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Carl E. Braaten & Robert W. Jenson Editores Dogmatica Crista 22 Edicao SA... e B Sinodal st > !5EST Traduzido do original Christian Dogmatics, Volume 2, © 1984 Fortress Press, Philadelphia, Estados Unidos da América. Os direitos para a lingua portuguesa pertencem a © Editora Sinodal, 1987 Caixa Postal 11 93001-970 Sao Leopoldo/RS Tel.: (51) 3590 2366 editora@editorasinodal.com.br www.editorasinodal.com.br Traducao: Gerrit Delfstra Luis H. Dreher Geraldo Korndorfer Luis M. Sander Brunilde e Paul Tornquist Revisio: Walter Altmann Luis M. Sander Composigao: Jair de Oliveira Carlos Renate Gierus Jaine Hoppen Olga Kellermann Paginagao: Jair de Oliveira Carlos Revisio grifica: Madalena Altmann Luis M. Sander Capa: Editora Sinodal Coordenagio editorial: Luis M. Sander Série: Teologia Sistematica a-12 Publicado sob acoordenagdo do Fundo de Publicagées Teolégicas/Instituto Ecuménico de Pés-Graduagao da Escola Superior de Teologia da Igreja Evangélica de Confissdo Luterana no Brasil. Fone: (51) 2111-1400 www.est.com.br Fax: (51) 211-1411 est@est.com.br A doutrina da graga 136 Justificagio pela fé . 140 Predestinagao .... 146 3. O discurso sobre o Espirito como auto: 154 154 157 162 167 172 176 176 Cristologia eclesial_.. O Espirito e Deus O Espirito e a letra . O Espirito e a palavra O Espirito e a histéria 4, Espirito cdsmico .. A légica da pneumatologia césmica 182 185, ‘A espontaneidade do processo natural A beleza de todas as coisas Philip J. Hefner 191 195 198 Introducao .. 1. A doutrina da Igreja — enfoque e desafios O contexto trinitario para a doutrina da Igreja 198 Desafios provenientes da corporificagao da Igreja 202 O desafio de correlacionar a fé da Igreja e nossa experiéncia da Igreja .._ 209 A impossibilidade do carater final da doutrina 211 2._O ser da Igreja Q testemunho da propria Igreja: una, Imagens significativas oriundas da tradic’ 213 213 catélica e apostélic: povo de Deus e corpo Modelos que resumem a tradigdo teolégica: instituigéo, comunhao mistica, sacramento, arauto, serva O ser da Igreja & luz de suas origens 3. _Elementos basicos da vida da Igreja ... 231 Marcas da Igreja 231 Ministério Liturgia e sacramentos Pregacao e ensino 242 fissii 243 Ordem ou organizacao da Igreja ... 244 A concretitude da Igreja como fonte de verdade teolégica 245 O conceito de questdes adiéforas ..... 247 249 249 251 4. A Igreja e o reino de Deus .... Possibilidades de relacionar a Igreja e 0 reino de Deus A Igreja transparente para 0 Reino Locus 10 Os meios da graca Hans Schwarz e Robert W. Jenson 255 B59: Primeira parte: a Palavra 1._A compreensio biblica da palavra de Deus ... ‘A Palavra como meio da auto-revelagao de Deus . O poder de fazer historia da palavra de Deus Jesus Cristo como palavra final de Deus .... 2._A dinamica da palavra de Deus .... A Palavra julgadora e libertadora: lei e evangelho A Palavra como orientagao: ‘‘terceiro uso”’ ¢ peniténcia A Palavra dialégica: oragao e liturgia .. A Palavra empirica: milagres .... 263 275 295 281 Segunda parte: os sacramentos Fato e significado .... A liturgia efetiva ..... 4, Batismo A. ordem ... AS promessas Regeneracao A integridade do Batismo Os usos do Batismo 5_A Ceia 344 A ordem sss. ict aatie: 344 a Ci 340 As promessas ... . 352 Eucaristia 358 Ego Berengarits... ....... 364 6. Orretomo:a0 Batis _ _ - - sic 34 Ritos do Espirito . 374 Peniténcia 376 384 . 386 304 Locus 11 Vida cristi Gerhard O. Forde 397 Introdugao 1,_Justific: Justific: pela gra Justificagao pela fé .. Lei, evangelho ¢ consciéncia 412 418 430 430 435 2. Justificagio e santificag: A separagao de santificacao e justificagac A unidade de justificagdo e santificacao .. 3._A justificagdo e este mundo . A justificagio ea lei. O eu como criatura de Deus Este mundo como criacio de Deus 456 459 vi Relevancia: a visdo de mundo ... Locus 12 Escatologia Hans Schwarz 473 Introdugio .. 477 1. A concepgao biblica de futuro 483 Uma definigao . 483 A escatologia nascente do Antigo Testamento ~ 484 O horizonte escatolégico do Novo Testamento 493 2. Tens6es continuas na histéria da escatologia ‘A transformagio gradual O fervor entusidstico . 3. As principais correntes da escatologia crista 513 A tensao entre promessa e cumprimento .. 513 A énfase na pessoa individual SI7 A énfase na dimensio coletiva 524 O aspecto césmico da escatologia 531 4. Opcdes seculare: O existencialismo secular sss.sssssssssssssessssseessnssssssssssssesssssssssessssssssssee S41 O comunismo marxista . S45 O humanismo secular SSL 5. O contetido da esperanca crista 556 Regras fundamentais 21 556. O ponto de partida da escatolos 558 Morte e ressurreigao 561 O juizo final 572 A parisia e 0 reino de Deus 581 indice onomastico aia ernie Abreviaturas do volume 2 As abreviaturas usadas neste volume, indicadas abaixo, baseiam-se, com pequenas variagGes, em Siegfried Schwertner, Internationales Abkiirzungsverzeichnis fiir Theologie und Grenzgebiete, Berlin e New York, Walter de Gruyter, 1974. AASF AGTL AHC Lc BHH CR CTM EvTh FL HDG Interp. KuD Lw NPNF RGG TDNT THAT TS UUA UnSa Annales academia scientiarum Fennicae Arbeiten zur Geschichte und Theologie des Luthertums Annuarium historiae conciliorum, Amsterdam, 1969ss. Livro de conc6rdia; as confissdes da Igreja Evangélica Luterana, trad. e notas de Arnaldo Schiiler, Sao Leopoldo, Sinodal; Porto Alegre, Concérdia, 1980. Bo Reicke & Leonhard Rost, eds., Biblisch-historisches Handworter- buch, 3 vols., Gottingen, 1962-66. Corpus reformatorum, Berlin, 1834ss. Concordia Theological Monthly Evangelische Theologie Fontana Library Handbuch der Dogmengeschichte, Freiburg, 1956ss. Interpretation; a Journal of Bible and Theology Kerygma und Dogma Edigao americana de Luther’s Works, St. Louis, Concordia; Philadel- phia, Fortress, 1955ss. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Chris- tian Church, Oxford, 1887ss. Die Religion in Geschichte und Gegenwart, 3. ed., Tiibingen, 1956-65. Gerhard Kittel & Gerhard Friedrich, eds., Theological Dictionary of the New Testament, 10 vols., Grand Rapids, 1964ss. Emst Jenni & Claus Westermann, eds., Theologisches Handworter- buch zum Alten Testament, Miinchen, 1971ss. Theologische Literaturzeitung Theological Studies ‘Texte und Untersuchungen zur Geschichte der altchristlichen Litera- tur, Berlin, 1882ss. Uppsala universtets arsskrift Unam Sanctam VieChr WA WA Br WA DB ZKTh ZNW Vigiliae Christianae D. Martin Luthers Werke; kritische Gesamtausgabe, Weimar, 1883ss. D. Martin Luthers Werke; Briefwechsel, Weimar, 1930ss. D. Martin Luthers Werke; Deutsche Bibel, Weimar, 1906ss. Zeitschrift fiir katholische Theologie Zeitschrift fiir Theologie und Kirche Zeitschrift fir die neutestamentliche Wissenschaft Sétimo Locus A obra de Cristo* Gerhard O. Forde * Tradugao: Luis M. Sander Revisdo; Walter Altmann A obra de Cristo Introdugao 1. A forma da tradi¢do A tradico escrituristica Satisfacdo vicdria da justiga de Deus O triunfo do amor de Deus Vitéria sobre os tiranos 2. A teologia da cruz de Lutero O debate sobre a concepgio de Lutero A inversdo de direcao Apreciagées criticas 3, Reconciliagao com Deus Cur Deus homo? A necessidade de expiagao 4, A expiacio como acontecimento efetivo Rumo a uma nova compreensio de sacrificio O “‘acidente”’ Introducgao Portanto, se alguém esté em Cristo, € nova criag&io; acabou-se 0 que é velho, eis que veio 0 novo. Tudo isso provém de Deus, que, por meio de Cristo, nos reconciliou consigo mesmo e nos deu o ministério da reconciliagio; isto é, em Cristo Deus estava reconciliando consigo o mundo, nao imputando as pessoas suas transgressdes, e nos confiando a mensagem da reconciliacdo. Assim, somos embaixadores de Cristo, e Deus faz, seu apelo através de nds. Em nome de Cristo rogamos a vocés que se reconciliem com Deus. Por nossa causa ele fez. pecado a aquele que nao conhecia pecado, para que, nele, pudéssemos tornar-nos a justiga de Deus. (2 Co 5.17-21.) Assim reza uma passagem central do Novo Testamento a respeito da obra de Cristo. Ela pode servir de tema para este Jocus. O que nos interessa aqui é 0 que Deus fez em Jesus Cristo, a obra, e nao a pessoa de Cristo. Esta distingao nao pode ser feita em termos absolutos. No mais amplo sentido, Cristo é 0 que faz e faz o que é. No entanto, a conven¢ao dogmiatica estabeleceu essa disting: util continuar com ela, pelo menos pela seguinte razao: geralmente se investem tanta curiosidade e esforgo no dogma da pessoa de Cristo que sua obra seria relegada a umas poucas observagoes € notas de rodapé se as duas doutrinas fossem tratadas conjuntamente. Assim, com a adverténcia de que, em Ultima andlise, pessoa ¢ obra nao deveriam ¢ nao podem ser separadas, tratamos aqui daquela parte da tradic&o dogmatica que lida com a obra de Cristo. Nao hé um dogma oficial da obra de Cristo — niio no sentido em que se poderia falar dos dogmas da Trindade, da pessoa de Cristo ou mesmo da justifica- g&io nas igrejas da Reforma. Na melhor das hipoteses, pode-se falar de certas doutrinas, concepgSes ou motivos dominantes em diferentes épocas. Nao obstante, a tradigfo dé testemunho da tenacidade com que a Igreja outorgou um lugar central & obra de Cristo. As igrejas da Reforma, por exemplo, tém considerado essa obra o “principal artigo’’, no qual tudo se assenta!, sem divida por causa de sua importancia para a doutrina da justificacdo. Para a Confissio de Augsburgo, Cristo ‘‘foi crucificado, morreu e foi sepultado, a fim de ser oblagao nao sé pelo pecado hereditario, mas ainda por todos os outros pecados, e para aplacar a ira de Deus.” A afirmacao da Confissio de Augsburgo aponta para a principal pergunta 1 Os Antigos de Esmalcalde, Segunda pane, Primeiro artigo, LC 312. 2 A Confissio de Augsburgo, artigo Il, LC 30, deste locus: Cur deus homo? Por que Deus tornou-se pessoa humana da maneira particular manifesta na estoria* efetiva de Jesus? O que se realiza com isto? O que faz Jesus? O que nos preocupa sao a agao e a paixdo de Jesus e 0 que delas resulta, na medida em que isto é distinto de seu ser. Por que ele precisa ser crucificado e ressuscitado? Se aquilo com que estamos preocupados € uma acgao, uma obra de Cristo, e ndo apenas um ser, entao ela precisa ter algum resultado, algum efeito. Qual € esse efeito, e por que ha justamente essa forma de agio para obté-lo? Central ao longo de toda a exposigao € a questo da relagio de Deus com a ago, E Deus quem a faz em Jesus por nés, ou é Jesus quem a faz por Deus em nosso beneficio? E Deus tornado propicio, satisfeito ou de algum modo alterado por esse acontecimento? E Deus irado? “Precisa’” Deus da obra de Cristo para tornar-se misericordioso? Ou age Deus sobre nés através do acontecimento, mu- dando a nds ou a situago em que nos encontramos? E Deus quem precisa da cruz, ou somos nés? Quem é 0 real obstéculo 4 reconciliagao? Deus? Os seres huma- nos? Ou outros — os demGnios, talvez? A tradigao dogmatica da Igreja procurou responder a pergunta colocada pela obra de Cristo por meio de varias ‘‘teorias’’, ‘“‘quadros’’, “‘modelos’’ ou ‘‘moti- os’’ da expiacao. A propria proliferagio de tais modelos de pensamento tomnou- se um problema para a dogmatica e coloca uma segunda pergunta para este Jocus: qual é ou qual deveria ser a relacdo entre esses modelos e 0 objeto em si, a estéria efetiva de Jesus? Parece justo dizer que reina uma considerdvel confusdo nesse sentido. Desde a época de Anselmo, a teoria dominante no Ocidente tem sido alguma versio da “‘satisfagio vicéria’’ — a assim chamada concepgao objetiva, também chamada de concepgao “latina’’ ou ‘‘penal’’. Cristo satisfaz, em nosso lugar, 0 que é exigido para a salvacao e, assim, muda Deus ‘‘objetivamente”’. Contudo, tal concepgao goza, no melhor dos casos, de uma dominancia descon- fortavel. Sempre que € proposta, os oponentes protestam. Anselmo tinha Abelardo. A ortodoxia protestante tinha Socinus. O reavivamento e 0 biblicismo do século XIX tinham a teologia liberal. Os oponentes insistem na questo central j4 enun- ciada: Deus tem que ser satisfeito? Nao é Deus sempre um Deus de amor e misericérdia? Ha pelo menos um século ¢ meio tem havido uma constante polémica contra a satisfagio vicéria. Todavia, também as varias teorias subjetivas ndo logram convencer. Denominadas “‘subjetivas’’ por proporem que nés, os sujeitos, somos mudados, ¢ nao Deus, tais teorias geralmente sio acusadas de nao levar a sério 0 juizo divino e © pecado humano, de sorte que sucumbem a um mero moralismo. O Deus de misericérdia e amor envia Cristo para ensinar por seu exemplo, inspirando-nos a seguir no caminho do amor. ‘‘Um Deus sem ira levou homens sem pecado a um reino sem juizo através do ministério de um Cristo sem cruz” — assim H. Richard Niebuhr caracterizou o liberalismo popular do século XIX°, * N. do T.: Story, no original. Em todo este volume, traduzimes story por “‘est6ria’”, para estabelecer uma distingao, ainda que um tanto arificial, com o termo history, que traduzimos sempre por “*historia’”. 3 H. Richard NIEBUHR, The Kingdom of Ged in America, New York, Willet, Clark & Co., 1937, p. 193. 22 Quando a luta das concepgGes objetiva ¢ subjetiva estava empatada, a obra Christus Victor (1931), de Gustaf Aulén, pareceu oferecer uma alternativa‘. Aulén ampliou a questo ao sustentar que nenhuma dessas duas teorias fazia parte da fé crista classica; ambas eram racionalizagées posteriores. A concepgao classica era, antes, a da “‘vit6ria’’ sobre 0 pecado, a morte e as forgas demontacas através de Cristo. A obra de Cristo nfo traz uma mudanga em Deus ou meramente nos stiditos de Deus, mas uma situagdo mudada. De muitas maneiras, Christus Victor marcou época, especialmente na Escandinavia e no mundo de fala inglesa, porque elevou 0 nivel da discusséo para um novo plano. Ainda assim, também essa obra nao pOde satisfazer a todos. Os proponentes da concepgdo objetiva a acusam de fazer pouco caso do problema da culpa, da justiga e da santidade divina’. Os subjetivistas acham a idéia da vit6ria sobre forgas demonfacas demasiadamente mitolégica ¢ arcaica para receber muito peso. A discussao a respeito de tcorias ¢ motivos, ainda que proporcionasse esti- mulo e ampliagdo de horizontes, parece ter trazido mais, e ndio menos confusio. A multiplicagio de teorias, modelos e quadros parece ter se tornado um hobby teokégico. A incapacidade de resolver a disputa entre eles leva 4 tentativa de tansformar 0 vicio em virtude, sob os auspicios da trivialidade de que nenhuma concepeio ou teoria pode fazer justiga ao profundo mistério da obra de Cristo. Supée-se que cada teoria comunique um aspecto da verdade. J. W. C. Wand, por exemplo, enumera sete quadros diferentes e compara a expiagio a “uma pedra preciosa, que é tao grande que s6 se pode ver apropriadamente uma faceta de cada vez’’. E preciso vird-la na mo para ver cada faceta por sua vez’. Quase cada pessoa que escreve sobre a expiagio agora parece obrigada a entrar nesse jogo. A despeito da ampliacéo da perspectiva que o desenvolvimento de tais facetas possa trazer, hé algo profundamente insatisfatério quanto 4 pressuposicao subjacente e, por conseguinte, quanto ao resultado final da abordagem. Designa- mos isto aqui como o problema da relagdo entre a construgao dogmiatica e ‘to objeto em si’’, Retalhada em tantas pecas e pedacos, a obra de Cristo se converte em joguete da necessidade humana. Somos confrontados com uma diversidade de idéias sobre Cristo que honramos da boca para fora, mas entéo € nosso préprio gosto que resolve a questao. Fazendo as coisas por nossa propria conta, geralmente optamos pela concepgéo menos ofensiva, ou pelo menos por aquela que, suposta- mente, satisfaz o que consideramos serem nossas necessidades. De fato, Wand revela isto ao dizer: ‘E provavel que nossa concepgdo da expiagio prove ser tanto mais completa e satisfat6ria quanto mais for capaz de satisfazer todas as multifor- mes necessidades da personalidade humana.’ Os te6logos parecem ter esquecido que a obra de Cristo na expiagdo é um tnico acontecimento, e nao varios aconte- 4 Gustaf AULEN, Christus Victor, New York, Macmillan, 1931 5 Yeia Osmo THLILA, Das Strafleiden Christi, Helsinki, 1941 (ASF, 48), 6 J. W. C. WAND, The Atonement, London, SPCK, 1963, p. 1 7 ID., ibid., p. 9. 23 cimentos diferentes. O pesquisador catdlico romano Hans Kessler faz a mesma observagao ao examinar manuais catélicos de dogmiatica. Eles explicam o — por eles suposto — sentido decisivo da morte de Jesus por meio de uma colegéo de categorias — satisfacao, sacrificio, mérito, redengdio, etc. que ajuntam de modo mais ou menos aleatério e, no melhor dos casos, colocam numa ordem externa por intermédio da anilise conceptual. Com isso, porém, nio esté claro que conexdo material existe entre as categorias nem € manifesto se elas tém um propésito interno comum. Muito antes, tem-se a impressdo de que um tinico processo vivo e unificado é dividido numa impenetravel multiplicidade de conceitos ¢ de que © fendmeno visado é perdido de saida.' A multiplicidade de concepgSes mais ou menos desconexas existentes na tradigao €, em si mesma, um problema para a dogmiatica. Parece haver uma espécie de ‘‘mal-estar no centro’’ quando chegamos 4 obra de Cristo. A doutrina parece cambalear, como se, usando palavras de Barth, tropecasse em algum objeto | invisivel. Precisamos perguntar por qué. Serd que € porque — como reza o lugar- comum — a dogmiatica ndo é completamente adequada 2 tarefa? Porque nosso assunto é um mistério ou paradoxo por demais esquivo para nés? Ou sera que a linguagem € inerentemente por demais limitada para comunicar a verdade trans- cendente? Temos que contentar-nos com expressées parciais, pictéricas, parabéli- cas ou simbélicas ¢ tentar superar a limitagio da melhor maneira possivel através da simples multiplicagio? Ora, isto é precisamente a justificagio lingiifstica para © pluralismo e o relativismo. De varias maneiras, a dogmitica sempre esteve consciente de suas limita- gOes, e é de se esperar que continue assim. Mas temos que insistir na pergunta: essa adverténcia geral desfaz o mal-estar sentido? Podemos, neste caso, invocar tal modéstia para dissimular nossa ineptidio? A dificuldade nio poderia ser de ordem inteiramente diferente? Martin Hengel conclui seu recente estudo da crucificagao no mundo contemporaneo de Jesus com as seguintes palavras: O raciocinio teolégico de nossa época mostra muito claramente que a forma particu- lar da morte de Jesus, o homem e o Messias, representa um escdndalo que as pessoas gostam de mitigar, remover ou domesticar de qualquer maneira possivel. Vamos ter que garantir a verdade de nosso pensamento teolégico neste ponto.” De fato. Vamos ter que perguntar se a propria dogmitica é imune a esse erro em particular: nao que o esplendor da verdade transcendente ofusque, mas que nao estamos dispostos a encarar 0 que esti muitissimo claro ante nossos olhos. Quem creu no que ouvimos? E a quem foi revelado o brago do Senhor? 8 Hans KESSLER, Die theologische Bedeutung des Todes Jesu, Disseldorf, Patmos, 1970, p. 16. 