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sein die, eat GERD A. BORNHEIM INTRODUGAO AO FILOSOFAR (O PENSAMENTO FILOSOFICO EM BASES EXISTENCIAIS. 9° Edigo copy ©1969 Gerd A. Roaen (ope hard Minds evi: vo Maris ‘sag clewiler ee Mend Eta a Fotos Gaps iets exis ee, mg pores, ‘ax Deming Sep os Ajo 277 ‘ar os136170- Fac e367098 ho Pda. SUMARIO “Tor on cos msernon Nenu pa dec pode - {eats reprdunds em qulquer mes ou rma so ecco 1- PosigSo do problema, 13, | i Il-Andlise da admiragio ingénua, 37 —— : IL-0 comportamento dogmatico, 55 IV~A ruptura da dogmaticidade ea experiencia negativa, 69 ‘ \V~Extensio da experiencia negativa, 81 cP hat Cyan Chr Bri die SP VI-Significado e superagio da experiéncia negativa, 97 name VIl-A conversion, 11 cc "Cath tac“ Soa eae Conclusio, 132 a Apéndice Fost eSisems, 157 ee Bibliografia, 153 ene Indie nae, 19 = oie para caigsatemsins t {ret tc 5 tan wnced Rn 43 H A meus pais e minhas irmas ADVERTENCIA Este ensaio foi escrito no inicio de 1961, e recebeu por titulo Motioacio Bésia ¢ Atitude Originante do Filoso- far. Destinado a servir de tese para concurso a livre- docéncia, o seu texto sofreu pequenas modificagées apés a realizagio das provas. O autor se propde o estudo do ato de filosofar con- siderado de um ponto de vista existencial, ou seja, 08 ‘caminhos que levam a conseiéncia mundana a assumir 0 labor filosésico, A vida do ente repousa no destino do Ser. ‘Mas para 0 homem permanece a questo de saber se ele encontra a conformidade prépria de sua esséncia que corresponde a esse destino. Marry Hebeccen We shall not cease from exploration And the end of all our exploring Will be to arrive where we started ‘And know the place forthe first time. TS. Buc 1 POSIGAO DO PROBLEMA. (© comportamento originante do filosofar a possibi- lidade de eslarecer a problematica que tal comportamen- to.coloca constituem o objeto do presénte estudo. Baseado na conviegio de que nao se trata de um problema que possa ser descartado como simplesmente secundério ou de menor importincia, 0 autor parte assim, do pressu- posto de que a coloragio fundamental de uma filosofiajé se determina, em certo sentido, a partir mesmo da atitude iniial assumida por todo fildsofo. Trata-se, portanto, da problematica implicada no ponto de partda do filsofar Referimo-nos a0 filosofar, e queremos, desde logo, estabelecer uma distingio preliminar. A atitude inicial do fildsofo determina o carster titimo de sua filesofia, Mas esta determinasio, profundamente enraizada no ato de flosofar, nio deve ser confundida com o proble- ma do primeiro principio filosico, com a primeira afir- ‘magio, a partir da qual um determinado filésofo poderd alicergar e desdobrar o todo de seu pensamento, obedi- ente & incoercivel tendéncia para a sistematizagio, que é inerente a natureza mesma da filosofia. Este ponto de partida, primeiro principio, seja ele de natureza légica, ‘ontolégica, gnosioldgica ou de qualquer outro teor, 13 sobressai de uma problemitica antecedente e condicio- nante, que vem a confundirse com certas exigencias existenciais de todo filosofar. ‘Tomemos um exemplo. O fato de um Descartes ha- ver estabelecido 0 cogito como ponto de partida, assergio primeira de toda a sua metafisca, dé a este primazia absoluta dentro de uma certa ordem deduti Mas o estabelecimento desse primeiro principio meta- fisico radica e corresponde a todo um itineririo prévio. No caso particular de Descartes, tal itinerério é, a0 ‘menos parcialmente, conhecido, pois o priprio fil6sofo ‘os transmitiu, em diversas de suas obras, as etapas que © levaram a filosofar. Sabemos, por exemplo, de seu descontentamento em face da situagio da ciéncia de seu tempo.' Homem dade a viagens, fala-nos da necessidade de percorrer “o grande livro do mundo”, a fim de conhe- cer 05 costumes de seus contemporaneos, bem como os de povos estrangeiros’, ¢ termina a primeira parte do “isi de me nin in nad Mi marred aceaire ea eS neeieeirennee ees Sienna ews ee ed SR. aloe eee ees Tela ee ec ss Etta gcorees Sometneeeas ae PRG a See pe ere SERRE ACRE neers Ronis be Wade tac cee saat Eel aoe meee recta SA aoe aS 27 tie eminent a ver ce nr tons fect femss de dive ores eco seca eres eipernentre ros ncnton gus ene Opuntia, em ‘etleniosobre a conas que se spreentavay, que dla sigan poten Ts ptare pc occa wea Yo ia fase poe “4 Discurso do Método declarando: “Tomei um dia a reso- lugéo de estudar também em mim mesmo, e de empre- gar todas as forgas de meu espirito na escolha dos cami- hos que deveria seguir”.’ Pode-se mesmo afirmar que © itinerério anterior ao cogito, seguido pelo Pai da Filosofia moderna, coincide com 0 predominio de um profundo sentimento de insatisfacdo,insatisfacio que se vai traduzir, de maneira mais especifica, nas diversas ‘tapas que constituem 0 processo da diivida metédica. Assim, $e 0 cogito 6 0 ponto de partida metafisico da filosofia cartesiana, o filésofo Descartes faz arrancar as suas preocupagSes de uma série de circunstancias que ‘vio condicionar todo o seu pensamento. (© problema que o autor deste trabalho se prope analisar nas paginas que seguem nao é 0 do cngito ou de qualquer outro principio semelhante ou de andloga funglo. Nao é tampouco o da legitimidade de um tal pponto de partida. Mas o problema a que se vai atender aqui é 0 da atitude inicial do filosofar, ou seja: aquele especifico comportamento que leva o homem a ocupar- se de filosofia, a sentir-se até mesmo um condenado a essa tarefa, segundo o sentimento de Sécrates.* dem p12 CE PLATAO. Apoide Smt. 294 3d. — Em cat a Nthamne, sepa de Hegel stl be tard wep para condeness Fees g om Bait pe tana Cio Het gar Be rommanns Weg 184 p. 2731 15 (Ora, desde esta vivéncia de insatisfacio ~ para nos atermos ao exemplo de Descartes ~ até “a resolugSo de estudar’, ha um caminho mais longo do que & primeira Vista possa parecer, hé mesmo todo um itineririo coinc- dente com a biografia do fildsofo. Aliés, aqui topamos com a nossa primeira dificuldade, pois quem_diz biografia diz algo de estritamente individual ede incon- fandivel em sua originalidade: exstem tantas biografias quantos homens no mundo. E se asim é, pode parecer, em um primeiro momento ao menos, que tudo o que resta a fazer € a histéria da vida dos filésofos iustres, transferindo o problema para a extensio da Hist6ria, sempre inacabada, da Filosofia, e fragmentando-o em ‘um ntimero indefinido de capitulos exemplares. Contudo, quem se resolve ou se sente condenado @ fazer Filosofia assume, pelo simples fato dessa resolucio, uma cert responsabilidade, um compromisso que, como todo compromisso, impée determinadas condigies, as aquais coincidem e ao mesmo tempo transcendem 0 que possa haver de abitririoeirredutivel em uma existéncia individual’ O caminho do fil6sofo € um inelutével com- promisso com a natureza da filosfia, 0 que vale dizer: com o priprio sentido do real e de sua verdade. A auten- ticidade ndo s6 de uma flosofia, mas também a de uma Vida filoséfica, dependem de sua fidelidade a0 real (O estudo da conscinciafiloséfica, desde a sua etapa ingénua e pré-fils6fica até o despertar para o problema do sentido da realidade, acompanhando as etapas bisi- ‘as e necessérias de seu desenvolvimento, é 0 que se propée, mais especficamente, 0 autor destas paginas. 5 Podemas dle com MONTAIGNE, que “ada home tz em ta forma mad condi human (Eau Ps, isbotoqe des Pade 13sh-p 90 16 el: Evidentemente, histria da filosofiaoferece um rico ¢ variado material para este estudo, que nio deve nem pode ser rejitado. Se quisermos saber quais as caraters- ticas do comportamento filosdficoe da atitude inical do filosofat, nada mais correto, concreto e evidente do que perguntar aos préprios fiésofos, aqueles que construiram © monumento da filosofia. Este inevitavelotimismo ini Gil, porém,néo tag em resullar frustrado, a decepgio invade o pesquisador, logo ao inicio do trabalho. De fato, poucos flésofos ocuparamse do tema ou dleixaram transparecer ao menos aspects de sua bografia spiritual. O que normalmente se observa & que a obra filosofica apresenta-se jf pronta, montada nas suas con clusbes, deando completamente de lado, num abandono imponderével para a pesquisa, aquilo que se poderia chamara pré-hstria de um determinado sistema filos6f- co. Encontra-se um desenvolvimento temstico, mas, do Ponto de vista do comportamento pessoal do filsofo, nfo se percebe faciimente o que o levou a um tal desdobra- mento de idéias. Outras vezes, o problema éabordado em. tumas poucas linhas, quase por acaso, eo tema, longe de ser realmente ventilado 6 proposo, ji de antemo, como resolvido,levando 0 leitor a uma série de conjeturas. Ou ‘ainda, vemvnos em socom uma pagina de importancia secuncria, um ensaio de juventude ou alguns trechos de correspondéncia: apenas breves indicacbes, que per ritem vislumbrar, aqui ou ali, um aspecto do problema. "Neste desamparo, a compensacio pode vir de alguns poucos pensadores, de tipo exstencial, cua obra, muita Yezes, esume-se em uma espécie de dirio intimo. For ‘outro lado, a atmosfera geral de uma determinada flosofia pode facltar 0 acesso & atitude do respectivo filésofo Giant da raidade. Ascim, a leitura de um Schopenhauer termina por revelar-nos uma postura em face do real pro- v7 fundamente diversa da que encontrames em Nietzsche, por exemplo. Mas, tanto estes fldofosexistencias como Equeles em que podemos disceriatravés das construies flosficas uma attude bsica, ab inves de aclarar 0 nso problema apenas como que nos advertem da importing fundamental do mesmo, acenando is dificuldades que ele oferece. Em suma, 20 abo de algumas persrutages 00 longo da Fisteria da Floeofao primero mais iminente perigo que surge ode dissolver a problematica da attude flosoica ‘nical em alguma modalidade de relativism, afoganco a questio nas brumas da hist ‘Uma falsificagio do problema consistria em dis- solvélo na diversidade de Weltanschauungen, quer dizer, ‘em compreender a filosofia como o espelho que dé ‘unidade cultural a uma determinada época. E isto em nome do bem conhecido argumento que diz que a filosofia das concepgbes do mundo, fazendo sogobrar a problemitica filosdfica dentro de certos limites do hori- zonte hist6rico,s6 pode fazé-1o em nome de uma filosofia, esta, por sua vez, coloca, em pé de igualdade com qual- {quer outra, 0 problema de sua validez. E, dentro da pers- pectiva que estamos examinando, este historicismo tam- ‘bem nao poderia fugir, como qualquer outra modalidade de filosofia, ao problema da atitude inicial do filosofar. Vale dizer que a legitimidade da flosofia nto pode obedecer a uma pesquisa reduzida ao estritamente hist6rico, pois se se trata de legitimidade, o plano mera- mente historico, a questo fat, revela-se por definigio insuficientee deve ser transcendido.