distinguir entre afirmagao e sentido. Ele tem de desfazer os explicitos resultados de uma visio que é ca- paz de mover-se em direcéo & luz apenas porque, sendo jé ‘cega, néo tem de temer 0 poder dessa luz. Mas @ visio é incapaz de reportar corretamente o que percebeu no curso de sua viegem. Escrever criticamente sobre criticas, assim, torna-se um modo de refletir sobre a paradoxal eficécia de ‘uma visio cega, que tem de ser retificada por meio de per- cepgées que involuntariamente fornece” (pp. 105-6) Areferéncia & “tetificagio” da visio cega através das percepg6es que ela fornece pode parecer sugerir que o critico superior — aqui, de Man — pode ter as percepgdes sem a cegueira, corri- gindo o erro para verdade, mas quando ele estende esse padrio & leitura que Derrida faz de Rousseau, de Man deixa claro que 0 padrio de cegucira e percepefo deveria ser concebido como apli- cando-se as mais cuidadosas e astutas leituras, até mesmo Aque- las que decisivamente retificam a cegueira de leituras anteriores. “O melhor intérprete moderno de Rousseau”, escreve de Man, reve de dar uma volta para ndo entendé-lo” (p. 135). As bri- Ihantes percepgGes da leitura de Rousseau por Derrida foram possibilitadas por sua errénea identificagdo de Rousseau com um periodo na histéria do pensamento ocidental e, portanto, com 314 Jonainan cunier a metafisica daquele periodo. “Ele postula em Rousseau uma metafisica da presenca que pode, entao, ser mostrada nao operar ou ser dependente do implicito poder de uma linguagem que a rompe earranca de seu fundamento” (p. 119). Aleitura de Derrida sobre Rousseau 6, no final, compardvel & leitura de Heidegger sobre Hélderlin: “A versio de Derrida desse desentendimento chega mais perto do que qualquer versdo anterior da verdadeira afirmacdo de Rousseau, porque salienta como ponto de maxima cegueira a érea de maior lucidez: a teoria da retGrica e suas ine- vitdveis conseqtiéncias” (p. 156). Ha varios aspectos importantes na descrigo de de Man de leituras anteriores. Primeiro, ela é impressionante em sua énfa- se sobre a verdade e o erro; no h nenhuma questo de tentar situar-se acima ou fora do jogo da verdade e da falsidade, e de pluralisticamente conceder a cada visio concorrente uma valida- de de tipos, como na descrigéo de Miller de posig6es concorren- tes amplamente contidas na tradigfo ocidental. Tas tentativas de evitar a verdade e a falsidade so mal-orientadas, “pois nenhuma leitura € concebfvel em que a questo da verdade e da falsidade no esteja primariamente envolvida” (Preficio, p. xi). Enquanto Derrida é perspicaz e evasivo, de Man escreve com uma fungéo mais tradicionalmente critica, didaticamente asseverando o que ele afirma ser verdade, confiantemente nos alertando para 0 que 6s textos verdadeiramente dizem, enquanto sabendo, como criti- cos sempre sabe em sua esperanga de que poderia ser diferen- te, que a temporalidade da leitura e do entendimento torna cada afirmagio sujeita a releitura e a exposigo como erro. Os criticos que acham irvitante a arrogante seguranga de de Man, e que seu reconhecimento da cegueira deveria emprestar modéstia as suas, préprias afirmacées, falharam em compreender que as assergoes criticas ainda declarardo falar a verdade, conquanto cerceadas possam ser com qualificagdes e modestos censores. Segundo, enquanto implicitamente afirma apresentar as per- cepgdes que outros tiveram através do erro, de Man identifica a estrutura na qual seu proprio discurso se encaixa, Assim como a leitura de Derrida sobre Rousseau possibilita que de Man use Sobre a Desconsirucio 315 Rousseau para identificar as desleituras de Derrida, também a descrigéo de de Man possibilitard que criticos posteriores usem Derrida e Rousseau contra de Man. Essa é uma situagao compli- cada que ndo & bem-compreendida, Estamos freqiientemente inclinados a negar que qualquer leitura tenha uma condi pecial, que a autorize a julgar outra: a leitura que afirma retificar uma interpretagao anterior é apenas mais uma leitura. Mas em outros momentos, queremos afirmar que uma leitura tem uma condicao privilegiada e pode identificar os sucessos ¢ fracassos de outras leituras. Essas duas visGes assumem um enquadramento temporal — uma leitura est4 ou nao em uma posigao de superio- ridade légica em relagdo a outras leituras. Mas 0 fato 6 como demonstramos quando estamos nés mesmos to engajados, que a interpretago ocorre em situagdes histéricas criadas em parte por leituras anteriores e age