9 Martin HENGEL, Crucifixion in the Ancient World and ihe Folly of the Message of the Cross, Philadelphia, Fortress, 1977, p. 90. 24 Pois foi crescendo diante dele como um renovo, € como raiz duma terra seca; ele ndo tinha aparéncia nem formosura para que olhassemos para ele ¢ nenhuma beleza para que 0 desejdssemos. Ele cra desprezado ¢ rejeitado pelos homens; homem de dores e familiarizado com 0 padecimento; € como um de quem os homens escondem o rosto era desprezado, e nao fizemos caso dele. (Is 53.1-3.) ‘A pergunta com que nos defrontamos ao considerar a obra de Cristo € se © até que ponto nossa prépria tentativa de encontrar sentido para nés na tragédia ¢ no horror de Gélgota é uma tentativa de nos insular contra a ofensa, Diz H. J. Iwand: ‘Tomamos 0 amargor da cruz, a revelagdo de Deus na cruz de Jesus Cristo toleravel para nds aprendendo a entendé-la como uma necessidade para 0 processo da salva- ¢40.(...) Como resultado disso, a cruz perde seu cardter contingente e incompreensivel.'° Nés cercamos 0 escindalo da cruz com rosas. Fizemos dela uma teoria da salvagdo. Porém isso nio é a cruz. Essa ndo € a desolacdo que € inerente & cruz e foi colocada nela por Deus. A questo é se nossas proprias tentativas de compreender a cruz através de nossas maneiras convencionais nao podem estar simplesmente colocando rosas na cruz e, justamente assim, embotando a real obra de Cristo em nds através de sua cruz e Tessurrei¢do. A questdo € se isso nao pode ser a razdo secreta do fracasso de todas as nossas teorias. Pois teorias nao reconciliam. Se a dogmatica cobre a ofensa com suas teorias, nao pode servir a uma proclamacdo que ¢ efetivamente um ministério de reconciliagao. As perguntas que fizemos estabelecem o procedimento que vamos adotar: em primeiro lugar, investigaco e avaliagio da tradigio; em segundo, uma tenta- tiva de reconstrugdo que procure evitar os perigos ¢ expressar a obra de Cristo de uma forma fiel Escritura e vidvel hoje. Obviamente néo podemos apresentar toda a tradigao. Nosso propésito é de caréter dogmitico, nao hist6rico. Sio considera- Ges dogmiaticas, e nao histéricas, que determinam, na maioria dos casos, a selecio de representantes da tradic%io. Depois de uma consideragio preliminar do material neotestamentério, 0 capitulo 1 lida com figuras centrais que representam as prin- cipais teorias: objetiva, subjetiva e classica. O capitulo 2 € uma transicio prepara- t6ria para a reconstrucdo que tentamos nos capitulos 3 e 4. 10 Da Christologievorlesung nao-publicada de Iwand, citada ap. Jirgen MOLTMANN, The Crucified God, New iarper & Row, 1974, p. 41 25 1 A forma da tradigao A tradigao dogmatica esforga-se para compreender e apresentar a obra de Jesus em sua vida e morte de uma maneira que acentue seu ato hist6rico por nds, e nao seu ser como tal. Este é 0 objetivo das varias teorias da expiacdo. No entanto, na medida em que procuram apreender © significado do acontecimento em teorias, elas tendem a frustrar seu proprio propésito ¢ a obscurecer a ofensa com rosas. A tradigao escrituristica O material bisico relevante para a obra de Cristo é simplesmente a estéria biblica na medida em que culmina na cruz e ressurrei¢do de Jesus, bem como algumas tentativas ad hoc de interpretar o significado dessa estéria para seus primeiros ouvintes. A est6ria é bastante simples e bem conhecida. Jesus, o filho do carpinteiro de Nazaré, veio anunciando a vinda iminente do reino de Deus em conexdo com sua propria pessoa e ministério, pregando arrependimento, perdoando pecados e realizando sinais e milagres. As pessoas com quem se encontrava eram confron- tadas com algo final, com um juizo Ultimo que nao podia ser evitado. Ele abriu uma nova visio de Deus para as que 0 aceitavam, uma visio do Deus a quem chamava de seu Pai. No estar-af de Jesus em favor dessas pessoas, esse Deus estava af para elas. Ele trazia nova vida ¢ liberdade. Nao exigia, mas dava; nao esmagava, mas erguia; no julgava, mas removia fardos e deixava as pessoas respirar livre- mente. Rompia ¢ transcendia os limites da convengiio e da tradigao e defendia os pobres, os pisoteados, os marginalizados, os oprimidos. Ele dava esperanga. Jesus manifestava o amor de Deus. Ele nao foi aceito, porém. Talvez. ndio pudesse ser aceito — aqui. Nao se podem perdoar pecados aqui. Isso destréi todos os livros de contabilidade. Nao se pode passar por cima das leis e tradigdes que mantém em ordem a vida e comunidade terrenas. O amor radical e incondicional de Deus Pai ndo podia deixar de ser contestado — nao quando ha assuntos importantes 4 watar. Ele tinha que desaparecer. Foi entregue as autoridades romanas e crucificado, como pretendente messidnico, ao que parece. Sua vida terminou numa agonizante cacofonia de vozes. 26 erty “Hei de crucificar 0 rei de vocés?”’ “‘Nao temos rei sendio César!”” (Jo 19.15.) “Nao chorem por mim; chorem antes por vocés ¢ por seus filhos.”” (Le 23.28.) E a inscrigao da acusagio feita contra ele rezava: “O Rei dos Judeus”’. (Me 15.26.) “Ah! tu que irias destruir o templo ¢ reconstruf-lo em trés dias, salva-te a ti mesmo, e desce da cruz!” (...) “*Salvou outros, mas ndo pode salvar a si mesmo. Desca agora da cruz o Cristo, o Rei de Israel, para que vejamos e creiamos.” (Me 15.29-32.) “Deus meu, Deus meu. por que me desamparaste?”” (Me 15.34.) Sua morte nio foi bela. E facil esquecer-se disso, quando séculos de culto e arte transformaram a cruz num bonito simbolo cultual. O livro Crucifixion in the Ancient World, de Martin Hengel, nos lembra nao sé que a cruz foi excruciante- mente dolorosa, humilhante e degradante — uma morte destinada 4 humilhagao ptiblica de escravos e marginais politicos para desencorajar outros crimes —, mas também que precisamente esse tipo de morte constitui a culminagao da estéria, uma parte inerradicavel do depésito histérico com o qual a prépria teologia precisa lidar’. A propria loucuna e ofensa da cruz so o material do qual a teologia tem que partir. Contudo, a estéria ndo termina com a cruz. Ha outras vozes que escrevem 0. fim — e um novo inicio! — para a estéria: Ele ressuscitou, nao esta aqui. (Mc 16.6.) Por que vocés buscam entre os mortos a quem vive? (Le 24.5.) Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos. Vindicou aquele que havia sido rejeitado por todos. Colocou o selo de aprovacdo naquele que havia sido humilhado e degradado. Ratificou a ac&o daquele que tivera a audacia de perdoar pecados aqui. Esta é, em poucas palavras, a est6ria. O que nos diz ela sobre a obra de Cristo? O que fazem esse Jesus e sua est6ria? Quando se toma o Novo Testamento como um todo, é espantoso quio pouco é dito explicitamente em termos daquilo que poderia ser chamado de explicagéio dogmatica da obra de Cristo — pelo menos da espécie que se tomou tao dominante na tradigao. As mais antigas camadas das fontes dos evangelhos neotestamentarios, as fontes de ditos tais como a fonte Q, nao indicam qualquer reflexao ou concepgdo particular da obra ou do destino de Jesus. A morte de Jesus foi, sem divida, um grande choque, porém parece ter sido mormente entendida em termos do destino usual dos profetas de Deus: eles foram rejeitados e tiveram um fim tragico. E claro que tal rejeigao desmascara a atitude de impeniténcia, incredulidade ¢ culpa do povo de Deus. Essa concepgio inicial da vida e morte de Jesus se reflete também em alguns dos discursos contidos em Atos, como no discurso de Pedro em Atos 2, ¢ mesmo em s dos escritos mais antigos de Paulo (veja 1 Ts 2.14ss., por exemplo). O — embora pudesse ter e muito possivelmente tenha contado com 1 Martin HENGEL, Chwcifixion in the Ancient World and the Folly of the Message of the Cross, Philadelphia, Fortress, 1977. 27 uma morte violenta nas maos de seus adversarios — nao parece ter compreendido ou interpretado sua propria morte como sacrificio por outros ou como resgate pelo pecado. Aparentemente, essa interpretagao resultou de reflexdo posterior. Mesmo em sua redacao final, os evangelhos sinéticos contém pouca interpretago direta ou explicita da obra de Jesus. Marcos 10.45 faz Jesus T que o Filho do homem veio para dar sua vida ‘‘como resgate por muitos’’, e os relatos da ultima ceia falam do sangue de Jesus como seu ‘‘sangue da alianga, derramado em favor de muitos’’ (Mc 14.24) e ‘meu sangue da alianga, derramado em favor de muitos, para a remissio dos pecados’’ (Mt 26.28). Tais passagens — pelo menos em sua forma atual — sio geralmente consideradas provenientes nao do proprio Jesus, mas de tradig6es interpretativas posteriores. O mesmo vale para os casos em que Jesus prediz sua prépria morte e ressurreigo, como Marcos 8.31ss. e 9.31, bem como as passagens paralelas nos demais sinéticos. Trata-se de interpretagdes atri- buidas a Jesus apés 0 fato. A parte dessas escassas referéncias, porém, os sindticos — mesmo em sua forma final — oferecem pouca interpretacao explicita da obra de Jest Ha, todavia, grande quantidade de interpretacao implicita na apresentagéo da vida e morte de Jesus. Nao ha diivida de que isso é mais importante do que as poucas passagens explicitas. As predicgdes da paixio colocadas na boca de Jesus mostram que j4 nos dias mais remotos houve uma tentativa de confrontar-se com a terrivel tragédia e ofensa de sua morte vendo-a como parte da vontade de Deus. A morte de Jesus nao resultou de mero capricho humano; ela aconteceu ‘‘de acordo com as Escrituras’’, exatamente como as Escrituras revelam — em especial nos salmos de lamentagio e sofrimento. O drama é representado de acordo com 0 esquema apocaliptico. A razao Ultima disso reside no plano oculto de Deus, que esta sendo revelado agora. A interpretacdo dada a vida de Jesus também podia ser estendida & sua morte: ela fazia parte do drama apocaliptico. O contexto apocaliptico leva quase naturalmente a um segundo e mais profundo nivel de interpretacdo também implicito nos evangelhos: a vida ¢ morte de Jesus tém significado escatolégico. Elas sio um acontecimento do fim dos tempos — sobretudo, um acontecimento pelo qual se exerce juizo final. Ele significa juizo pronunciado sobre os velhos caminhos, sobre a impiedade, sobre © apego aos velhos rituais ¢ leis cuilticos como caminhos de salvagio. O juizo apocaliptico € antecipado. O Filho do homem, rejeitado pelos seres humanos, revela-se paradoxalmente como 0 juiz oculto de todos. Essa compreensio se evidencia especialmente nas muitas controvérsias entre Jesus e seus adversdrios. O conceito de juizo também traz consigo um novo elemento: a vida e morte de Jesus tém significado soteriolégico. Ele traz salvagio. A noite passou; a luz brilha. Deus chegou perto de todas as pessoas. Nas mais primitivas camadas da 2.V. 05 exames apresentados por Hans KESSLER, Die theologische Bedeutung des Txdes Jesu, Diisseldorf, Patmos, 1970, pp. 227ss., ¢ por Sam K. WILLIAMS, Jesus” Death as a Saving Event; the Background and Origin of a Concept, Missoula, Mont., Scholars Press, 1975 (Harvard Dissertations in Religion, 2), pp. 203ss. 28 ttadigao nao parece ter havido uma énfase especial em sua morte como 0 aconte- cimento salvifico. Jesus como um todo trouxe salvagéo. Ao que parece, Marcos, no primeiro evangelho, tomou esse tipo de material ¢ interpretou o todo a luz da crucificagio como seu telos* e climax. Assim, seguindo Marcos, os evangelhos, em sua forma atual, so predominantemente narrativas da paixao, organizando 0 restante do material de modo a conduzir inexoravelmente 4 cruz. A cruz assume uma posicAo preeminente para a interpretagio da obra de Jesus, o Cristo ressurreto. Mas como pode uma humilhante e ofensiva morte na cruz ter significado soteriolégico? Esta é a pergunta com a qual toda a tradigiio crist@ tem se debatido desde entio. O material contido no Novo Testamento indica que, além da espécie de interpretago dada nos evangelhos sindticos, havia desde os primeiros dias, muito provavelmente em circulos influenciados pelo judaismo helenistico, uma tradigao que interpretava a morte de Jesus como, em algum sentido, expiacdo pelo pecado, Em que sentido exatamente? Isto parece ser uma questo de debate entre os eruditos de hoje. De qualquer maneira, essa tradigdo recorreu a material ctiltico, ao conceito de sacrificio, sacrificio da alianga, pdscoa, ao conceito de servo sofredor (Is 53), etc., para interpretar o significado da vida e morte de Jesus. Embora essa tradig4o parega ter se introduzido bastante tarde no material sindtico (Mc 10.45 par. ¢ 14.24 par, sao os tltimos casos), aparentemente tratava-se de uma tradigdo muito primitiva. E opiniio geral que, em Romanos 3.25-26 e também em 4.25, Paulo langa mao dessa tadigdo primitiva, citando material hinolégico e confessional de cfrculos judaico-cristéos helenisticos. Ora, isso indica que a tradi- ao ja estava bem estabelecida antes dos escritos de Paulo. Romanos 3.25-26 fala de Cristo como aquele ‘‘a quem Deus propos como expiacao por seu sangue (...) para mostrar a justica de Deus, porque, cm sua divina tolerdncia, cle tinha deixado passar os pecados anteriores”. Romanos 4.25 diz que Jesus ‘foi morto por nossas transgressdes e ressuscitado por nossa justificago"” — talvez isto seja parte de uma antiga confissao judaico-crista. Ecos dessa tradigao que interpreta a morte de Jesus como, em algum sentido, sacrificio ou expiacao pelo pecado encontram-se com bastante regularidade nos escritos relacionados a Paulo ou dele dependentes (se bem que nao tanto no préprio Paulo) e na literatura joanina (veja, por exemplo, Jo 1.29; 6.51; 1 Jo 1.7; 2.2; 3.5-6; 4.10; Ap 5.8-9; 7.14; 12.11). Essa concepgao encontra sua mais sistemdtica expresso na Epistola aos Hebreus, na qual o sacrificio de Jesus é interpretado sobre 0 background do rito do Dia da Expiacio. Seu sacrificio é melhor e mais perfeito, cumprindo e, assim, terminando ‘‘uma vez para sempre”’ com a necessidade de sacrificios culticos. Ele abriu um ‘‘caminho novo e vivo”’ através de sua came, realizando efetivamente 0 que o antigo rito sé podia prefigurar. Qual €, porém, o significado dessa tradicao? A histéria da interpretagao mostra que tem sido facil passar dessa espécie de material para uma compreensio *N. do T.: Alvo, meta, 29 da obra de Cristo como satisfagio vicdria da honra (justiga, ira, etc.) de Deus, concepgdo afim Aquela geralmente associada a Anselmo. Expressa em sua forma mais crassa, essa concepgio sustentaria que a morte de Jesus é um sacrificio no qual ele & nosso substituto, pagando a justiga divina 0 que é devido pelo pecado humano e/ou aplacando a ira divina. Como veremos, existe uma longa tradigao, especialmente entre cristios conservadores do Ocidente, que seguiu essa linha. Entretanto, parece haver um virtual consenso entre os atuais pesquisadores da Biblia no sentido de que essa tradi¢ao tem pouco apoio nas Escrituras, quer no Antigo, quer no Novo ‘Testamento. A Escritura nunca fala de Deus como alguém que tem que ser satisfeito ou tornado propicio antes de ser misericordioso ou perdoador. Ele é sempre 0 sujeito da agao, nao o objeto. Nao obstante, mesmo que no se deva pensar que a morte de Jesus toma Deus propicio, o Novo Testamento insiste bastante claramente que ela foi substi- tutiva, ou pelo menos representativa. Certificam-no as muitas formulas que rezam “por vocés’’, **por nés”’, *‘por nossos pecados’’, **por muitos”. O que as férmu- las “por nossos pecados’’ ou ‘‘por nés’’ significam exatamente, porém, tem sido € continua sendo objeto de debate. Algumas pessoas, seguindo linhas mais tadi- cionais, insistiriam que tais f6rmulas significam substituigao: *‘por nés’* quer dizer “ao invés de nés’’. As que seguem esta linha geralmente gostam de insistir que a idéia de que a morte sacrifical de uma pessoa tem efeito propiciatério ou expiaté- rio para outras faz parte de uma firme tradigio biblica e judaica, corrente e bem conhecida na época de Jesus. Essa interpretag&io recorre a varias correntes de material do Antigo Testamento, ao culto sacrifical e especialmente a0 motivo do servo sofredor de Isaias 53, bem como a relatos posteriores da eficdcia vicaria dos sofrimentos do ‘“‘homem justo’? ¢ dos martires da era macabéia’. A luz desse material, até bem recentemente tem sido comum, entre pesquisadores do Novo ‘Testamento, sustentar que a idéia de que uma morte tem significado vicdrio ou mesmo expiatério era uma concepgio biblica e judaica firmemente estabelecida. Alguns deles (mais notavelmente Oscar Cullmann) afirmaram que Jesus muito provavelmente entendeu sua propria vida e seu destino vindouro dessa forma, combinando 0 conceito de ‘Filho do homem’’ com o “‘servo sofredor’’ de Isaias. A pesquisa recente, contudo, comegou a langar diividas sobre essas posigdes “recebidas’’. O argumento mais eficaz é que simplesmente parece nao haver indicios literarios de que tal interpretagao estivesse presente em circulos judaicos na época de Jesus. Nestes, parece nao existir 0 conceito de que uma morte tenha significado no sentido que Ihe deu a interpretagao crista posterior’, Embora passa- gens como Isafas 53 paregam apontar muito explicitamente nessa diregio, ao que parece nenhuma tradigio judaica dos tempos de Jesus (antes de 70 4.C.) a enten- deu como indicativo de uma morte vicaria. Além disso, parece nio haver indicios de que materiais relativos ao ‘Filho do homem’’ ou ao ‘‘servo sofredor” 3 Vela WILLIAMS, op. ¢ 4 ID, ibid, passim especialmente pp. 59-135, 165- para um relato do uso desse material. 30 fossem correntes ou estivessem combinados da forma proposta por pesquisadores como Oscar Cullmann’. Portanto, os testemunhos literarios simplesmente nao parecem corroborar 0 que tem sido uma concep¢ao amplamente corrente entre exegetas do Novo Téstamento. A idéia de que uma morte tivesse significado vicdrio nio era uma tradigéo comumente aceita. Podem-se apresentar argumentos persuasivos em favor da opinido de que a idéia em pauta nao proveio de fontes Judaicas, mas sim cristas, de cristéos “‘inteiramente familiarizados com 0 mundo de pensamento greco-helenistico”’*. Mesmo a interpretagao da morte dos martires em 4 Macabeus é, muito provavelmente, bastante tardia, tendo sido influenciada pela mesma espécie de pensamento. Essa pesquisa recente langa diividas consideriveis sobre o direito da corrente da ‘“‘morte vicdria’’? de reivindicar preeminéncia na interpretagao da morte de Cristo ¢ do “‘por nés”’. Pelo menos nao se poderia pretender que cla seja a tradigio biblica e judaica que pudesse aspirar a resolver, de uma vez por todas, a metafisica da questo. No melhor dos casos, ela poderia pretender ser apenas uma das formas pelas quais os primeiros cristdos procuraram resolver o problema da morte de Jesus. A linha de interpretago que lanca mao dos materiais ciilticos, da idéia de sacrificio e do servo sofredor é, sem dtivida, uma tentativa de lidar com o forte carater ofensivo da cruz mediante a utilizagao de material da prépria Biblia: onde © pensamento judaico tinha dificuldades quase intransponiveis, usaram-se meios judaicos para tentar superd-las (a Epistola aos Hebreus € um excelente exemplo disso). No entanto, é duvidoso que se possa forgar esse material a formar uma teoria da expiacdo em sentido estrito, como se fez mais tarde. Na esséncia, através desse material talvez se diga pouca coisa mais do que foi dito nos evangelhos sinéticos: na vida e morte de Jesus, Deus se volta para os perdidos, os pecadores, os marginalizados e os aceita. A morte de Jesus é 0 que custou a Deus fazer isto, Mas teremos mais a dizer sobre isso na parte reconstrutiva de nosso Jocus. Por ora, 0 essencial € que 0 “‘por nés’’, embora certamente signifique uma morte sacrifical em nosso favor, nao pode ser sistematizado de modo a formar uma teoria rigida. As formulas que empregam o “‘por nds’’ deveriam ser interpretadas mais no sentido de ‘‘em nosso favor’’, “‘para nosso bem’’ ou ‘“em nosso benefi- cio”, e nio no sentido de “‘ao invés de ndés’’. Na verdade, poder-se-ia afirmar que 0 “‘ao invés de nés”’ corre o risco de nao atinar o essencial, pois entéo parece que sao primariamente os impedimentos da salvagdo que tommam a morte necessdria. O ato esté voltado unicamente para o passado, Todavia, no Novo Testamento a obra de Jesus “‘por nés’’ esté voltada também para o futuro, Ele morreu nio apenas para reparar dano passado, mas para abrir um novo futuro ‘‘por nés”’. Se se interpreta o “‘por nés’’ no sentido de também abrir um novo futuro, € maior a possibilidade de combinar — como 0 Novo ‘Testamento o faz. repetidas 5 Veja Moma HOOKER, Jesus and the Servant, London, SPCK, 1959. 