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O ENIGMA DA RELIGIAO Religiao, © solene desvelar dos segredos ocultos do homem, @ revelagdo dos seus pensamentos mais intimos, a confissao puiblica dos seus segredos de amor. Ludwig Feuerbach Por que os homens fazem religido? Talvez nenhuma outra pergunta tenha tido tantas, tao variadas e tio contraditérias respostas. Revelacao dos deuses, neurose obcessiva da humanidade, diario em que o homem escreve os seus mais altos pensamentos acerca de si mesmo, dpio do povo: ha respostas para todos os gostos. Onde estara a verdade? E dificil dizer. Qualquer resposta que nos atravéssemos a dar poderia ser catalogada como um palpite a mais, no rol ja excessivamente extenso das explica- goes oferecidas. O que torna a religido mais enigmdtica ainda & o fato de que, apesar de nado entender as suas origens — ou talvez precisamente por nao entendé-las — o homem nao consegue se desvencilhar do seu fascinio. Na realidade, nao se tem noti- cia de cultura alguma que nao a tenha produzido, de uma forma ou de outra. Durante algum tempo tornou-se moda falar no fim imi- nente da religido. Foi proposta, durante o século passado, a teoria de que a religidéo nada mais era que uma reminiscéncia que o homem guardava de um periodo primitive do seu desenvolvimento. Ignorando as causas reais que movimentam o universo, assombrado pelo espectro da morte, .aterrorizado pelos fenémenos naturais que nao podia compreender, trans- portado para mundos estranhos nas suas experiéncias de éxtase e de sonhos — numa época anterior 4 ciéncia — 0 homem teria sido levado a imaginar a existéncia de uma dimensao invisivel da realidade, um mundo misterioso habi- ~ 33 tado por deuses, demonios e espiritos e movidos por forgas magicas. Com o progresso da historia e a progressiva emergéncia das formas cientificas de pensar, acrescentava-se, 0 homem estava aos poucos se educando para a realidade, e dentro em breve deixaria para tras, definitivamente, as suas ilusées reli- giosas. Da mesma forma como o girino abandona sua cauda para transformar-se em sapo adulto. Augusto Comte falav: assim, nas trés fases do desenvolvimento humano. A mai primitiva de iodas seria a religiosa. Depois dela veio 0 periodo metafisico que nos seus dias ja estava desaparecendo sob 0 impacto de uma forma cientifica, positiva, de compreender a realidade, Freud sugere uma explicagao semelhante. Nos pri- mordios do desenvolvimento humano, antes que o homem tivesse sido forgado a aceitar o determinismo de ferro do principio da realidade, ele pensava que o mundo poderia ser moldado pelo poder dos seus desejos. Que é a magia do homem primitivo sendo a crenca na onipoténcia do desejo? As légicas da mente do homem primitivo, da mente da crianga e da mente do neurético se unificam em torno deste principio. Que é, entao, a religiéo? Ela é uma expressdo social desta ilusao, uma forma de infantilismo, a neurose obsessiva da humanidade. Mas com o advento do novo deus, a ciéncia, os velhos deuses teriam inevitavelmente, de ser relegados ao pas- sado. Em Marx, se a estrutura da explicagéo se torna dife- rente, as linhas gerais do “script” permanecem inalteradas. Religido é o produto de uma sociedade irracional e opressiva, um conjunto de ilusdes necessarias para que 0 homem possa suportar as correntes que o escravizam. “A religiao € 0 suspiro da criatura oprimida”. Desaparecendo a opressio, por que suspirar? Com 0 advento da revolucao ¢ a instauragéo de uma suciedade livre, a religido haveria inevitavelmente de desa parecer.’ Tudo parecia indicar que a religido vivia os seus ultimos dias. A ilusio estava condenada a desaparecer. Dizia Dietrich 1 Tal interpretagao da religiio é uma expressio da filosofia da historia que aos poucos se desenvolveu, em decorréncia da revolucdo cientifica que se iniciou no século XVI. Assim como © conhecimento da realidade implica numa Progressiva emancipacdo da consciéncia das fantasias que a’ imaginagao ¢ a emogao criavam, no sentido de uma conformidade cada vez maior com as estruturas racionais da realidade, o desenvolvimento do espirito implicava 34 Bonhoeffer: “O movimento que se iniciou no século XIII na diregéo da autonomia do homem... completou-se de certa forma em nossa época. O homem aprendeu a lidar com todas as questdes de importancia sem recorrer a Deus como uma hipotese explicativa... Cada vez se torna mais evidente que tudo funciona normalmente sem Deus. Ja se admite que o conhecimento e a vida sao perfeitamente possiveis sem Ele” ’ Que diferenca entre o espirito do mundo moderno e o espirito do mundo medieval! Na Idade Média o universo inteiro era contemplado como se fosse uma imensa catedral. Anjos subiam e desciam, milagres aconteciam, os astros se moviam pelo num abandono paulatino dos seus niveis emocionais, considerados como ir- racionais, e na descoberta da razio, compreendida entio como universal ¢ no emocional. Mesmo Hegel, que tem uma visao positiva da religiao, a con- siderava como estagio preliminar e portanto provisério do Espirito, que so- mente encontraria sua expressio final numa filosofia absoluta. O que esté em jogo nao ¢ apenas uma interpretacio do fendmeno religioso mas antes uma teoria global do desenvolvimento do Espirito, de sua infancia & maturi- dade, e, 0 que é considerado de fundamental importancia, uma compreensdo da emocio e da imaginacio como elementos irracionais e primitivos. Freud, por exemplo, no seu ensaio “Animismo, Magica ¢ a Onipoténcia do Pensa- mento”, declara que por debaixo da magica, do brinquedo, da arte, dos valores da religiao encontramos uma mesma dindmica psiquica em operagio, ou seja, a tendéncia de se trocar o imagindrio pelo real que, a seu ver, € a esséncin da neurose. Ver Sigmund Freud, Totem and Taboo (Nova York, Vitage Books, 1946), p. 98s. Para maiores detalhes ver Rubem Alves, Tomorrow's Child: Imagination, Creativity and the Rebirth of Culture (Nova York, Harper & Row, 1972), p. 37s. Segue-se, logicamente, que, com 0 advento da ciéncia, a mais alta expressio da razao, os seus estégios niveis emocionais anteriores deveriam ser abandonados. A religiio é identificada com o irracional e a ciéncia com o racional. Quanto a Marx, ver Marx & Engels, On Religion (Nova York, Schocken Books, 1964), especialmente a “Contribution to the Critique of Hegeliis Philosophy of Right”, p. 41s. E ne- cessario dizer que o Romanticismo, que se opés a esta interpretagio raciona- lista da histéria, culminando com Kierkegaard e Nietzsche, permaneceu como uma voz marginal, que nao pode ser ouvida em meio euforia dos triunfos da técnica e da ciéncia 2 Bonhoeffer, Dietrich: Letters and Papers from Prison (Nova York, The McMillan Company, 1953), p. 194-195. Bonhoeffer deve ser mencionado neste contexto em virtude da grande influéncia que suas cartas, escritas nos anos que passou na prisio, na Alemanha, exerceram sobre a geragio subse- qiiente. A sua pergunta fundamental: Podemos pressupor que a religiio é a forma de expressio da £6? Sua resposta € negativa. Talvez a religiio nada mais seja que “uma forma histérica e temporaria de expresséo humana” (p. 162) e que estejamos atingindo um estagio de sermos radicalmente sem religido. Neste caso serd possivel pensar que a fé ird tomar formas arreligio- sas e secularizadas? Um sumério da “morte de Deus” — como fendmeno da civiizacio ocidental — pode ser encontrado no ensaio “Deus Morreu — Viva Deus!”, de Rubem Alves, em Liberdade ¢ Fé (Rio de Janeiro, Tempo € Presenga Editora, 1972, p. 7s. 35 poder de espiritos, cada evento, por mais simples que fosse, continha escondida uma intengao — tudo isto regido, como se fosse uma sinfonia césmica, pela inteligéncia e pelo poder de Deus. Aos poucos, entretanto, a ciéncia comecou a demolir esta sintese. Onde os homens antes viam poderes miraculosos em operacdo, a ciéncia constatava apenas a presenga de leis fixas e imutaveis. O universo que se abria para o transcendente e © divino se fechou sobre si mesmo, ¢ tudo passou a ser expli- cado em termos de leis imanentes a propria natureza. A ciéncia criou um problema habitacional para Deus.