Quando as imagens
tocam o real’
Georges Didi-Huberman
"Traduzido do espanhol, do endereso eletronico:
‘niet macbaseploads/ 2080408,
Georges Di Huberman und i gene Tocan fe eaipe!
Tradugao de Patricia Carmello e Vera Casa Nova
Georges Didi-Huberman
Georges Didi-Huberman, filésofo ¢ historiador da arte, leciona na Ecole.
des hautes études en sciences socials. Publicou vris livros sobre a
histériae a teoria das imagens, num amplo campo de estudos que va da
renascenga até arte contempordnea, e que compreende os problemas
de iconografia cientifica do século XIX e seus usos pelas correntes artisti-
cas do século XXRESUMO
Partindo da hipétese de que a imagem arde em seu contato com o real,
levanta-se a questo: que tipo de conhecimento pode dar lugaraimagem?
Pra dar resposta a essa pergunta seria necessétio retomar e reorganizar
‘uma enorme quantidade de material historico e tebrico.Talvez baste, para
dar uma idéia do caréter crucial de tal conhecimento — quer dizer, de seu
caréter nao especifico e nao fechado, devido a sua natureza mesma de
cruz, de “encruzilhada dos caminhos” — recordar que a secao imaginar
da Biblioteca de Warburg, com todos seus livros de historia, de arte, de
ilustragao cientifica ou de imaginério politico, ndo pode entender-se, nem
sequer pode utilizar-se, sem 0 uso cruzado, crucial, de outras duas secoes
ituladas Falar e Atuar. Atravessando os postulados de Aby Warburg
Walter Benjamin, entre outros, este texto argumenta que a imagem nao
um simples corte praticado no mundo dos aspectos visiveis. E uma im-
pressdo, um rastro, um traco visual do tempo que quis tocar, mas também
de outros tempos suplementares —fatalmente anacrénicos, heterogéneos
entre eles — que, como arte da meméria, no pode aglutinar.‘Assim como néo ha forma sem formacio, nao ha imagem sem imaginacio.
Entéo, por que dizer que as imagens poderiam “tocar o real"? Porque ¢ um
enorme equivoco querer fazer da imaginacéo uma puraee simples faculdade
de desrealizacio. Desde Goethe e Baudelaire, entendemos o sentido consti
tutivo da imaginacSo, sua capacidade de realizacao, sua intrinseca potencia
de realismo que a distingue, por exemplo, da fantasia ou da frivolidade. E
Co que fazia Goethe dizer:“A Arte é 0 meio mals seguro tanto de alienar-se
do mundo como de penetrar nele"’ E 0 que fazia Baudelaire dizer que a
imaginacéo ¢ essa faculdade“que primeiro percebe (..) as relagbes intimas,
esecretas das coisas, as correspondéncias eas analogias, [de maneiral que
1a¢d0 é apenas um falso sabio, ou pelo menos um
sabio incompleto™.
Ocorre, portanto, que as imagens toquem o real. Mas, 0 que ocorre nesse
contato? A imagem em contato com o real — uma fotografia, por exern-
pplo—nos revela ou nos oferece univocamente a verdade dessa realidade?
Claro que nao. Rainer Maria Rilke escrevia sobre a imagem poética: Se
arde, € que é verdadeira’ (wenn es aufbrennt istes eschf) * Walter Benjamin
escrevia, por seu turno:“A verdade [..J ndo aparece no desvelo, mas sim em,
lum processo que poderiamos designar analogicamente como o incéndio
do véu [.J, um incéndio da obra, onde a forma alcanca seu grau maior de
|uz*(eine Verbrennung des Werkes, in welcher seine Form zum Hohepunktihrer
Leuchtkraft kommt”: Tempos depois, Maurice Blanchot escreveu em sua
novela La Folie Du Jour: Queria ver algo a pleno sol. de dia; estava farto do
encanto e do conforto da penumbra; sentia pelo dia um desejo de dgua e
deat. Ese ver era 0 fogo, exigia a plenitude do fogo; ese ver era o contigio
da loucure, desejava ardentemente essa loucura™.
Assim, podemos propor esta hipétese de que aimagem ardeem seu contato
como real. Inflama-se, ¢ nos consome por sua vez. Em que sentidos — evi-
dentemente no plural — deve-se entender isto? Aristételes abriu sua Poé-
tica com a constatacio fundamental de que imitar deve ser entendido em
varios sentidos distintos: poder-se-ia dizer que a estética ocidental nasceu
smente destas distingSesé. Mas a imitagao, é bem sabido, jndoavanga
sendo de crise em crise (o que néo quer dizer que tenha desaparecido, que
tenha caducado ou que ja nao nos concerne).Portanto, seria preciso saber
em que sentidos diferentes arder constitu hoje, para a imagem e aimitac3o,
uma *funs3o" paradoxal; melhor dizendo uma disfuncao, uma enfermidade
crénica ou tecorrente, um makestar na cultura visual: algo que apela, por
conseguinte, a uma poética capaz de incluir sua prépria sintomatologia.