(Ou be a perspecti- va historicista, em qualquer de suas miodalidades, é cor- rea, e neste caso 0 nosso problema a rigor néo existe, pois 18 se confundiria simplesmente com uma espécie de cultu- rologia ou tipologa,exigindo da flosfia a abdicacio de seus foros de cigncia: ela no passari, portanto, de uma cespécie de morfologia flosdfico-cutural, que jamais seria total e completa incidindo naquela fragmentagio a que nos referimos acima; ou ento, contrariamente, devemos admitr o erro em que incide o historcismo, impondo-se a tarefa de julgé-lo ~transcendendo-o consetientemente assim como se juga qualquer outraflosofia Portanto, se quisermos manter de pé o nosso proble sma, somos obrigados a dar razio a Husser, quando, em uma de suas obras, distingue filosofia e Wellanschung “Ahistria, a ciéncia empirica do espinito em geral, &inca- paz de decidir com seus proprios mics, em Um ou outro sentido, se se pode distinguir a religito, como forma part- cular de cultura, da religiso como idéia, isto é, como reli- jo vlida; do direto valido;efinalmente se € necessiio dlistinguir entre afilosofa no sentido histérico e a flosofia vilida; se hd ou no entre uns e outros a relaio da idea no sentido plattinico da palavra, coma forma velada de ua aparigho": Embora ni possamos acitar inegralmente 0 cextremo rigorismo desta distnclo, tipica do ‘centifcis- {5 Wjse foo ot de HUSSERL sre o pabems La phinpie cece amae Quininc F p iealoeo {Miwa dest obec dodo era tin ne eds pt ‘Sepeal dum cnc va cm oP m ‘Stans ners nus manos cogado sar nas do qe gam gat Fema Sc arenas an ae Fra como nope ur povars shai sudo gil hago lo howe folate guar oa pote provers prota ons Se 19 mo” do Pai da Fenomenologia, cabe reconhecer que 0 ‘proprio Hlusserl nlo deixa de acentuar 0 imenso valor da historia para o filésofo’” De fato, para 0 problema em discussio, o mérito fun- damental do historicismo, além da enorme riqueza de ‘material que possa oferecer a sua modalidade de pesquisa, consiste, malgrado as suas limitagoes, em ter recolocado 0 problema da natureza da filosofia, bem como o da atitude Inicial do filosofar, que decorre daquele. Pois se tocamos aqui no problema do historiismo, ndo € para mostrar a incompatibilidade de uma posiglo imanentista em face da natureza propria da filosofia- que foge ao tema proposto = porém para destacar ainda mais a importincia da moti- vacio na atitude inical do filosofar. B aqui temos um pro- bblema que, se mergulha profundamente em condigies sécioculturais, se determina sobretudo a partir do telos que Ihe é proprio: a busca da verdade. ‘Nao 6, a maneira de Husserl, 0 problema da validez da filosofia que nos vai interessar. Se ecusamos legitimi- dade a tese historicista, € porque nos sentimos mais Iibertos para acentuar uma caracteristica do problema sobre a qual deveremos insistir ao longo deste trabalho: referimo-nos a densidade existencial que acompanhs necessariamenteo filosofar; e, como € dbvio, a dimensio existencial do homem no pode ser dissociada de sua profunda e fundamental historicidade. Precisamente em relacio a radical historicidade do ser humano, 0 histori- cismo desfalece e se revela insuficiente* 7 "Gowan mesmo dents exressimte bre oats de cunconber planer ines aor ds ata noseni aarp ftv pra oom pl. ‘sua pespectia hte, o problema vem onan nero gue caps be Heeger Up tah» esi EGDWG LANDGRERE n Psp er Coe Bonn, Ateneo "ag 1982, plot ess 20 Mas abordemes o problema sob um outro aspect: © 4o surtohist6rico do pensamento filoséfico. A deficéncia fundamental deste tipo de andlise € a sua objetividade alienadora. N3o se respitanela a ditingSo entre 0 com- to filossfico € © comportamento do historiador 4a filosofia, ou sea, daquilo que Heidegger chama de Prilosphiewissenscht? Sem divida, a andlise histrica & Imprescindivel;€ ela que nos permite aceder a0 cond- cionamento possbilitador de certa etapa do desenvolv- ‘mento da Glosoia. Contudo, embora reconhecames necessidade de tal tipo de andlse importa salientar aqui a sua radical inouficénca.Ofato forgoso de haver a flosofia surgido em um determinado momento da cultura ociden- tal no ésuficente para consderara explicagio dese fato como um problema coincidente com o da aitude inicial do Flosofar. Na verdade, 0 problema colocado dentro da tmoldura da origem histrica da filosofia ~ mesmo se deixarmos de lado o carter de pariculariade inerete a tal tipo de elucidacto ~ contribui muitos menos do que & primeira vista parece para a tematic do flosofa. Por mais que se busquem causas histricas para explicar a génese do pensamento floséfico, por mais ricas que sejam as conclusdes alcangadas neste dominio, sempre sobraré um res{duo iredutivel e por assim dizer refratrio&explicagio causal: sempre cairemos na neces- sidade de aludir a um “milagre grego”. Diante da possibilidade desea investigagio histér- a, dois parecer ser os caminhos bisicos que podem ser seguidos. cot nae ep Taner M Ninos og 15, p. paid sma on conte arucus te ti ee Petia Gaia, 180 RD a © problema consiste em buscar as causas histricas da filosofig.e da cultura grega, e 0 primeiro caminho implica @nyfazer um inventério das influéncias extragre- gas ~ egipeas, babildnicas, fenicias, persas, etc. - que tenham contribuido para a formagao do mundo grego. Mas na medida em que esse tipo de explicagbes for coroado de sucesso, 0 fendmeno mesmo que se quer explicaresvai-s, pois dissolve-se a originalidade da cul- tura grega, no sentido de que se reduz grego a ele- rmentos prégregos. Impée-se, enti, 0 reconhecimento de que a especificidade da cultura grega permanece {nexplicada, e assim, por mais rcas que sejam as andli- ses, subsiste fato de que esta cultura é diferente das otras culturas da época. © outro caminho, que permanece aberto, é oda ten- tativa de uma explicagso interna, desde dentro da propria Gréca, do original grego, para chegar, assim, & brigem da filosofa antiga. As andlises aqui se envique- ‘eem e podem ser conduzidas pelos mais diversos pon- tos de vista: filol6gico, literario, religiso, artstico, ‘econémico, politico, etc. Mas a riqueza dessas andlses nfo consegue, aqui também, elidir aquele residuo que permanece sempre inexplicado. Realmente, a céncia do individual, do hist6rco, néo tem fundo, dai por que uuma andlise da cultura grega permanecera sempre insatisfatoria. Nao ha ciéncia, nao ha intuigdo, ndo ha amor, que possam fazer um individuo compreender de ‘maneira absoluta um outro individuo, seja pessoa ou fato cultural, histrico. A assergho de Herdcito € rigo- rosamente valida: “Mesmo percorrendo todos os cami- ‘hos, jamais encontrarésos limites da alma, tio profun- do 60 seu logos". 10CE DIES, rg 5. 2 Se abrimos esse paréntese sobre a. perspectiva hist6rica na consideragao' da origem do pensamento filos6fico, ndo foi, evidentemente, para roubar a virtude propria desse tipo de andlise, mas para mostrar a sua radical insuficiéneia na abordagem do problema que nos interessa. A nosso ver, o que a hist6ria ndo pode fornecer podé-lo-é uma andlise de ordem antropoligico-existen- Gal, radicada, portanto, no comportamento daquele ser que faz e é responsivel pela flosofia. Para isto, devemos agar o prego proprio de todo conhecimento cientifico, ‘sto 6, devemos ficar no plano do geral. Mas € precisa- ‘mente a possibilidade de permanecer nesse plano do geral {que permite ptr a descoberto a extensio universal da ati- tude originante do filosofar, e deste modo vinculé-la a todos os que penetram no Ambito filosdfico, sejam gregos ou nio, ressalvadas, evidentemente, as peculiaridades de cada individuo, e respeitadas as circunstancias histricas. Afirmamos acima que, se quisermos saber da ati- tude inicial do comportamento filos6fico, o caminho que se impie de imediato ¢ consultar os filésofos. Real- mente, se desejarmos perceber, de maneira mais concre- ta, acomplexidade do problema, lancemos mio, por um instante, de certos exemplos que nos oferece a Historia da Filosofia. Olhando sobre o passado da filosofia, deparamos ‘com certas atitudes bésicas, predominando diversa- mente, umas ou outras, em cada fil6sofo. Karl Jaspers ddestaca trés destas atitudes", que talvez ndo sejam as 1H Inaction pb. Td Jeanna Hoch Fars, Plo. 952 23 Xinicas possivels, mas que sio encontriveis com certa freqiéncia, resguardadas diferenciagies por vezes fun- damentais: a) A primeira atitude nos vem da Grécia cléssica. Platio e Arist6teles pretendiam ver na admiragio o inn pulso inicial de todo filosofar. No comportamento admi- rativo 0 homem toma consciéncia de sua propria igno- ancia; tal consciéncia leva-o a interrogar 0 que igno- 1a, até atingir a supressio da ignorancia, isto 6, 0 co- nhecimento. ) A segunda atitude Karl Jaspers a encontra na divi- 1a, podendo-se apontar Descartes como sendo 0 seu re- presentante classico. Neste comportamento, a verdade & atingida através da supressio provisbria de todo 0 co- nhecimento ou de certas modalidades de conhecimento, {que passam a ser consideradas como meramente opina- tivas. A distinglo grega entre daxa eepisteme tem a mesma raiz, A diivida metédica aguca 0 espirito critico proprio da vida filos6fica, enisso reside a sua eficécia. ©) Finalmente, a terceira atitude implica no senti- mento de insatisfagio moral. Se em seu comportamento usual encontramos o homem absorvido no mundo que o ‘cerca, a filosofia se impoe como tarefa a partir do momento em que esse homem quotidiano cai em sie pergunta pelo sentido de sua propria existéncia. O mundo exterior é abandonado em conseqiéncia de um sentido de insatisfacio, levando o homem a tomar cons- ciéncia de sua propria miséria. Assim Epiteto, por exem- plo, quando escreve: “O principio da filosofia, para aqueles que se dedicam a esta ciéncia como deve ser (..), € a consciéncia de sua propria fraqueza e de sua impoténcia nas coisas necessérias”.” 