enquadrando ou situando essas lei- turas, cuja cegueira e percepgGes ela pode assim ser capaz de julgar. Leituras desembaragadas freqiientemente se mostram capazes de usar o texto para mostrar onde interpretagdes anterio- res erraram e, assim, fazer afirmagdes sobre as limitagGes de seus métodos ou da relagao entre sua teoria e sua prética. Como de Man observa em uma introdugao & critica de Hans Robert Jauss, “o horizonte da metodologia de Jauss, como todas as meto- dologias, tem limitagGes que nao sao acessiveis &s suas préprias ferramentas analiticas”. Em geral, dever-se-ia notar que as dis- tingdes entre verdade e falsidade, cegueira e percepgdo ou leitura ce desleitura permanecem ecruciais, mas elas ndo so fundamenta- das de forma que possam permitir que definitivamente se estabe- lega a verdade ou a percepgio da prépria leitura de alguém. Terceiro, a descrigio de de Man da relagao entre leituras e Ieituras anteriores possibilita que cle continue participando de uma das tradicionais idades da critica literéria, a celebragio das percepgdes e das conquistas de grandes escritos do passado, “Quanto mais ambivalente a enunciagao original", escreve de Man, “mais uniforme ¢ universal o padrio de consistente erro nos seguidores e comentadores” (Blindness and Insight, p. 111). Na leitura das maiores obras hé uma transferéncia da cegueira 310 Jonainan cutter do autor para os leitores. “A existéncia de uma tradigao aberrante particularmente rica no caso de esctitores que podem legitima- mente ser chamados de os mais iluminados nao 6, portanto, ne- nhum acidente, mas uma parte constitutiva de toda a literatura, a base, na verdade, da hist6ria literéria” (p. 141). Quanto mais im- Portante o texto, mais pode ser usado para desfazer as inevitaveis aberragées de leituras anteriores, e ao tratar tais obras 0 critico est4 “na mais favordvel de todas as posigées criticas:... lidando ‘com um autor tio clarividente quanto a linguagem permite que ele seja, que, por essa razio mesmo, esté sendo sistematicamente mal lido; as obras do pr6prio autor, com novas interpretagSes, podem ‘entdo ser usadas contra o mais talentoso de seus enganados intér- pretes ou seguidores" (p. 159). Nietzsche, Rousseau, Shelley, Woodsworth, Baudelaire e Hilderlin sfo celebrados pelas verda- des — ainda que negativas — que seus escritos contam. Quarto, a descrigfo de de Man representa a irredutivel iterabilidade do processo eritico. Assim como Julie nao pode evitar repetir os movimentos tropolégicos que ela to lucidamente de- nunciou, também o critico habilidoso em detectar a cegueira de leituras anteriores (incluindo, algumas vezes, suas préprias leitu- ras anteriores) produzir, por sua vez, erros similares. Discutindo em Allegories of Reading as tradicionais leituras dos escritos poli ticos e autobiogréficos de Rousseau, de Man observa que “a leitu- ra retrica deixa essas faléicias para tras ao dar conta, ao menos até certo gray, de sua previsivel ocorréncia” (p. 258), mas tal previsibilidade estende-se, até certo grau, & anélise que expde as falicias anteriores, “Desnecessério dizer que essa nova interpreta- 0 ser, por sua vez, apanhada em sua propria forma de ceguei: ra” — esse é 0 argumento de Blindness and Insight (p. 139). Mas Allegories of Reading vai mais longe em descrever como ‘uma leitura desconstrutiva, que identifica os erros da tradigao e mostra 0 texto expondo seus prdprios conceitos fundamentais como aberragées tropoldgicas, é ela propria posta em questéo pelos momentos posteriores em que o texto prenuncia uma ale- goria de ilegibilidade. Nessa descrigio, os termos “cegueira” € “percepgio”, com suas referéncias a atos e falhas de percepgfo, Sobre a Desconsirucio 3m ‘no mais aparecem, pois o que esté envolvido aqui sio os aspec- tos da lingua e as propriedades do discurso que asseguram que 08 escritos criticos, assim como outros textos, terminardo por fazer 0 que dizem que nao pode ser feito, excedendo ou por pou- ‘0 conseguindo o que afirmam pelo ato mesmo de afirmé-lo. Ao discutir Rousseau, de Man enfatiza os processos mecanicos e inexoréiveis da gramética e da organizacio discursiva em obser- vag6es que também se aplicam a tentativas criticas de dominar 08 escritos de Rousseau. O contrato social, por exemplo, desa- credita promessas, mas promete bastante, “A reintrodugéo da promessa, no obstante o fato de sua impossibilidade ter sido estabelecida, nfo ocorre pela von- tade do escritor... A formidével eficdcia do