6 WILLIAMS, op. cit., p. 230. vezes — uma compreensio da morte de Jesus como expiag4o com 0 conceito de exemplo. Muitas das passagens neotestamentdrias centrais sobre expiagéo fazem exatamente isso. 1 Pedro 2.21-24 € uma excelente ilustragao: Pois para isto vocés foram chamados, porque Cristo também sofreu por vocés, deixando-lhes um exemplo para que sigam seus passos. Ele ndo cometeu pecado; nao se achou malicia em sua boca. Quando foi ultrajado, nao revidou com ultraje; quando sofreu, njo fez ameagas, mas confiou-se Aquele que julga com justiga. Ele mesmo carregou nossos pecados em seu corpo no madeiro, para que morréssemos para o pecado e vivéssemos para a justica. Por suas chagas vocés foram sarados, Mesmo as duas tinicas passagens do Novo Testamento que falam diretamente do sacrificio de Jesus como oferecido ‘ta Deus’’, Ef 5.2 e Hb 9.14, parecem mais preocupadas com a natureza exemplar desse sacrificio do que com qualquer espécie de mecanismo propiciatério, Na passagem de Efésios somos exortados a ser ‘‘imitadores de Deus, como filhos amados. E andem no amor, como Cristo nos amou e se entregou por nds, como fragrante oferta e sacrificio a Deus.” A passagem de Hebreus faz uma afirmacao semelhante. O sacrificio cultico € limi- tado, purificando somente a “‘carne’’, isto ¢, efetuando apenas uma purificagdo titual. O sacrificio de Jesus, porém, ‘*sem macula a Deus’’, deveria “muito mais’’ purificar a consciéncia de obras mortas para servir ao Deus vivo. Isto quer dizer que © tipo ctiltico de sacrificio est4 voltado para 0 passado, lidando com as impurezas rituais causadas por agdes passadas. O sacrificio de Jesus “‘por todos”, “por nés”’, abre um novo futuro: pode-se servir ao Deus vivo de coragiio, sem se preocupar mais com ‘‘obras mortas’’! Se se interpreta o “por vocés’”” como a abertura desse novo futuro, néio se precisa mais separar 0 que tantas vezes foi dividido na tradiga0: a obra expiatéria e o exemplo. Mas 6 para os escritos de Paulo que se tem que olhar para encontrar a mais concentrada ¢ sistemitica exposiciio do significado da cruz ¢ ressurreigiio de Jesus. Os escritos de Paulo estio tomados por uma percepcio da total loucura e ofensa da crueldade e humilhacao da crucificag&o e da natureza surpreendente da reversio ocorrida na ressurreigéo. E com isso que ele confronta incansavelmente seus ouvintes Jeitores. Paulo estava muito consciente da realidade disso tudo e considerava-o parte integrante da esséncia. Martin Hengel o expressou bem: Quando Paulo fala da “‘loucura’’ da mensagem do Jesus crucificado, cle nao esta, portanto, falando em enigmas ou usando uma cifra abstrata. Est expressando a dura experiéncia de sua pregagéio missionaria e da ofensa por ela causada, em particular a experiéncia de sua pregacdo entre ndo-judeus, com os quais seu apostolado estava preocupado de modo especial. A razdo pela qual, em suas cartas, ele fala sobre a cruz sobretudo num contexto polémico é que, deliberadamente, quer provocar seus oponentes, que tentam atenuar a ofensa causada pela cruz. Assim, de certa maneira, a “palavra da cruz” € a ponta de langa de sua mensagem. E porque Paulo ainda entende a cruz como o instrumento real ¢ cruel de execugiio, como o instrumento da execugio sangrenta de Jesus, é impossivel dissociar 0 discurso a respeito da morte expiat6ria ou do sangue de Jesus dessa ‘‘palavra da cruz”. A ponta nio pode ser 32 removida da langa. O complexo da morte de Jesus é, antes, uma tinica entidade para 0 apéstolo, em que ele nunca esquece o fato de que Jesus nio teve uma morte suave como Sécrates com sua taga de cicuta, muito menos faleceu “‘velho e repleto de anos" como os patriarcas do Antigo Testamento. Morreu, antes, como um escravo ou criminoso comum, cm tormento, no madciro da ignominia. O Jesus de Paulo nao morreu simplesmente de uma morte qualquer; ele foi ‘‘entregue por todos nés”” na cruz, de modo cruel e desprezivel.” Para Paulo, a proclamacdo da cruz é crise, a crise escatolégica, o fim absoluto e o novo inicio. Em suas préprias construg6es, ele nao parece falar tanto da morte de Jesus como sacrilicio pelo pecado ou come resgate. Também no se demora no conceito de culpa © perdao que deriva da cruz, Como jé observamos, Paulo cita as tradigées jé existentes com visivel aprovagdo nesse sentido, porém no 0 persegue em seu préprio pensamento. Antes, para ele a cruz é crise total, 0 fim das coisas velhas, 0 quebrantamento dos poderes demoniacos e a abertura de algo novo, a vida de amor e liberdade. O ‘‘por nés’’ significa ‘‘em nosso favor”, anova vida *‘em Cristo’, ‘‘no Espirito’’. Ele tem a ver com o futuro, com a nova era. Portanto, Paulo se opée inflexivelmente a toda e qualquer tentativa de evitar, ficar aquém, passar por cima ou desviar-se da cruz em sua realidade e seu caréter ofensivo. Ao lidar com um legalismo judaico-cristio que fica aquém da cruz (Galatas), ele prega o evangelho da total liberdade que a cruz traz, da cruz como fim da lei. Jesus suportou a maldicéo da lei em sua prépria morte maldita — efetivamente. Agora tudo isso passou; veio a fé; todas as distingdes esto abolidas a liberdade esta dada. Se, em outro caso, Paulo se defronta com um perfeccionismo ou arrogante entusiasmo que pensa ter ultrapassado ou saltado por cima da cruz para uma vida ressurreta jd no presente (1 Corintios), ele prega a total loucura de ‘‘Cristo, e do Cristo crucificado”, para julgar e destruir toda essa presungao prematura. Os cristéos nao podem ser melhores do que seu Senhor crucificado. Nao se pode saltar por cima da cruz. Jesus traz de fato 0 novo, mas através da cruz, ndo passando ao largo dela. A perfeigdo ainda nao chegou, ¢ 0 mundo esté em dores de parto até a consumagao escatoldgica, Ou ainda, se hd quem queira considerar o Jesus terreno uma espécie de “homem divino’’ de procedéncia grega, um her6i carismatico e fazedor de mila~ gres cujo poder carismatico se pode possuir c usar para a propria vantagem e gloria (2 Corintios), Paulo prega mais uma vez o Cristo humilde ¢ menosprezado e fala de um poder que se manifesta em fraqueza e loucura. Nao se pode evitar a cruz, desviar-se dela, passar por cima dela para chegar a uma consumagiio prematura. A cruz é juizo e graca iltimos. O novo vem através da cruz, nao passando ao largo dela. Ser beneficidrio, herdeiro da obra de Cristo € estar ‘‘em Cristo’, pela fé, ser ‘‘batizado para dentro de sua morte’’, a fim de compartilhar da esperanca de sua ressurreigao. 7 HENGEL, op. cit. pp. 89-90. Quando, pois, Paulo quer descrever 0 novo que brota da obra de Cristo, pode simplesmente dizer que a 1€ veio, a fé nascida da vergonha, ofensa e fraqueza da cruz, em que o amor de Deus por todos esta oculto dos sdbios desta era, mas revelado aos que créem. Talvez nao seja inexato dizer que, na concep¢ao de Paulo, Cristo coloca os seres humanos na mesma crise escatolégica manifesta nos relatos dos evangelhos, mas que (pelo menos nas cartas existentes de Paulo) a crise vem predominantemente na cruz, nio tanto na vida do Jesus histérico como tal. Obvia- mente, Paulo nao podia escapar do choque causado pela cruz € sua ofensa. Ele nao podia simplesmente anular 0 fato de que esse crucificado era aquele que foi aprovado ¢ vindicado por Deus. A disposicio e a capacidade da teologia ou da vida crista de serem transformadas pelo “‘/ogos da cruz” constituem o teste de sua viabilidade. O fato abalador, para Paulo, era que toda a histéria de Deus com Israel tinha levado a colina de Gélgota. O ‘‘guardiio” (Gl 3.24) os tinha levado aquele lugar medonho. Foi 0 fim — e a possibilidade de um novo inicio. Resumindo, podemos dizer com seguranga que 0 material neotestamentario apresenta diversas correntes de interpretacio. Uma corrente, talvez a mais antiga (cujos indicios se encontram nas fontes de ditos), interpreta a obra de Jesus em grande parte como a de um profeta ou mestre que sofreu o mesmo destino de todos os profetas genufnos no meio do poyo de Deus: foi rejeitado e morto. Ja esta implicito nisto, contudo, o elemento de juizo sobre as pessoas que se recusam a aceitd-lo. Os juizes sio julgados em Jesus. Isso constitui a base do que se poderia chamar a proxima corrente ou camada da tradigéio: a vida e morte de Jesus tém significado apocaliptico ou escatoldgico. A ressurreigdo evidencia isso. Sua morte nao é simplesmente um acidente hist6rico; faz parte do drama apocaliptico do final dos tempos: nele e em sua mensagem se revelou 0 juizo definitivo. Isso significa- ria também que sua vida e morte tém significado soteriolégico: as pessoas que 0 aceitam terao condigdes de subsistir no dia do juizo. Uma terceira corrente da tradigao fala da obra de Jesus mais diretamente em termos sacrificais. Sua morte € um sacrificio, uma expiagdo, um resgate, ““por nds’’, “‘por nossos pecado: Nao ha diivida de que essa corrente tenta superar a quase intransponivel antipatia em relagdo a vergonha ¢ ofensa da cruz recorrendo a material biblico tradicional (0 ritual ciiltico, o servo sofredor, os salmos, etc.) para mostrar que Jesus morreu “de acordo com as Escrituras’’. Ele cumpriu ¢ terminou ‘‘de uma vez por todas’’ o rito sacrifical, E esta corrente que desfrutou do mais amplo desenvolvimento na tradigao dogmitica subseqiiente. Em quarto lugar, temos que apontar para o “Jogos da cruz’’ paulino. Na fraqueza, loucura, vergonha e ofensa da dolorosa e humilhante morte de Jesus na cruz, Deus chegou ao juizo final e definitive sobre a humanidade, 0 mundo, os deménios, os “‘espiritos rudimentares’’, a criagio inteira. As pessoas que morrem com Jesus e 0 recebem em sua abscondidade, humilhacao e fraqueza sero ressuscitadas nele para novidade de vida. O caminho passa através da cruz para a ressurreigio nele. Ele é juizo e graca tiltimos. Este €, resumindo brevemente, o material neotestamentdrio. Vamos ver agora 0 que a tradi¢&o dogmatica subseqiiente fez com ele. 34 Satisfacao vicdria da justica de Deus A coisa mais préxima de um dogma da expiagio que surgiu ao longo dos anos no Ocidente foi a doutrina da satisfagio vicdria. Elaborada primeiramente por Anselmo de Cantuaria (1033-1109) e refinada ao longo do tempo, ela tornou-se padréo para os grandes sistemas da escolistica medieval e para a ortodoxia protestante, continuando a exercer esse papel para a maioria dos cristéos conser- vadores. Sua “‘solidez interna’’ fez dela a “‘semente de cristalizagao’’ para o pensamento sobre a expiagao’. Ela parece ser pressuposta tanto pelos documentos confessionais da Reforma quanto pelo Concilio de Trento, e quase foi elevada ao nfvel de dogma formal pelo Vaticano I’. Antes de Anselmo, a soteriologia era definida principalmente em termos de conhecimento: Cristo dé o verdadeiro conhecimento do ‘*/ogos eterno”, em con- traposigfio ao falso conhecimento ¢ especulagdo dos gnésticos. O conhecimento, entretanto, prova ser um modelo inadequado para levar em consideragio a vida ¢ 0 destino histéricos efetivos de Jesus. Com demasiada facilidade, pode-se desen- volver uma visio dicotomizada, em que a his se converte em mera alegoria ou aparéncia da gnose transcendente. A hist6ria real e a ofensa da cruz podem tornar-se um embarago. Os gnésticos, é claro, espiritualizavam totalmente — alguns, como Basilides, sustentavam que o “redentor gnéstico’” abandonou Jesus, deixando apenas ‘‘o homem”’ para ser crucificado. Os tedlogos crist&os queriam avancar além do gnosticismo e atribuir signifi- cacio teolégica a histéria efetiva. O modelo do conhecimento, contudo, causava dificuldades. Trés possibilidades pareciam se oferecer. A primeira consistia em fazer da vida histérica um “modelo” ou ‘‘caminho’’. Conformando-se 20 modelo, especialmente até 0 ponto do martirio, ver-se-4 Deus assim como 0 martir Estévao o viu. A primitiva teologia dos martires, os apologetas e, até certo ponto, a posterior teologia antioquena foram influenciados por essa opgdo. Uma segunda tendéncia consistia em substancializar 0 modelo e ver a encarnacdo como a juncio do ‘‘logos etemo” e da carne hist6rica, de sorte que, participando do **Det homem’’ sacramentalmente, recebemos **o remédio da imortalidade’’. Uma tercei- ta possibilidade consistia em deduzir uma espécie de ordem Id6gica interna dos pr6prios fatos hist6ricos — ou em introduzi-la neles! —, de modo a chegar & i **. Pensamos aqui em Irineu. O problema com todas essas tentativas de atribuir significancia 4 propria hist6ria é que nfo se cura a visdo dicotomizada. Ainda se olha, através da historia, para o ideal. A énfase tende a deslocar-se da agiio, da histéria, para o ser do Deus- homem, para a ‘‘unido das duas naturezas”’. Mesmo em Irineu ¢ na teologia da recapitulagio — Jesus repete os estigios do crescimento humano, vencendo onde 8 Friedrich R. HASSI op cit, p. 84 9 ID, ibid. . Anselm von Canterbury, Leiprig, W. Engelmann, 1852, vol. 2, pp. 608-9, ap. KESSLER, Adio sucumbiu ao tentador — o olhar atravessa a historia. Todos os acontecimen- tos tm o mesmo sentido". Quando se sistematiza a histéria, olha-se através do escindalo da cruz, e a histria é de fato transcendida pela gnose"'. Havia também as varias imagens da expiagao, como a do resgate pago ao diabo ou a da reconciliagéo através do sacrificio. No entanto, elas nao receberam um tratamento dogmitico sélido e nao explicavam a necessidade da obra de Cristo”. Orfgenes, por exemplo, que foi uma fonte fecunda de muitas dessas idéias, as considerava mais quadros instrutivos para a pessoa simples do que doutrina para 0 gnéstico consumado". Anselmo foi o primeiro a colocar a pergunta pela necessidade do aconteci- mento efetivo da cruz e, assim, o primeiro a colocar a pergunta soteriolégica como tema especifico em si. Sua pergunta é ‘Por qué?’’ Cur deus homo (por que o Deus-homem?), seu principal tratado sobre a expiacao, persegue implacavelmente a questo da necessidade — nao apenas a necessidade a posteriori de imagens anteriores, mas uma necessidade a priori deduzida racionalmente". Ele pretende demonstrar as razGes absolutas tanto da necessidade de um Deus-homem quanto da necessidade de que a salvacdo ocorresse exatamente da maneira como ocorreu> Quer demonstrar que a expiagio tinha que ocorrer da maneira como ocorreu', Anselmo descarta tanto a teoria da recapitulagdo quanto a idéia de um resgate pago ao diabo por julgé-las insuficientes (ainda que nao erradas). Uma teologia da recapitulagao, trabalhando com imagens contrapontisticas, possui apelo estético, porém nao da razoes substanciais para a cruz. Ela € como pintar ‘tem nuvens ou na agua” (Cur deus homo, 1,4). Falar do engano e da derrota de Satands € igualmente insuficiente, pois nao explica por que 0 Todo-Poderoso teve que passar por tantos apuros para derrotar inimigos, Nao poderia Deus ter simplesmen- te esmagado Satands e libertado os cativos por decreto divino (ibid., 1,1, 5, 6, 7)? Por conseguinte, a resposta & pergunta “Por qué?”” precisa estarem Deus, numa necessidade imposta a Deus em relaciio com a criagdo cafda. Os contornos basicos da argumentacio de Anselmo sao bastante simples. Nao ha diivida de que a simpli- cidade a recomendou 3 dogmitica ao longo dos anos. A criatura racional deve a Deus, 0 Criador, uma resposta total. O pecado & uma recusa a dar essa resposta e, assim, uma desonra de Deus, uma ruptura da ordem da criagéo. Além disso, visto que se deve obediéncia total, um simples retorno a obediéncia nao sera capaz de pagar pelos pecados passados. S6 se pode efetuar a restituigio 4 honra divina devolvendo mais do que a obediéncia total devida”. A situacdo parece irremedidvel. 10 tid, p. 35. 1 Ibid, p. 55. 12-V. infra e ibid, p. 75. 13 Ibid., pp. 75ss. 14 Ibid, pp. 139s 15 ANSELMO, Cur Deus Homo, pretiio. 16 KESSLER, op. cit, p. 145. 17 ANSELMO, op. cit, 111 36 Mas e Deus? Nao pode cle simplesmente perdoar? Se assim fosse, nio haveria necessidade do Deus-homem. Em conseqiiéncia, Anselmo insiste que nio € possivel ou apropriado que Deus simplesmente perdoe. Tal misericérdia cance- laria a justiga e a ordem por causa de sua arbitrariedade; 0 pecado e a justiga estariam no mesmo nivel, ¢ 0 resultado seria 0 caos. Para proteger a honra divina ea ordem criada, precisa-se achar alguma outra saida'®. Desta maneira, Anselmo chega a sua grande alternativa: aut poena aut satisfactio (ou punicao ou satisfagdo). E claro que Deus poderia punir o pecador. A punigao, porém, significaria destruigdo, frustrando, assim, a esperanga de Deus para a criacéo — nao restaria ninguém para substituir os anjos caidos no paraiso. Assim, para que a criatura nao seja punida, deve ser prestada satisfagio a honra divina”. A criatura deve fazer isto, mas nao pode; Deus poderia fazé-lo, mas nao deve; em conseqiiéncia, a tinica solugao é 0 Deus-homem. S6 alguém que 6 sem pecado pode prestar a Deus uma satisfacdo que seja mais do que o pecador é obrigado a dar. E uma necessidade. A necessidade € satisfeita por Jesus Cristo. Como Deus-homem sem pecado, nao incumbe a ele morrer. Entregando-se voluntariamente a morte, ele dé mais do que era exigido. Sua morte vale mais do que qualquer coisa que nado é Deus. Tao grande sacrificio merece uma recompensa. Como Deus-homem, porém, ele nio necessita de recompensa. Por isso, pode da-la aqueles por cuja causa se encamou. Os que receberem seus méritos serio salvos. Essa € a satisfugo vicdria da honra divina. A principal questo legada & tradig&io dogmatica subseqiiente pela construgdo de Anselmo — ¢ deveriamos ter em mente que Anselmo estava perfeitamente consciente dela, pois é repetidamente apresentada pelo interlocutor, Boso — € a questo da misericérdia. Se Deus é satisfeito como isso é misericérdia? Antes de continuar a insistir na pergunta, temos que dar a palavra a Anselmo. Ele conclui dizendo a Boso: Agora encontramos a compaixiio de Deus que te parecia perdida quando considerd- vamos a santidade de Deus e 0 pecado do homem, encontramo-la, digo, to grandio- sie to coerente com sua santidade, que esté incomparavelmente acima de qualquer coisa que possa ser concebida. Pois que compaixio pode exceder estas palavras do Pai, dirigidas ao pecador condenado a tormentos etemos e sem ter como escapar: “Toma meu Filho unigénito e faz dele uma oferta para ti°*, ou estas palavras do Filho: ‘“Tomem-me e resgatem suas almas""? Pois so estas as palavras que pronun- ciam quando nos convidam e nos levam a crer no evangelho.”” Observe como as palavras de Anselmo refletem o sacrificio da missa. A doutrina de Anselmo representa uma aguda juridizagao da obra de Cristo —— alguns a chamam de latinizacdo”. Para dar a hist6ria efetiva necessidade ibid., 1,12. 