* Na medida em que ela penetrava em novos dominios, Deus se tornava supér- fluo e obsoleto, e era despojado. A realidade foi “desencan- tada” ': néo mais necessitava de hipoteses teolégicas para se explicar. A historia, entretanto, parece que se deleita em zombar de nossas previsdes cientificas. Quando tudo parecia anunciar os funerais de Deus e o fim da religiao, o mundo foi invadido por uma infinidade de novos deuses e deménios, e um novo fervor religioso, que totalmente desconheciamos, tanto pela sua intensidade quanto pela variedade de suas formas, encheu vs espacos profanos do mundo que se proclamava seculariza- do, “A chuva dos deuses cai dos céus sobre 0 tumulo do Deus que sobreviveu a sua propria morte. Ateus tém os seus santos e blasfemos constroem templos”.* O fascinio pelo misticismo 3 Kroner, Richard: Speculation and Revelation in Modern Philosophy (Phila delphia, the Westminster Press, 1961), p. 47. citando Heirich Rickert 4 A expresso “desencantamento do mundo” se tornou nossa conhecida através de Max Weber, que por sua vez a tomou emprestada de Friedrich Schiller. (Ver Gerth & Mills, From Max Weber: Essays in Sociology (Nova York, Oxford University Press, 1958), p. SI. Ela se refere ao fato de que, para o homem moderno, a realidade & auto-explicativa, e nao admite a intrusio de hipdteses magicas 5 Kolakowski, Leszek: Toward a Marxist Humanism (Nova York, Grove Press, 1968), p. 36. Kolakowski se refere, ironicamente, as novas formas seculariza- das de religido de uma sociedade comunista que pretende haver ido além da religiio. O que importa nao sio os nomes religiosos mas a devocio religiosa com que se cerca a teoria ou a estrutura de poder do partido. Por isto ateus tém os seus santos... No seu ensaio “Science as a Vocation” Max Weber faz uma observacdo semelhante: “Muitos dos velhos deuses sobem de seus tumulos: eles foram “desencantados” e por isto tomam a forma de forcas impessoais. Eles lutam por ganhar poder sobre as nossas Vidas e de novo reiniciam a sua luta eterna uns com os outros’. Gerth and Mills, op cit., 149. E minha conviccdo pessoal que este fendmeno é de fundamental impor- 36 oriental, a ioga, o zembudismo, a meditagao transcendental, os cultos demoniacos e a feiticaria, a busca de experiéncias transracionais, como o falar de linguas estranhas (nao mais explicdveis em termos de classe social!) — todos estes ele- mentos fizeram cair por terra as previsdes cientificas acerca do fim da religiao. Mudam-se as vestes. Freqiientemente deixam- se de lado os simbolos ostensivamente religiosos. Mas sempre, de uma forma ou de outra, é possivel constatar no mundo humano e nos recénditos da personalidade a presenga obses- siva e incémoda das questdes religiosas. O que & a religiéo? Pode parecer estranho que facamos tal pergunta, quando tudo o que ja dissemos até agora parece pressupor que todos sabemos, de uma forma ou de outra, sobre que estamos falando. Infelizmente, entretanto, quando tratamos com fenémenos humanos, nao ha respostas univocas para as perguntas. A realidade aqui possui varias camadas de significagéo. Temos que proceder como alguém que tira as pétalas de uma flor: por um método de aproximagées suces- sivas, provisérias e que deverao ser corrigidas posteriormente. Para clucidar 0 nosso problema gostaria de fazer uso de uma comparacdo. Em que se constitui a experiéncia estética? Todos nds, de uma forma ou de outra, ja sentimos o belo: ouvindo uma sinfonia de Beethoven, uma balada dos Beatles, contemplando um quadro ou uma cena da natureza. Sentimos © belo - mas quando alguém nos pede para descrever a sua esséncia. somos reduzidos ao siléncio. Palavras sio adequadas para descrever objetos: pearas, arvores, montanhas. Mas a experiéncia estética nao é um objeto. A experiéncia do belo nao € a sinfonia de Beethoven, nao é a balada dos Beatles, nao é 0 quadro ou a cena da natureza, Se pedissemos a um fisico para fazer uma andlise da peca musical, ele poderia fazé-lo. Uma sinfonia € um conjuuto de sons, e sons sao realidades tancia para se entender a religiio no mundo moderno. A secularizacdo nao foi a morte dos deuscs, mas antes a promocao, ao status de deuses, de certos fatores do nosso mundo que se pretendiam secularizados. Sera possivel tomar © lugar dos deuses sem se tornar um deus? Ora, foi isto exatamente que a ciéncia, a tecnologia e certas ideologias fizeram. No processo de secularizacao, contemplamos a revolta do secular contra os deuses que habitavam nossos panteons. Os templos foram invadidos, os deuses foram expulsos € os re- beldes - ainda com suas roupagens seculares - tomaram seus lugares nos altares agora vazios. we 3 lisicas. Ele reduziria os sons a vibragdes, e seria capaz de expressar matematicamente suas intensidades e freqiiéncias. Mais do que isto, ele nos poderia fornecer um grafico que nos revelasse nao so a estrutura arquitetonica da obra, como também as nuangas de interpretagao. Mas de posse dos resul- tados cientificos do seu trabalho perguntariamos: “Mas, e o belo? Onde esta?” Ele nao se encontra em nenhum ponto de sua analise cientifica. Como cientista 0 fisico lida com objetos. Mas a experiéncia estética nao é um objeto. Tanto assim que ela se desvanece quando soa o ultimo acorde da sinfonia. E ficamos apenas com a tristeza de que o belo tenha chegado ao fim. O belo nao é nem uma propriedade do objeto e nem uma propriedade do sujeito. Ele vem a existir quando 0 sujeito é levado a vibrar, emocionalmente, em resposta ao objeto. Esta é a razao por que, fregiientemente, aquilo que produz em uma pessoa uma experiéncia estética profunda e emocional me deixa totalmente frio. Falta-me a sensibilidade. E por isto, para todos os efeitos praticos, é como se 0 belo nao existisse para mim. O belo nao é um objeto, mas uma relacdo harmé- nica entre o sujeito e a obra de arte. Martin Buber afirmava que o mundo humano nfo se constitui nem dos objetos que estao ao nosso redor e nem da consciéncia pura, fechada em i. E a maneira de ser em relacdo ao mundo, 0 hifen que liga o Eu ao seu mundo, que é a esséncia de nossa realidade.* E isto que encontramos na experiéncia estética. O belo nao é nem o objeto, em si, e nem o sujeito em si, mas antes a relagao que os unifica num éxtase mistico. Muitas das expressdes do fendmeno religioso se apresen- tam a ndés como se fossem coisas. Ha mitos que se cristaliza- ram, ritos que se solidificaram, instituicdes que se chamam religiosas e linguagens que falam acerca dos deuses. E possivel examina-las, descrevé-las, analisa-las — tal como o fisico fez com a sinfonia de Beethoven. E possivel proceder frente a tais realidades, seguindo a famosa regra de Durkheim, consi- derando-as como se fossem coisas.’ Mas ent4o seriamos presas 6 Ver Buber, Martin: /-Thow (Edinburgh, T. & T. Clark, 1937. Uma excelente interpretacao da filosofia de Buber pode ser encontrada na obra de Maurice Friedmann, Martin Buber — The Life of Dialogue (C go, The University of Chicago Press, 1956). 7 Durkheim, Emile: The Rules of Sociological Method (Nova York, The Free Press. 1964), p. 14. 38 de uma das mais freqiientes ilusdes do cientista: quanto mais rigorosa a analise do objeto mais equivocada seria, porque a esséncia da religido nado é um objeto, mas uma relagao. Nao nos podemos esquecer de que estas realidades nao possuem uma existéncia auténoma, em si, anterior a cons- ciéncia. Quando nos movemos no circulo do mundo fisico percebemos com muita clareza que a existéncia de estrelas, gases c Atomos ¢ anterior & consciéncia. Se a consciéncia nunca tivesse aparecido, as estrelas, gases e Atomos continuariam a existir, de forma totalmente indiferente & auséncia humana. As realidades do mundo humano, entretanto, s6 existem por haverem sido construidas por uma consciéncia e uma atividade que as antecederam. Sempre que consideramos os fatos sociais como se fossem coisas cometemos o grave erro de identificar a esfera da realidade humana com a esfera da realidade da natureza e pressupomos, ainda que de uma forma nao con- fessada, uma origem magica para as instituigdes, independente das experiéncias, projetos e atividades de seres concretos.