inteKant perguntou-se em outros tempos: “Que &
orientar-se no pensamento*?” Néo 56 no nos
corientamos melhor no pensamento desde que
Kant escreveu seu optisculo, como a imagem es-
tendeu tanto seu terrtério, que hoje é dificil pen-
sar sem ter que “orientar-se na imagem Jean-Luc
Nancy escreveu, mais recentemente, que o pen-
samento filos6fico viveré a viragem mais decisiva
‘quando“a imagem enquanto mentira’da tradi¢ao
platénica sofrer uma alteracio capaz de promover
“a verdade como imagem’, um pensamento do
qual Kant mesmo havia forjado a condigao de
possibilidade em termos bastante obscuros —
como sao, frequentemente, as grandes palavras
filosbficas — de“esquematismo transcendental”
Questéo ardente, questao complexa.Porquearde,
esta questéo quisera encontrar sem demora sua
resposta, sua via para 0 julzo, 0 discernimento,
senio para a agéo. Mas, porque complexa, esta
‘questo sempre nos retarda a esperanca de uma
resposta. Enquanto isso, a questo permanece,
a questo persiste e piora: arde. Nunca, aparen-
temente, a imagem — e 0 arquivo que confor-
ma desde o momento em que se multiplica, por
muito pouco que seja, eque se deseja agrupé-la,
entender sua multiplicidade —nunca aimagem
se impos com tanta forcaem nosso universo esté-
tico, técnico,cotidiano, politico, histérico. Nunca
mostrou tantas verdades téo cruas; nunca, sem
diivida, nos mentia tanto solicitando nossa cre-
dulidade; nunca proliferou tanto e nunca softeu
tanta censura e destrui¢éo. Nunca, portanto, —
esta impressio se deve sem divida ao préprio
carater da situacéo atual, seu caréter ardente—
a imagem sofreu tantos dilaceramentos, tantas
reivindicagGes contraditorias e tantas rejeicoes
cruzadas, manipulacées imorais e execracées
moralizantes.
Como orientar-se em todas estas bifurcagées, em
todas estas armadilhas potenciais? Nao deveria-
mos — hoje mais do que nunca — voltarmo-nos
novamente até os que, antes denés e em contex
istéricos absolutamente ardentes,tentaram
produzir um saber eritico sobre as imagens, seja
em forma de um Traumdeutung, como em Freud,
uma Kulturwissenschaft. como em Aby Warburg,
‘uma pratica de montagem, como em Eisenstein,
maleate saber altura de seu proprio nao saber,
como em Bataille em sua revista Documents, ou
em forma de um “trabalho das passagens" (Pas
‘sagenwerk), como em Walter Benjamin? Nao vem
nossa dificuldade a nos orientar de que uma s6
imagem é capaz,justamente, de inicio, de reunir
tudo isso e de dever ser entendida ao mesmo
tempo come documento e como objeto de sonho,
como obra e objeto de passagem, como monu-
mento e objeto de montagem, como nao saber
e objeto de ciéncia?
tos
No centro de todas estas questées, talvez, este-
ja esta: a que tipo de conhecimento pode dar
lugar a imagem? Que tipo de contribuigao a0
conhecimento historico ¢ capaz de aportar este
econhecimento pela imagem? Para responder
corretamente, ter-se-ia que reescrever toda uma
Arqueologia do saber dasimagens,¢, fosse posst
velidever-se-ia seguir-Ihe uma sintese que poder
se-iaintitular As imagens, as palavras e as coisas.
Em resumo, retornar e reorganizar uma enorme
quantidade de material historicoe tebrico. Talvez
baste, para dar uma ideia do caréter crucial de tal
conhecimento — quer dizer, de seu caréter nao
especifico e nao fechado, devido a sua natureza
mesma de cruz, de“encruzilhada dos caminhos*
— recordar que a seco imaginar da Biblioteca
de Warburg, com todos seus livros de historia, dearte, de ilustracéo cientifica ou de imaginério politico, nao pode entender-
se,nem sequer pode utilizar-se, sem 0 uso cruzado, crucial, de outras duas
secées intituladas Falare Atuar®.
Durante toda sua vida, Warburg tentou fundar uma disciplina na quel,
em particular, ninguém tivesse que fazer a sempiterna pergunta — que
Bergson chamara um “falso problema” por exceléncia — de saber quem
surgiu primeiro, a imagem ou a palavra... Enquanto a prépria‘iconologia
dos intervalos", a disciplina inventada por Warburg oferecia-se como a ex-
ploraco de problemas formais, histéricos e antropolégicos onde, segundo
ele, poderiamos acabar de “reconstituir 0 Iago de co-naturalidade (ou de
ccoalescéncia natural) entre palavra e imagem’ (die natirliche Zasammen-
{gehérigkeit von Wort und Bild")
Nao se pode falar do contato entre a imagem e o real sem falar de uma
espécie de incéndio. Portanto, nao se pode falar de imagens sem falar de