12 Eis Tin neh Sou Pr Ls Bells Lats 146,12, pl 24 Sem diivida, nessas trés modalidades de atitude hi muito de verdade, no sentido de que elas sd encon- tradas em todo fildsofo, em um grau maior ou menor, a despeito da possivel predominncia de uma ou outra sobre as demais. Na admiracio encontramos um com- portamento de abertura 0 mais espontaneo e original possivel do homem diante da realidade. Sem a duivida, io chega a se desenvolver o indispensivel espirito crti- «0, que deve acompanhar toda tarefa de ordem filos6fi- ca, E pela inquietacao moral fundamenta-se 0 filosofar em seus aspectos éticos. ‘Assintese dessas trés atitudes poder-se-ia constituir, talvez, no ideal do complexo comportamento inicial do fil6sofo, desde que se verificasse dentro de um determi- nado equilfbrio. Este sentido de sintese apresenta-se, a0 ‘menos, como primeira e tentadora solucio em face da pluralidade de comportamentos. Mas tal equilfbro difi- cilmente pode ser verificado, porque as atitudes ~ tomadas em si mesmas, enquanto atitudes, ena medida fem que uma, como de fato acontece, predomina sobre as demais ~ reclamam um certo grau de exclusividade, evando-as, em conseqiiéncia, ase repelirem. Ea sintese, nesse caso, se possive, jf nfo coincidiria com o impulso inicial, mas seria, muito mais, o fruto de um trabalho de reflexdo sobre o problema, incidindo em um deverser abstrato; ou entio, colocando essa diversidade de ati tudes sobre outras bases, terfamos a descricio de mil plas experiencias, constitutivas todas do filosofar, Esta diversidade, contudo, ndo pode ser posta de lado por nés, mas impde-se precisamente como 0 mate- rial que deve ser explicitado para a compreensio do problema. Com isto queremos dizer que o impulso ini- ial do filosofar, longe de constituir um problema de ‘uma pega $6, apresenta-se como um todo complexo, 25 jos aspectosfundamentas devem atender as proprias ‘aracersticas béscas da natureza da filosofia ‘Areferénca a aspects ea possiblidade de flarmos no predominio de uma attude sobre as emais decor- rem do fato de que se empresa a uma atitude maior valor que as outras. Ora, é nessa diferenciagio valorati- va que reside oceme do nosso problema, pois podemos ‘edevernos enti perguntar qual delas apresentacardter de maior fundamentaidade, em fungSo da natureza da Filosofia, ecomo deve ser compreendida esta fundamen talidade dentro da diversidade de aspectos. O presente ensaio pretende mostrar que o elemento originante e precipuo do filoofar, nao obstante a inalienavel com Plexidade do fendmeno, reside na atitude admirativa. Realment,tomadas em si mesmas, todas as tésati- tudes apontadas revelamse insuficientes e parciais. A ‘bunt cota tiga aidiando dea eg Av ines de pre comer rigs pore come 6 peso an no ree ‘lla que Hs ann cxcontnvam nse pate nc pee ‘Ebthar eure dest geal oss cor passa meses ‘mane mas pera peo do coshesment fs hatrea ees ‘emo ta avnidade da anaes area cn Pace 1c Pu emp. 505 65 tanamenlny tines ne um copra ccaregei teat Sanit Saha ee same cased pete Feu aga a Remap da espace rch tego abe ee ers fe sore Bron ng cpa pl se ses pend eT ap sen Cen ang a 2 Seb Siesta tc Spee Spindel om inept er ent tl cadens erga Se 5) Satin acne te Egret pe omen Cin ee ‘hee See ns ene Sits pe Ste prt Toco ema aen Nei pe hone viens se san eae a a a semana ag Si naa pole ces ps a Re ah orientado em direcdo aos objetos, que o seu problema, Se ay Saal lane seni spt Sgr nf Tchr ele Bet ee Tdbene poe pas nd ee aed Penola Tn sy recs. apa Cale, 195, 1618 66 Atese geral, portanto, nao é constituida pelo homem. «a partir de afirmacoes isoladas, ou de uma soma de afir- mages, ou mesmo a partir de certos tropeqos ou dese- quilibrios inerentes & condicio humana, pois, muito a contririo, estas afirmagdes ou atribulagies se desdo- bram dentro da intimidade daquela tese geral. Esta é a garantia,o solo no qual se processa a existencia humana, tum solo pré-encontrado, pré-feito, anterior ao advento deste homem ou desta sociedade. Vale dizer que a pos- tura dogmatica aceita a tese geral, mas dentro da dimen- sao do esquecimento; isto significa que a tese jé € aceita como esquecida, sem saber-se esquecda, e, portanto, res- guardada de qualquer inquietagio quanto aos ‘seus Proprios pressupostos, porquanto ela é pacifica ante a atitude dogmtica. © comportamento da postura dogmatica com- preende-se dentro daquilo que podemos chamar de indiferenca ontoldgica. Nao se verificam problematizacées mais radicais, e, em siltima andlise, ndo ha consciéncia do problema do ser; ndo se pergunta por que é que existe a realidade, qual a sua razio de ser, 0 seu fun- damento, ou pela legitimidade de tais problemas: pro- blemas todos que Ihe sfo alheios e que permitem falar em indiferenca ontolégica. O homem desdobra a aven- tura de sua vida dentro de um plano Gntico, em contato com os mais diversos entes ~ coisas, pessoas, aconteci- ‘mentos, etc. Quando faz citncia, pergunta como se processa a realidade: quando se prope uma reforma ativa, assume uma tarefa, que pode ser realizada hoje de uma maneira e amanha de outra, sem preocupar-se, nestes comportamentos, com uma problematizagSo ra- dical. Move-se no plano éntico, sem passar a0 plano ontolégico. Permanece na diferenca dntica e na indife- 67 renca ontolégica.” Esquece, assim, a primeira de todas as diferencas, suposta por toda e qualquer outra enciagfor a diferenca entre 0 se eo ene; se tudo é tudo de maneira diversa, ‘A impossibilidade de compreensio do problema da dliferenca ontol6gica barra ao comportamento dogméticoa abertura para a problemética filséfica, pois esta s6 se impéea partir do momento em que se supera a indiferenca “ontolégica, a ponto de se poder dizer que a vocacio floss fica se mede pelo grau desta superacio, pela intensidade, pela sinceridade com que se coloca o problema do ser. (Ora, se a analise feta ¢ correta, devemos, entdo, per- ‘guntar: ~ Como abandona o homem a postura dogmati- ‘ca para assumir a filosdfica? Como se lhe abrem as por- tas que dio acesso a filosofia? Como supera aquele esquecimento fundamental no qual vive, entregue as suas tarefas de todos os dias? Vimos como o homem se ‘move a partir de uma tese geral, e inferimos estar ele perdido no mundo. Como, porém, pode o homem superar esta situacio, abrindo-se para a sua propria rea- lidade e para a realidade do mundo? Como chega a tomar consciéncia da tese geral, esquecida sem saber-se esquecida, e em fungio da qual vive? Ou para tudo resumir: como consegue superar a dogmaticidade? 1 Sago HEIDEGGER, ‘uaa se mencons s presenga rutin, se mpresuno pene Ansacte Randamenaeie rose doting 1 es co do rot) ec a) a pee ‘is erena da presen em ming 20 presen, permanence O ‘Scqucnert dove oquciment deren uo sr meagan {G3 Sr um Senden nase ans Ronan 18 p30) Sec ota enrich trae 9 ee EUGEN FNC Float fe Nae in ens, pad poe Laka MSRooenbuy Liew pT DS 68 Vv ARUPTURA DA DOGMATICIDADE E A EXPERIENCIA NEGATIVA Baie os ols, ner, ao, exdnhando cle a oa seta gue se abi gratuit mew eng ‘Canin Duancnc oe Anaoe As andlises precedentes podem dar a impressio de corresponder a atmosfera peculiar da filosofia contem- pordnea, e realmente correspondem na medida em que esta filosofia, enfaticamente voltada para os problemas da condigfo humana, atenta para aquele tipo de pro- blemética. Um répido exame, porém, da Historia da Filosofia permitiria vislumbrar a sua constancia através dos tempos, possibilitando compreendé-la como propria da consciéncia filoséfica, De fato, jé Platdo aponta perspectivas que vém 90 cencontro de nossa anélise. Refere-se ao problema na Repiblica, quando relata, em piginas de inesgotével pe- netragio, 0 mito da caverna. ‘Como se sabe, este mito repousa sobre uma dis- tingio fundamental. O mundo das sombras, de um lado, no qual vive a grande maioria dos pobres mortais, acor- rentados e incapazes de ver a verdade, fixados, como esto, ao que acontece no fundo da caverna, Por outro 69 lado, fala no mundo da luz, 0 sol, cuja contemplacio desencadeia a auténtica sabedoria, ‘© mundo das sombras apresenta, fundamental- ‘mente, as caracteristicas por nés descritas como proprias do comportamento dogmatico: € 0 mundo dos homens voltados para a agio, ocupados com as coisas, perdidos ‘no mundo das sombras. Portanto, o mundo dos homens habituados a prestar honras aqueles que sabem observar as sombras passageiras, que sabem distinguir uma som- bra de outra, e dizer qual veio antes e qual depois, 4quais andam juntas; e que sabem tirar conclusoes sobre © futuro’, voltados sempre para diante, para a cons- trugio, e por isto ndo chegam a ver o mundo as avessas, assim podem falar em uma outra realidade, nao de coisas ou sombras, mas de algo que lhes é contraposto, como 0 dia a noite, e que permite compreender a escuridio da noite. ‘A sabedoria platénica consiste em atingir a plena visio do sol. Mas isto, longe de ser facil, supe um pprocesso de acesso lento e doloroso, de libertacio pro- gressiva das cadeias do mundo das sombras. “Quando lum deles ¢ libertado e compelido repentinamente a parar de pé e voltar-se e caminhar e olhar para a luz, softer penas agudas.”