texto deve-se a0 modelo retérico do qual é uma versio. Esse modelo € um fato de inguagem sobre o qual o préprio Rousseau nao tem ‘nenhum controle. Assim como qualquer outro leitor, ele est fadado & desleitura de seu texto como uma promessa de mudanga politica. O erro nio esté no leitor; a lingua em si dissocia a cognigao do ato. Die Sprache verspricht (sich): nna medida em que € necessariamente enganosa, a lingua também necessariamente exprime a promessa de sua pr6= pria verdade” (pp. 276-77] Adesleitura, aqui, é um repetido resultado da problemética rela- do entre o funcionamento performativo e © funcionamento constativo da linguagem, A desconfortével situagfo que estivemos descrevendo, em que a desleitura € tanto um erro a ser exposto quanto o inevitivel destino da leitura, emerge mais dramaticamente na conclusio de “Shelley Disfigured”, em que de Man est4 tanto usando 0 texto para caracterizar outras leituras como erros quanto indicando o modo como seu préprio texto deve inevitavelmente figurar entre 6s objetos assim denunciados. Nao hé modo mais admirdvel de terminar nossa discussio da critica desconstrutiva do que com essa passagem que, repetidamente, se inclui nas inevitdveis aber- ragdes que denuncia, 318, Jonathan Culler De Man vem discutindo 0 modo como nossas leituras da li- teratura romantica estetizam fragmentos e representagdes da morte, transformando os mortos em monumentos histéricos € estéticos. “Tal monumentalizagio nao é de maneira nenhuma necessariamente um gesto ingénuo ou evasivo e, decerto, no 6 ‘um gesto que qualquer um possa pretender evitar fazer.” Fracas- se ou tenha sucesso, esse gesto se torna um “desafio ao entendimento que sempre exige ser lido de novo. E le-lo é entender, questionar, saber, esquecer, apagar, des- figurar, repetir — quer dizer, a infindével prosopopéia pela qual 0s mortos passam a ter uma face e uma voz. que nos conta a alegoria de seu legado e permite que os apostrofemos por nossa vez. Nenhum grau de conhecimento jamais pode interromper essa loucura, pois 6 a loucura das palavras. O que seria ingénuo é acreditar que essa estratégia, que no 6 nossa estratégia como sujeitos, uma vez.que somos seu pro- duto mais do que seu agente, pode set uma fonte de valor e deve ser celebrada ou denunciada de acordo, ‘Onde quer que essa crenga ocorra — e ocorre todo o tempo —, ela conduz a uma desleitura que pode e deve ser descartada, diferentemente do coercivo ‘esquecimento’ que ‘© poema de Shelley analiticamente tematiza e que esté além do bem e do mal. Seria de pouca utilidade enumerar e categorizar as varias formas e nomes que essa crenca assu- ‘me em nossa cena critica eliterdria atual. Ela age ao longo de linhas monotonamente previsiveis, pela historizagio e estetizagio de textos, assim como pelo seu uso, como nesse ensaio, para a assergéo de reivindicagées metodol6gicas tor- nadas tanto mais devotas por sua negagao de devogéo. Ten- tativas de definir, de entender, ou de circunscrever 0 ro- mantismo em relacio a nés mesmos e em relagao a outros movimentos literdrios so todas parte dessa ingénua cren- ga. The Triumph of Life avisa-nos que nada, seja ato, pala- ‘ra, pensamento ou texto jamais acontece em relagao, posi- tiva ou negativa, a nada que precede, segue ou existe em. ‘outra parte, mas somente como um evento do acaso cujo poder, assim como o poder da morte, 6 devido a casualida- de de sua ocorréncia. Ele também nos avisa por que e como ‘esses eventos entdo devem ser reintegrados em um sistema Sobre a Desconsirucio 319 histérico e estético de recuperagiio que se repete indiferen- temente a exposigio de sua faldcia.” (Shelley Disfigured, PP. 68-69), Se nada mais, passagens como esta indicariam que aqueles criticos que escrevem “o formalismo dirigido ao prazer dos criti- cosde Yale” esto presos em um padréo de sistemitica desleitura.