* ‘As formas institucionalizadas da religiéo ndo sao trans- parentes. Elas nado se auto-explicam. Por detras delas existe sempre uma experiéncia religiosa primordial, freqiientemente enterrada no esquecimento e dilufda nas rotinas que ja nao mais a expressam. Que sao as formas institucionalizadas de religiio? Sdo “modos de ‘racionalizagao’ de uma experiéncia precedente, das quais se derivam. Elas sao tentativas, de uma forma ou de outra, (...) para adivinhar o enigma que esta 8 Quando tomamos 0s fatos sociais como se fossem coisas pressupomos que a ordem social é idéntica & ordem natural. Ou seja, tomamos a realidade social na reificacdo, como 0 objeto da investigacio ¢ colocamos entre paréntesis € nos esquecemos da atividade humana que deu origem a tal “coisa” e da qual cla depende. Entretanto, como Berger e Luckmann observam. “a des- peito da objetividade que caracteriza 0 mundo social na experiéncia humana, ele nao adquire, por meio disto, um status ontoldgico & parte da atividade humana que o produziu”. “A reificagio é a apreensio dos fendmenos huma- nos como se eles fossem coisas. isto é em termos nao-humanos e€ possivel- mente supra-humanos”. Assim, tanto 0 homem religioso que interpreta o mundo como se fosse dado e definido pelos deuses quanto o cientista que toma a realidade social como um objeto auténomo estariam cometendo 0 mesmo pecado. Ver P. Berger & Thomas Luckmann, The Social Construction of Reality (Garden City, NY, Doubleday & Co., 1967), p. 60 e 89. Ver, também, a seco “The Autonomy of Social Structure as Domain Assumption”, em Alvin Gouldner, The Coming Crisis of Western Sociology (Nova York, Avon Books, 1971), p. Sts. 39 experiéncia propée, e o seu efeito é, a un tempo, enfraquecer manter a propria experiéncia. Elas sdo a jonte de onde surge ndo a religido mas a racionalizagdo da religido, que freqiien- temente termina por construir uma estrutura téo pesada de teoria e um entrelagado tao plausivel de interpretagéo, que o ‘mistério’ é completamente excluido”.” O erro de se tomarem as formas institucionalizadas, reificadas da religiao, como o objeto religioso se deve ao fato de que nada garante, “a priori”, que as instituigdes que se batizaram a si mesmas como religiosas realmente desempenhem, para a consciéncia, uma fungao religiosa. “Para entender a cultura” — no nosso caso a religido, “temos de dar um longo passo atras de suas manifestacdes mais ébvias. E necessario olhar primeiro para a fonte da cultura” —— isto ¢, para aquelas experiéncias huma- has que a geraram e a deram A luz. E que descobrimos? Do ponto de vista de sua origem, 0 mundo que se nos apresenta hoje como reificade, como um conjunto de fatos sociais que podem ser analisados como se fossem coisas, surgiu como “externalizagao de significagdes subjetivas”, como uma “obj tivacgdo do Espirito”.!” Assim como a obra de arte nao pode ser adequadamente compreendida a parte das instituigdes criado- ras e da intengdo do artista, assim como a experiéncia do belo nao pode ser entendida a parte da consciéncia que se deixa vibrar em consonancia com a obra de arte, também a religido 9 Otto, Rudolf: The Idea of the Holy (Nova York, The Oxford University 26-27. O grifo é nosso. Note-se a fungao ambigua das fo mas institucionalizadas da religio, que Rudolf Otto percebe muito bem. ‘A instituigdo no se explica sem uma experiéncia primitiva que a antecede. Mas, como tal experiéncia, segundo Otto, é radicalmente irracional e, por- tanto, terrivel — “mysterium tremendum” — as instituigdes, como respostas a ela, si0 a0 mesmo tempo racionalizacbes da mesma. Na instituigio o irracional se torna racional, o mistério ¢ domado e 0 homem esconde de si © “tremendum” da_ experi A. instituicdo, assim, longe de ser uma expresso da experiéncia religiosi, 6 antes uma repressdo da mesma na ins tuig&io a meméria da experiéncia sagrada & enterrada no esquecimento. Se Otto esta certo a analise das instituigdes religiosas tem tanta relacZo com a experiéneia religiosa quanto os “papéis” teriam com a parte nfo socializada do eu, ou 0 Fgo com o Id. 0 Jagere, Gertrud & Selznick, Philip: “A Normative Theory of Culture”, Ame- rican Sociological Review (1964, outubro), p. 658. Nas linhas de Berger & Luckmann, “a relacio entre o homem, 0 produtor, e 0 mundo social, 0 seu produto, € ¢ permanece dialética” (p. 61). Se selecionamos como nosso objeto a dimensio da realidade social que tem a caracterfstica de coisa, privilegiamos, arbitrariamente, o segundo momento da dialética, esquecen- do-nos da atividade produtiva que se encontra na sua origem. 40 nao se torna transparente a menos que vejamos, por detras de suas expressées objetivas, a consciéncia no seu momento de experiéncia religiosa, Freqiientemente as instituigdes nada mais sao que fésseis de uma experiéncia religiosa que ha muito desapareceu. Por forga do préprio poder da inércia continuam a habitar 0 mundo social, a ocupar espaco e a falar de deuses e deménios, mas os seus simbolos deixaram de ser expresses de qualquer experiéncia vivenciada no presente. E este pro- cesso de distanciamento progressivo das instituigdes, centri- fugo, para longe das experiéncias que lhes deram origem, que explica o inevitavel envelhecimento dos deuses e a progressiva perda de significacao da linguagem religiosa, outrora carregada de contetidos emocionais. “Por isto de quando em quando morrem os deuses, porque de repente se descobre que nada significam, que sao inutilidades feitas de madeira e pedra, fabricadas pelas maos dos homens. Na realidade, neste mo- mento o homem simplesmente descobre que nunca havia pensado coisa alguma sobre as suas imagens”.'' Aqui estio as raizes deste curioso fendmeno: enquanto o homem con- tinua por forca da rotina e da coergao social, a reverenciar os deuses que a sociedade entronizou, mas que perderam o poder para simbolizar e expressar suas vivéncias emocionais, ao mesmo tempo ele busca outros deuses, talvez menos res- peitaveis, mas que de alguma forma corporifiquem as suas experiéncias vividas. Que 6 0 que caracteriza a consciéncia religiosa? A resposta nao é dificil. Notamos que ela nao contém um inventario de fatos sensiveis. Nao encontramos ali um relatério dos dados brutos ao nosso redor. Ela nao reflete, como se fosse um espelho, aquilo que os sentidos nos comu- nicam, Ao contrario, fala de deuses e deménios, de santidade e pecado, de salvago e perdigio, de dimensées invisiveis e estruturas misteriosas. E por mais que investiguemos a reali- dade, objetivamente, nado encontramos ai nenhum dado sensi- vel que corresponda aos simbolos que constituem a lingua- gem religiosa. E a propria consciéncia religiosa que afirma: “Ninguém jamais viu a Deus”. Parece-se mais com um sonho. 11 Jung, C. G.: Arguétipos e Inconsciente Colective (Buenos Aires, Paidés, 1970), p. 19. 4t “A religiéo é um sonho da mente humana. Através dela passa- Mos a ver as coisas reais no fascinante esplendor da imagi- hagdo e do capricho, ao invés de o fazer sob a luz mortica da realidade e da necessidade”."? Em resumo, a consciéncia reli- giosa é uma expressdo da imaginacéo. Tal afirmacao pode chocar aqueles que amam a religiao. Na verdade, em nossa linguagem cotidiana, usamos a palavra imaginacéo como sinénimo de ilusao. “Vocé esta imaginando coisas”, dizemos a alguém. Imaginar coisas, na melhor das hipsteses, significa que alguém cometeu um erro perceptual gue devera ser corrigido por observacées posteriores. E na pior, significa que a pessoa esta louca, por atribuir realidade objetiva as fantasias de uma mente que nao mais se subordina ao controle dos fatos. Nao € isto, entretanto, que temos em mente. Antes de mais nada € preciso reconhecer que a imaginacio é a forma mais fundamental de operagdo da cons cia humana. Os animais nao tém imaginagao. Por isto nunca produziram arte, profetas ou valores. Por isto também nunca puderam produ- zir religiao. “A religiéo tem a sua base na diferenca essencial entre o homem e os brutos — os brutos nao tém religiao”.