19 Ibid, 1,13. 37 racional, Anselmo é compelido a recorrer a idéias do Ambito da lei e da justiga”. O relacionamento entre Deus ¢ suas criaturas é entendido em termos de ordem legal, de uma iustitia commutativa’. O pecado é menos uma questdo pessoal do que uma questao objetiva e legal. A relacdo de Deus com ele nao € tanto de ira — Anselmo nunca fala da ira de Deus —, mas é determinada pela Idgica da ordem. Assim, a possibilidade de expiagao torna-se dependente de se efetuar uma restituigdo equivalente; 0 pagamento deve ser igual a divida. ‘A ordem permeada pela iustitia commutativa torna-se, dessa maneira, uma lei impiedosa, na qual — sem 0 agente da satisfacao provide por Deus — parece nao haver remédio possivel.””* Responde Anselmo com éxito ao porqué do terrivel acontecimento da cruz hist6rica? Pode a necessidade ser demonstrada dessa maneira? E claro que é possivel apontar furos na légica de Anselmo™. Como poderia a morte de Cristo ser necessaria ¢, ao mesmo tempo, um sacrificio livre e voluntério? Anselmo tartamudeia com veeméncia, ¢ nunca parece ter condigdes de resolver a questio. Como se pode demonstrar a equivaléncia entre a morte de Cristo e a exigéncia da honra divina? Anselmo tenta argumentar que, porquanto o mal da destruigéo do 0 de Deus é maior do que o mal de permitir a destrui¢io de toda a raga humana, a vida dele é um bem incomparavelmente maior do que a massa de todo © pecado e mal humanos, podendo, por conseguinte, ser oferecida como satisfagio equivalente®. Mas a légica nao funciona. E como tentar provar o valor de alguma coisa perguntando quao grande seria o mal de sua destruigao; pressupde-se o valor ja de antemio. Nao se pode demonstrar equivaléncia dessa maneira. Os problemas légicos da doutrina de Anselmo levaram a teologia posterior a abandonar sua insisténcia numa necessidade absoluta ou a priori de expiacao e, ao invés disso, a falar de uma necessidade relativa. Deus poderia té-lo feito de outro modo, porém 0 modo como efetivamente o fez foi o mais apropriado para dar um exemplo e despertar nossa esperanga’’. No entanto, é perigoso reter a idéia da satisfacdo vicdria sem a argumentagao de Anselmo em favor de sua necessida- de. A morte cruel de Jesus é um exemplo custoso. O protesto que Anselmo coloca na boca de Boso volta para assediar: **que o Altissimo se rebaixasse a fazer coisas tao humildes, que 0 Todo-Poderoso fizesse uma coisa com tal mourejo.””* Anselmo 22 Nao se deveria exagerar neste ponto, visto que Anselmo efetivamente trabalhou com o conceito agostiniano de ‘ordem, de matiz mais estetico, € nao com os conceitos de justica € let em sentido estrito, Nao obstante, permanece © fato de que Anselmo realmente ternou © conceito de justiga determinante para toda a sua soteriologia, de modo que se pode falar de uma juridizagio da ordo agostiniana. V. ID., ibid., pp. 130, 136. 23 Ibid. pp. 130ss. 24 Ibid. p. 134. Cf. ANSELMO, op. cit,, 1.24. 25. Veja John McINTYRE, St. Anselm and His Critics, Edinburgh, Oliver & Boyd, 1954. 26 Cur Deus Homo, 11,14. 27 KESSLER, 0p. cit., p. 168, ¢ também W. KASPER, Jesus the Christ, New York, Paulist, 1976, p. 220. 28 Cur Deus Homo, 18. Esta continua sendo ura refutagio-padrio — e a melhor — das teorias exemplaristas, Mais tarde, a ortodoxia protestanie 4 voltou contra os socinianos, Seria absurdo que Deus fosse a tal ponto meramente para oferecer um exemplo daquilo que todo o mundo ji sabia. Veja Hans Emil WEBER, Reforma- ion, Orthodoxie und Rationatismus, parte 2, “Des Geist der Onhodoxie", Giterslob, Gerd Mohn, 1951, p. 190, not. 5. 38 pode ter se arriscado longe demais, mas pelo menos estava certo em sua tentativa de insistir que a histéria, a vida e morte concretas de Cristo, era mais do que uma mera imagem ou exemplo de verdades ja conhecidas. Anselmo tinha razdéo em insistir que, na morte de Jesus, algo vital aconteceu ao relacionamento Deus — criatura. Os problemas mais sérios com a doutrina de Anselmo nao sao de ordem ldgica, mas teo-ldgica. O mais persistente deles 6 a questéo de justiga versus misericOrdia e suas conseqiiéncias para a doutrina de Deus. A tentativa de provar a necessidade da satisfacao leva a idéia de que a misericordia s6 pode ser exercida quando as exigéncias da justiga tenham sido cumpridas. Ora, se Deus tem que ser pago e foi pago, como pode ele ser misericordioso? Por que ndo pode Deus, 0 todo-poderoso, simplesmente perdoar? De fato, nés temos a ordem de perdoar nossos devedores; por que Deus ndo pode fazer 0 mesmo? Anselmo esta conscien- te das perguntas, pois Boso o molesta constantemente por causa delas. A resposta de Anselmo é, basicamente, que Deus néo pode usar a liberdade divina de modo inapropriado. Assim como € inapropriado que Deus minta, da mesma forma é inapropriado deixar o pecado sem punigdo”. Todavia, 0 raciocinio & questionavel. Mentir é de fato errado e seria inapropriado para Deus. Mas é errado ter miseri- cérdia? A misericérdia é de uma ordem diferente da mentira. A tentativa de provar a necessidade resulta inevitavelmente na elevacio da justiga por sobre a misericér- dia. Permanece a pergunta: se Deus foi satisfeito, onde fica sua misericérdia? Foi Abelardo (1079-1142) quem percebeu os pontos vulneraveis da argumen- tagio de Anselmo e ganhou a reputacao histérica de ser o grande antagonista de Anselmo, embora nao tenha elaborado uma alternativa completa ou coerente. Abelardo nao vé por que a justica precisa ser satisfeita antes que Deus possa ser misericordioso. Nao perdoou Jesus antes de sua morte? Acaso a cruel morte na cruz nio aumenta o pecado humano ao invés de compensa-lo? O que poderia servir de expiagdo para o assassinato de Cristo? Nao seria cruel e¢ injusto que qualquer pessoa exigisse sangue inocente como resgate ou se deleitasse de qual- quer forma com a morte do inocente, que Deus achasse a morte do Filho tio aceitavel que, através dela, se reconciliasse com 0 mundo”? Abelardo mostra claramente como a doutrina da satisfagao vicaria repercute em Deus. Ela restringe a liberdade de Deus e leva a uma imagem medonha e amedrontadora da divindade. Este resultado notével da empresa dogmatica deve ser observado cuidadosamente. A propria tentativa de construir uma teoria bem- feita sobre a reconciliag’o com Deus leva exatamente a seu oposto: aliena de Deus criando uma imagem amedrontadora dele. O ataque de Abelardo foi retomado e ampliado pelos socinianos na época da Reforma e mais tarde. A liberdade e 0 amor de Deus foram colocados em plano superior 4 justica, ‘“Pois Deus pode, especialmente por ser Senhor de tudo, 29. Cur Deus Homo, 112; cf. 124. 30 Veja R. S. FRANKS, The Work of Christ, New York, Thomas Nelson & Steis, 1962, p. 145, ¢ KESSLER, op. cit, p. 167, 39 abandonar tanto de seus direitos quanto lhe aprouver.’”*' A satisfagao € supérflua, e mais: sem sentido. Por que Deus haveria de pagar Deus? Além disso, a conta nao fecha. Como pode o sofrimento de um tnico homem ter mais peso do que a punigdo devida a toda a raga humana? Os sofrimentos de Jesus sao finitos, nao eternos. O que se exigia era morte etema, porém Jesus esteve morto sé trés dias. E assim por diante. A teoria néo cumpre 0 que promete: a necessidade justamente dessa vida ¢ morte. Os socinianos também revelaram 0 que até fiéis defensores contempordineos da doutrina admitem ser seu calcanhar de Aquiles: a idéia de substituigao”. A transferéncia do pecado de outrem para o inocente é absurda e imprépria, assim como, inversamente, a transferéncia da justiga de outrem para os injustos”. Uma Ultima deficiéncia, comum a ambos os lados, 6 a desconsideragao da ressurrei¢ao. Anselmo quase nao a menciona, podendo desenvolver toda a sua doutrina virtualmente sem ela. Também para os socinianos a ressurreigio na realidade nao tem fungao, exceto como uma espécie de promogao de Jesus como mestre-revelador para uma posi¢ao de valor e poder divinos. A doutrina da satisfacao vicdria ou, para ser mais exato, da punigio vicaria, adquiriu sua forma final nos grandes sistemas da ortodoxia protestante do século XVII. Ao passo que a pr6pria Reforma nao teve necessidade de prestar atengao especificamente 4 questao da expiagao, visto que a doutrina nao era controversa em termos explicitos, os teGlogos do final do século XVI e do século XVII tiveram que claborar as implicagdes da doutrina da justificagdo ¢ contender com os soci- nianos. Isto levou a uma formulacao final da doutrina iniciada por Anselmo. O desenvolvimento da doutrina da justificagdio como decreto forense condu- ziu a uma juridizag%io da expiagio ainda mais rigida do que a de Anselmo. O conceito da lei como caminho de salvaciio fixo e eterno toma o lugar do conceito agostiniano de ordem, que possui matiz mais estético. A lei é compreendida como um plano objetivo de ordens e proibigdes, um catélogo do que deve ser feito ¢ ndo deve ser feito para alcangar a salvacao™. Logo que isso ocorra, € mais facil fazer a ldgica da substituigao funcionar: alguém poderia cumprir para outrem os itens constantes no catélogo. Como subs- tituto, Cristo cumpre a lei em nosso Jugar. Isso ocorre *‘objetivamente”’, inteira e exclusivamente fora de nds, sendo, assim, 0 pressuposto da justificagéo forense. Jesus satisfaz as exigéncias da lei divina, da ira e justiga de Deus, 0 juiz totalmente rigoroso’’. Essa construgdo também possibilitou a esses tedlogos insistir mais inflexivelmente do que o proprio Anselmo na necessidade absoluta da satisfagio e, p. 365. A énfase na liberdade de Deus verificdvel em Socinus e seus seguidores geralmente é atribuida & influéacia de Duns Escoto. 32 Osmo THLILA, Das Strafleiden Christi, Helsinki, 1941 (AASE, 48), pp. 67-8. 33 WEBER, op. cit. p. 185. 34. Veja Lauri HAIKOLA, Studien zu Luther und zum Luthetum, Uppsakt, Lundequistska, 1958 (UUA, 2), pp. 9, 106. 35 WEBER, op. cit.. p. 198: também Heinrich SCHMID. The Doctrinal Theology of the Evangelical Lutheran Church, 3, ed., Minneapolis, Augsburg, 1899, p. 347. 40 assim, refutar os socinianos. Visto que Deus ameagou Addo e Eva com a morte no jardim, ele teria mentido se nao tivesse executado essa sentenca®. Deus, insistiam muitos, nao podia perdoar sem satisfagdo. Seu amor e misericérdia néo sao ‘‘absolutos’’, ¢ sim “‘ordenados’’, isto é, possiveis apenas dentro dos limites estabelecidos pela satisfagao de Cristo. Deus de fato amou jé desde toda a eternidade a raca humana inteira, mas nao absoluta e incondicionalmente, e sim ordenadamente, a saber, em seu Filho amado. (...) Portanto, essa afei¢io ou amor ordenado de Deus pressupde necessariamente sua ira, de modo que esse amor em Deus nao poderia ter um lugar, a menos que, igualmente desde toda a eternidade, tivesse sido feita satisfagdo a essa ira ou justia divina através do Filho, que, desde a eternidade, se ofereceu como mediador entre Deus ¢ o homem.” Deus é 0 juiz justissimo que exige, “‘de acordo com o rigor de sua infinita justiga’’, um prego infinito de satisfagao** O protestantismo ortodoxo também foi além de Anselmo ao renunciar a distingio entre satisfagdo e punigdo. Cristo sofre a punigdo merecida por nés sob a ira de Deus. Punigao e satisfagdo sao mais ou menos equiparadas. Também aqui a concepcao de Anselmo é legalizada, simplificada e tornada mais penal em seu caréter — ao mesmo tempo em que é aprofundada. Esses tedlogos nao necessitam da idéia anselmiana de satisfagéo por meio do sacrificio voluntario de algo mais do que 0 pecador € obrigado a dar, nem se perturbam tanto com a contradigao do. elemento voluntério versus 0 necessdrio no sacrificio” Eles podem simplesmente dizer que Jesus sofre a punigao devida ¢ que, porquanto ele também € divino, scu sofrimento tem valor infinito” No entanto, nao se diz nada de novo a respeito dos problemas da substitui- do: como 0 sofrimento e a obediéncia de um podem ser transferidos para outro. Eles simplesmente se contentam com o testemunho biblico de que isso aconteceu “por nés”’. A substituico permaneceu o calcanhar de Aquiles da doutrina. A contribuigZo mais original do ensinamento da ortodoxia protestante foi a distingio entre o sofrimento e obediéncia passivos e ativos de Cristo. A obra de Cristo ndo consistiu apenas num sofrimento passivo sob a lei e a ira, mas também num cumprimento ativo da lei por néds em sua vida", Embora este fosse um passo na diregdo certa, visto que representou uma tentativa de atribuir significado sote-' 36 SCHMID, op. cit, p. 347. 37 Leonhard HUTTER, Loci communes theologici, 41S, ap. ibid., p. 148. 38 Johann Andreas QUENSTEDT, Theologia didactico-polemica, 11,227, ap. ibid. 39 ‘Neste sentido eles seguiam Lutero, que também dispensou a distingo entre satisfagao e punigao. Para Lutero, cla era inteiramente sem sentido, uma vez que, como veremos, cle inverteu diregiio. Se Ans punicio porque ela significaria destruigao, Lutero dizia que é justamente isso que acontece, Jesus ‘Pornése, nfo obstante, vence. A ortodoxia, porém, legalizava « punigaoe tendiaa nao atinar o que Lutero queria dizer. 40 SCHMID, op. cit, p. 359, 41 Johann GERHARD, ap. it 41 riolégico no s6 4 morte, mas também 4 vida de Jesus, teve o infeliz efeito de legalizar também sua vida. A soteriologia amadurecida da ortodoxia protestante foi codificada finalmen- te na doutrina do triplice officio de Cristo: Profeta, Sumo Sacerdote e Rei. Esta doutrina virou propriedade comum de virtualmente todas as dogmiticas protestan- tes e cat6licas romanas, conquanto os catélicos geralmente falassem de Pastor em vez de Rei. Como Profeta, Cristo proclama a salvagdo; como Sacerdote, oferece a si mesmo e intercede eternamente; como Rei, governa, preserva ¢ dirige todas as coisas. A doutrina do triplice minus também mostra uma tentativa de estender a soteriologia para além da morte de Cristo. Nao obstante, a énfase principal perma- neceu no oficio sacerdotal, e é de se duvidar que, em ltima andlise, a doutrina proporcione muita ajuda” O triunfo do amor de Deus A doutrina da satisfacdo ou punigao vicdria sempre sofreu vigorosa resistén- cia na tradicio, em nome do amor e misericérdia de Deus. Todavia, 0 protesto sempre tem dificuldade em assumir uma forma positiva convincente. Se Deus pode perdoar antes da morte de Jesus, que sentido tem ela? A dificuldade é evitar a redugio do acontecimento de Cristo a um mero exemplo, a uma ilustragao de uma verdade conhecida geralmente. Quando Jesus se converte apenas em mais um. mestre, nao importa quao impressionante, nio ha nada de novo no Novo Testa- mento. Jesus nao faz nada que alguém outro nao pudesse fazer. A critica dirigida contra a satisfagdo vicaria pode muito bem recair também sobre esta concep¢do: Deus deve ser particularmente sem coragao para ir a tal ponto s6 a fim de dar um 42. ID,, ibid., pp. 3405s. A doutrina do triplice oficio, embora bastante preeminente na dogmitica mais antiga — mesmo entre os liberais (que. no entanto, geralmente a reinierpretavam para que se encaixasse em seu esquema particular) — nao é tratada com benevoléncia pelos tedlogos dogméticos contemporaneos. Ela tinha a vantagem de acentuar que, straves do oficio, Cristo estava exercendo um mandato dado por Deus, e nao fazendo alguma coisa alestoriamente, por mero capricho humano. Eli também tentava abranger 0 todo de vida € morte de Cristo hum dinico exquema conveniente. Ainda assim, parece tratar-se de um esquema artificial que niio contribui essencialmente para a compreensio di obra de Cristo. Ele pode até causar distodes quando as abstragdes comegam a excluir as realidades de sua vida através de especulagées sobre se ¢ quando ele teria usado seus poderes régios enquanlo esteve na terra, ele. A critica de Wemer ELERT expde os problemas. Em sua opiniao, 4 idéia do triplice oficio € uma ckissica aplicaglo errnea do esquema de promessa ¢ cumprimento, O cumprimento se torna cativo «kt expectativa. Jesus lende a ficar “‘aprisionado”” nos oficios do Antigo Testamen- to, O que é nove e melhor em Cristo é exatamente 0 que © distingue dos oficios, ndo 0 que tem em comum com eles, (Der chrisiliche Glaube, 2. ed., Berlin, Furchte, 1941, pp. 405ss.) Como Profeta, ele nao falou meramente a Palavra; ele era a Palavra, Como Sacerdote, nio ofereceu uma selegao de “cordeiros imaculados”” num ritual do templo: cle proprio foi moro “fora do avraial”, Como Rei, nao era umn déspota numa dinastia teocritica: ele vein para servir, sofrer, morrer. Hai algo de cruel ironia na tentativa de adornar Jesus com os aos quais ele resistiu e que, por fim, o destruiram. Ele nao era nada disso. A lei e os profetas eram até “a graca e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” (Jo 1.17), Portanto, nao parece atil para a Ccontinuar usando esse esquema. Por esta ra7d0, damos-lhe pouct atengao no que se segue. 