? Mais do que isto, ao enfrentar 0 sol, o homem nao apenas sofre, a ponto talvez de voltar a refugiarse no mundo das sombras, mas ele corre 0 risco de perder a sua capacidade de ver, de ficar com- pletamente cego. Todavia, assumir esse isco é necessério para quem quiser alcar-se & sabedoria e com- preender, assim, a distingio entre 0 reino das sombras e 0 da luz. Segundo Platio, portanto, a dor e o risco sio 1 Rep S16 2 idem, 55 70 obstéculos que devem ser vencidos pelos que preten- dem atingir a visio da luz. Neste sentido, a dor eo risco so prescupostos do filosofar? Aceitando este ponto de vista platGnio, devemos anaisr 2 seguir admportincia, para o comportamento flossico, da experitnda negativa A andlise da posture dlogmitica nos revelou um homem adaplado a umn mand jit, vivendo, por isto, dentro de uma segurangafunda- rental Mas eta seguranc trina po cede osu agar 2 uma cota dexconfianga: este mundo todo os valores Esta resolugso deve estar como que inscrita na profun- didade do homem, de tal maneira que ela vai decidir de seu destino. Nio se trata de uma escolha superficial, de um liberum arbtrion indiferentae, qualquer coisa que se dé sem ‘conseqiiéncias maiores, de poder realizar indiferentemente isto ou aquilo. Nao se trata, pois, de uma liberdade abstra- ta, Kierkegaard compreendeu todo 0 peso desta resolucio ao escrever: “Comecar € sempre se resolver, e, no fundo, uma resolugio & da eteridacte (caso contrério, seria apenas uma brincadeira que, bem pensada, revelaia mais tarde 0 seu ceticismo). De que serve decidir-se pelo estudo da lo sgica, se nfo se compromete nela toda a vida? Sendo, que Valor teria? Estudarse-ia apenas para conseguir um sim- piles diploma? (..) Quando néo se pensa assim, comeci-se ‘do em virtude de uma resolugio, mas de um talento (ou Por tolice, por moda, etc, para ndo fcar sozinho).. Realmente, uma resolucio, dentro do sentido que nos ocupa, & da ondem da eternidade, isto é decide de uma existéncia. O fil6sofo nao se decide a fazer filosofia ‘como um turista, e naquela resolugéo assumida por Spi- noza hd um compromisso pessoal da inteireza de sua ‘existéncia, podendo-se, por isto, falar em uma metandia* Compreende-se, assim, que a Filosofia no possa ser at mck een pi Pas, Cainer soup POG: Gand, Tit de Mls, Pari A. Cal, 56 4 D126. Gusdor Ning ps compreenerSpnce no pric desea dp da leg pra ing ef! ate Dense ‘Sauce um tice inane sa Yoninde here Se unr nent 2 ‘tesa humana ede funda como vende fop tf. m reduzida a um exercicio intelectual, a um jogo do espiri- to.exterior& existencia concreta ou que apenas atendesse 0s dotes especialmente talentosos de uma determinada pessoa. © homem faz filosofia tio-s6 a partir desta reso- ugio profunda, vertical, que o agarra todo e 0 compro~ mete todo. Para aceder @ uma filosofia como a de Spi- noza néo € suficiente seguir e perceber 0 desenvolvi- mento l6gico - tio rigorosamente légico, no caso = de seu pensamento, pois este acesso $6 se verifica através de uma conversio que se situa, por assim dizer, dentro daquela resolugio inicial, na qual esté realmente, em toda a concreticidade, 0 seu compromisso. Por isto, toda esta compreensio horizontal e exterior da Histéria da Filosofia vive de um equivoco falsifieador de seu objeto: vale dizer que, se se quiser entender a Historia da Filosofia, nfo se pode adotar um comporta- ‘mento exterior, nem por parte de quem estuda a Hist6ria, nem em relagio ao filésofo estudado. Procurando estudar Spinoza como um conjunto lgico de dedugées, ou a partir de tudo o que condiciona, historicamente, o seu pensa- ‘mento, poderei compreender tudo—exceto Spinoza: alma dde seu pensamento me permanecers inacessivel. Neste sentido podemos dizer que a filosofia nao & a Histéria da Filosofia, mas o filosofr, deste flosofar que radica em uma resolucio, propria de todo auténtico fildsofo, e que é da cordem da eternidade. “Nao se aprende filosofia, e sim a filosofar”, diz a bem conhecida afirmagio de Kant. Se isto é correto, devemos afirmar que filosofia no se faz a partir da exterioridade, ou de um comporta- mento exterior, abstrato, mas a partir da interioridade. ra, interioridade quer dizer liberdade, e com isto tocamos no proprio nervo daquele ato de assumir. Como deve ser compreendida esta liberdade que funda a reso- lugao filoséfica? n3 Para acedermos & natureza da conversio filoséfica, centrada num ato livre do homem, comecemos dizendo ‘o que esta liberdade nao 6 io é pura posse de i, tal como a compreende um ‘dealismo como o de Fichte, por exemple, isto é, um eu que tende a dobrar-se por dentro de si, e neste dobrar-se se autocria. De fato, para Fichte, o mundo dos abjetos é apenas um produto do subconsciente, ou melhor, daqui- lo que ele chama de “imaginacéo produtora”, perdendo, fem conseqiiéncia, toda a sua substancialidade. A ativi- dade criadora de objetos tem por tnica finalidade ofere- cer uma resisténcia a liberdade do eu, pois através de obstéculos que deve enfrentar 0 eu, exercendo-se, ele se autocria, atendendo, assim, a dimensio que Ihe é Propria” Neste sentido, entende-se que ele possa dizer que somos “a obra de nossas ‘mios”. Parodian- do Péguy, dirfamos que Fichte tem as mos limpas, mas ele ndo tem mios; pois, em definitivo, o eu permanece fechado dentro de suas préprias muralhas, no chegando a transoender a sua realidade. Todo o alvo do exercicio da liberdade reduz-se, assim, a plena posse de si proprio. ‘Um outro exemplo desta concepgio fechada da liberdade, nés encontramos em Lachelier quando afir- ma: “O ato pelo qual nés afirmamos nosso préprio ser 0 constitu (.) inteiramente, pois 6 este mesmo ato que se realiza e se fixa em nosso caréter e que se manifesta e se desdobra em nossa histéria. Nao se deve, portanto, dizer 5 "Ondo um produto do eu quando stew suet no «nada de sbsiso ou age clacado rnd Cranage de geste Maine 1955 157. “Alndae gue imeama 9 afm do como al pode un dst © Sereade Oc elve ena sees seats at desea Inreecles ec como litem ier, enuaro gle Desratie set ‘Sooimeimeoape ongdo oo meme prcsamente fina prs gap ope nate deta s ages ee (Ger Engen dt ees, Lspag # Mens = dp) m4 _que ns nosafirmamos tas como somos, mas, a0 contro, jue n6s somos tai como ns afirmames.Sabretudo, no deve dizer que nosso presente depende de nosso passado, ‘e que este no esté mais em nosso poder: porque criamos todos 08 instantes de nossa vida por um tnico e mesmo ‘ato, que € 20 mesmo tempo presente a cada um e superior todos" # Todo ideaismo incide nesta posigio. Aquela re ‘solugioiniial, aquele ato do espirito, sem divida, éafir- ‘mado; mas, justamente,¢afirmadi dentro de uma dimen- ‘sto que se caracteriza pelo excusivismo de uma Iiberdade {que se compraz completamente em si mesma, que Pro cura aumentar como que por dentro de si. E se isto nos parece correto em relagio a0 idealismo, aplica-se também a uma filosofia como a de Sartre, quando faz declaracées como a seguinte: “(..) a minha liberdade € 0 tinico fundamento dos valores e nada, absolutamente nada, me justifica em adotar tal ou tal valor, ou tal hierarquia de valores. Enquanto ser pelo ual 05 valores existem, eu sou injustificvel. E minha liberdade se angustia de ser o fundamento sem funda- mento dos valores”? Em tal posigéo a liberdade nao chega a poder comprometer-se com nada, abandonan- do-se $6 aparentemente. De fato, toda liberdade que se pretende absoluta, negando 0s seus limites e a possibili- dade de um compromisso com fundamento objetivo, anula-se como liberdade. (Pacha tape Pari, PUR, 19,9 67. 7 tee nb. Pasi Cala, 195, 9.76 us Destas posigdes todas podemos dizer ndo passarem de estoicismos mais ou menos disfargados, ea rensincia, voluntéria ou no, em que incidem, as impossibilita de oferecer solugio para o nosso problema. Pois o denomi- nador comum de todas elas é permanecerem presas a ‘um certo grau de egocentrismo, quer porque o mundo exterior nlo existe, quer porque, existindo, manifesta-se como um absurdo. Mas 0 nosso problema & precisa- ‘mente vencer um comportamento egocéntrico, Nas posicoes que apontamos como exemplo, longe de sobre- Purse o egocentrismo, processa-se muito mais a sua consagracio, e isto implica em afirmar que nelas nio se conseguiu debelar a experiéncia da negatividade, no se alcancou realmente resolver o problema que esta expe- rléncia coloca Secstasobservagbes so coreas,perebose desde a ggande importancin do problema da resolu inkl Giz val inotmar todo 6 Alwar subsequent empres tando uma determinada atmosfera a eta ow ala flowoia Quer der, este ato dalberdade pode srt que tleeeflaiique como lberdade, lem detomarse respon Sével pelo proprio desdobramento de uma leno "Vemod no ideal um exemplo deste proceso de fasificagho,e ness sentido tem 9780 Gabriel Marcel 20 airman: “Una filosfia que recusa tomar & sta respon sabilidade a exigencia ontolipca & contudo, possivel: fotmesmo no sentido deta sbstenlo que ene per tamento modern em seu conjunio"* En verdide, na medida em ques flowofia moderna cede a uma posto Postion et eprchs cots du myst ontoigu, Pas, J Vein, 0 pe 116 ideaist, veo falsifica a taefa propria da flosofia,ten- dendo a fazer do exo principio eo fim de todas ae suas Pesquisas. Mas neste cso, que fazer? Dizer que a flosofa se falfica a0 airmarmnos que ea supde um alo una reso IugGo incl? Evidenteente, nao: pos se Suspender mos aguele ato live ical, © que se suspende € nada mais nada menos quea propria filosofla. Asim, a reso- Tago nical deve ser sstentada como wna nevessidade absolta, podendose mesmo infers que com a negacio deste ato livre inigal 0 que se ivalia 0 proprio. Slosfar, pois este mals pode serenregue @ um ogo inconseqlentemente ou Ae mios de uma necesidade Istria cega. Neste sentido, deve-se dizer que & neta resolugio inial que encontra a sua génese todo o pen- samen filosico, estando fadada a0 