* A menos que estejamos prontos para eleger a consciéncia animal como o ideal de normalidade para o homem — o que nao estou pronto a fazer — é necessdrio reconhecer que a imaginagao é a origem da criatividade humana. “Se estiver- mos prontos a tomar a palavra sonhos com uma certa libera- lidade”, observa John Dewey (podemos afirmar que 0 homem, exceto nos seus momentos ocasionais de trabalho e luta, vive num mundo de sonhos e nao de fatos, e num mundo de sonhos que se organiza em fungao do sucesso ou da frustracao dos desejos que constituem a sua esséncia”.’! “Empiricamen: te" isto é, tais como as experimentamos realmente — “as coisas séo emocionantes, tragicas, lindas, cémicas, trangiiilas, confortantes, perturbadoras, Aridas, rudes, espléndidas, amea- 12 Feuerbach, Ludwig: The Essence of Christianity Row, 1957), p. xxix. 13 Ibid. p. 1 14 Dewey, John: Reconstruction in Philosophy (Boston, Beacon Press, 1962), n7 (Nova York, Harper & 42 cadoras”."" Em situagao alguma a consciéncia se contenta em reduplicar os fatos. Na realidade, “nao existe compor- tamento algum que sugira uma consciéncia pura nas suas origens”."" Nao se pode negar que a consciéncia humana seja movi- da pela imaginacgéo. O problema surge quando tentamos interpretar a fungdo da imaginagao. Para entender esta questéo temos de nos lembrar dos ideais epistemolégicos que tém dominado a ciéncia moderna e, derivativamente, dos ideais de normalidade psiquica que daf se derivam. Nao ha nenhum estudante de ciéncia que ignore que o conhecimento deve ser objetivo. O que é objeti- vidade? Objetividade é aquela condigéo da consciéncia em que ela se disciplina para simplesmente refletir e reduplicar os dados da realidade. Ela nao pode permitir que as suas aspiracées, os seus valores, os seus desejos, de qualquer forma interfiram neste processo. A realidade ignora as nossas aspi- ragées. Por isto, sempre que permitimos que o objeto seja representado na consciéncia pela influéncia dos desejos, o objeto € sistematicamente falsificado. Quando isto acontece o objeto representado nao € o que ¢, na realidade, mas simples- mente aquilo que desejamos que ele seja. Nao ¢ dificil entender que, dentro desta perspectiva, a imaginacdo deva ser rejeitada. A imaginacao é filha dos nossos desejos e, conseqiientemente, sempre que imaginamos “passamos a ver as coisas reais no fascinante esplendor do capricho”. Ao ideal epistemoldgico de objetividade, assim, corresponde a exigéncia de que a imaginacao seja eliminada, como origem de perturbagées no processo de conhecer 0 mundo. Este mesmo ideal foi trans- plantado para o campo da psicologia. Freud define o neurético como aquele que troca a realidade pela imaginacao.'* Qual, entao, seria o modelo de personalidade normal? Normal é a 15 Dewey, John: Experience and Nature (Nova York, Dover Publications, 1958), p. 96. 16 Merleau-Ponty, Maurice: The Structure of Behavior (Boston, Beacon Press, 1968), p. 126. 17 “Os neuréticos vivem num mundo especial no qual... apenas as coisas intensivamente pensadas ou afetivamente concebidas funcionam, nao impor- tando que estas coisas estejam em harmonia com a realidade exterior”. Sig- mund Freud. Totem and Taboo, op. cit., p. 113 43 pessoa que sabe que a imagina é ilusdo, e que portanto voluntariamente a reprime (ja que nao & possivel elimina-la), € que se ajusta a légica do principio da realidade.'* Estes ideais de conhecimento objetivo e de normalidade psiquica tém exercido uma influéncia dominante na ciéncia ocidental e tém sido responsaveis, em grande medida, pelo tratamento que o fendmeno religioso tem recebido nos seus circulos e, indiretamente, pela nossa forma de compreender a imaginagao. Porque, o que é a religiao senao uma forma de imaginacao? E, inversamente, na medida em que a imagina- sao ¢ sempre filha do desejo, nao sera ela sempre religiosa? Cabe, entretanto, a seguinte pergunta: Se vamos levar o critério de objetividade até as suas tiltimas conseqiiéncias, nao sera forgoso reconhecer que o ideal de consciéncia pura, totalmente objetiva, é um mito? Onde é que a encontramos como um dado da experiéncia? A consciéncia objetiva nao existe. Ela é um ideal, que nasceu de condigdes histéricas especificas. A propria consciéncia objetiva é uma construcdo normativa da imaginagao. Nas palavras de W. Stark, “o pensa- mento ndo-valorativo (value-free) pode ser um ideal, mas ce: tamente ele néo é encontrado em parte alguma como reali- 18 A mitologia popular sobre a psicandlise freqiiemtemente pensa que Freud advogava a expressio livre dos instintos. Puro engano. Se é verdade que Freud deseja libertar a personalidade das represses desnecessdrias que The foram impostas pelo superego, ele 0 faz por considerar que ha uma enorme soma de represses necessiirias, exigidas pela civilizagio e o principio da realidude. Urge libertar 0 homem das repressdes desnecessirias para que ele lenha as melhores condicdes para aceitar voluntariamente, se possivel, aque- las que so inevitaveis. Para Freud nao ha civilizagio sem repressio. Os Gientistas so aqueles que compreendem a inevitabilidade da repressio do instinto e a aceitam voluntariamente. Quanto as massas em geral, elas tém de ser levadas a renunciar os seus impulsos irracionais pela coercio. Tudo isto em nome de uma filosofia que identifica normalidade psiquica com ajustamento social. O paréerafo que se segue é muito sugestivo. “Tanto é impossivel viver sem 0 controle da massa por uma minoria quanto eliminar @ coergéo na obra da civilizacéio. Pois as massas sio preguigosas e despro- vidas de inteligéncia; elas nao tem nenhum amor pela rentincia dos instintos € nao sero convencidas da sua inevitabilidade por meio de argumentos”. The Future of an Illusion (Garden City, NY, Doubleday & Co. 1964). p. 5-6. Cabe ucrescentar a observacdo que Prescott Lecky faz do modelo de normalidade em termos de ajustamento. “A pessoa normal, provavelmente, se houvesse uma pessoa normal, nao acharia nada errado-e concordaria com tudo”. Se/f-Consistency: A Theory of Personality (Garden City, Dou- bleday & Co. 1961). p. 123 44 dade”.'" Empiricamente, o que € que encontramos, mesmo naquelas atividades que o homem pretende serem rigorosa- mente objetivas, como a ciéncia? Encontramos uma con: ciéncia concreta, envolvida nos problemas reais de vida e morte que a condicionam e, portanto, dominada pela emocao ¢ embalada pela imaginacao. “A ciéncia, nio importa quao pura, ¢ o produto de seres humanos comprometidos na tarefa excitante de viver as suas vidas pessoais”.°° Assim, as criacdes cientificas “néo séo apenas representagdes simbdlicas dos assim chamados eventos externos, mas antes arranjos que devem servir a necessidade humana de autoconsisténcia”. Uma dimensio fascinante da historia da ciéncia moderna 0 papel que a imaginacao e a fantasia desempenharam em muitas de suas grandes descobertas. Mais curioso ainda é verificar como os cientistas, ao repensar 0 seu método de invengdo, nao se deram conta disto. Nao ¢ possivel discutir este assunto nos limites deste trabalho. O leitor que se inte- ressar poderd consultar as sugestdes bibliograficas que fa- zemos: Estou sugerindv, como nosso ponto de partida, que nao podemos pressupor que a imaginacéo se oponha ao conheci- mento do real. Nao posso classifica-la nem como fonte de erros cognitivos e nem como raiz de nossas neuroses. Fazer isto seria equivalente a admitir que a evolugéo cometeu um erro fatal, na transigao do macaco nu para o homem — porque os animais nao tém imaginagao. Aceitemos, portanto, a ima- ginagdo como um dado primario da experiéncia humana. E deste fato primordial, irredutivel, teimosamente empirico, que temos de partir. O homem faz religiéo, os animais nao. O homem tem imaginagdo, os animais nao. Penetramos, através da imagina- 19 Stark, Werner: The Sociology of Knowledge (Londres, Routledge & Kegan Paul, 1967), p. 71. 