42 exemplo, especialmente tendo em vista que todo o mundo ja sabe o que esta sendo ensinado, Ja as primeiras tentativas de articular essa assim chamada teoria da ‘‘influén- cia moral’’ sofrem dessa dificuldade. Abelardo falava de Cristo como aquele que perseverou até a morte na instrugdo do caminho do amor, vinculando-nos a si no caminho do amor de modo que também nés nada teméssemos no exercicio do amor. Deus nao é mudado; nés € que 0 somos*. Os socinianos nao levaram as coisas muito mais a frente. Cristo € a confir- macao da vontade de salvar que Deus tem. Sua vida manifesta a vontade de Deus de perdoar, e sua morte certifica 0 que é prometido sob a Nova Alianga. Ele é 0 profeta, o legado divino, que proclama o evangelho em nome e em lugar de Deus, 0 Logos que revela a vontade do Pai. A ressurreiga0 mostra como Deus liberta quem confia nele, ¢ Cristo é elevado a uma virtual dignidade ¢ poder divinos, embora permanega um homem. A fé € obediéncia a Cristo e imitagdo dele na esperanga de obter a vida etema como recompensa*. . ‘This reconstrugdes implicam uma completa moralizagdo da obra de Cristo. A estrutura basica continua sendo de ordem legal. O fato irénico é que, a despeito de toda a sua oposig4o, os antagonistas nesse grande debate geralmente s4o irmaos e irmas debaixo da superficie exterior. Para ambos os lados, 0 esquema basico é constituido por lei e recompensa. A tinica discussdo diz respeito a capacidade humana de cumprir 0 que é exigido. Para o tedlogo conservador, a criatura caida nao o pode fazer, razio pela qual necessita de um substituto, Para o tedlogo liberal ou adepto da ‘‘influéncia moral’’, a criatura s6 precisa de orientag&o e encoraja- mento. A discussao termina num empate. Um novo ponto de partida é necessdrio. Os grandes tedlogos do século XIX como Friedrich Schleiermacher e Al- brecht Ritschl procuraram oferecer um novo ponto de partida descrevendo a obra de Cristo como 0 estabelecimento de uma nova comunidade histérica em que a influéncia redentora de Cristo podia ser experimentada, elevando-nos acima do destino da vida meramente natural e empirica. Schleiermacher buscou um meio- termo entre a espécie de teologia representada pela satisfagao vicdria e aquela do tipo da infléncia moral’. Isto podia ser feito, pensava ele, vendo a atividade redentora de Cristo como 0 estabelecimento de uma nova vida comum a nds € a ele — original nele, nova e derivada em nos. A atividade his a de Jesus nao é€ mero exemplo; € 0 estabelecimento de uma nova vida corporativa numa comuni- dade histérica real. Para evitar tanto 0 moralismo quanto a satisfagiio vicdria, Schleiermacher depende de uma concepgao de religido baseada em algo diferente de categorias legais ou morais: a religido do *‘sentimento de dependéncia absoluta’’ ¢ a idéia da consciéncia de Deus. O pecado 6 aquilo que detém o livre desenvolvimento da 43 FRANKS, op. cit. p. 145, 44 ID., ibid., pp. 370ss; WEBER, op. cit, pp. 186ss. 45. Friedrich SCHLEIERMACHER, The Christian Faith, Edinburgh, T. & T. Clark, 1928, pp. 431-8. 43 consciéncia de Deus, 0 relacionamento apropriado entre o eu, 0 mundo e Deus. Pecado & a detengéo do poder do espirito pela carne. Na nova comunidade hist6rica, a redengdo é efetuada pela cumunicagdo da perfeigao sem pecado de Jesus. Isto nio quer dizer que, 4 moda de Kant, Jesus seja reconhecido como uma pessoa de excepcional exceléncia moral por aqueles que jd tm dentro de si 0 ideal moral. A comunicagio da perfeigo sem pecado é obra do proprio Jesus. Ele a comunica. Trata-se de perfeigéo, nfio apenas de melhoramento moral. Ele age sobre seus seguidores de tal maneira que cles sao atraidos para dentro da esfera de sua perfeigdo sem pecado. Esta fé & passada adiante através da histéria a partir dele, sob o poder de sua influéncia pessoal. Em circunstincias ordindrias, 0 poder ¢ influéncia de figuras histéricas diminuem com 0 tempo. Nao é 0 que acontece neste caso. A fé cristé depende da comunicagio da consciéncia absolutamente potente de Deus em Cristo como algo interior, mas derivado de fora na histéria®’, A perfeigio sem pecado de Jesus, a consciéncia absolutamente potente de Deus que se irradia de sua vida histérica, é 0 Urbild*, 0 ideal produtivo, manifesto no tempo e que cria algo novo. Jesus nao se limita a incrementar os impulsos morais que j4 temos. A perfeicio que dele irradia, condena por causa do pecado ao mesmo tempo em que coloca sob sua influéncia, A ‘‘graca’’ sé é recebida na comunidade. O que faz Jesus? Parece justo dizer que o significado de Jesus nao reside em qualquer coisa especifica que ele faga. Antes, tudo 0 que faz serve para ilustrar uma tinica coisa: sua perfeigio sem pecado e consciéncia potente de Deus. Até certo ponto a maneira de Irineu, Cristo é bem-sucedido em cada ponto no qual os seres humanos caidos fracassam. Os atos apontam para o caréter peculiar de seu ser. A magistral obra de Schleiermacher mostra a dificuldade de passar entre a Cila da satisfagao vicaria e a Caribdis da influéncia moral. A idéia da nova comunidade hist6rica (0 reino de Deus) é frutifera, e neste sentido Schleiermacher € um fundador da era vindoura na teologia. Mas a interpretago da obra de Cristo em termos de sentimento, consciéncia de Deus € perfeigao sem pecado resulta num Jesus que € um virtuose religioso, o herdi-artista que os roménticos tanto admira- vam. A despeito da paixiio de Schleiermacher por um Cristo que se comunica a nds de maneira histérica, humana e niio-docética, € dificil no suspeitar da presen- ga de pelo menos um toque de docetismo. Jesus sofre uma morte protegida. Ele manifesta o poder e consténcia de sua consciéncia de Deus até o fim, mantendo sua dignidade divina. O grito de abandono na cruz nao pode ser real. A morte nio estabelece nada de novo; meramente ilustra a verdade do sistema. Mesmo aqui 0 sistema ortodoxo e seus antagonistas sao irmios e irmis por debaixo da superficie. Os ortodoxos falam de uma natureza divina que garante o valor infinito do sactificio de Jesus. Jesus “‘oferece’’ seu sacrificio conhecendo o “‘sistema’’, Ele morre sabendo por que, e nao precisa perguntar. O sistema o protege do terror e desastre 46 ID, ibid., pp. 425-31. * N. do T.: Literalmente: imagem original. 44 de sua prépria morte. A cruz esté coberta com rosas. Schleiermacher pode rejeitar 0 discurso que fala de ‘‘natureza divina’’ e preferir ‘‘consciéncia de Deus’” “dignidade divina’’, porém o resultado 6 0 mesmo. Jesus néo morre realmente; demonstra sua consciéncia de Deus. Também isto é colocar rosas na cruz. Assim como no sistema ortodoxo, uma ressurrei¢do se faz supérflua. Albrecht Ritschl, 0 mais influente dos te6logos que tentaram redefinir a obra de Cristo em termos da nova comunidade historica, representa uma sintese entre a espécie de pensamento que se encontra em Schleiermacher e a teologia histérico- salvifica que surgia em fins do século XIX. Ele aprovava a énfase na comunidade histérica (o reino de Deus), mas rejeitou a religiao da dependéncia absoluta e seu monotefsmo abstrato por considerd-la demasiadamente metafisica ¢ impessoal. Para Ritschl, o Reino deve ser entendido em termos mais biblicos, histéricos, efetivos ¢ priticos. Para chegar a isto, tentou estabelecer varias distingées para diferenciar 0 reino de falsas altemativas. A mais procminente, para nossos propé- sitos, era a disting’o kantiana entre 0 tedrico e o pritico. A teologia tem a ver com © conhecimento pratico de Deus que se ganha na comunidade histérica e com a maneira pela qual ele nos relaciona com o mundo, nio com 0 conhecimento “teérico”’, “‘cientifico”’, “‘abstrato’’, “‘objetivo’’ ou *‘desinteressado’”’. O conhe- cimento pritico € “religioso’’, “‘ético”” e “moral”, um conhecimento que envolve a pessoa toda e seu modo de vida”. A religiao esté preocupada com elevar-se acima da mera ‘‘natureza’’ para chegar ao “‘espirito’’, acima da sujeigéo ao império da morte, da ‘‘carne’’, do “mundo”’, do tempo e da decadéncia para chegar 4 posigao de dominio®, Em Jesus, Deus da o tiltimo, decisivo e concreto passo histérico com a humanidade no estabelecimento do Reino, 0 verdadeiro dominio de Deus. Tudo provém da influéncia pratica de Jesus como pessoa histérica. Jesus revela Deus como Pai, como o Deus de amor de quem podemos nos aproximar com confianga. A ira é substituida pelo amor; ela s6 diz respeito & vida fora do Reino. Cristo atrai as pessoas para dentro dessa comunidade de confianga no Deus de amor que, na criagdo e na redencao, estabeleceu 0 verdadeiro telos para a existéncia humana: um reino em que todos estéo unidos a Deus em amor, a despeito de todos os impedimentos de ordem natural, fisica ou metafisica. Somos salvos de falsas concepgoes de Deus ao sermos atraidos para dentro da comunidade de amor por Jesus”. O que faz Jesus entao? A satisfagio vicdria deve ser rejeitada como exemplo clementar da mancira como a tcologia natural se introduz na teologia ¢ a distorce®. ‘Ao mesmo tempo, Ritsch! ataca a idéia de que Jesus ndo passa de um mestre ou 47 Albrecht RITSCHL, The Christian Doctrine of Justification and Reconciliation, Edinburgh, T. & . Clask, 1902; ef. « Introdugdo, pp. Iss. V. também, do mesmo autor, Theologie und Metaphysik, Bonn, Adolph Marcus, I881. Mais tarde, Ritschl usou a idéia de juizos de valor independentes para caracterizar a peculiari- dade das percepgées religiosas (Justification and Reconciliation, pp. 204-5), 48 ID., ibid., 1V.27, pp. 193ss. 49 RSCHAFER, Ritschl, Tibingen, J. C. B, Mohr [Paul Siebeck], 1968, pp. 112ss. 50 RITSCHL, Justification and Reconciliation, pp. A77%s. 45 exemplo. O perdao que ele traz nao € algo de se esperar, nem pode ser simples- mente deduzido do amor de Deus. Se assim fosse, a nova comunidade seria uma escola, ndo uma Igreja, e ndo se ultrapassaria o conhecimento tedrico. Perdio € reconciliago tém que depender ¢ provir da obra efetiva de Jesus, de sua vida, sofrimento ¢ morte, do efeito pratico da pessoa histérica. Esta posigdo é semelhante a de Schleiermacher. O pecado — resisténcia 20 dominio soberano e moral de Deus — forma um reino de oposigao maligna. Por causa do pecado, os seres humanos sentem culpa e experimentam o mundo e Deus como hostis, interpretando vicissitudes naturais como resultado da culpa. Por isso, aproximam-se de Deus de modo distorcido, confundindo natureza e espirito. Fora do Reino, os seres humanos nao estao reconciliados com Deus. Jesus entra neste mundo e sofre todos os antagonismos ao dominio de Deus que operam nos nao- reconciliados. Ele € fiel & sua vocagao até o fim. Sofre e morre sem ceder, e, assim, triunfa sobre tudo 0 que se opde ao verdadeiro dominio e telos de Deus. A idéia-chave é a ‘‘fidelidade de Jesus 4 sua vocagao’’ (Berufstreue). Em sua fidelidade, Jesus se eleva acima de todas as limitagGes naturais, nacionais e politicas, mesmo as do Antigo Testamento, transcendendo a expectativa de um mero bem-estar material, e introduz uma nova religiao ‘‘avangando seu significado para a humanidade até uma unido espiritual e ética, que corresponde a espirituali- dade de Deus e, a0 mesmo tempo, denota o fim supramundano das criaturas espirituais’’', Em sua fidelidade a sua vocagdo, Jesus desempenha um duplo papel. Ele é 0 revelador de Deus ao assumir uma posigiio que ‘‘corresponde & idéia do tinico Deus e ao valor do reino espiritual de Deus’’*. Ele também revela 0 verdadeiro homem ao ser alguém que, de acordo com esse conhecimento de Deus, adora e serve a Deus até o fim sem ceder A oposicaio do mundo. Assim, a morte de Jesus nao é vicéria no sentido tradicional, mas é uma morte sofrida em fidelidade 4 sua vocagio. Nao é © mero destino de morrer que determina os valores da morte de Cristo como sacrificio; 0 que toma e 0 de sua vida significativa para outros é sua aceitago voluntéria da morte infligida a ele por seus adversirios como disposicio de Deus, ¢ a mais alta prova de fidelidade 4 sua vocago. Assim, & impossivel aceitar uma interpretagao da morte sacrifical de Cristo que, sob a rubrica de satisfacao, combina de modo superficial sua morte € sua vida ativa, enquanto que, no fundo, atribui a morte de Cristo um sentido bastante diferente, a saber, o de puni¢do substitutiva.” Por sua fidelidade, Jesus estabelece uma comunidade de comunhio com Deus a despeito do pecado humano e de sentimentos de culpa. Na verdade, & s6 nesse novo relacionamento que realmente chegamos a reconhecer nosso pecado — nossa ignorancia de Deus e do verdadeiro dominio de Deus. O sentimento de culpa SE ID,, ibid., p. 455. 52 Ibid., pp. 455-6. 33 Ibid., p. 477. 46 nao é simplesmente removido, mas, pelo contrario, intensificado. Porém o poder do pecado e da culpa para separar-nos de Deus é superado no Jesus que revela 0 Pai como amor e nos atrai para a comunhaéo com Deus. Visto que é sé na comunidade histérica efetiva que esse relacionamento € realizado, ele deve ser visto como um relacionamento enraizado e fundamentado na agao de Cristo como fundador dessa comunidade. Em sua fidelidade, Jesus Cristo é 0 revelador perfeito, o fundador de uma religiao nova e perfeita, o triunfo do espirito de amor sobre a aatureza e o mundo. Ele assegura a vida mesmo contra o poder da morte™. Ritschl, biblicamente mais conservador do que muitos liberais, nao parece por de lado a ressurreigao ou ter quaisquer problemas com sua natureza miraculo- sa. AO mesmo tempo, sua insisténcia na natureza “‘espiritual’’ e “‘ética” da “religiio” de Jesus profbe dar demasiada importancia teolégica a tais milagres. As aparig6es do ressurreto tém apenas a fungaio de libertar os discfpulos da “errénea primeira impressio”’ de que ele estivesse sujeito ao destino da morte. A ressurteigio nfo traz nada de novo & luz; apenas reforga a idéia da vitéria do espirito sobre a natureza e é pouco tratada ou mencionada no desenvolvimento da obra de Cristo levado a efeito por Ritschl. O que dizer da posigio de Ritsch!? Em seu lado positivo, ela representa a recuperagio de muitos temas biblicos importantes: a centralidade do Reino, a rejeicéio da hegemonia juridica na compreensio da justiga de Deus, a paixio pelo aspecto éfetivo, ao invés do teérico, ao considerar a reconciliagfio. Ritschl de fato recuperou muita coisa que tinha sido sacrificada aos deuses da metafisica. Nega- tivamente, contudo, sua reconstrugdo padece, em boa parte, dos mesmos proble- mas que a de Schleiermacher. A preocupacao pelo aspecto efetivo e pratico o leva a inferpretar a expiacdo em termos da religiio da ‘‘razao pratica’’ e da “‘religiio ética’’ recolhidas em grande parte de Immanuel Kant e Hermann Lotze. O resul- tado é um Jesus que vem a ser o herdi dessa religiao, cuja influéncia é comunicada através da experiéncia subjetiva da comunidade. Diversas conseqiiéncias seguem-se entao. Visto que Jesus morte em “‘fideli- dade & sua vocagiio’’, ele tem que ser diferente de todos os outros na medida em que para ele nenhuma vacilago, nenhuma ruptura ou tentagdo profunda, nenhuma Anfechtung* € possivel. Ele tem que morrer a morte de um herdi, o herdi da religiao. O grito na cruz nao representa uma perturbagdo séria. Uma exegese sutil pode pd-lo de lado. O lamento do salmista, do qual o grito € tomado, é tao- somente de natureza hipotética; o salmista nado deve ser entendido como se efeti- vamente sofresse a ira de Deus, uma vez que, a0 mesmo tempo, clama a Deus pedindo libertagéo. O mesmo vale para Jesus. Quem invoca Deus como “meu Deus’ nao estd longe dele e certamente nao esta sujeito & sua ira®. Assim, o her6i no morre realmente, mas cumpre uma vocagfio. As rosas permanecem na cruz. 34 Ibid., p. 457. 56 ID., ibid., p. 63. 47 Além disso, nao ha maneira de lidar com a ira de Deus. A ira tem que ser banida pelo sistema, nao pela cruz e ressurreigao. Deste modo, a teologia de Ritschl torna-se apenas outra tentativa de remover a ira apagando-a teologicamen- te. Ele a remove do sistema e, assim, conduz a batalha contra a teologia natural e a metafisica na frente errada. O amor de Deus ameaga tornar-se mera banalidade. ‘Tudo isso resulta da tentativa de Ritschl de resolver os problemas da justifi cagdo e reconciliagéo igualando o pro me (por mim) de Lutero com a religiao pratica de Kant”, O “eu'? do pro me reformatério nao € o ‘eu’? da razio pritica de Kant. E, antes, 0 “eu’’ da eleigao divina que se confronta comigo ‘‘a partir de fora’’ na proclama\ O pro me nao concerme 4 fides qua creditur (a £6 que cré), mas a fides quae creditur (a f& que € crida). Qualquer pro me a parte do radical extra nos (fora de nés) esta equivocado e constitui um erro metodoldgico fatal. Todas as assergdes cristolégicas sio de fato assergdes pro me, porém todas as assergdes pro me também devem ser interpretadas cristologicamente*. As tentativas de reconstrugio efetuadas por Schleiermacher e Ritschl sao altamente instrutivas para a dogmitica. A tentativa de apreender a obra de Cristo como 0 triunfo histérico do amor de Deus € importante na énfase que dé a concretitude e efetividade. No entanto, ela fracassar4 se simplesmente acomodar- mos tal amor a possibilidades religiosas imanentes a esta era. A dimensao escato- légica se perde, e Jesus tora-se o heréi da religidio. A desolacdo e o desastre da cruz sio cobertos por todas as rosas teolégicas. Jesus € salvo da morte pela teologia, de modo que qualquer ressurreigao ulterior é em grande parte supérflua. _ Os teblogos. que prezavam a énfase dada ao amor de Deus pelos liberais ¢ a (a concepgao insuficiente, muitas vezes tomavam o rumo de aprofundar a idéia do amor para incluir a santidade de Deus. O amor de Deus, insistiam eles, nao é sentimentalidade banal; € amor santo, um amor moldado por moralidade e justiga, uma reagdo contra 0 pecado, A ira de Deus nao pode ser simplesmente apagada do sistema. A neces- sidade da cruz nao pode estar baseada apenas na vontade divina de amar, tem que estar baseada também na necessidade de satisfazer as exigéncias da santidade divina. © pensamento de P. T. Forsyth é um bom exemplo desse passo. Herdeiro, por um lado, da vasta literatura britinica sobre a expiagio (nenhum grupo de tedlogos esteve tio preocupado com a expiagdio como os britinicos ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX*) e, por outro lado, aluno de Ritschl, Forsyth propés- se combater a sentimentalizago e estetizagao que detectou em seus mestres liberais. Repetidamente, faz uma nitida distingao entre ‘‘Jesus liberal’’ e 0 ‘Cristo teolégico real”, Para realizar seu programa, Forsyth propés 0 que chama de 57_HLJ.IWAND, “Wider den Missbrauch des pro me als methodisches Prinzip in der Theologie™, ThL.z, 78:454-8, 1954, 58 ID., ibid, p. 455. 59 A lista & aparentemente interminivel: J. McLeod Camptell, R. C. Moberly, Robert Dale, James Denney, Hastings Rashdall, Robert Franks, para mencionar apenas alguns. Para um bom levantamento das discussées, vy. Robert S. PAUL, The Atonement and the Sacraments, Nashville, Abingdon, 1960, pp. 162-281. 6) V.,p.ex..P. T. FORSYTH, The Person and Place of Jesus Christ, London, Hodder & Stoughton, 19€9, pp. 7-8. 48 “‘moralizagio”’ do dogma. Aparentemente, ele viu nisso um remédio tanto para a metafisicalizagao abstrata de que se queixava Ritschl quanto para a estetizagio ou sentimentalizacgao dos proprios liberais. O que é necessario, insistia ele, nao é uma mera critica do dogma antigo, mas sim sua refundigdo numa nova forma para capturar sua profundidade e seriedade morais. O elemento juridico presente nas velhas doutrinas da expiagao tinha sido perdido devido a rejeigao — de muitas maneiras legitima — da satisfagao vicdria. O bebé tinha sido jogado fora junto com a dgua do banho. Para executar 0 programa da “‘moralizagao’’, Forsyth empregou 0 conceito da santidade divina: a auto-identidade pessoal e€ fidelidade imutavel de Deus a seu cu divino como o Santo. Tudo depende disso. ‘“Temos que despertar o interesse de nossas congregagdes”’, diz ele, ‘com a santidade de Deus tanto quanto a Igreja foi despertada primeiramente com a justiga e, ultimamente, com o amor de Deus’”*, Até a onipoténcia de Deus é limitada por sua santidade: 0 amor de Deus nao pode negar essa santidade”. A santidade de Deus dita o cardter da teologia e encontra seu eco na ordem moral do universo e na consciéncia dos seres humanos. “A encamagio, sendo para um propésito moral e nao metafisico, deve ser moral em sua natureza. (...) E téo-somente a experiéncia moral que pode e deve ditar a forma da teologia. O que Cristo faz é realizar uma nova criagio moral, uma nova criagao da alma moral.’"