fracas a const deraciosimplesmente exterior do “milagre gro", por fexemplo. De fato,o problema da origem da flosofa frega € um pseudoproblema na medida em que se ten- {ar resolve por fore pois por mais propias que fe nham sido as condigbes que levaram 8 filosofia na Gr Gia antiga, a genese do milagre gregoem iia alse, devers ser buscada na responsablidade livre daqueles aq constituiram a flosoia greg ‘Uma posgto como do idealism no nos diz que 0 problema ouofato da resolugio inca deva ser delxado Selado, mas iz apenas que esta esolco pode ser mal tomada, que aliberdade humana pode ser tnal interpre tada,e que o problema deve ser abordado em uma dlimensio outa que nao a idealist, Ou se: eta reso lugho deve ser deal teor que ela transcenda a experin- cia da negatividade, indo além,consequentemente, de todo egocentrismo; pois a defénca fundamental do idealism, dentro da peropectiva que nos ocipe, reside 117 justamente em permanecer preso a0 egocentrismo ou s6 transcendendo-o de maneira parcial. (ra, isto permite compreender que a resolusio ple- namente filoséfica ~o ato livre que pode atender a total- dade da exigencia filoséfica — $6 se verifica na medida lem que consegue focalizar em sua inteireza a possibili- dade de ir além do egocentrismo, de ir além da expe- riéncia da negatividade, e de resolver, em certo sentido, esta experiéneia, Claro que isto pode ser dificil, e no devemos excluir a hipétese de que talvez seja até mesmo impossivel para determinadas épocas. Mas tal hipétese do nos impede de tomar consciéncia do problema. Devemos, portanto, indagar qual é aquela modali- dade de resolugio, de ato livre, que possa no $6 trans- ‘ender o egocentrismo, mas atender plenamente a tarefa que se propée a flosofia. (Ona, isto ¢ possivel se se compreender a liberdade ‘do como pura posse de si ou como confinamento 3 propria individualidade, mas como dom de si. Esta acepcio da liberdade nio deve ser compreendida como ‘uma modalidade de iberdade entre outras modalidades possiveis, mas como. sua realizacio mesma; liberdade 6 atinge a sua plenitude como dom de si £ 0 oposto, portanto, daquele isolamento do gesto perfeto que ‘vemos no bailarino, completo e total em seu préprio movimento. “Nao é se isolando ~ mesmo com a intengSo de tudo reassumir logo apts - em uma suficiéncia pre- tensiosa, que o homem encontraré a verdadeira liber- dade”, adverte Joseph De Finance, “porque, assim, ele se abisma em sua contingéncia e sua finde. A liberdade rio consiste simplesmente em no depender, mas em possuir em si mesma sua determinagio e sua justifi {aclo. Eé por isto que oesforco humano nio se limita a ‘quebrar correntes: persegue uma finalidade mais positi- ‘a; procura se dar razDes dese.” Dom de i implica em abertura completa realidade. Sea experiéncia negativa consist em um fechar-se em si, prendendo-se a propria imanéndia,o ato de tranacender esta experiéncia #6 pode ser compreendido como 0 oposto da mars de 0, como 2 abertura comungante para uma realidade que deve ser assumida, “A autopossessfo 6 apenas uma caricatura da dade, porque 0 sujeto, para preencher seu vazio axioldgico, tem necessidade de um compromisso gene +000", diz ainda De Finance. "Neste sentido, ocomportamento que esté na raiz da liberdade pode ser compreendido como um ato de con- versio, endo como algo que se vena acrescentar a iber- dade, pois oconsentimento & muito mais aquilo que nos liberta, 0 que realza a nossa liberdade. Podemos dizer, entio, que a resolucioinical do filosofarcobre-se com 0 ato de consentimento, coma abertura do esprito a0 real, 4 esta realidade que consitui precisamenteatarefa eter na da filosofia. Assim entendida, a liberdade e a ative dade filostica, longe de poderem confinarse a uma dlimensio de gratuidade momentinea, vem completar 0 hhomem, Nao se trata de arbitririo que pode ser dispen- sado, mas do necessirio que alarga o homem, fazendo-o coincidir com 0s confns de sua propria relidade. "Tomando © problema sob um outro. prisma, poslemos dizer que o misterio da participagSo humana 20 real encontra a sua autenticidade na fdelidade do hhomem a si mesmo, ito é na sua vocaglo como set livre, no consentimento ao real. O sentido dltimo da 2 Exe her Pari Vite, 195 3. ee tm, de AIME FOREST, Comerement ton, Pati, Ab, 14, p36 eps. 19 experiéncia negativa radica no possibilitar a abertura ppara a transcendéncia, fazendo necessério para 0 hhomem o sentido da totalidade, a necessidade de uma participagio radical. Mas partcipagio radical nio quer dizer aqui um comportamento diluidor do homem no todo aésmico, mas quer dizer a permanéncia no plena ‘mente abert, como consciéncia do real. ‘Assim, podemos compreender Gabriel Marcel quan- do afirma: "Um espirito é metafisico na medida em que sua posigio Ihe aparece (permaneceu para ele) como fundamentalmenteinacitavel”" De lato, um esprto reduzido a si proprio ¢ inaceitivel por perder-se na ne- Ealividade; e 0 espirito redime-se do negativo na med dda em que transcende a particularidade de sua posicao, abrindo-se ao real. Se na inacetacio do negativo 0 homem desperta para a problematicdade do real ede si mesmo, um espirito & metafisico na medida em que enfrenia esta realidade. Este enfrentar porém, no pode ser restringido a um comportamento de autodefesa, por ‘exemplo, porque, bem ao contriio,s6 no consentimen- too real pode o homem transcender a negatividade ‘A postura metafisica assume 0 todo do real, num consentimento pleno: 0 todo do homem consente 20 toro do ser. E porque € 0 todo do homem que consente, compreende-se que 0 ato de consentir nao é simples, qualquer coisa de uma s6 pesa, mas um todo complexo, afastado de uma atitude simplesmente intelectual, analtica, que se aproxime do seu objeto com a frieza de uma dissecagdo anatOmica. No fundo deste consenti- menio devemos reconhecer uma conduta de despoja- mento, de admiracio respeitosa, de permanéncia na disponibiidade, de generosidade amorosa, Se a expe- OC por Petro Prin in Gail Mar ct emai def Paris Ds de Boer 1S, pS 7 120 riéncia negativa se caracteriza por uma desconfianca dante do real, na raiz: mesma do consentimento filos6fico a umato de confianca total de amor, pois s6.0 amor con- segue este despojarse, esta disponibilidade que permite ompreender 0 rea S6 0 amor consegue dar 8 invlgtn- cia.a sua dimensio propria e total, orientando-a para um real consentimento, Mas o contrério também vale: $6 inteligencia consegue dar a0 amor a sua dimensio pré- priae total, fazendo compreender o real consentdo. ‘Aqui podemos perceber, portanto, a importancia que assume para filosoia o comportamento admirativo. No consentimento filos6fico encontramos aquelas mesmas caracteristicas apontadas por nés na andlise da. admi- racio ingénua. Aqui também hé uma afirmagio do real, entendida como disponibilidade pura; hi a presenca da consciéncia, incompativel com qualquer processo de diluigio, com qualquer modalidade de “nirvana”; € hd o despertar do espirito que se revela como deseo de enfrentar 0 real, como liberdade que se reconhece a si propria no consentimento. Neste sentido, podemos falar em uma admiracio filoséfica, porquanto 0 ato de con- sentimento traz em si todas as caractersticas da admi- ragio, despida, agora, de sua ingenuidade incial © consentimento ou a disponibilidade supde uma certa ascese. Considerada de um ponto de vista negati- vo, esta ascese implica na derrubada dos “idolos” aos 4quais permanece preso 0 comportamento ingénuo. A face afirmativa, porém, deste despojamento é a abertura ‘amorosa & compreensio do real. ‘Convém acenar, por um momento, para 0 que nos parece ser a principal dificuldade no acesso a postura 121 filosofica. Normalmente o homem nao permanece fil a este comportamento de abertura, normalmente ele fa- sifica.Bisto pode ser compreendido:o humano, demasi- ado humano, reduzir-se a uma dimensfo pragmatica, Isto 6 & vida de todos os dias, com as suas inadiaveis exigéncias. Mas a partir desta pragmaticidade, desta ddimensio da historicidade e de suas imposides _urgentes, corre-se 0 perigo, néo s6 de adotar um com- portamento incompativel com as exigéncias do.compor- {Een lsc, mas amis ode icone ent ta falsificagio da propria filosofia ste perigo deriva de um comportamento funciona- lizador do real. Nao que este comportamento nao tenha as suas razbes de ser, mas ele representa o antifilos6fico Por exceléncia, pois substitui a necessidade de per- manecer disposto, peas exigencias utilitirias. Quando ‘esta mentalidade funcionaizadora penetra no compor- tamento flos6fico, 0 resultado & a falsificagio da tarefa filoséfca. Podemos perceber melhor este perigo através de dois breves exemplos. © primeiro pode ser visto no pragmatismo. Desde «que se compreenda todo o real a partir da idéia de pré- xis, do uso que o homem possa vir a fazer do real, a ddimensio propria deste real se esvai.O uso passa a sero atiterio do desvelamento do real. Eisto implica em dizer que o homem, longe de ficar disposto ao real, bem a0 contrério o dispde asi, tomando-se como que a medida de todas as cosas. © segundo tipo de filosofiafalsificadora da tarefa filosofiea nés 0 encontramos no idealismo, na medida ‘em que acarreta um retorno do homem a subjetividade. Defato, oconhecimento, dentro da perspectiva idealists, se compreende a partir da categoria da técnica: assim ‘como o homem pode modificar, pela atividade técnica, a 122 ‘matéria, assim também a inteligéncia produz, em algum sentido, aquilo que ela conhece. © préprio Benedetto Croce, ao distinguir diversas modalidades de fazer, diz claramente: “Através de toda a filosofia moderna corre cesta nova idéia da verdade como fazer, em oposicio & idéia da verdade como impressio, c6pia, imitacio seja do mundo seja do supramundo, que era propria da filosofia transcendenté e, de diversas maneiras, teol6gi- ca." Mas neste caso, se eu produzo aquilo que conheso, realmente no conheco; ou 6 conhego a mim préprio, a inka capacidade produtora. Tanto no pragmatismo como no idealismo encon- tramos processes de retraimento do homem sobre si proprio. Pode-se falar em uma falsificagio no sentido de ‘que a experiéncia negativa ndo chega a ser transcendida. ‘Ambas estas modalidades de funcionalizacio do real implica numa subordinagSo das coisas ao homem, e este, ao invés de aceder aquilo que o transcende, afasta- se sempre mais, fechando-se ao real. O sentido de disponibilidade é solapado em sua prdpria rai Para tornarmos 0 nosso problema da atitude inicial do filosofar mais preciso, devemos perguntar, mais ‘uma vez, em que sentido esta atitude transcende a dog- maticidade, ‘A admiragio ingénua aceita 0 real, €0 que a carac- teriza 6 um comprazer-se nio problematizado nesta aceitagio: donde o seu radical dogmatismo. Na atitude inicial do filosofar hé, a0 contrério, um sentimento de responsabilidade na minha afirmagfo do real, Com isto, 1 Mow gd ti, Ba oC. Later eg, 1988, p58. 