20 Pearls, Hefferline and Goodman, Gestalt Therapy (Nova York, Dell Publish- ing Co., 1951), p. 24. 21 Lecky, Prescott: op. cit. p. 75. 22 Polanyi, Michael: Personal Knowledge: Towards a Post-Critical Philosophy (Nova York, Harper & Row, 1962) Koestler, Arthur: The Sleepwalkers (Londres, Hutchinson & Co., 1959). Keestler, Arthur: The Act of Creation (Nova York, Dell Publishing & Co.. 1967). 45 cao, numa das diferencas fundamentais entre a consciéncia do homem a consciéncia do animal. “O animal tem uma vida simples”, diz-nos Feuerbach. “Nele a vida interior é idéntica a exterior.“ O homem tem, a um tempo, uma vida interior e uma vida exterior”. Durkheim o repete quase que literalmen- te: “os animais conhecem apenas um mundo, aquele que percebem por meio da experiéncia, tanto interna quanto ex- terna. Somente os homens tém a faculdade de conceber o ideal, de acrescentar algo ao real”.*4 Nos animais, a experién- cia se esgota com as informacdes que seus sentidos captam do mundo exterior. Por isto, nao podem eles suspeitar que o possivel seja maior que o real. Realidade e possibilidade se identificam. Ou mais precisamente, os limites do real deno- tam os limites do possivel. Protétipos de realismo. Por isto, nao podem transcender o seu mundo. Resta-lhes apenas a alter- nativa de ajustamento e adaptagado as condigdes dadas. Com o homem nao é assim. Ha, dentro dele, um reduto de resistén- cia, uma parcela do eu que se recusa a socializar-se, que se recusa em aceitar como final o veredito da realidade. Assim, quando as informagdes do mundo exterior lhe dizem: “Assim so as coisas!” ele retruca: “Mas serao mesmo? Nao sera possivel que elas venham a ser de forma diferente?” O homem 6, assim, um ser dividido. Se a sua consciéncia lhe diz como é o mundo, esta mesma consciéncia se recusa a sacralizd-lo. “O que é ndo pode ser verdade".* Este fendmeno tnico que Durkheim descreveu como sendo a capacidade de “conceber o ideal, de acrescentar algo ao real”, esséncia da religiéo, assim, se nos revela como uma recusa de promover ao status de realidade ultima a ordem instaurada, seja a ordem natural, seja a organizacao da civilizacdo. A esséncia do realismo que, em nome da realidade objetiva, bania a religido como ilusao, nao esta em sua aparente irreligiosidade, mas antes na sua sistematica transformacdo de fatos em valores. Mas é exata- mente isto que a imaginacfio se recusa a fazer. A imaginacdo sO se torna compreensivel se percebemos que ela se constréi a partir de uma suspeita de que é provavel que os limites do 23 Feuerbach, L.t op. cit, p. 2. 24 Durkheim, E.: The Elementary Forms of the Religious Life (Nova York, The Free Press, 1956), p. 469. 25 Esta formula pertence a Ernst Bloch 46 possivel sejam muito mais extensos que os limites do real. A imaginagaéo é a consciéncia de uma auséncia, a saudade daquilo que ainda nado é, a declaragéo de amor pelas coisas que ainda nao nasceram. “Dar nome &s ‘coisas que estao ausen- tes’ é quebrar o feitico daquelas que estao presentes”.”® Nas palavras de Mannheim, a imaginagdo surge da insatisfagao do homem com a realidade existente, e por isto, em todas as suas multiformes expressGes, encontramos sempre uma indicagao daquilo “que faltava na vida real”. E este fato que levou muitos filésofos e misticos no passado a formular a hipotese de que o homem ¢€ um ser com uma dimensao transcendente. Sim, é verdade que o homem é um corpo, e que o corpo esta sujeito a todos os processos que regem a realidade fisico-qui- mica. Entretanto, como explicar que de uma certa realidade surjam os pensamentos que vao mais além desta mesma rea- lidade? Como explicar que ele seja capaz de compor uma musica, quando a musica néo é um objeto entre os objetos do mundo material? Como explicar que ele seja capaz de imaginar uma sociedade perfeita de amor e justica, seja nas visées utépicas politicas, seja nas visdes religiosas de um “Reino de Deus”, quando a sociedade empirica se baseia em expedientes praticos, na coercdo e na lei do mais forte? Assim, concluiam eles, a unica explicacdo para os véos da imaginagao esta em que o homem deva participar de uma ordem espiri- tual superior de existéncia, onde ele tenha contemplado o belo, o bom e o verdadeiro. Para os nossos propésitos, nao importa que aceitemos ou ndo esta explicagdéo filoséfico-reli- giosa da imaginacdo. O que importa é simplesmente constatar que através da imaginagao o homem transcende a facticidade bruta da realidade que é imediatamente dada e afirma que 0 que é nao deveria ser, e que o que ainda nao é devera ser. Nossa compreensio da imaginagdo se deve muito as fas- cinantes observagdes que Freud fez sobre o assunto. O pai da psicandlise percebeu que a vida mental se caracteriza por um conflito instintual, que nunca podera ser resolvido de forma satisfatoria. A busca do prazer e as duras arestas da realidade 26 Marcuse, Herbert: One-Dimensional Man (Boston, Beacon Press, 1966), p.. 68. 27 Mannheim, Karl: Ideologia ¢ Utopia (Rio de Janeiro, Editora Globo, 1954), p. 191. 47 se escondem em cada ato imental nosso. “O que decide o propdsito da vida é simplesmente o principio do prazer. Este programa domina a operacao do aparato mental desde o seu inicio” ** Pode ser que para muitas pessoas a idéia do prazer traga associacées desagradaveis, talvez relacionadas apenas com o prazer sexual. Substituam a palavra prazer por felicidade. O resultado sera 0 mesmo. Quando os tedlogos cristaos se refe- iam a Deus como o “summum bonum”, que é que eles queriam dizer senao que Deus era o maior prazer a que a alma podia almejar? A psicologia de Agostinho se baseia toda ela sobre este principio: é 0 “eros” que impulsiona 0 coracéo na sua ansia permanente por um objeto que havera de satisfazer as suas aspiragdes. O ego traz em si mesmo “uma busca de um mundo que possa ser amado: ou antes, no nivel inconsciente do ego este projeto guia a consciéncia humana na sua busca incansavel de um objeto que possa satisfazer 0 seu amor, como em S, Agostinho: ‘Eu ainda nado amava, mas eu amava amar; eu buscava o que eu pudesse amar no meu amor pelo amor’ ”: O problema, entretanto, é que o ego encontra langado num mundo que é absolutamente insensivel as suas aspira- goes. A realidade é fria e determinista. O programa estabele- cido pelo principio do prazer choca-se frontalmente com o mundo todo, tanto 0 macrocosmo quanto 0 microcosmo. To- das as leis que regulam o universo sao contrarias ao principio do prazer. “Sinto-me inclinado a dizer”, Freud conclui, “que a intengaéo de que o homem fosse ‘feliz’ nao esta incluida no plano da ‘Criagdo’"” Em outras palavras: a realidade obje- tiva nao pode satisfazer as aspiragées do coragao. A conscién- cia se descobre violentada, resistida, negada pela realidade. Nao pode reconciliar-se com ela. Surge dai um conflito que nao pode ser resolvido. Estamos diante daquilo que separa o homem de todos os outros animais: “o homem é a tnica 28 Freud, Sigmund: Civilization and Its Discontents (Nova York, W. W. Nor- ton & Co., 1962), p. 23. 29 O. Brown, Norman: Life Aguinst Death: The Psychoanalytical Meanin{ of History (Nova York, Vintage Books, 1959), p. 46. 30 Freud, S.: ibid, p. 23 As criatura que se recusa a ser o que ela é”.