* A unidade da raga humana (uma idéia importante para Forsyth) é uma unidade moral, uma unidade de consciéncia. ‘‘O que faz do mundo o mundo de Deus é a ag4o e unidade da ordem moral de Deus da qual fala nossa consciéncia.’"* A ordem inalterével do mundo moral, manifesta na consciéncia, toma a humanidade universal. A “‘moralizagéo do dogma” leva Forsyth a expressar a obra de Cristo como obra de santidade redentora e a reintroduzir a dimensao juridica perdida no liberalismo™. Todavia, isto néo pode significar um simples retomo a idéias de pagamento e punicao vicarios ou equivalentes. Deus nado se paga. A graca nao se adquire. Nao pode haver transferéncia de culpa, ou sofrimento, ou punicao®. Necesséria, para Forsyth, é uma reconstrugao que retenha a seriedade moral das concepg6es antigas, mas as purgue de comercialismo. Em resumo, a concepgiio de Forsyth € a seguinte: vital é a passagem em que Paulo diz que “Deus estava em Cristo reconciliando consigo 0 mundo *’. O que 61 ID., The Work of Christ, FL, London, William Collins Sons, 1965, p. 85. 62 Ibid., p. 107: “Ele nao podia querer nada contra sua natureza sania, (..) Nada no Ambito da natureza divina podia possibilitarthe abolir uma lei moral, a lei da santidade. (..) Se o amor de Deus nao fosse essencialmente amor santo, no curso do tempo a humanidade deixaria de respeité-lo e, em conseqiéncia, de confiar nele. (..) O que o amor quer em resposta nio € simplesmente amor, mas respeito © confianga. (..) A santa lei de Deus € sua propria natureza santa. Seu amor esti sob a condicao do respeito etemo, FE inteiramente imutivel.’ 63 FORSYTH, The Person and Place of Jesus Christ p. 64 ID, The Work of Chaist, pp. 13, 114. 65 Ibid., p. 181. 66 FORSYTH, The Cruciality of the Cross, London, Independent, 1948, p. 41 49 ocorre em Cristo é a justificagio da santidade de Deus. Cristo, embora sem pecado, entra no mundo do pecado e, em solidariedade com ele, presta perfeita obediéncia a santidade de Deus e a confessa de modo perfeito. Como santo, Deus est4 preso & sua prépria vontade pessoal, que nao pode mudar ou relaxar. Mas, como Deus também € amor, ele deseja a reconciliagdo. Isto sé pode ser efetuado de tal maneira que a santidade divina seja perfeitamente mantida, confessada ¢ satisfeita. Cristo, por seu proprio consentimento ¢ obediéncia, é ‘feito pecado por nés"’, de modo que 0 tratamento merecido pelo pecado na verdade recai sobre ele. Sendo encontrado entre pecadores, ele aceita o juizo e, ao ir 4 sua morte, testemu- nha e confessa a santidade de Deus no mundo de pecado. Por conseguinte, 0 acontecimento da cruz de fato estabelece e revela neste mundo a santidade de Deus como santidade redentora, como amor sagrado, porque & revelada de tal maneira que pode ter um efeito santificador. A cruz dé A santidade o que lhe é devido, e, quando véem isto, os seres humanos sao feitos novas criaturas, inseridos no efetivo reino de santidade em Cristo. Na verdade, a estrutura do raciocinio de Forsyth é mais ou menos igual 4 de Ritschl. A diferenca é que a santidade tende a substituir 0 amor como fator decisivo, de sorte que ‘‘o moral”’ substitui o sentimento, O sacrificio de Cristo é obediéncia até a morte em identificago com o pecado humano, de modo a apresentar uma confisséo compulsiva da santidade de Deus e atrair 0 mundo para dentro dessa confissio. O que tem valor expiatério na morte de Jesus nado é 0 sofrimento vicério como tal, mas sua obediéncia como a soma de sua vida, ou, como Ritschl o teria dito, sua “‘fidelidade 4 sua vocagao’’ até o fim®’. Porém o objeto da obediéncia de Jesus nao é o amor, e sim a viséo da santidade de Deus que deve ser confessada entre os seres humanos. Neste sentido, pode-se até dizer que a morte de Cristo “‘satisfaz’’ Deus. Deus € satisfeito quando sua santidade é confessada. De fato, ele tem que ser satisfeito. ‘‘Pois um Deus nao-satisfeito, um Deus insatisfeito, nao seria Deus.’ O que faz com que a satisfagdo seja também amor é que Deus a faz. Ele envia Jesus para fazer isso por nés ¢ pelo mundo e para reconciliar-nos consigo. O problema da substituigao, o calcanhar de Aquiles das concepgdes mais antigas, € resolvido por Forsyth através de seu conceito do carater ‘‘solidério”” da obra de Cristo, como ele gosta de chamé-lo. A obra de Cristo nio é uma substi- 67 Na idgia da “obediéncia confessional de Cristo” santidade divina, Forsyth modificou certas comrentes do pensamento britinico sobre a expiagdo, McLeod Campbell tinha proposio que a obra expiatéria seja compreen- dida como uma perfeita e viciria confissio de pecado perante Deus. R. C. Moberly tinha proposto a idéia de uma peniténcia vicdria oferecida a Deus. A critica movida contra ambos era de que nem a contissio de pec nem a peniténcia podem ser oferecidas vicariamente por outrem, € que um Cristo sem pecado no poderia fazer nenhuma das duas. Forsyth modificou essas proposigies, dizendo que Cristo, como aquele sem pecado, niio confessa 0 pecado nem fiz. peniténeia vicdria; antes, justamente como aquele sem pecado, em solidariedade com 0 mundo de pecado e em sua obediéncia, ele confessa a santidade divina em sua morte. Ele, “que nao conhecia pecado", foi “feito pecado"” e, em obediéncia, confess a retidao do juizo de Deus sobre © pecado. S6 aquele sem pecado posia fazer isto. 68 FORSYTH, The Work of Christ, p. 165 50 tuigdo vicdria no sentido de que ele fosse uma terceira parte num relacionamento concebido de modo individualista. Os evangelhos mostram que Deus pode perdoar individuos penitentes com base na liberdade ¢ misericérdia divinas sem a cruz. Entretanto, tal arrependimento é inseguro enquanto nao repousa sobre algo de alcance mais universal. O que Cristo tem que fazer é reconciliar 0 mundo com Deus universalmente, fazer com que o mundo se ajoelhe perante Deus para ser perdoado. A obra de Cristo € solidaria porque tem a ver com o perdio do mundo, com 0 pecado solidario. Somente a cruz pode efetuar isso”. A necessidade de uma expiagdo de cardter objetivo baseia-se na concepgdo de Forsyth a respeito da ordem moral do mundo. Algo precisa ser feito para reparar e mudar essa ordem moral ¢ levar o mundo a confessar seu pecado solidario”. A obra de Cristo, portanto, ndo € a de um substituto dos individuos, e sim representativa, criadora de uma nova ordem”, Mesmo a idéia de ‘‘representagio”” é fraca demais. Para Forsyth, “‘penhor’” é um termo mais exato; Cristo é penhor para a raga caida, criando a santidade que falta”. O fundamento moral do mundo 6 alterado por seu ato, e, na medida em que se esté nele— nao simplesmente ensinado por ele —, tem-se parte na nova moral em que o santo amor de Deus é confessado. A obra de Cristo representa um novo estégio na histéria da criacio”. Esta notavel passagem resume a concepgao de Forsyth: Assim, no mesmo ato, a obra de Cristo triunfou sobre o mal, satisfez 0 coragio de Deus ¢ foi criadora em relagao & consciéncia do homem, em virtude de sua solida- riedade com Deus, por um lado, e, por outro, com a raga humana, Ele subjugou Satands, alegrou o Pai e estabeleceu 0 Reino na humanidade — tudo num tinico ato supremo e consumado de sua pessoa una. Ele destruiu o reino do mal, nio como forma de preparagio para 0 reino de Deus, mas realmente esiabelecendo 0 reino de Deus no ceme daquele. E ele alegrou, saciou e fez 0 coracao de Deus, nao por uma obediéncia estatutaria, ou por uma obediéncia privada para si mesmo, espetécu- lo este que disporia Deus a abengoar e santificar 0 homem; antes, ele o fez apresen- tando, no compendioso Ambito de sua propria pessoa, uma humanidade pré-santifi- cada pelo irresistivel poder de sua propria obra criativa e intemporal.”* Forsyth era explicitamente de opiniao que a obra de Cristo retine todos os aspectos mais tarde separados pelas varias teorias. A obra expiatéria de Cristo é “‘objetiva’’ porque cria 0 novo reino de santidade. B “‘vitoriosa porque esse reino é a derrota do mal em escala césmica. Ela também é “subjetiva’’ por criar em nds a santidade 69 ID., ibid., p. 155. A énfase & minha. 70 Ibid... pp. 107-9. 71 Ibid., p. 168. 72 Ibid., p. 170. 7B Ibid., p. 173. 74 Thid., p. 178. que agrada a Deus. Em Cristo, 0 Deus que é sempre amor nos santifica por santidade criativa, de modo que podemos ser tratados diferentemente”. Em muitos sentidos a obra de Forsyth constitui uma notavel realizagao — reafirmando dimensoes essenciais da obra de Cristo sem recorrer as caracteristicas mais objetdveis das concepgdes mais antigas. Sua insisténcia de que a obra de Cristo deve criar uma nova ordem, de que algo deve ser efetivamente feito na e para a ‘‘raga’’, representa um Util avango. A criagéo de uma nova ordem também ajuda a reunir as varias dimensées da expiaga “objetiva’’, a de ‘‘vitéria’’ ¢ a “‘subjetiva”’. Apesar de tudo isso, porém, ha algo desconcertante na reconstrugio de Forsyth. Nao hd dtivida de que isso reside na prépria natureza do programa: a moralizagiio do dogma. Isto leva ao emprego da santidade como categoria moral que determina o amor. E dificil escapar da suspeita de que a extensa sombra do “‘grande e sublime Kant’’ ainda paira sobre o empreendimento. Pode a santidade ser moralizada dessa maneira? Rudolf Otto nos ensinou a encarar tal medida com suspeicao”. A moralizacdo sempre implica um estreitamento e talvez. uma trivia- lizagdo do ‘*Santo’’”. Além do mais, quando o amor de Deus é determinado pela santidade moralizada ha uma perda pronunciada da escatologia neotestamentaria. Forsyth nao parece ter condig6es de dar importancia ao fato de que Cristo é o fim da lei para quem cré, ou 4 idéia de que 0 amor vence a ira. O resultado é uma ““nova ordem’’ que ainda tende a se parecer com o reino moral de Kant, emba- gando a distingao entre o reino escatolégico e um reino de lei e moralidade deste mundo. Neste sentido, Forsyth estava mais preso ao liberalismo do que gostaria de admitir. O papel relativamente secundério desempenhado pela ressurrei¢ao indica isto. Forsyth nao deixa de falar da ressurreigéo e de atribuir-lhe mais proeminéncia do que seus predecessores. Nao obstante, ele pode explicar a obra de Cristo em grande parte sem ela. Como em outros sistemas, a teologia é que salva Jesus da morte. Cristo morre em obediéncia, inteiramente consciente do 75 Ibid., pp. 162ss. Forsyth jé estava consciente dos diferentes aspectos (como ele os chamava) da obra expiat6ria de Cristo (0 aspecto de triunfo, 0 de satisfagao € o de regeneragao) e da necessidade de junté-los para formar uma unidade. O primeiro aspecto, 0 do triunfo, deve ser visto como condigo do segundo, o da satisfacio, este, por sua vez, do terceiro, o da regeneraciio, de modo que todos eles se condicionam mutuamente numa “interagio viva". “Essa uma ago da pessoa toda do santo Salvador foi, em seus varios lados, a destruigo do mal, a satisfagdo de Deus ¢ a santificago dos homens. E é nesse meio moral da santidade (se assim posso dizé-lo) que esses és efeitos passam um para 0 outro € atuam um no outro com uma. interpenetrago espiritual.”” (Ibid., p. 163.) 76 Rudolf OTTO, The idea of the Holy, London, Oxford University, 1923. (Trad. por: O sagrado, Sto Bernardo do Campo, Imprensa Metodista, 1985.) 77 John H. Rodgers sustenta que Forsyth no tenciona moralizar a santidade e que ele a entende, antes, como uma cexigéncia total em relagdo a existéncia humana, abrangendo tudo o que se €, pensa, sente e faz. A resposta & santidade divina no é moralidade, mas a obediéneia da fé que, em conseqiiéncia, afeta nossa conduta, Nio a dGvida de que isso é verdade. Mas nao teriam Schleiermacher e Ritschl dito exatamente a mesma coisa? A questdo ¢ se se pode realmente reparar o dano da teologia liberal dessa maneira. O proprio Rodgers tem que admitir que Forsyth nao é coerente e, repetidamente, complica as coisas ao identificar © moral com o santo. John H. RODGERS, The Theology of P. T. Forsyth, London, Independent, 1965, pp. 355s 52 sistema. O grito de abandono na cruz nao é 0 que parece: nao o grito angustiado de um homem moribundo, mas a confissio’concreta da repulsio do pecado por parte do Deus santo. E duvidoso que o Novo ‘stamento sustentaria tal interpre- taco. Jesus morre de modo demasiadamente parecido com um bom kantiano. Ainda ha rosas demais na cruz. Em sua classica obra The Mediator, Emil Brunner oferece outro exemplo da tentativa de determinar 0 amor pela santidade”. Como Forsyth, Brunner rejeita a idéia de que Deus seja mudado por um “pagamento equivalente’’. Contudo, também Brunner insiste que a expiagdo tem aspectos juridicos e forenses indispen- sdveis. O amor de Deus nao pode ser mera sentimentalidade. Daf a insisténcia no amor santo. Os ponios em que as idéias tradicionais de satisfagio vicéria se desencaminharam devem-se ao fato de estarem excessivamente vinculadas a con- cepgdes religiosas primitivas que véem Deus como 0 objeto, ¢ no como o sujeito da expiagdio, e de que o pensamento acerca da expiagio foi tornado cative da revelacio geral, e n&o da revelacdo especial”. Este ultimo ponto constitui a mais significativa contribuigao de Brunner para a discussio. Aspectos da verdade foram obscurecidos ou perdidos, diz ele, porque os transformamos em ‘‘verdade religiosa ou moral de cariiter geral’”. O problema com os aspectos penais do pensamento sobre a expiagao nfo é que eles nao sejam verdadeiros, mas, antes, que, tomados como verdade geral, nunc: a verdade"’. Entendidos como revelacao especial, no entanto, eles encontram seu verdadeiro lugar. A construgaéo de Brunner difere da de Forsyth por vir depois do pleno impacto da redescoberta da escatologia biblica e da conseqiiente visao neo-ortodo- xa de Deus. A necessidade de expiagao nao esta enraizada na necessidade de que Deus seja pago, mas na necessidade de uma revelagiio especial, de um ato especial de libertagdo da parte do Deus que é amor santo. Nio podemos ser salvos pela verdade geral. A santidade irada de Deus permanece de e ndo pode ser mitigada ou combinada com amor. O amor tem que vencer a ira concretamente na cruz por nds. A concepgao de Brunner, portanto, é mais dialética do que a de Forsyth. A lei moral de fato permanece em pé: ‘‘A lei € a espinha dorsal, 0 esqueleto, © fundamento de granito do mundo de pensamento.”* Porém ela é “conhecimento natural”’ e, como tal, nunca pode tornar-se plenamente pessoal. A contrapartida dialética € a revelagdo especial, © ato de amor em que Deus nos reivindica como propricdade sua. Para Brunner, a necessidade de expiagio, da cruz, repousa sobre a necessidade de uma revelagio que mude efetivamente a situag4o. Em Cristo, Deus vem para dentro de uma realidade estranha, a do pecado sob a ira divina, e se revela de tal modo que percebemos que tanto a santidade quanto o amor de Deus sfo infinitos. Todavia, tudo depende da vinda efetiva de 78 Emil BRUNNER, The Mediaior, Philadelphia, Westminster, 1947. pp. 470, 456. . 456, BI Ibid., p. 458, 53 Deus a nés. Nao se pode tratar apenas de uma idéia. Se idéias pudessem ajudar, nao estarfamos em situacao tao ruim. A ira de Deus s6 é superada para a fé na revelacado especial. Por conseguinte, a cruz € 0 acontecimento em que a ira € transposta; ela é 0 sacrificio *‘expiatorio”’ e *‘penal’’ do Filho de Deus porque ele entra sob a ira e sofre para revelar Deus como amor santo. Na proximidade de Deus se revela sua distancia; em sua santidade se revela sua miseric6rdia; em sua graga se revela seu juizo; ¢ assim por diante. Assim, Brunner pode concluir que a revelagao especial e a expiago esto intimamente associadas — ‘na verdade, corretamente compreendidas, elas. so uma sé coisa’. A parte do acontecimento efetivo da cruz, Deus é ira. Na cruz Deus se revela como amor santo para a fé. Como Forsyth, Brunner tem razdo em insistir no lugar de conceitos biblicos como juizo, condenagio, expiaedo, etc., que tinham sido postos de lado pelo liberalismo. Entretanto, é de se perguntar de novo se 0 todo nao foi moralizado de modo excessivamente rigido. Estranhamente ausente, mais uma vez, esti a refe- réncia A ressurreigio em conexio com a expiagao e a morte. E claro que Brunner fala sobre ela extensamente em outra parte, mas seu sistema de expiacio parece funcionar sem ela. A énfase na revelacio especial é um passo na diregao certa; sozinha, porém, ela nao pode carregar o fardo, sendo distorcida quando é obrigada a fazé-lo. Mais uma vez, faz-se com que uma distingdo teolégica faga o trabalho da prépria escatologia. Por isso, ela ameaga até substituir a cruz ¢ a ressurrei¢ao. Mais uma vez, é de se temer que a construgio reconcilie mais com a ordem moral e com a santidade de Deus do que leve 4 proclamagio do amor de Deus que realmente traz uma nova criag4o. Vitoria sobre os tiranos Em 1930, 0 tedlogo sueco Gustaf Aulén publicou Den kristina forsoningstan- ken (tadugio para o inglés: Christus Victor, 1931)®. Este livro tomou-se um acontecimento teolégico, especialmente em circulos escandinavos ¢ de fala ingle- sa. Sustentando que a idéia de vitéria sobre as forgas demoniacas era a concepgaio cristA cldssica da expiagiio, cle teve © efeito de superar o impasse entre as concepgées ‘‘objetiva’’ e “‘subjetiva’. O que tinha sido considerado meramente uma tosca curiosidade pictérica e imaginativa foi elevado ao nivel da respeitabili- dade dogmatica. O motivo da vitéria parecia oferecer uma alternativa nova. Aulén nao pretendia apresentar uma nova teoria (para ele, s6 a satisfacao fria e a influéncia moral sao teorias), mas simplesmente trazer 4 Juz um motivo que havia orientado 0 pensamento e a pritica litirgica da Igreja nos séculos 82 Ibid., p. 488. 