123 © sentido da verdade impde-se ao homem dentro de ‘uma nova exigéncia. Esta exigéncia radica na disponibi- lidade a um consentimento puro ao que de fato € o real, est enderegada a uma compreensio do real, livre de todo e qualquer pressuposto, de todo e qualquer pré- ‘conceito. A tese geral move-se, fundamentalmente, den- tro de pré-conceitos, no sentido de que aceita a realidade ‘como algo ja resolvido, como verdade jé feta. Para a consciéncia filos6fica surge, bem ao contrério, tum novo sentido de verdade, radicado num comporta- ‘mento que abdica do pré-conceito, da “palavra propria, ppara ouvir 86 a voz das coisas”. Surge, portanto, 0 sen” tido da necessidade de um auténtico dispor-se ao real, de um permanecer disposto de tal forma que o real se 1possa mostrar tal como é, naquilo que é. Este saber per- ‘manecer aberto & densidade do real coroa aquele senti- do de liberdade entendida como consentimento, como dom de si. Todo o sucesso do conhecimento filos6fico vai depender da fidelidade deste ato de abertura, de Adisponibilidade ao real; e longe de contrapor-se a liber- dade, implica em sua realizagio. A nevessidade deste comportamento de abertura deriva de um sentido de respeito ao real que 0 sabe escondido, encoberto. Mas este estar-escondido no pode ser compreendido como uma inacessibilidade absoluta, qualquer coisa que tornaria initil todo o esforgo filoséfico. Por outro lado, contudo, a realidade rio se confunde com uma mostragio total, com uma espécie de vitrina ou mostruario do qual o homem possa simplesmente langar mio. Muito mais, a realidade é vivida dentro de uma atmosfera crepuscular, como um claro-escuro, um encoberto-descoberto, que dé a sua 12 Wee de HANS URS VON BALTHAZAR, Leese del id ‘tad Lac reich Boenas Aes Sodamercans 195 p17 124 razio de ser ao ato cognoscitivo, As coisas esti desco- betas em sua dimensdo de encobertas. Ea partir da compreensio desta zona intermedifria ~ igualmente dstante de um encobrimentoininteligivel ‘como de uma transparenca absoluta~ €a partir desta regio bidirecional, deste habitar em dots reinos, que se pode falar em sentido do mistério. O devassado 0 no- evassado como que se entrosam, fundando assim a vocagio do inteligit Neste sentido podemos dizer que 0. real permanece indevassado para'o homem, pois por ‘mais que a inteligéncia humana consige peneté-lo, por mais que consiga dizélo,continuaré 0 real impondo-se como misters. ‘Sentido do mistério nko é mais do que sentido de admiragi pelo real, fidelidade ao ato de conversio, de Postura em altude aberta. Esta admirago, porém, nio {ao-somente um impulso inial, qualquer coisa como tum principio anterior ao desenvolvimento. propria- ‘mente dito do pensamento flosdfico; muito mais, ela deve ser entendida como a base genética de um cor- responder ao real: pois, em verdade, a admiragioesté na trigem e preside fado 0 desdobramento da atvidade filosbtica. A admiracio dé origem a filsofia e acompa- nha todo ofilosofar” Digamos que a admiracio, através do filosota, busca como que se aurentar por dentro de Si mesma naquilo que ela é um co-responder. Com- preende-se, portant, que a conversiofilosicatrans- Eenda todo o proprio da experiéncia negativa, isto ¢, 0 fgocentrismo e 0 concomitante sentimento de Sepa- ragio. Através da conversdo, 0 homem volta a ela- cionarse com o real, Esta relagéo, contudo,jé no se pode verficar dentro dos moldes da postura dogmétca, Ti Contos de MARTI HEIDEGGER Wr bt dr Pio? ingen ot Nake pS. Bs dda pura e simples apropriacao do real. Na experiéncia negativa o sentido do real se perde ou tomna-se vacilante, razio pela qual o homem nao pode mais habitar sim- plesmente este real com a ingenuidade do primeiro dia, ‘Tudo deve ser reconquistado, e esta exigencia de recon- ‘quista vai determinar o novo sentido, proprio do fl6so- fo, de relacionar-se ao real: o sentido critico, problemati- zador, que distingue a pergunta floséfica No ato de perguntar condensa-se 0 espirito critica do fildsofo. E se indagarmos donde nasce este espirito critico, devemos responder que nasce da experiencia negativa, porque através dela o sentido do real me escapa. Se isto é verdade, ndo se pode, porém, reduzir a compreensio do espirito critico Aquela experiéncia ne- ativa. Se tal fosse possivel, o espirito critic seria sim- lesmente a negagéo da realidade, e tudo 0 que se propée a filosofia deixaria de exisir, ela seria roubada de seu objeto. Devemos entio dizer que 0 espirito critico encontra a sua razao de ser néo apenas na negacio, mas na negacio da negacéo, quer dizer, na necessidade de re afirmagio do real. E de um real ao qual o filésofo deve permanecer aberto, nutrido do sentido do mistério. Podemos, assim, afirmar que o espirto eritco traz em seus lébios tanto o fel da negatividade quanto 0 sabor do desvelamento do real. Se, de um ponto de vista ‘genético, mergulha na experiencia negativa, o que the da dimensio filos6fica, porém, 6 0 permanecer disponivel ‘a0 mistério do real. Neste sentido, pode-se compreender a passagem da indiferenca ontoldgica para a proble- mitica da diferenca ontol6gica, isto é, todo o comporta- ‘mento que faz o homem transcender a sua dogmatici- dade relativa ao fundamental ‘Assim, 0 espirito critico nunca é bem entendido quando orientado para uma atividade destruidora de 126 seu objeto, pois a sua autenticidade filosfica depende de ua vonade profundamente construe, abert a9 real que permite compreender a ilosofa como amor 8 Sbedoria O spirit crtico ¢ pois fndamentalment,pergun- tae qualquer que sa sua origem, a prgunta files ‘a move-e sempre dentro de un profundo sentido afi- tmativo. A pergunta€a maneira deo filsofo permanecer bert 20 mistro sentido da problematicidade € proprio do ho- mem. O homem é problema, e porque o é, tudo pode por ‘le ser problematizado. Diante desta problematicidade radical 0 homem pode assumir os mais diversos com- portamentos, desde o econémico até 0 religioso. Mas se isto 6 assim, cumpre especificar o sentido do problema proprio do filésof isto é, esclarecer em que perspectiva ‘0 problema se torna filosofico. ‘A resposta pode ser dada a partir da andlise que acabamos de fazer. Podemos dizer que um problema é especificamente filosdfico na medida em que a pergunta coincidir com 0 espiritocrtico. Por isto,o meio proprio em ue se desdobra a atividade filosifica ¢ a racionalidade, podendo-se mesmo dizer que, neste sentido, todo filsofo, independentemente da posiglo que vier a assumir, é um Intelectualista, nfo podendo existr atividadefilos6fica fora desta perspectiva. O fil6sofo pode vir a adotar um com- portamento néo filos6fico,tentando resolver o seu proble- ‘ma por outros caminhos: 0 religioso, a atividade moral, a vida estética, a reforma social, etc. Mas, no momento em que o fizer,alasta-se da atividade filosfica, desconsidera o clemento proprio dentro do qual se move esta atividade. 227 Compreende-, eno, que una filsofia ques pro ponte or ccomplot nian ous eases Turon Sento de suatwin 9 concent ae trigencan dn pri cu eno Sapna hans de inulin ddconbecmentsacona quer sabe Iola ve do sentiment, compen quel fe ‘ofarna media cm que sbelee otis reson oe iRatique come flooshi seapando'es propa fens tren dena moshade de atinale otra Se iso asin eutonomia do bor fesse eee nes cera renin, lo dedi a una twa ie Ic con eo eracertes penton Anis on taalo Mere Pony guano afieg ua cosas Go floso ea vitae Demntnto tone ee 2 supomaci concierto nsice aoe cb, gadoe' admis bun mils su dance © sono hegulano contd tens a dens de verdade Pos dereonhecinentoda scans ese, zn ects, poe sugirs vitude pops de Soi tudo age far de an senate tuvel Deacon asus mania prope deve: Cho ele pe er cnsdead cones eons fondue ‘Assi, com toa azo die Heidegger qu ilxain noel! mas el Eats que es eanenade one ts cones ma ies, porque caminhe de scees densidad do als Porimsads qucson scans Te oe cl ane se ses ll amid han et Sn, 9. mae See epee ae eee posse A distincia”(p. 9). mn 15 ifn de Map Tange M.Nemeye 18, p. 9 128 filoséfica, encontramos nela uma abertura para a densi- dade do real, para o mistério do ser, para uma visio do real em toda sua dimensdo, cuja importancia permanece insondavel para a cultura humana. E, se devemos julgar esta contribuicio, diremos que ela consiste no resguardo ppara o homem da presenca do real, naquilo que ele é em si mesmo, Pois todo saber é um presente que se con- quista na paciéncia, isto 6, um presente que encontra a sua raiz na presenca, no ser presente. 