*! Para Freud é este... conflito que é definido como neurose. Mas nada existe que nos obrigue a aceitar tal diagndstico. Preferimos, com Albert Ca- mus, ver aqui a propria esséncia da humanidade, e a raiz da criatividade que elevou o mundo da cultura acima do mundo dos ajustes biolégicos que caracteriza o animal: “com a rebe- lido nasce a consciéncia” Que alternativas se abrem ao homem? Para o pai da psi- candlise sé existe uma: o ajustamento. O ego deve compreen- der que os seus desejos estao condenados ao fracasso e deve, por isto mesmo, renuncid-los e reprimi-los voluntariamente. Mas o ego pensa de outra forma. Recusa-se a aceitar os fatos como se fossem valores e, ao contrario, proclama: antes os meus valores que os fatos. Constréi, entao, para si, um mundo diferente, em que os fatos so abolidos, e os seus valores saéo transformados em realidade. Surge 0 mundo da imaginagao. Na imaginacdo o homem se liberta da necessidade fria e insen- sivel que o rodeia, e entra num mundo encantado em que o seu amor reina supremo. Mundo magico que funciona segundo a légica da “onipoténcia do desejo”. A imaginagao dissolve a realidade que a resiste, e traz & existéncia aquilo que nao exis- te. A funcdo da imaginacdo é realizar o irrealizdvel, possibi litar o impossivel. Para Freud a origem da imaginacgéo se cerca de mistério. Sé pode ver nela uma fungao disfuncional, que impede que a consciéncia se ajuste ao real. “Na ocasiao em que se deu o desenvolvimento do senso de realidade a imaginacdo foi separada para o propésito de realizar os de- sejos que nao podiam se realizar com facilidade”™, diz ele. Qualquer que seja o nosso diagnéstico, entretanto, uma coisa parece certa: para o homem, o que importa sao as fantasias. Nao sdo os fatos que determinam sua maneira de ser, mas 31 Camus, Albert: The Rebel (Nova York, Vintage Books, 1956, p. 11). 32 Ibid., p. 32. 33 Freud, S.: Civilization and Its Discontents, op. cit., p. 27. Esta afirmagio é muito’ problemética. Qual a origem da dindmica que separou a imaginacio para o propésito de realizar os desejos que nao podiam se realizar com facilidade? Esté Freud sugerindo que esta € uma funcio positiva? Se assim é, por que classificar a neurose como enfermidade? Tratar-se-é de uma fungdo negativa, ou de uma disfuncio? Como explicar que uma disfungao tenha sobrevivido a tantos milénios? E dificil compreender como é que, no processo evolutivo, tal disfungao foi criada, especialmente considerando- se que os animais nio a possuem. 49 sim os fatos transfigurados pela emogado. O homem é um so- nhador, mesmo acordado. Esta é uma das contribuigdes mais importantes do pai da psicandlise para a compreensao do enig- ma do homem. Sdo as fantasias que estruturam as nossas experiéncias, no sentido de transforma-las, nas palavras de Max Scheler, numa “ordo amoris”. Nossas fantasias povoam o nosso passado, determinam o nosso presente e criam o nosso futuro. Por isto elas determinam o nosso ser e 0 nosso agir. A imaginagao nos revela as intengdes magicas que habi- tam os niveis mais profundos da personalidade. “O ato da imaginacao”, observa Sartre, “6 um ato magico. E um encan- tamento destinado a produzir 0 objeto que desejamos, de for- ma que dele possamos nos apropriar”."! Feuerbach muito tempo antes havia chegado & mesma conclusao. Ao analisar a natureza da fé (nao nos esquegamos do que ja foi sugerido antes, acerca da identidade entre a religido-fé e a imaginacdo! ) ele diz: “A fé nao se limita a si mesma por meio da idéia de um mundo, de um universo, da necessidade (...). Onde a fé se levanta o mundo submerge — nao! — ele ja se submergiu no nada (...). A esséncia da fé... é a idéia de que o que o homem deseja realmente é! O poder do milagre, portanto, nada mais é que o poder da imaginac4o... pois a imaginagao éa unica faculdade que corresponde aos sentimentos pessoais, pois ela coloca de lado todos os limites, todas as leis que sao dolorosas para o sentimento, e assim torna objetiva, para o homem, a satisfacao imediata, absoluta e ilimitada de todos os seus desejos subjetivos”."* Em Freud, a constatagaéo de que existe uma identidade entre os mecanismos da imaginagao e os mecanismos da ma- gica levou-o a concluir que a persisténcia da imaginagdo nas operagées da consciéncia deve ser interpretada como uma “sobrevivéncia” de um estagio primitivo e infantil do desen volvimento humano. Mas a ciéncia ja demonstrou que a reali- dade nao se move pelo poder do desejo. Portanto, 0 homem tem de renunciar as suas intengdes mdgicas, néo importa a forma de sua manifestacdo: seja na propria magia, seja no 34 Sartre, Jean Paul: The Psychology of Imagination (Nova York, Washington Square Press, 1968), p. 159. 35 Feuerbach, L.: Op. cit. p. 128, 130, 131 50 brinquedo infantil, seja nos valores, seja na religiao. Todas estas sio construgdes do desejo, manifestacdes da resisténcia da consciéncia a realidade e, em ultima analise, expressdes de neurose. O problema esta em se fazemos justiga as intengdes magi- cas da consciéncia ao interpretd-la através do prisma da men- talidade cientifico-positivista. Temos de perguntar: que é que o homem esta dizendo através da imaginagéo? Que mensagem ele externaliza através de seus rituais magicos? Na magica, seguindo as sugest6es de Malinowski, nds nos encontramos com um homem que sente a sua impoténcia frente a realida- de mas que, ao mesmo tempo, afirma a prioridade dos desejos sobre a realidade que os nega.’ Para decifrar o segredo da imaginagao é necessaririo compreender que a sua intengao nao € técnica ou descritiva, mas ética. Cassirer observou que “o mundo ético nunca é dado. Ele esta sempre sendo feito. Viver no mundo ideal”, conclui ele citando Goethe, “é tratar o im- possivel como se fosse possivel”.*" Mas nao é exatamente isto que caracteriza a imaginacao, na sua intengao magica? O prin- cipio do prazer exige que o mundo, para corresponder as aspirac6es do desejo, deve passar por uma verdadeira tran- substanciagéo. E por isto que a imaginacao representa para a consciéncia um mundo qualitativamente diferente, que de 36 Malinowski, Bronislaw: Magic, Science and Religion (Boston, Beacon Press, 1948): ‘Forsaken by his knowledge, baffled by his past experience and by his technical skill, he realizes his impotence. Yet his desire grips him only the more strongly; his anxiety, his fears and hopes, induce a tension in his organism wich drives him to some sort of activity. ... His neryous system and his whole organism drive him to some substitute activity. Obsessed by the idea of the desired end, he sees it and feels it. His organism reproduces the acts suggested by the antecipations of hope, dictated by the emotion of passion so strongly felt”, p. 79. Os grifos séo meus. Note a diferenca da interpretagao freudiana. Para Frend, a my — e a neurose — sao expres- sées da crenca na “onipoténcia do desejo”. Para Malinowski, ao contrario, a magica s6 surge com o senso de impoténcia. Se isto esté certo, e se ha conexdes entre os mecanismos emocionais que subjazem 4 magica e a neu- rose, uma total reinterpretagio do fendmeno seria necessaria. Nao conheco tedricos da psicandlise que j tenham examinado 0 problema. Além disto, Freud veria na magica uma tecnologia primitiva — ¢ equivocada, enquanto Malinowski vé nela no uma tecnologia mas um ato expressivo, que revela a dor sentida por um homem ao viver, a um tempo, 0 seu desejo e a sua esperanca, de um lado, e a sua impoténcia e a frieza da realidade, de outro. 37 Cassirer, Ern An Essay on Man (Nova York, Bentam Books, 1969), p. 67. 51 forma alguma corresponde aos fatos. Os dados sensiveis da realidade externa sao libertados da ldgica natural e determi- nista que os torna cruéis e frios e sao imediatamente reestru- turados segundo as exigéncias éticas do desejo. Na imagina- ¢ao realiza-se, simbolicamente, o grande sonho utdpico da consciéncia, que a mantém na busca permanente que a carac- teriza: a huwmanizacdo da natureza. A natureza, como realidade em si, é abolida, e ressuscitada como natureza para o homem, como extensaéo do seu corpo e objetivagéo dos seus valores. Seu novo espacgo e o seu novo tempo perderam sua autonomia e se transformaram em fungdes do amor. Realiza-se entdo, na liturgia da imaginagao, a mais alta pretenséo magica da cons- ciéncia: a criacio de um mundo a imagem e semelhanga do homem. E neste nivel que encontramos as origens da religiao: o conflito entre o projeto inconsciente de ego de encontrar um mundo que possa ser amado, e a dura realidade do mundo objetivo, que ignora totalmente as exigéncias do coracgao. Por isto todas as andlises institucionais da religido permanecerao sempre incompletas e unilaterais. Quanto maior for o seu rigor metodolégico, tanto maior o seu distanciamento das raizes da religiéo. As instituicdes, como parte do mundo, sao elas mesmas objeto do protesto religioso. A razio por que, no seio das formas institucionalizadas da religido, sempre existi- ram misticos que condenaram o seu formalismo, profetas que denunciaram sua exterioridade e hereges que se rebelaram con- tra os seus dogmas, nao se deve, em ultima instancia, ao fato de que estas instituigdes resolvem de forma falsa a contradi- cao estrutural que se instaura na prépria interioridade da consciéncia? A critica da religiao tem, sistematicamente, cometido o engano de considerd-la como uma explicagéo primitiva do mundo — como se sua intencdo fosse ser teoria cientifica — apresentar uma descrigdo objetiva dos fatores e dos pode- res que movimentam a realidade.