83 Gustaf AULEN, Christus Victor, New York, Macmillan, 1931, 54 iniciais e fora reavivado por Lutero. O motivo é 0 de uma dramatica batalha césmica, e nao um raciocinio légico: o Christus Victor triunfa sobre os poderes do mal numa batalha dramatica e liberta a humanidade escravizada. Nesta vit6ria, Deus reconcilia consigo o mundo reconquistando-o, nao sendo “‘satisfeito’’. Aulén insiste que esta é uma doutrina da expiagao, contra intérpretes do século XIX que, muitas vezes, a designavam de doutrina da redencéo ou salvagdo, de libertacao do cativeiro e nao de expiacdo pelo pecado™. Deus é reconciliado no proprio ato em que Deus reconcilia 0 mundo. O background é dualista e a ago é dramética: em Cristo, Deus trava uma batalha conta as forgas demonfacas. Contudo, 0 dualismo nao é absoluto e metafisico, ¢ sim da espécie que se encontra na Escritura: oposigao radical entre as forgas do mal ¢ o Deus criador, embora o mal nao tenha existéncia eterna. As raizes escrituristicas deste motivo so 0 quadro que os sinéticos pintam da batalha de Jesus com os deménios e tiranos, A prova de que 0 motivo da vitéria é uma doutrina distinta, que nao pode ser reduzi la a outras Concepges, € fornecida por uma série de contrastes, Na é descontinua: Deus envia Cristo, mas entao tem que ser satisfeito pelo ato do Deus-homem. No motivo da vitria, a agio é continua: Deus envia Cristo e atua através dele e nele para derrotar os poderes demoniacos. O contraste com a concep¢ao subjetiva também é evidente. Nao ha simplesmente uma mudanga no sujeito. Ha, antes, uma mudanga completa de alcance césmico, na situagdo, e uma mudan¢a na relagdo entre Deus e 0 mundo, incluindo uma mudanga na atitude do proprio Deus. A concepeao classica, insiste Aulén, é pelo menos mais objetiva do que a assim chamada concepgao objetiva, porque lida ndo s6 com individuos, mas com o mundo todo. Os tragos essenciais desta concepcao encontram-se na teologia da “‘recapitu- lagao”’ de Irineu. Cristo recapitula a hist6ria humana vencendo em cada ponto em que Adao sucumbiu a tentagdo demoniaca. A obra de Cristo € batalha e vitoria sobre os poderes que mantém os seres humanos em cativeiro: pecado, morte e 0 diabo. A vit6ria cria uma nova situagao, pondo fim ao dominio das forgas hostis, libertando os seres humanos. ha separagdo entre encarnagdo e expiagdo. E Deus que realiza a obra do principio ao fim. Aulén considera a duplicidade da concepgo um de seus tragos caracter cos: Deus é reconciliador € reconciliado; Deus da ¢ reeebe o sacrificio. Longe de es- tar preocupado com esta duplicidade, Aulén tem-na como vantagem, como mara da natureza dramitica da concep¢do, desafiando seu encerramento num esquema racional. O motivo da vitéria leva a enfatizar a ressurreic¢iio, conspicuamente ausente de outras concepgées. A ressurrei¢aio & a manifestago da viléria decisiva sobre os poderes do mal e da morte, o ponto de partida para a nova dispensagio, a nova “situacdo’’, a dadiva do Espirito. my a Aulén insiste que a concepgao classica foi a concepgdo dominante e basica na Igreja por mil anos tanto no Oriente quanto no Ocidente, até que a concepgio latina de Anselmo se introduziu no Ocidente. Para Aulén, ela também era a concepgao bisica do Novo ‘Testamento, A concepgao latina s6 ganhou proeminén- cia com o desenvolvimento da idéia de peniténcia em ‘Tertuliano e em tedlogos posteriores. Lutero revivesceu 0 motivo da vitdria, acrescentando a lei e a ira de Deus como fundamentais entre os tiranos a serem derrotados. A discusséo sobre ‘as concepgoes de Lutero acerca da expiagao nos preocupard mais tarde. A espinhosa questio dogmatica que se coloca para 0 motivo da vitoria é a mesma com que nos defrontamos desde © prinefpio: em que reside a necessidade da morte € ressurreigao de Cristo? Recordamo-nos de que Anselmo formulou a pergunta basica: se a derrota dos poderes demoniacos é tudo que se necessita, por que o Deus todo-poderoso nao o poderia ter feito de outra maneira? Por que submeter o Filho a tal tortura? Como salienta Aulén, os pais gregos se debateram justamente com esta questo, Em geral, eles parecem dizer que a verdadeira natureza de Deus, sua justiga e amor, ete., teriam vindo 4 luz se Deus simplesmente tivesse usado a forca. Por vezes hi a sugestio de que o diabo adquiriu direitos sobre as criaturas caidas e de que Deus precisa respeitd-los para mostrar a j freqiientemente, porém, a mais profunda razio citada é a necessidade interna do amor divino, Deus mostra amor com a maior clareza vindo e tomando sobre si mesmo 0 sofrimento de nosso cativeiro"’. Gregorio de Nissa leva este pensamento mais longe ainda ao dizer que o poder € a invencibilidade de Deus nao sio mostrados por atos de forza, pela vastidéo dos céus, pelo cardter ordenado do universo, etc., mas precisamente pela condescendéncia para a fraqueza da natureza humana, para 14 batalhar e vencer™. Os antigos pais se esforgaram para dizer algo vital em tudo isso, mas, neste momento, suas idéias parecem carecer de poder persuasivo coerente. Pelo menos nao foram, ao que tudo indica, suficientemente persuasivos para afastar as exigéncias de Anselmo e seus seguidores. O carater tentativo em termos de dogmitica evidencia-se também no trata- mento do diabo ¢ seus “direitos”. Os pais nao conseguiram chegar a um acordo. Acreditavam que 0 diabo tinha vencido com justiga e com razio, porém nao tinham certeza se ele tinha adquirido direitos sobre as criaturas caidas ou se era simplesmente um usurpador. A idéia de que tinha adquirido direitos e merecia um resgate apropriado parece ser a mais comum®. O motivo religioso que est por tras de tal linguagem, insiste Aulén, consiste em afirmar a culpa da humanidade e 0 juizo de Deus sobre 0 pecado do mundo”. Poder-se-ia dizer que a énfase nio 86 JOA DAMASCENO, Contes os arianos, 1,68, ap. ibid., p. 49. 87 ID., ibid., p. 45. +p. 46. estd tanto nos direitos do diabo, mas que, como *‘o saldrio do pecado é a morte’, ele tem a tarefa, 0 “‘direito”’ de executar o pecador, realizando assim o juizo de Deus. Ao mesmo tempo, porém, pode-se dizer que o diabo é um embusteiro, visto que seu dominio de morte é contrério 4 vontade Ultima de Deus em relagao 4 humanidade. O diabo recebe 0 prego de resgate ao qual tem direito. Até este ponto, a Idgica interna é virtualmente igual aquela empregada no caso da satisfa- cao vicaria; a diferenga diz respeito a quem é pago. No entanto, nem todos podiam aceitar essa ldgica. Gregério de Nazianzo negava a idéia dos direitos do diabo, insistindo que ele era um usurpador que adquiriu poder por meio de embuste, merecendo, assim, s6 ser despojado e forgado a render-se”. A discussiio acerca dos direitos do diabo indica a dificuldade de responder, de forma coerente, a pergunta pela necessidade do motivo da vitéria. Talvez a razo seja que, assim como na satisfacao vicdria, a légica tende a cambalear. Uma lei que ndo pode dar vida toma 0 centro do palco. O diabo pode ter 0 poder de infligir a morte, mas nao pode dar vida — da mesma maneira como a lei nio o pode. O diabo nao pode libertar os cativos e dar liberdade. Ndo ha dtivida de que € por isso que 4 idéia dos direitos do diabo tinha que acrescer-se 0 pensamento de que, no caso de Cristo, o diabo ultrapassou seus direitos, sendo, assim, enganado € despojado, Atacando aquele que era inocente, ele perdeu seus direitos e seu dominio”. Em vez de dizer que o diabo € satisfeito, deve-se dizer que ele é derrotado. © principal é que algo novo tem que ser trazido A luz na morte € ressurreigdo de Cristo. Desta maneira, hé uma proliferagdio de imagens que tém a ver com o logro do diabo. A idéia basica € que Cristo aparece incognitamente entre os seres humanos; 0 diabo, achando que ele seria uma presa fécil, ataca, ¢ € derrotado pela divindade oculta na carne. A imagem do diabo sendo logrado como o peixe que abocanha a isca sem ver 0 anzol toma-se uma imagem favorita”. ‘Tudo isso, entretanto, nao responde muito claramente a pergunta de Anselmo a respeito da necessidade. A légica nos leva repetidamente a becos sem saida em que Deus e 0 diabo ameagam trocar de lugar, numa atordoante perseguigdo cega. Se dizemos que a cruz era necessdria para pagar o diabo, corremos 0 risco de fazer do diabo um deus com direitos sobre a criagao. Dai o protesto: o diabo é um usurpador. Por outro lado, se insistimos na idéia do logro do diabo, fazemos de Deus um embusteiro — precisamente 0 officio do diabo. Daj a insisténcia de que Deus age de modo justo mesmo com o diabo. Aulén se contenta com a assertiva de que a concepgdo naéo € uma teoria racional, e sim uma imagem dramatica que resiste a sistematizagdo. Até ele, porem, é constrangido a oferecer alguma prestacdo de contas ordenada do que se 91 hid, pp. 49-50. 92 ier ‘A mesma idéia se encontra em Agostinho e em Lutero, como observa Aulén. Em Lutero Imente & 4 lei que vai além do que pode 20 condenar Cristo e perde seu poder tirdnico. 93 GREGORIO DE NISSA, Grande Chrectamo, cap. 24, ap. bi, p52 supe que as imagens transmitam e a insistir que penetremos debaixo da superficie para chegar aos ‘‘valores religiosos”” que 14 estio encerrados. Segundo Aulén, sao os seguintes: em primeiro lugar, Deus nao usa a forga, mas entra no drama para lograr seu intento dando a si mesmo. Em segundo lugar, a idéia de direitos expressa 0 jogo limpo empregado por Deus até ao lidar com os poderes malignos. Em terceiro lugar, a alternagao entre 0 diabo como alguém com direitos, execu- tando o juizo divin, e como usurpador serve para comunicar tanto a perspectiva dualista quanto as limitagdes do dualismo. O diabo é a corporificagéo do mal, o protagonista sombrio; mesmo assim, ele ndo é igual a Deus e pode derivar poder tao-somente de Deus. Isto é um modo de expressar tanto a responsabilidade da criatura pelo pecado quanto a justiga do juizo. Em quarto lugar, a idéia do logro do diabo quer dizer que, em dltima andlise, 0 mal vai além do que pode quando entra em conflito com o bem e perde a batalha no momento em que parece obter a maior vit6ria, O maximo ato mau, a cruz, € a vitéria”. Na opiniio de Aulén, a duplicidade da concepgdo tem que ser mantida. ‘*Pois a teologia vive e tem seu ser nessas combinacées de opostos aparentemente incompativeis"™*. A prépria incompatibilidade dos opostos, diz. Aulén, constitu na época inicial, uma barreira contra a transformagio da teologia em metafisica especulativa. O drama faz parte da essén Como se havera de avaliar 0 matlve da vit6ria? Nao se pode negar sua importancia Positiva para a dogmatica. Aulén conseguiu isolar uma concepgio bem definida da expia , que se havia perdido no decorrer dos anos. Os historia- dores poderio se queixar di endo que ele simplificou excessivamente ou deturpou a histéria da questo, mas isso nao diminui sua importancia dogmatica. O avango mais importante é a maneira pela qual a ressurreigdo volta a ganhar seu lugar apropriado na doutrina da expiagdo. O background dramitico-dualista facilita a compreensao da irrupgio de uma nova era através da morte e ressurreigao de Cristo e impede qualquer retorno ao moralismo, Este € um avango de grande significagao, devendo ser mais desenvolvido. Contudo, € questionavel se o motivo, em sua forma mitolégica, pode atrair de modo continuado a mente moderna. A ‘‘batalha césmico-dualista’” tende a parecer extrinseca a nds e se presta facilmente a uma espécie de triunfalismo que nada diz aos que desesperam, aos perdedores do mundo. E preciso encontrar uma maneira de afirmar a realidade da vitéria que retenha seu alcance césmico e, ainda assim, a tome existencialmente concreta e vidvel. Talvez seja esta a razio da persistente critica de que o motivo da vitéria tende a fechar os olhos ao pecado e A culpa e a deslocar a énfase para a mortalidade, finitude e morte. Aulén luta para superar esta critica, porém ela persiste mesmo assim”. Quando a pressuposicao bésica é que o principal obstaculo da salvacio & 94. ID., ibid, p. 129, 15S. A énfase € minha, constituido por finitude e morte, nao se est4 longe do gnosticismo. O pecado recua para o segundo plano como malogro pré-hist6rico na emanacgio do cosmo. Entaio também é dificil manter a necessidade da cruel morte na cruz. Para simplesmente nos salvar da morte, 0 redentor poderia dar vida de algum outro modo. O mestre gnéstico libertava da morte comunicando conhecimento. O Cristo de [rineu ‘‘re- capitula’’ a historia humana: o poder da vida imortal vence a tentagio em cada passo, e a cruz, embora seja a suprema instdncia da vitéria, é relativizada. Um acontecimento é tio importante quanto 0 outro. O ponto principal é sempre o mesmo: a vit6ria da imortalidade sobre a mortalidade. As imagens do resgate pago ao diabo demonstram a confusao. Visto que aquele que deve morrer é imortal, 0 diabo € enganado. Aquele que haveria de morrer nao podia morrer. Cheg: perigosamente perto da idéia gndstica de que a cruz era um “‘parecer’’ morrer — © redentor gnéstico escapa antes da crucificacdo. Se a morte do redentor € um logro do diabo, quanto ha para escolher entre os dois? Em suma, as imagens dramético-dualistas também podem des’ nossa atengdo do Jesus que foi crucificado por nés sob Péncio Pilatos e dirigi-la para uma figura mitica que pagava um resgate ao diabo e o enganava ao mesmo tempo. Por que a cruz? O redentor também nao poderia muito bem ter morrido na cama apés uma vida plena ¢ santa, ou talvez até em combate, liderando uma cruzada zclote ou uma revolugio popular? Ou, no teria sido melhor, depois de ter conquistado a vitéria em cada passo em que Adio sucumbiu, fazer 0 feitigo da morte virar contra 0 feiticeiro e no morrer? O Jesus ‘‘vitorioso’’ pode, com demasiada facilidade, ser retratado como alguém que, em tiltima andlise, nio morre. As rosas ainda obscurecem a verdade. Antes de prosseguir, temos que avaliar a importéncia do motivo da vitéria para a dogmitica. Ele deve ser visto no contexto. Surgiu e ganhou crédito numa era em que antigos otimismos ¢ estruturas estavam sendo destruidos por sombrias forgas tirfnicas. Seu revivescimento na época da Reforma e em nossos dias também pode ser visto como protesto contra qualquer racionalizacao legalista que simplifica demasiadamente o problema humano e termina com um Deus que é ou um guarda-livros vingativo ou um amante excessivamente indulgente. As imagens dramaticas interpdem uma nota de conflito desesperado que é mais fiel 4 experién- cia real. Ha perigo e escuridao, e Deus esta envolvido na escuridao e nao deixa de ser atingido por ela. As forgas demoniacas executam 0 juizo dele sobre 0 pecado, Todavia, uma vez desencadeadas, elas ameagam exceder suas prerrogati- vas € usurpar as da divindade. E Deus que tem que lidar com 0 problema de modo apropriado. A imagem da vitoria é Util na medida em que waz de volta drama, agao e vida onde s6 havia contabilidade legalista. Nao obstante, temos que perguntar se o revivescimento do motivo da vitéria foi de todo feliz para a dogmética. Embora conteste com raziio a hegemonia de concepg6es anteriores, a alternativa que ele propée nao parece estar a altura da tarefa. O proprio Aulén fala dele como uma série de imagens com vivos contras- tes, e sugere que qualquer tentativa de coloca-lo numa forma racional coerente 0 59 privaria de sua profundidade e frustraria 0 propdsito da teologia. Pode haver verdade nisto, porém nao esta especificado com suficiente clareza para ser convincente. O resultado inconclusive do debate teve um efeito relativizador. Onde um motivo torna-se “‘apenas uma imagem" ou “‘quadro’’, todos os motivos tendem a tornar-se a mesma coisa, cada um representando algum aspecto da verdade. A expiagio toma-se uma teoria, uma projegdo no pensamento, ¢ pode-se perder facilmente a confianga de que qualquer coisa significativa esteja sendo dita sobre Deus ¢ a atividade de Deus. Nao ha divida de que é necessdrio que a dogmitica passe por essa crise de confianga; afinal, ela ultrapassou seus limites proprios. No entanto, a mera relativizagio de uma colegao de tais imagens desmedidas dificil- mente constitui um avango. A cruz perde seu cardter de confronto. As rosas nio so removidas; apenas as mudamos de vez em quando. Querendo ou nao, a cruz toma-se mais ainda objeto de nossa especulag&o, algo que olhamos e a que atribuimos sentido com nossas imagens, modelos ¢ teorias. A telativizagao leva ao lugar-comum de que nenhuma concep¢fo faz justica ao profundo mistério da expiag’io”. Os tedlogos podem entio deleitar-se no offcio de multiplicar teorias e modelos — aparentemente pressupondo que, quanto mais se descobrir, tanto mais verdade se revelara . Assim, chegamos ao ponto de vista mencionado acima, comparando a expiagdo a uma pedra preciosa com muitas facetas, que giramos em nossa mao porque s6 podemos ver uma Unica faceta de cada vez. A propria analogia é danosa. Imaginemos sé que estivéssemos contemplando 0 terrfvel acontecimento de Gélgota como se fosse uma pedra preciosa que examinamos com calma para discernir suas facetas. Em vez de nos julgar, a cruz se transforma em objeto de nossa curiosidade, de nossa busca de ‘‘valores religiosos’’. Conti- nuamos em busca de rosas. 97 Alguns intérpretes pensam que esse avango é feliz. Robert S. PAUL, por exemplo, diz: “Aulén no 86 revivesceu a nota de vitéria das imageas antigas, mas libenou a teologia das categorias da racionalidade l6gica ¢ ndo-imaginativa em que a doutrina da expiago muitas vezes tinha estado encarcerada ¢ mostrou que @ Igreja foi mais razodvel e mais légica quando expressou 0 drama da obra de Cristo nos quadros ¢ imagens do proprio drama, Ele reenfatizou (..) que 0 fato da expiago € definitive € que nossas teorias sobre ele sao relativas”” (op. cit, p. 257), 2 A teologia da cruz de Lutero Uma teologia da cruz fornece material para reconstrugao postulando uma inversao de dirego: Deus vem até nés; nés nao subimos até ele. A expiagao acontece quando Deus consegue chegar até nés, que vive- mos sob a ira e a lei, Deus ¢ satisfeito, aplacado, quando seu movimen- to em nossa direcao resulta em fé. Ocorre uma “‘alegre permuta’’: Jesus toma nossa natureza pecaminosa e nos da sua vida justa e imortal. O debate sobre a concepeao de Lutero A teologia da cruz de Lutero foi redescoberta na época em que Christus Victor, de Aulén, foi publicado'. Ambos os acontecimentos contribufram para fermentar uma reflexéo sobre a expiagZo que faz do exame da concepcio de Lutero uma transi¢éo importante para a reconstrugéo contemporénea. A tentativa de Aulén de reivindicar Lutero em favor do motivo “clissico”” acendeu um vivo debate, que continuou até o presente e langa nova luz sobre a contribuigao de Lutero e da Reforma para 0 pensamento sobre a expiagéo. A redescoberta de uma teologia da cruz igualmente fornece nova diregdo para uma reformulag’o pds- reformatéria da questao. Pode-se dizer justificadamente que todas as concepgdes consideradas até agora sdo essencialmente pré-reformatérias em termos de estrutura, ou ao menos tém suas raizes em formulagoes pré-reformatorias dos problemas. A concep¢gao “clissica’’ representa um retomo a uma época patristica; a concep¢ao *‘latina’” Cc remonta 4 compreensdo medieval de Anselmo. Mesmo a concepgo ‘‘subjetiva”’, que poderia pretender ser a mais modema, geralmente é atribuida a Abelardo, o contemporineo medieval de Anselmo. A estrutura basica das concepgdes, por mais dispares que sejam, permanece a mesma. O alvo é escapar, ascender em diregdo a Deus, seja pela lei e pelo melhoramento moral, seja pela vitéria sobre os tiranos que nos acorrentam a nossa mortalidade e finitude. A expiacao acontece quando a 1 Sinatizada, por exemplo, pelo eldssico estudo de Walther VON LOEWENICH, A teologia da cruz de Lutero, Sao Leopoldo, Sinodal, 1988 (original: 1929), e por E. VOGELSANG, Der angefochtene Christus, Berlin, Walter de Gruyter, 1932, 61 ascensio a Deus tem éxito. As discussGes sobre a teologia de Lutero levantam questdes fundamentais acerca da adequagiio de tais concepgdes para uma com- preensio verdadeiramente pds-reformatoria. Passemos ao debate. A pretensdo de Aulén de que Lutero esposava a con- cep¢do classica estava baseada em provas sdlidas*. Os escritos de Lutero abundam em imagens caracteristicas dessa concepgio, ¢ ele tinha aprego especial por aque- las de que os oponentes dela menos gostavam. Ele usa repetidamente a imagem do diabo mordendo a isca do Cristo encamado e ficando preso ao anzol nao visto da divindade’. O vocabuldrio que Lutero prefere ao falar da obra de Cristo contra o pecado humano é, quase invariavelmente, 0 de luta, vitdria, destruigdo, morte e devoragio, e no o de satisfagao, pagamento, sacrificio e propicia Os intérpretes j4 haviam notado antes o apreco de Lutero pelas imagens classicas, mas, na maioria dos casos, o tinham tratado como omamento lingiiistico ou poético, ou talvez como remanescente do folclore medieval. Sustentava-se que a estrutura dogmiatica bisica do pensamento de Lutero era a da satisfagao vicdria. Aulén contestou isto, afirmando que o pensamento de Lutero manifesta o modelo clssico: ha continuidade na acao divina do inicio ao fim; a expiacdo esta estrei- tamente ligada & encarnagéo; e nao ha mengio de um oferecimento feito a Deus da parte do humano. E Deus que vence os tiranos por onipoténcia divina; ha um estupendo e dramatico conflito, um mirabile duellum, em que Cristo prevalece sobre 0 pecado, a lei, a morte, a ira e 0 diabo*. Além disso, Aulén sustenta que a concepgao patristica nao s6 retorna em Lutero, mas é também aprofundada em varios pontos. Lutero vé com maior clareza que a lei € um dos tiranos da humanidade caida. Ela exige ndo apenas obediéncia a mandamentos externos, mas também a obediéncia ¢ o amor esponta- neos do coragiio. Isto toma o caminho legalista impossivel e transforma a lei num tirano. De igual maneira, Lutero vé com maior clareza como isso coloca a huma- nidade caida sob a ira de Deus. Sem obediéncia espontinea, sem o amor do coragiio, estamos sob a ira de Deus. Mero pagamento em sentido abstrato e legalista nao basta. A ira de Deus s6 sera aplacada quando houver amor. Portanto, nao podemos nos livrar da ira mediante um pagamento feito num ponto determi- nado do tempo. ‘Trava-se uma batalha em que o amor de Deus irrompe através da ira. E preciso conquistar uma vitéria que seja efetiva no presente para o crente’, No entanto, a concepgao latina tem morte dificil. Varios intérpretes nio concordam que a estrutura basica da concepgdo de Lutero seja *‘classica”, ou ao 2 Uma pretensao semelhante de Aul tinha levado efetivamente a um debs tinha sido expressa quase um século antes por J.C. K. von Hoffmann e semelhante entre os luteranos. Entretanto, o debate foi inconclusive, em Qs luteranos conserva- liberais, ¢ a satisfacio vicdria ainda parecia ser a tinica altemativa, Veja Gerhard 0. FORDE, The Law-Cespel Detate, Minnespots, Augsburg, 198 3 Theobald BEER, Der frohliche Wechse! und Streit, Leipzig, St. Benno, 1974, p. 213 ¢ passim. 