129 CONCLUSAO Nos sete capitulos que integram o presente ensaio, cremos ter atendido, ao menos em seus aspectos mais, fundamentais, 0 plurifacetado problema da atitude ini- ial do filosofar. Através de uma primeira delimitag3o do nosso problema, procuramos examinar também alguns de seus aspectos preliminares e apontar as dificuldades que foferece o tema para a pesquisa. Indicamos como erro a dissolucdo do problema na diversidade de Weltanschau- ungen, no s6 por relativizar e destituir de seu sentido proprio o problema da atitude inicial do filosofar, mas sobretudo porque tal dissolucdo transfere o problema para um plano histérico-geral. Afirmamos que a reducio do problema a qualquer tipo de andlise histéri- ca leva a sua falsficacio. Com isto, porém, no afir- ‘mamos a inutilidade da pesquisa histrica. Mas a génese hist6rica do pensamento filos6fico constitui um proble- ‘ma de historia da filosofia, que, se pode trazer preciosos subsidios para o nosso tema, deixa, contudo, o problema da génese do filosofar, enquanto atitude existencial concreta do homem, intacto. E mais: a consideracéo do problema dentro do ambito da histéria do pensamento 131 leva. a uma alienagiono sentido de uma transerncia do mesmo ao pasado consequent iesponsabiizacio dl homer, nos sof simplesmente porque se td situa dento de uma cltra& qual pertenceafloso fia. Odesperarda coectnca floc, por outo lao, deve ser afimado como sendo profundamene ston co, no sentido de que mengulha em ua situa con- tretoenstencial do homem, de um homer inserdo em Sn histrickdade, Anallsamos a seguir em tés momentos, a adm: racioingénin,Conclsmosafimand que o sentido de aberturaedispoibldade que a caractetiza permite ver na admiragioo primo surto do epifo humano, em ‘ia manifesto primeira © ainda incontaminada, AS anes da experi negativa,efetuada em captalos pesterioes, permitem compreender que o eplnito 86 Exconra a stn dimencio propria autétca em una dlimensio afirmativ. Por esa azo 0 surto do expo ro pode ser buscado, de uma maneira radical, na ne- fatividade- A despito da importinia da admiagho Ingtnua, ela enetanto nfo responde de manera sas fatéria, 26 exgtncas do impulvo inical que teva 0 omen a fazer filosofia. A admiracio ~ e estendemos istoa qualquer otro sentiment afrmativo, como ale gia ov oamor = poe conduit no maximo, aun enti oda toalidade do rea Mas este ventido da toalidade, possivelmente presente na admire ingenun, confine, Sea uma vivencia profundamente dogmdtic, de aft Inacio esta e,consequentemente no problema adn do rea seu carder de ingenuidade impede & Admiragio 0 acesso ao sentido crtco de probenaiza Glo proprio da atvidade Hosa, Da terms desdo- Bradoa nossa anise em outras dre, que permit sem uma justifngi da gnese do festa Este andi 132 sess foram elaboradas na medi em que podem aten- der a0 problema proposte AAnalisamos "0 comportamento dogmético do hhomem,compreensivel, em nosso entender a partir da Gogimatcidade da tese geal que o informa, qual per tre eselarce tod aaividade que se proces dentro Ge seu ambit, sa em uma dimensio opertéria, sea tm uma dimenste copnosctva,Aindiferenca onto {260 proprio de tl dogmaticidade. Citacterizada a dogmaticidade ~ mas 96 na medida em que aprsena relevo para o nosso tema ito 2S feiio dogmatic ,passamos a0 problema de sua des truco, ou sa alse da experiencia negative. Enten- ida como um proceso de retaimento do homem (© aque nio quer dizer, necessriamente ausncia de ativi- ade mundana),tentamos examinsla a fim de melhor pereebermos o egocetrismo que consti a sua alma, Rpontamnos, pois, o egocetrsmo como a caracterstia fundamental da expentncia negative, © procuramos Comproviio em diversos planon, tanto ent uma pers pectvaintletal, quanto exstencal Tl adie nos Pert examinaraexperiéncia negtiva em sua exten- Soo maxima, extensio esta reduvel a quatro modal- dads fundamentas de experiencia negatva. Neste des- dlobrament, nosso interesee precpuo no consist em tstabelcer tna expéce de casifiacto, mas em aceder- thos a uma compreensio mais ampla do problema Despreocuparno nos também de estabelecer como que tuna Rierorguiaente estas modalidades de experincias negatives, como também nao foi nossa intenglo pre tener paciietlas em umm sentido factador. Além disso, nesta andlse, no preendemos afar que © omportamentoflosfico ta vezinsturado, supona gque © homem tena vivido a experinca neyativa em 133, toda a sua extenséo e com um maximo de intensidade, ‘embora tenhamos chamado a atencio para esta extensio c intensidade. Sem divida, pode-se afirmar que as moda- lidades de experiéncia negativa apontadas pertencem & condigio humana, a biografia de cada um, variando ape- nasa sua intensidade. E 0 efeito que a experiéncia negati- ‘va possa vira ter no decorre tanto desta intensidade, mas dda maneira como é recebida por cada tum. Em um tem- pperamento delicado, por exemplo, um minimo de expe- riéncia negativa pode levar a conseqiiéncias desastrosas. ‘Qualquer que seja, contudo, esta intensidade, toda expe riéncia negativa implica em uma postura egocéntrica, na ‘medida em que o homem viver em sua dependéncia, ‘Se a experigncia negativa deve ser reconhecida como implicando uma significagio inaliendvel para a tessitura humana, a sua consideracio como um absolu- to, entretanto, leva a suspender todo e qualquer sentido, tanto da existencia humana como da realidade em seu Conjunto, e esta absolutizacio permite compreender 0 fendmeno do niilismo. Mas precisamente esta experién- ia extrema do negativo como um absoluto permite compreender melhor o significado e a dimensio propria ‘em que ela se inscreve. Assim, concluimos que a expe- rigncia negativa deve ser explicitada a partir de um pres- suposto, a saber: a afirmagso ingénua, dogmatica, da realidade; e que, por outro lado, se orienta para a possi- bilidade de abertura e, conseqiientemente, de trans ccendéncia do egocentrismo, no sentido de uma reafir- ‘magio critica da realidade. ‘A pattir da superacio do negativo pode o ato inicial do filosofar ser entendido em toda a sua densidade dimensio, no sentido de que estamos diante de uma conversio espiritual, de um ato livre, que assume com responsabilidade o real, decidindo, em ultima anélise, 134 do proprio sentido e validez da filosofia. Queremos com {sto dizer que uma filosofia de recusa a0 ser se falsifica como filosofia, por implicar uma postura destruidora, que atinge em sua prépria raiz a vocagio da inteligéncia humana. Pode-se assim compreender o sentido de responsabilidade e de necessidade proprio a toda ativi- dade filoséfica. A Filosofia é uma ocupacio do homem, que encontra nele o seu ponto de chegada. Contudo, 0 ‘homem nao pode ser compreendido como uma realidade reduzida ou fechada sobre os seus proprios limites Neste sentido, podemos dizer que 0 homem nao é a ‘medida do homem, pois a fidelidade sua propria essén- cia s6 € compativel com um comportamento cujas raizes se encontram no sentido de abertura, de disponibilidade, de consentimento admirativo ao ser. Consentindo ao ser, realiza-se o homem como liberdade e como inteligéncia. Oser 6, pois, a medida do homem e do filosofar. 135 Apéndice: FILOSOFIA E SISTEMA* Para elucidar a problematica do sistema podemos partir da assercio de que toda filosofia tende, por sua propria natureza, ao sistema, isto é, busca organizar-se ‘numa totalidade, num todo orginico, de tal modo que as partes se justfiquem por sua inserco nessa totalidade. “Mas para que se possa bem compreender essa tendéncia, ¢ jé que falamos em tendéncia, a perspectiva de consi- deragio do sistema deve ser ampliada. Se é possivel ve- rificar, como imanente a atividade filos6fica, uma tendéncia ao sistema, a tal tendéncia deve pertencer um terminus @ quo e um terminus ad quem. Ou melhor, para explicar o sistema, nio é suficiente partir do préprio sis- tema, pois devemos atender também aquilo a partir do qual se instaura a exigéncia sistematica, ou seja, 0 pro- blema. Sistema e problema impoem-se assim como 08 Polos dentro dos quais se move a pesquisa filoséfica; 0 problema tende a resolver-se em termos sistematicos, de sistematicidade. Alids, através da Historia da Filosofia estas duas nogies ~ sistema e problema - apresentam-se freqiientemente (e com intensidade variével) como "Trova ers de cencuno de re dct, rez em malo de 196, 137 nogBes correlatas. Se em certos autores sistema e proble- ‘ma conseguem harmonizar-se, em outros, bem a0 con- trio, esses dois conceitos entram em conflito, chegan- do mesmo a repelirem-se. De fato, em todo filésofo podemos constatar 0 predominio do espiito sistematico u o predominio do espirito de problematizacio. Coloquemos inicialmente © problema do sistema, e depois, em um segundo momento, tentemos a sua fun- damentacéo. Se tomarmos a palavra sistema num sentido amplo e ‘mesmo equivoco, nés a encontraremos através de quase toda a Filosofia ocidental. Exemplificando: os est6icos entendem por sistema a propria ordem das coisas, da “physis", e para eles a sabedoria consiste em fazer com que o homem consiga harmonizar a sua pasticularidade ‘coma “physis”,ou como “systema” do cosmos, real Jé em, Kant encontramos uma acepcio de sistema muito distan- cada da estbica: “Entendo por sistema”, diz 0 autor da Critica da Rao Pura, “a unidade dos miltiplos conheci- _mentos sob uma idéia” (K.r. V. A832, BB6O). Mas se tomarmos a palavra sistema num sentido estrito, a idéia de sistema deve ser confinada 3 filosofia ‘moderna, Realmente,o deal de sistematizacio consegue identficar um dos tragos mais peculiares dessa fase da Historia da Filosofia. Heidegger lembra que o corres- ppondente ao sistema moderno no pensamento medieval € idéia de suma, e que tanto o sistema como a suma ermaneceram estranhos & mentalidade grega. E para ‘que possamos entender a importancia desse conceito de sistema ou da filosofia que se resolve em termos sis- temiticos, € fundamental compreender que o que esté fem jogo nao é simplesmente um modo possivel de exposicio, mas o préprio sentido da realidade eo desti- no da filosofia. Vale dizer que ndo basta explicar 0 sis- 138 tema como um mero principio de ordem conceitual, porque ele implica uma visualizacio interpretativa do real. Desse ponto de vista podemos distinguir, como abordagem preliminar ao tema, trés respostas basicas a0 problema da relagio entre sistema e realidade: 1) Numa primeira acepcio, o sistema conceitual deriva da propria ordem das coisas. Nesse caso, aidéia de sistema ndo apresenta, por si mesma, enquanto idéia, nenhuma autonomia: ela elaborada de um modo total- ‘mente a posteriori e pretende apenas aproximar-se, con- ceitualmente, da propria ordem do real. O realismo clés- sico é representativo dessa posiclo. 