** Uma vez adotada tal pers- 38 Veja, por exemplo, esta definiggo da religiio de Freud: “Idéias religiosas sao ensinos e afirmativas sobre fatos e condigdes da realidade externa ou interna que nos contam sobre coisas que no descobrimos per nds mesmos © que exigem a nossa crenca”. The Future of an Hlusion, op. cit. p. 37. A religido, segundo tal definigao, pretende ser ciéncia sem fazer uso dos méto- pectiva néo se pode fugir 4 conclusao de que a religido tera, mais cedo ou mais tarde, de ser substituida pela ciéncia. Mas a intengao da religiéo nao é explicar 0 mundo. Ela nasce, jus- tamente, do protesto contra este mundo que pode ser descrito e explicado pela ciéncia. A descrigdo cientifica, ao se manter rigorosamente dentro dos limites da realidade instaurada, sa- craliza a ordem estabelecida de coisas. A religiéo, ao contra- rio, € a voz de uma consciéncia que nado pode encontrar des- canso no mundo, tal como ele é, e que tem como seu projeto utépico transcendé-lo. A linguagem cientifica pretende descrever 0 mundo.” A linguagem religiosa exprime como o homem vive, em relagao ao mundo, Temos aqui a chave para interpretar a significa- cao da linguagem religiosa. A religido nao é uma hipétese acerca da questao filosofica da existéncia de deuses. O ego nao se propoe tal questdo, no inicio de suas operagdes. O que importa é a “paixao infinita” (Kierkegaard), o “ultimate con- cern” (Paul Tillich), que estaéo instaladas no interior da cons- ciéncia, e em torno das quais a personalidade se unifica. Kant estava absolutamente certo quando concluiu que Deus nao é um objeto de conhecimento. Ele nao pode ser incluido na ca- tegoria da existéncia com pedras, vermes e galaxias. Nenhum objeto de conhecimento, em si, é religioso. Fenomenologica- mente, assim como a dimensao estética da experiéncia nado é um atributo do objeto. Separemos ,portanto, de uma vez por todas, a questdo da existéncia de Deus — que é uma questao filosofica — da experiéncia religiosa. A primeira é uma hipo- tese acerca de um objeto. A outra é uma paixdo subjetiva. dos cientificos. F curioso que © pai da psicandlise nao tenha proposto uma Gescrigio psicanalitica da religido nas linhas, por exemplo, da interpretacao dos sonhos. Marx sugere algo semelhante. Mas 0 texto de Marx é mais problematico, pois o seu estilo ¢ quase poético: “Religiéo é a teoria geral deste mundo (isto é, 0 mundo invertido), 0 seu compéndio enciclopédico, a sua légica em forma popular, o seu point d’hounneur espiritual, o seu entu- siasmo, a sua justificag’o moral, a sua solene completacao, sua base geral de consolo ¢ justificagio”. Marx & Engels, op. cit., p. 41. A despeito das nuangas que tal afirmacio possa conter, parece-me claro que Marx afirma que a religio pretende oferecer 0 conhecimento cientifico de um certo mundo. 39 Dizemos pretende porque 0 foco objetivo 86 se constitui a partir de um ato intencional da consciéncia. A pretensio de objetividade esconde e revela nossa atitude valorativa, 53 Sem a paixao subjetiva, nao existe a religido. Poder haver instituigdes que cristalizaram rotinas litirgicas e formulas doutrinais. Nada garante, entretanto que tais “objetos” seiam, no momento da analise, expressdes de uma paixao infinita. E sempre possivel — e provavel — que nada mais sejam que fosseis sem vida de uma experiéncia outrora rica, mas agora morta. Realidades sociais? Sim. Religido? Duvidoso. Talvez ninguém tenha percebido este problema com maior clareza que Kierkegaard. Vejam esta parabola: Se uma pessoa que vive no meio da Cristandade e vai a casa de Deus, & casa do verdadeiro Deus, com a verdadeira concepedo de Deus em seu conhecimento, mas ora num falso espirito; e um que vive numa comunidade iddlatra e ora com a inteira paixao do infinito, embora seus olhos estejam na imagem de um idolo: onde estéd a maior verdade? Um deles ora verdadeiramente a Deus embora cultue um idolo; o outro ora falsamente ao verdadeiro Deus, e conseqiiente- mente cultua de fato um idolo.'” A verdade da religido nao se encontra na correspondén- cia entre os seus simbolos e os objetos para a qual eles pare- cem apontar. Porque, como nos sonhos, os simbolos religiosos so revelagdes das condigées da subjetividade. A verdade da religido, assim, no esta na infinidade do objeto mas antes na infinitude da paixdo. “Verdade é subjetividade”. Magica, brinquedo, arte, valores — so todos expressdes da imagina- cao, sao todos simbolizacdes do Eros. Surgem de uma mesma dinamica emocional. S4o todas elas “suspiros da criatura opri- mida” em busca de um mundo para ser amada. A religiao é uma destas expresses. A mais ambiciosa, a mais universal. Na magica, no brinquedo, na arte, nos valores, a imaginacgao 40 Kierkegaard Soren: Concluding Unscientific Postscript (Princeton, Princeton University Press, 1968), p. 179. Sempre que a subjetividade esté possuida por uma “paixao infinita” ela se encontra na esfera religiosa. Para Kierke- gaard, a esfera da objetividade nunca pode merecer uma paixio infinita, pois objetos sio sempre finitos. Na paixdo infinita, assim, 0 homem transcendeu as determinacdes objeto-sujeito porque — numa linguagem skinneriana — nenhum estimulo finito pode produzir uma resposta de uma paixdo infi- nita, Esta é a tazao por que Kierkegaard critica ironicamente as andlises da feligiéo em termos institucionais, seja doutrinais, eclesidsticas ou his- toricos. 41 Ibid., p. 169. 54 ainda se apresenta modesta, tolhida por um certo pudor fren- te a presenga massiva do principio da realidade. Sua busca por um mundo significativo contenta-se em expressar-se nos espacos acanhados e nas gretas que o principio da realidade lhe permite, como areas de sublimacdo. Na religiao, entre- tanto, o ego lancga fora a sua modéstia. Explode além dos seus limites: “projeta suas significacdes sobre a realidade e proclama que toda a realidade é humanamente significativa ¢ invoca o cosmos inteiro para significar a validade da expe- riéncia humana” .* O que foi dito até aqui, entretanto, é unilateral. Porque na religiéo néo encontramos apenas a expresséo dos nossos desejos. Aqui esta a séria limitagdo das teorias de Feuerbach e Freud. A linguagem religiosa esta cheia de simbolos sinis- tros. Ela fala de culpa e punicdo, de deménios e maus espiri- tos. E fregiientemente estes aspectos parecem preponderar. Se, nas religies politeistas, os aspectos graciosos e os demo- niacos da religiéo estavam dissociados e encarnados em divin- dades diferentes, nas religides monoteistas o divino e o demo- niaco séo duas faces distintas de um mesmo simbolo. E o mesmo Deus que abencoa e que amaldigoa, é um mesmo Deus que salva e langa no inferno, é um mesmo Deus que perdoa e que assombra a consciéncia com as dores da culpa. A mentalidade positivista se rira. Deménios, inferno, pu- nico, culpa — nada mais sao que as ilusées do homem ainda prisioneiro de supersticdes que ja se tornaram ha muito obso- letas, e que ainda nado submeteu a sua consciéncia a elucida- ao cientifica! Para o homem moderno, secularizado, tais fan- tamas foram deixados para tras.** 42 Berger, P, & Luckmann, T.: Op. cit., p. 104. 43 Aqui cabe lembrar de novo a observagdo de Max Weber: “Muitos dos ve- Thos deuses sobem dos seus timulos; eles foram ‘desencantados’ e por isto tomam a forma de forcas impessoais”. Ver nota n.