® E dificil imaginar um critico mais obsessivamente preocupado com a verdade ¢ o conhecimento em face das estruturas que fa- riam a negagdo da verdade e do conhecimento uma tentadora alternativa, Mas essa passagem também ilustra um dos mais pro- blematicos aspectos da critica desconstrutiva: a identificagao do que os textos dizem sobre a lingua, os textos, a articulagdo, a ordem eo poder. Se The Triumph of Life de fato nos avisa de que nada jamais acontece em qualquer relacdo a coisa alguma, que motivo temos nés para pensar que isso é verdade? A critica desconstrutiva é freqiientemente acusada de tratar 0 texto que std sendo analisado como um jogo de formas inteiramente auto: referente, sem nenhum valor cognitivo, ético ou referencial, mas isso podia ser mais uma ilustragdo do modo como, conforme diz de Man, um autor verdadeiramente moderno seré “compulsiva- mente mal-interpretado e supersimplificado e dito ter afirmado 0 ‘oposto do que ele verdadeiramente disse” (Blindness and Insight, p. 186). Pois, de fato, as leituras desconstrutivas tiram ligdes de longo alcance dos textos que estudam. Allegories of Reading 1é 608 textos de Rousseau como nos dizendo a verdade sobre um amplo espectro de assuntos. “O que 0 Discourse on Inequality nos diz, ¢ 0 que a cléssica interpretagao de Rousseau teimosamente se recusa a ouvir, € que 0 destino politico do homem esté estruturado como e deriva de um modelo lingiifstico que existe independent mente da natureza e independentemente do sujeito: ele. cide com a cega metaforizagéio chamada ‘paixio’, e essa ‘Frank Lonticcli, After the New Crticiem, p. 176, Lenticchia também fala de wm novo hedonismo” sugerido “dfussmente” na obra de Hartman, Mile e de Man, que le créformarem uma escola (p. 169) 320 Jonathan Cutter metaforizagéio ndo é um ato intencional... Se a sociedade e ‘© governo derivam de uma tensio entre o homem e sua lin- guagem, entdo cles no so naturais (dependendo de uma relagio entre os homens), nem teol6gicos, uma vez que a linguagem nao € concebida como um prinefpio transcen dental, mas como a possibilidade de contingente erro. O politico, assim, se torna um fardo para o homem, mais do que uma oportunidad...” {pp. 156-57] Conclusdes sobre o conhecimento, os atos da fala, a culpa e 0 self so apresentadas de maneira semelhante em outros en- saios: como verdades declaradas, sugeridas ou encenadas pelos escritos de Rousseau, E leituras desconstrutivas so inclinadas a achar afirmagGes no sobre o que pode acontecer ou freqiiente- mente acontece, mas sim sobre o que deve acontecer. Billy Budd no nos mostra como a autoridade poderia funcionar; “Melville mostra em Billy Budd que a autoridade consiste precisamente na impossibilidade de conter os efeitos de sua propria aplicagao” (Johnson, The Critical Difference, p. 108). E, com efeito, para Johnson, a autoridade de Billy Budd chega tio longe, que suas percepgoes si afirmadas como necessidades: “a ordem legal, que tenta submeter a “forga bruta’ a ‘formas, formas medidas’ s6 é pode eliminar a violéncia transformando a violencia em autori- dade final. E a cognigio, que talvez comece como uma agdo es- tratégica contra o jogo do poder, s6 pode aumentar, através de sua elaboragio, o espectro daquilo que tenta dominar” (pp. 108- 9, itdlicos meus). Em varios casos, critica e obra argumentam bem pelas ver- dades derivadas da obra; eles as vezes explicam a natureza da necessidade que faz a verdade valer para toda linguagem, todos 08 atos da fala, todas as paixdes, todas as cognigées. Em outros casos, como na descrigao de de Man do aviso de The Triumph of Life, nao se pode nem mesmo imaginar como o eritico poderia argumentar pela yerdade em questio, tal como a declaracao de que nada jamais acontece em qualquer relagio a qualquer coisa ue precede, segue ou existe em outra parte; ¢ seé levado a susp: tar que uma certa fé no texto e na verdade de suas implicagdes | i e Sobre a Desconstrucio 321 mais fundamentais ¢ surpreendentes é a cegueira que possibilita as percepgdes da critica desconstrutiva, ou a necessidade metodolégica que nao pode ser justificada, mas que é tolerada pela forga de seus resultados. O papel estratégico desse compro- misso com a verdade do texto, quando exaustivamente lido, sem diivida ajuda a explicar por que a critica desconstrutiva america- nna se concentrou nos principais autores do enone: se tal andlise requer a presuncio de que a verdade iré emergir de uma leitura expedita e vigorosa, sentir-se-4 menos necessidade de defender essa presuncaio lendo Wodsworth, Rousseau, Melville ou Mallarmé do que lendo autores naio-canénicos. Os rumores de que a criti- ca desconstrutiva denigre a literatura, celebra a livre associago dos leitores ¢ elimina o sentido e a referencialidade parecem co- micamente aberrantes quando se examinam uns poucos dos muitos exemplos da critica desconstrutiva, Talvez esses rumores sejam mais bem compreendidos como defesas contra as afirma~ ges sobre a linguagem e sobre o mundo que esses criticos reve~ Jam nos trabalhos que explicam,

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