2) Numa segunda acepyio, encontramos a idéia de que o sistema conceitual coincide com o proprio sistema objetivo da realidade. Se no primeiro caso no pode haver uma adequagio absoluta porque o real transborda sempre o esforgo sistematizador, jé agora encontramos a convicgio de que hi um paralelismo exato entre a ordem das idéias e a ordem do real. O exemplo cléssico dessa atitude encontramo-lo em Spinoza, que resume sua posicio na conhecida assertiva: ordo et conerio idearum idem est ac ordo et comexio rerum, Haveria, assim, uma total correspondéncia entre as duas ordens. A verdade do sistema conceitual repousaria sobre a racionalidade do préprio rea, ¢ isso de tal maneira que se verificaria ‘uma simetria absoluta entre as duas ordens. 3) E, finalmente, uma terceira acepcio pretende que 1 ordem da realidade derive da ordem do pensamento, de tal maneira que do sistema conceitual deduzir a realidade. Nessa posigio incide o idealismo e, de modo especial, Hegel, seu expoente méximo. Uma imagem freqiiente através da obra hegeliana é a do cir- cculo, simbolo do todo perfeito que € 0 sistema: a filosofia, em tltima instancia se basta, ela 6 ou tende a 139 ser auto-suficente. O pensamento de Hegel no apre- senta, contudo, 0 caréter dogmatico do idealismo de um Fichte, que de um primeiro principio —o Eu é igual 20 Eu~ deduz 0 todo do rea. Nicolai Hartmann chamou a atengio para este aspecto do idealismo hegeliano: 0 ide- alismo néo ¢ defendido simplesmente como uma tese absoluta,fruto de uma intuicSo original e originante, ‘mas €objeto de uma conquistahstérica; segundo Hegel, a tese idealisa se fora verdadeira através da dialética histrca. De fato, a dialética parte do nio-resolvido, do refratrio ao sistema do persamento, para integra, pro- gressivamente, esse néo-resolvido no seio do saber abso- Tuto, a0 qual tende inexoravelmente todo o real. fil6- sofo est situado como que no ceme desta perspeciva absoluta e pode por isso compreender a historia defini- iva do Espirito. Numa frase famosa de sua Filosofia do Direito diz Hegel que “todo racional é real e todo real é racional”. Obviamente, 0 racional deve ser entendido aqui como a Razio Absoluta que consegue absorver em sia totalidade do real. Temos assim a consagracio da ‘dia do sistema. Se tudo termina por resolver-e em ter- mos de pensamento, é porque a propria realidade é pen- samento; pensamento que se ignora asi mesmo inkal- ‘mente, mas que chega a reconhecer-se naquilo que real- mente é Espirito, Com 0 idealsmo hegeliano o sistema esgota as suas virtualidades; 0 real como que nasce dentro do processo sistematizador, e o trabalho do fiésofo restringe-se a explicitar e deduzir 0 todo da realidade. Mas & precisa- mente quando o sistema atinge o épice de si mesmo, 0 ‘seu maximo esplendor, a ponto de se tornar, sem mais, sindnimo da propria filosofia, é nessa etapa da histria do pensamento que a ideia de sistema entra em crise, € ‘numa crise que perdura ainda em nossos dias. Assim, 0 M40 proprio sistema se torna um problema. E o primeiro Vigoroso indice histGrico deste problema encontrase, como se sabe, em Kierkegaard, quando diz, por exem- plo, que 6 edmico explicar o todo do real e deixar o indi- vviduo abandonado a sua angtstia e a0 paradoxo da cexisincia. Agora jf no se fata de compreender a tota- lidade do tempo para descobrir 0 Absoluto no fundo dessa totalidade, mas.trata-se, muito mais, de viver ¢ compreender 0 mistério deste instante conereto do tempo sofrido por mim, e compreendélo em seu cardter ambiguo, aberto, como é por um lado, & minha tempo- ralidade particular, e, por outro, 20 etemo. O sistema perde assim, e de modo total, a sua vigéncia; 0 homem ‘como que se densificafacticamente naquilo que passou a ser: 0 paradoxo do problema. ‘A partir de Kierkegaard encontramos, de fto, uma consciéncia floséfica voltada, enfética e freqlente- ‘mente, a uma problematizacio radical da realidade. Do sisteme absoluto de Hegel, que gira em torno de si proprio, passamos a um problematismo, que também gira em tomo de si proprio. Se antes era o sistema que se bastava, agora deparamos com a tendéncia inversa,e 60 problema que pretende bastar-se. Um dos autores que mais se ocuparam do tema no século XX 6, sem dtivda, Nicolai Hartmann. Acenemos apenas 2 sua posigio. Com a precaugio que ihe é pecu- liar, distingue Hartmann entre sistema e pensamento sistemético. Reconhece que a flosofiatende a sistemati- zagio, mas acrescenta que nlo é 0 sistema que a carac- teriza, que este se tornou mesmo impossivel. O grande inimigo de Hartmann ¢ 0 idealismo,e por iso combate toda _menialidade construtivista ou arquitetnica no “imbito da filosofia. O que dstingue a atividade filossf- ca segundo o autor da Metfsia do Conkecimento é pre- 141 cisamente a sua abertura ao problema, ao enigmitico. Devemos, diz Hartmann, voltar nesse ponto a um aspec- to da filosofia aristotélica. E elucida que o Estagirita colocava os problemas independentemente de suas pos- siveis solugdes, tendo mesmo cunhado a palavra aporia, retomada por Hartmann; 0 pensamento filos6fico deve encontrar caminhos onde no existem caminhos preesta- belecidos, pois aporia quer dizer exatamente isto: ausén- ia de caminhos. A atencio ao problema seria, assim, a alma do filésofo. E Hartmann fornece a fundamentacio ‘dima desta sua posigSo em sua ontologia, quando afir- ma que as categorias do conhecer néo podem exaurir plenamente as categorias do ser, porque “as categorias do ser ndo sio principios aprioristicos”. Os limites da resistencia que 0 real oferece ao pensamento per- ‘manecem indevasséveis& inteligéncia humana. Parece-nos que Hartmann no deixa de ter raz30 quando acentua a importancia do problema para a Pesquisa filos6fica. Mas devemos indagar se tal sentido de problematizagfo exclui o sistema , se © problema é incompativel com o sistema. Para isso, deixemos de lado Hartmann e examinemos, em si mesmo, 0 problema do problema. ‘Antes de mais nada, parece que nio podemos com- preender 0 problema se 0 reduzirmos a si mesmo. Isso Porque, em primeiro lugar, um problema nio surge do nada, do vazio; bem ao contrério, s6 podemos entendé- Jo se admitirmos uma raz3o situada em face do real - € rninguém melhor que Hartmann soube mostré-lo, "Nés perguntamos, aqui e agora, para nés", diz, por sua vez, Heidegger. Além disso, devemos reconhecer que um problema, & medida que é elaborado, aponta ou faz referéncia a outros problemas, tendendo a inserir-se em ‘uma rede sempre mais vasta de conceitos.F isso implica m2 em dizer que um problema tende a organizar-se em fungio de um todo maior, a estruturarse nesse todo, ¢ tum todo que se torna tanto mais amplo e complexo quanto mais se desdobra o pensamento ou se adensam (8 problemas da filosofia. E se assim 6, devemos dizer que o problema tende, de dentro de si, a sair de si: 0 problema tende a alguma forma de sistema. E necessério compreender a incoeréncia e as limi- tacdes a que se expde uma consciéncia puramente pro- blematizadora. Cabe perguntar, em primeiro lugar, se tal cconsciéncia, reduzindo 0 problema ao préprio proble- ‘ma, ndo incide no abstrato. Realmente, parece tio errado ‘erigir o sistema em absoluto como o problema: num e outro caso nfo se consegue mais atender a indole propria de sistema e problema. Em segundo lugar, um pensamento puramente problematizador abre as portas ‘um certo irracionalismo, no sentido de que, quando 0 pensamento se confina a problemas, tende a conjugar-se com uma espécie de pseudomistica. A elaboracio racional, condicéo imprescindivel para que haja filosofia, cede a um irracional que leva a deslocar a filosofia de seu centro especifico de gravitacio. E, em ‘iltimo lugar, devemos perguntar sea fixacio no proble- ‘ma nao traz consigo uma forma de fuga por parte do filésofo, eavaindo-o em uma esterilidade inapta para assumir a verdade; se nio se trata de um esquivar-se a todo e qualquer tipo de compromisso. A impossibili- dade de alcancar a verdade acarretaria assim uma espé- ‘ie de inércia diante dessa mesma verdade. PPelas razdes expostas, uma filosofia restrita ou que tenda a limitarse a problemas parece insustentavel. O ‘que importa salientar aqui é a necesséria abertura do problema para uma exigencia estruturadora, sistemati- Zzadora, que radica na esséncia mesma do problema. Sis- 143 tema e problema - podemos compreendé-lo melhor agora - se supdem: a vida de um sistema depende de sua fidelidade ao problema; e o problema tende neces- sariamente ao sistema. E importa entender também que a exigéncia de sistema, tomada a palavra em sentido amplo, nao brota de mera comodidade filoséfica, algo inventado por algum filésofo. Muito mais, o sistema radica num imperativo que decorre da prépria natureza do pensamento. Em verdade, o sistema (sempre em sentido amplo) nem deve ser julgado como exclusive da filosofia, Porquanto abraca todo o campo da episteme desde as ‘mais modestas ciéncias, E mesmo fora da ciéncia, no nivel da doxa, da ativi- dade espontanea do pensamento, elaborada em funcio das exigéncias priticas da vida, topamos com a tendén- cia sistematizadora. Isso se verifica por razdes que de- correm jé da subjetividade. Lembramos apenas a funcio da meméria segundo Aristételes ¢ a sua importancia para compreender 0 mundo da empeiria; ou entdo, aquilo que Dewey chama de experiential continuum, a necessi- dade que temos de dar consistncia as nossas experién-

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