° 5. Parece-me que a prosperidade da psicandlise ¢ técnicas terapéuticas similares é uma indicagéo de que 0 que a secularizacdo conseguiu realizar foi nao uma destruigao dos dem6nios mas antes uma modificagdo dos seus nomes. Os aspectos sinistros ¢ irracionais da existéncia continuam a assombrar nao sé os homens mais simples mas também — e talvez principalmente — aqueles que passaram pela elucidagao cientifica. E por isto continuamos a fazer uso de exorcistas, muito embora eles se vistam com aventais brancos e os seus deménios te- nham nomes “cientificos” w a Novamente o mal-entendido. Simbolos religiosos nao sao retratos de entidades que se movem no mundo das coisas. Simbolos religiosos sio expressdes de experiéncias de vida, experiéncias que, por se situarem na esfera das relagdes do homem com o mundo, sé podem ser exprimidas de forma indi- reta, Nao nos esquecamos de que na religido nos encontramos no mundo dos sonhos. Mas mesmo ai, como nos lembrou Feuerbach, o homem nao se encontra no vazio. A consciéncia nao constréi sobre o nada. Ela nao é como a aranha que tece a sua teia de materiais tirados do seu interior. Consciéncia € relagéo. Ela revela sempre uma forma de ser em relacgao ao mundo. Por isto, se é verdade que a consciéncia religiosa projeta sobre 0 mundo os seus sentimentos, é necessdrio ter em mente que a cada projecao corresponde uma introjegao. As construcées da imaginac3o nao importa 0 quao divorciadas estejam, aparentemente, do mundo concreto, séo sempre sim- bolizacées de situacdes realmente vividas. Como bem observa Kockelmans, “cada ato da consciéncia... exige um certo obje- to porque cada ato consciente esta dirigido para algo. Se, por- tanto, um ato de uma certa estrutura esta presente, por meio deste mesmo ato um certo objeto esta também presente”.** Se o homem, na sua experiéncia religiosa, se refere a deménios, é porque uma face da sua experiéncia se lhe apre- senta como demoniaca. E que é 0 demonjaco sendo a horrenda possibilidade de que os valores, que se constituem no objeto da paixao infinita do homem, venham, no final das contas, a se reduzir a nada? Nao existe consciéncia religiosa que ignore esta polaridade. Pensar 0 mundo humano, a “ordo amoris”, 0 cosmo sagrado, implica, automaticamente, pensar a possi- bilidade de sua dissolucdo, Nos mitos cosmogénicos a terra seca, o jardim primordial onde habita o homem emerge das trevas que se misturavam com as aguas. “A terra era sem for- ma e vazia. Havia trevas sobre a face do abismo e um forte vento varria a superficie das Aguas” (Gén 1,1-2). Os mitos cosmogénicos nao sao teorias cosmélogas primitivas. “Os mitos sao, antes de mais nada, manifestacdes psiquicas que 44 Kockelmans, Joseph J. (ed.): Phenomenology (Garden City, Nova York, Doubleday & Co., 1967), p| 32 56 refletem a natureza da alma”.** O abismo, as trevas, as aguas, o vento forte: simbolos do caos que permanentemente investe contra a ordem. Destruigéo e morte estéo sempre presentes. Assim, o mundo dos deuses esta sitiado pelas hostes do in- ferno, O principio do prazer, 0 projeto utdépico do ego, as cristalizagdes do amor que se expressam na imaginagao e na cultura siéo permanentemente assombradas pela certeza de sua precariedade. E por isto que Heidegger sugere que a angustia 6 o mais primordial dos fenédmenos.** “A angutistia é uma das expressdes basicas da condigéo do homem como ser- que-se-encontra-no-mundo”. A angustia é 0 sentimento de que o Ser, em ultima analise, se reduz a nada. Por mais titanico que seja o seu esforco, o homem sabe que ele nao tem condi- Ges para superar esta condicaéo fundamental, da qual a angus- tia nada mais é que um simples sintoma. Os simbolos do demoniaco sao criagées e projecées da conciéncia. Mas “a palavra projecao é inadequada”, observa Jung, “pois nada foi tirado da consciéncia e langado ao exterior. Ao contrario, a consciéncia chegou, por meio de uma série de atos de intro- jecdo, & complexidade que hoje conhecemos”.** Por isto, a experiéncia do demoniaco, longe de ser uma alucinagéo de uma consciéncia doente, emerge das préprias condigées da existéncia, infectada pela presenga do Nada que se avoluma e deixa, a cada dia que passa, as marcas da morte impressas no proprio corpo, como estigmas de posse. 45 Jung, C. G.: Op. cit. p. 12. Sugestio semethante encontramos em C. Lévi- Strauss: “A’diversidade dos caminhos que levaram J. J. Rousseau conscien- temente, e inconscientemente os indios sul-americanos, a fazer as mesmas especulagdes sobre um passade muito remoto nao prova nada, sem divida, a respeito deste passado, mas prova muito acerca do homem. Ora, se 0 homem € tal que ndo pode escapar, apesar da diversidade de tempos ¢ luga- res, A_necessidade de imaginar de maneira igual as suas proprias origens, esta ndo pode ter estado em contradicio com uma natureza humana que se afirma através das idéias recorrentes, que aqui e acolé os homens entre- tém sobre o seu passado”. Du Miel aux Cendres (1966), p. 260. 46 Heidegger, Martin: Being and Time (Nova York, Harper & Row, 1962), p. 234, § 189. “De um ponto de vista ontolégico-existencial, 0 ‘nao-estar-em- casa” (das Nicht-zuhause-sein. In der Angst ist einem ‘unheimlich’) como © fenémeno mais primordial’. E muito significativa a correlacio entre a ansiedade e o “ndo-estar-em-casa”: un-heim-lich. Heim, no alemao = lar. A precariedade do lar — a estrutura significativa de valores que 0 homem constréi ao seu redor — significa, em dltima andlise e em tltima instincia, qite o lar esta destinado a dissolucao. 47 Ibid., p. 233, § 188. 48 Jung, C. G.! Op. cit, p. 31. 57 Como o disse Kierkegaard, “ 0 homem € uma sintese do infinito e do finito, do temporal e do terno, de liberdade e de necessidade”.* Como viver a paixao infinita num mundo onde esta paixdo nada mais é que um amor e um palpite, uma saudade do ausente e uma visdo do que nao se pode ver. Desta contradigao surge a religido. Ou mais precisamente: esta contradigao € a religiao. Marx via na religiéo uma ilusao produzida por uma socie- dade injusta. Abolidas as condicdes de injustica, a religido teria de desaparecer. Como seria bom se a contradicéo da existéncia se devesse a arranjos institucionais que podem ser abolidos! Freud estava mais perto da realidade ao perceber que a contradicdo da existéncia se instaura no proprio ser do homem — problema sem solugao. A terapia poderia ajuda-lo a compreender a sua miséria, e a aceité-la de forma estdica. Cura é impossivel. “Consciente, por fim, de que ele é croni- camente enfern:o, 0 homem psicoldgico pode, nao obstante, por um fim a antiga busca dos seus predecessores de uma doutrina de cura. A sua experiéncia com a ultima destas dou- trinas, a de Freud, poderd finalmente ensind-lo de que cada cura iré expd-lo a uma nova enfermidade".” Por isto, a pro- fecia de Freud acerca do futuro da religiao, como a de Marx, se assenta sobre um engano. Enquanto o homem viver o seu ego estara cronicamente envolvido na busca incessante por um mundo de amor. E enquanto ele viver a propria vida lhe dira que a busca esta fadada ao fracasso. Porque, mais cedo ou mais tarde, a morte traré um fim aos seus projetos. Por isto a religidéo continuara, até o fim, como expressdo de amor e como expressio de medo. O homem vivera, para sempre, num mundo de deuses e deménios, simbolos de suas aspira- ces e temores — ainda que estes mesmos simbolos se enver- gonhem de suas proprias origens e, como travestis, se vistam com roupagens seculares. Como muito bem observou Dur- kheim, “ha algo de eterno na religido que esta destinado a sobreviver a todos os simbolos particulares com que 0 pensa- mento religioso sucessivamente se envolveu”.* 49 Kierkegaard, Siren: “The Sickness Unto Death", em Fear and Trembling and The Sickness unto Death (Garden City, Nova York, Doubleday & Co., 1954), p. 146. . $0 Rieff, Philip: Op. cit., p. 392. 51 Durkheim, E.: The Elementary Forms of the Religious Life, op. cit, p. 474. 58

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