4 Gustaf AULEN, Christrs Victor, New York, Macmillan, 1931, pp. 107-8. 5 ID, ibid., pp. Mss. 62 menos que Lutero possa ser reivindicado em favor dessa concepcdo sem restrigdes ou resfduos. Paul Althaus é um exemplo proeminente‘. Ele sustenta que Aulén nao percebe com suficiente clareza que os poderes derrotados por Cristo tém um lugar justo como executores da justa ira de Deus e que Lutero enfatiza constantemente 0 direito de tais poderes. Para Lutero, 0 elo de conexao entre o motivo da vitéria e uma concepgao mais juridica reside na idéia de que o diabo é 0 acusador dos pecadores. Sua acusacdo sé tem forga porque desmascara a transgressiio real da lei divina, nosso fracasso em satisfazer as exigéncias da justiga divina. Assim, “a satisfagaio exigida pela justiga de Deus constitui a significagéo primordial e deci- siva da obra de Cristo, particularmente de sua morte. Tudo 0 mais depende dessa satisfacdo, inclusive a destruigao do poder e da autoridade dos poderes demonfacos.”*” Althaus resiste a todas as tentativas de pdr de lado esse elemento juridico sua prioridade. Diz ele que nao basta sustentar que o motivo da vitéria expressa a concep¢fio do préprio Lutero ¢ que ele usa a terminologia juridica apenas como concesséo a formulagées tradicionais. Para Lutero, insiste cle, temos que ser libertados em primeiro lugar e antes de mais nada da ira do Deus justo. A satisfagaio feita pela morte de Cristo realiza isso, e toda outra vitéria sobre os poderes demoniacos é conseqiiéncia. ““Deus”’, insiste Althaus, ‘‘néo pode simples- mente esquecer sua ira ¢ mostrar sua miseric6rdia aos pecadores se sua justiga nio é satisfeita.’”* Nao é dificil encontrar citagdes de todos os perfodos da carreira de Lutero que pelo menos parecem comprovar a reivindicagao de Althaus e de outros criticos de Aulén que séo da mesma opiniaio, embora possam nao ser tio numerosas quanto as do tipo cldssico’. Contudo, mesmo tais criticos tém que admitir que a questo de modo algum esta isenta de ambigiiidade, pois Lutero ataca, muitas yezes e explicitamente, a idéia da satisfagio como no melhor dos casos fraca e, no pior deles, como uma abominagio e a fonte de todo erro. Mesmo que se queira reter a palavra “‘satisfagdo"” e com ela dizer que Cristo fez satisfagio por nossos pecados, ela é fraca demais, diz muito pouco sobre a graga de Cristo e nio honra suficientemente o sofrimento de Cristo. Deve-se dar-lhes honra 6 Paul ALTHAUS, The Theology of Martin Luther, Philadelphia, Fortress, 1966, pp. 218-9. Tillilt é outro objetor. Muitas vezes as raizes da objegdo remontam ao debate anterior (nota 2, acima) e estio baseadas na obra de ‘Theodosius Hamack. A obra de Hamack é questiondvel tanto por seu intento polémico no debate quanto pelo fato de ter sido elaborada antes do surgimento da edig30 critica das obras de Lutero. 7 ALTHAUS, op. cit, p. 193 8 ID,, ibid., p. 202. 9 Veja as seguintes passage fudo isso [a expiagdo] no pode acontecer de graca ou sem satisfagdo da justiga Ide Deus] (..): primeiro a justiga tem que ser satisfeita para que haja a mais completa perfeigio."” (WA 10/1,121,16-9.) “Para que a ira de Deus seja removida de mim e eu receba graga ¢ perdi, isso deve ser adquirido dele por alguém, pois Deus no pode ser bondaso ¢ gracioso para com o pecado nem remover Punigdo e a ira a menos que sejam feitos pagamento e satisiagdo.” (WA 21,2599-12.) “Pois Cristo é o Filho de Deus, que deu a si mesmo por puro amor para redimir-me. Nestas palavras Paulo oferece uma bela descrigo do sacerdécio ¢ obra de Cristo, que € aplacar Deus (placare Deum).”’ (LW 26:177.) “*Deverfamos consolar-nos: com 0 sofrimento ¢ a morte de Cristo como completo pagamento & propiciac3o (Versdhnung) de Deus.” (WA 52,643,39.) 63 mais elevada, porque ele niio apenas fez satisfagio pelo pecado, mas também nos Tedimiu da morte, do diabo e do poder do inferno, e nos garante um reino eterno de graga, bem como o perdio didrio dos pecados subseqiientes, tornando-se assim para nés (como diz S. Paulo em 1 Co 1.1) eterna redengio e santificagio."” “*Satisfagio”’ nao é sé um termo fraco demais para Lutero, mas é também designado de “‘inicio, origem, porta e entrada de todas as abominagées”” do sistema medieval". Esse tipo de argumentagao geralmente aparece no contexto de um ataque ao sistema penitencial da Idade Média, no qual a peniténcia é entendida como satisfagao pelo pecado. Lutero era suficientemente perspicaz para reconhecer que todo o edificio medieval com sua douuina da expiagdo surgiu das idéias de peniténcia, iniciadas j4 com Tertuliano, e delas derivava sua forga. A inversao de diregao Como se explica esse confuso estado de coisas? E Lutero simplesmente incoerente ou — utilizando uma formulagao melhor — demasiadamente rico e variado em seu pensamento e expresso para ser prensado num esquema unifica- do? Houve muitas tentativas de explicar ou resolver a questao. Entretanto, os argumentos sao em grande parte estéreis, porque terminam reivindicando Lutero para concepcées existentes anteriormente”. Se Lutero pode ser reivindicado mera- mente como representante de uma ou outra das teorias pré-reformatérias j4 expos- tas, ele nfo tem particular importéncia para a dogmatica. Se, todavia, em seu proprio pensamento ele tinha de alguma maneira transcendido as diferengas, de modo a indicar o caminho para algo bastante diferente, 0 que lhe possibilitava usar livremente os varios termos sem contradi¢ao, isto seria significativo e poderia apontar para novas diregdes com vistas a uma reformulacao da doutrina. E a partir desta perspectiva que a dogmitica deveria investigar 0 ensinamento dele sobre a expiacao. Ao se fazer isto, toma-se claro que, para compreender as manifestagdes de Lutero, deve-se comegar de modo bem diferente do que o debate o fez. Lutero procurava ser um “‘tedlogo da cruz’’. Isto implica uma grande inversio. Um tedlogo da gloria, diz ele, chama o mau de bom e o bom de mau. Um tedlogo da 10, WA 21,264,27. E mister observar que Luitero no est interessaclo num ato acontecido certa vez, mas no efeito continuado, no objeto novo ocasionado pela enuz. I WA 51,487.29. Cf. Carl F. WISLOF, Abendmah! und Messe, Berlin, Lutherisches Veriagshaus, 1969 (AGTL, 22), pp. 978s. 12 Aulén sustenta que sempre que Lutero usa terminologia ““latina’” ele Ihe d um sentido diferente, Ragnar Bring diz que Lutero usa terminologia latina como um modo de expressar o sola gratia (V. Vilmos VAITA, Theologie des Gonesdienstes bei Luther, Géttingen, Vandenhoeck, 1959, p. 192). Outros afirmam que Lutero usa a terminologia apenas como concessio 2 tradigo, abandonando-a quando deseja expor sua prdpria concepgio. Provavelmente hé alguma verdade em todas essas opinides, mas, se nio revelam a raudo baisica que estd por tris do uso ou nio-uso, elas pouco nos ajudam. 4 cruz diz 0 que as coisas s4o. Para ser tedlogo da cruz, deve-se aprender a ver as coisas como sao". . Quem sao os inimigos? O que é a ira sob a qual sofremos? E a alienagao, a culpa, a perdi¢do, a antipatia para com os deuses, que efetivamente sentimos e experimentamos. A voz da lei que ouvimos nao é um ideal abstrato, mas o terror da escuriddo, a exigéncia provinda de qualquer coisa e de todas as coisas no sentido de que fagamos algo para realizar nosso ser e assegurar nosso destino face 4 morte. Em tal dificuldade, teorias da expiagao de pouco servem. Suas explica- Ges no aplacam a ira real sob a qual vivemos. Elas ndo Ihe dio fim. Elas no lhe d&o fim porque nao ha inversdo de diregdo. Pressupdem ainda que é necessdrio fazer um pagamento a Deus, ou aos ‘‘deuses’’, ou mesmo aos ““dem6nios’’. Mas quem jamais tem condigGes de ver ou saber que o pagamento foi feito de fato ou que é suficiente? Mesmo que seja, resta-me a tarefa de reunir a capacidade de realmente crer nisso, sob pena de morrer. Como posso fazer isso? Ainda estou sob a ira, sob ira efetiva. Lutero reconheceu que, para a criatura perdida, faz pouca diferenga se se diz que o pagamento € feito a Deus ou se se diz que é feito ao diabo. Enquanto a estrutura basica 6 pagamento de uma divida sob pena de morrer, nada de novo irrompe. A ira permanece. Se nada de novo acontece, ainda se est4 sob a lei. Quando este é o caso, Deus e o diabo sao virtualmente intercambidveis e se fundem numa tinica e confusa imagem. Para que ocorram expiagdo e reconciliagéo deve haver uma inverséo de diregdo. Alguma coisa tem que acontecer, algo bem novo e diferente, para pér fim a ira e derrotar efetivamente os inimigos. Se se pensa em termos de um témmino efetivo da ira, de uma cessacio efetiva da voz acusadora da lei, entéo satisfago e vitoria significam a mesma coisa. Se 0 Deus do qual estamos alienados pudesse efetivamente por fim a separagao, entao a ira sob a qual vivemos estaria terminada. Se pudéssemos efetivamente receber esse Deus e confiar em sua autodoacao, entio a ira divina seria satisfeita e Deus conquistaria a vitoria. A chave esté na inversao: nao que algo seja dado a Deus, mas que Deus nos dé algo. Esta € a preocupacdo de Lutero ao falar da expiagdo. Ela acontece quando Deus se da de tal forma que cria um povo que the agrada, um povo que nao est4 mais sob a lei ou a ira, um povo que ama Deus e confia nele. Quando consegue fazer isso, Deus esta ‘‘satisfeito’’. Isto €: a expiag’o ocorre exatamente no fato de que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo. Para a expiagiio, a questiio é se Deus consegue fazer isso. A questéio ndo é se ha sangue suficiente- mente precioso para pagar Deus, ou mesmo o diabo, e sim se Deus agiu de modo decisivo para nos conquistar. A questo é se Deus pode efetivamente dar-se a si mesmo de modo a nos salvar. Pois o problema nao é Deu: problema somos nds, Pode Deus efetivamente libertar-nos do pecado e da hostilidade amargurada 13. Martinho LUTERO, Obras selecionadas, Si Leopoldo, Sinodal; Porto Alegre, Concérdia, 1987, vol. 1. p. 39, teses 19-22. 65 e trazer algo novo? O que Lutero tem a dizer esta centrado em tomo da questio de como as coisas séo. Pode a ira ter fim? Mas esta € uma questaéo do que Deus da e nao do que ele recebe, pois nao se deveria esquecer de que se trata da ira de Deus, e s6 ele pode pér-lhe fim. A inversado é responsdvel pela perplexidade que sentimos com respeito as afirmagdes de Lutero sobre a satisfagao ou aplacagao da ira de Deus. Que a ira de Deus tem que ser aplacada para que sejamos salvos € algo evidente por si mesmo quando se lida com a realidade efetiva. E uma tautologia. Ora, a ira nio pode ser aplacada em abstrato por transag6es celestiais entre Jesus ¢ Deus. Com isso nada se consegue para nés. A ira de Deus contra nés s6 é aplacada quando sua autodoagéo nos torna propriedade dele, quando Deus consegue criar fé, amor e esperanca. Daf esta notével afirmagio (a respeito da Ceia do Senhor): A majestade de Deus é maior do que o sangue do mundo todo e os méritos de todos ‘08 anjos tém condigées de aplacar. O corpo de Cristo é dado e seu sangue é derramado, ¢ justamente assim ela € aplacada, De fato, € dado e derramado por ti, assim como € dito “‘por nés”’. Por que ‘‘por nés”’, a nao ser para aplacar a ira de Deus que ameaga nossos pecados? Além disso, a ira de Deus é aplacada quando os pecados sao perdoados. Isto 6, como é dito, ‘dado e derramado para a remissio dos pecados”’, Pois, a menos que seja dado e derramado, a ira seré retida. Assim vés que a obra da satisfagdo ou a aplacagdo sacrifical de nada valem exceto pela fé somente. '* Quando se esta lidando com a maneira como as coisas sio, a ira nao pode ser aplacada em abstrato — por exemplo, no momento da morte de Cristo, quando se supde que © pagamento seja feito. A ira é aplacada quando 0 corpo e 0 sangue sao dados a nés e sao recebidos em fé. E no dar e no receber que a ira é aplacada. Afirmac6es sobre a satisfag&o feitas como critica da peniténcia indicam a mesma inversio de direg&o. A afirmagio que se segue é um bom exemplo disso. Nela, Lutero diz que se deveria ter feito uma distingdo ao usar 0 conceito: (..) a saber, que deveria ser feita a seres humanos, mas nao a Deus, como Cristo mostra em Mt 7 e 18 e também S. Pedro fez (...), do contririo Cristo teria permane- cido com toda a sua satisfacao por nds no céu, Entio todo 0 comércio com Deus em comemoracées, conventos e indulgéncias nao teria acontecido e o grande deus ventre nao teria sido to bem servido. Mas tudo foi misturado e, por fim, mandado para cima para Deus somente. (...) Pois esse erro é 0 mais antigo desde 0 comego do mundo e também permaneceré o ultimo até o fim do mundo.” Se Deus fosse 0 objeto da satisfacao, nao haveria necessidade da encamagao ou da cruz. Portanto, para a doutrina da expiacio de Lutero a questéo nao é um paga- mento abstrato a Deus, e sim como Deus pode dar-se a nés de modo a efetiva- mente remover nosso pecado, destruir a barreira existente entre nds e ele. Esta é a razdo do lugar proeminente que a ‘‘alegre permuta’’ ocupa no pensamento de 14 WA 8,442,30, (Grifo meu) 15 WA 20/2,291.34ss, (Grifo meu,) 66 Lutero. Através de sua vinda efetiva, de sua cruz e ressurreig’o, Cristo remove nossa natureza pecaminosa e perdida e nos da sua natureza sem pecado e justa. Isto nao pode ser uma transacio metafisica abstrata. Nos temos que ser efetiva- mente comprados e conquistados, e mais: mortos e vivificados, através da cruz de Cristo, de seu terrivel sofrimento e morte. Para que seja uma permuta ‘alegre’, nossos coragGes tém que ser capturados por ela. Por conseguinte, a permuta s6 pode ocorrer se Cristo efetivamente toma nosso lugar, assume nossa natureza pecaminosa, *‘tem e carrega’’ nossos pecados. Ele nao pode apenas assumir a natureza humana; precisa assumir a natureza humana pecaminosa e se submeter & maldig&o da ira de Deus. Para nos dar sua vida ele tem que assumir nossa morte. A satisfagao nao pode ser, como para Anselmo, uma substituigao da punig&o. Cristo sofre a punicdo e destruigao da morte em nosso lugar, nossa natureza, a fim de nos dar a sua. Ele tem que assumir nossos pecados e destrui-los, devord-los. Isto & explicitado naquela que talvez seja a expressio clissica da doutrina da expiagio de Lutero em seu comentério sobre Gl 3.13 (“C imi maldigao da lei, tendo-se tomado maldigio por nés — pois esta escrit seja todo aquele que esté pendurado em madeiro’ ”? [no comentirio sobre Gélatas de 1535, LW 26:276ss.]. O tipo de pensamento — neste caso, dos escolasticos medievais — que postula um pagamento a Deus nao pode, segundo Lutero, suportar essa espécie de pass: s lutam ansiosamente com 0 que pensam ser zelo piedoso no sentido de nao permitir que se faca a Cristo o insulto de ser chamado de maldi¢ao ou execracao.”” (LW 26:276.) Tal pensamento sem diivida preferiria um Cordeiro inequivocamente imaculado, um Cristo sem pecado para oferecer a Deus como pagamento substitutivo. Lutero, porém, nao aceita isso. Cristo tem que ser alguém que tem e carrega nossos pecados; ele precisa efetiva- mente tomar-se maldi¢ao por nés para libertar-nos da maldigio da lei. Do cont tio, toma-se meramente um exemplo de pureza ou de paciéncia no sofrimento a ser imitado, Isto € simplesmente colocar rosas na cruz e transformar Cristo numa nova lei. Os ‘‘sofistas’’ nos privam do mais *‘deleitavel consolo”” quando separam Cristo dos pecados e dos pecadores ¢ 0 apresentam a nés apenas como exemplo a ser imitado. Deste modo eles nao s6 tornam Cristo intiti! para nds, mas também o transformam num juiz e num tirano que esta zangado por causa de nossos pecados € que condena os pecadores. No entanto, assim como Cristo esta enyolto em nossa came € em nosso sangue, da mesma forma temos que envolvé-lo ¢ saber que esté envolto em nossos pecados, em nossa maldig&io, em nossa morte € em todo mal. (Ibid., p. 278.) Se negarmos que Cristo é pecador e maldigdo, deveriamos negar também que ele sofreu, foi crucificado e sepultado (ibid.). Um Cristo que é des-envolto de nossos pecados e oferecido a Deus como pagamento e que, durante o tempo todo, esté a par desse mecanismo celestial nado morre mais do que morreu o redentor gnostico. Na concepgao de Lutero, para que haja redengao Cristo tem que tornar-se, como diz Paulo, maldigdo por nés — ¢ isto em sentido real ¢ verdadeiro. Tem que haver 67 uma permuta real — e, para Lutero, esta era a parte essencial da communicatio idiomatum*. **Quaisquer que sejam os pecados que eu, tu € todos nos tenhamos cometido ou venhamos a cometer no futuro, eles sio de Cristo tanto quanto se ele mesmo os tivesse cometido. Em suma, nosso pecado tem que ser 0 pecado do proprio Cristo, ou entdo pereceremos etemamente.”* (Ibid.) Por certo que Cristo, ‘‘em sua prépria pessoa’’ como Filho de Deus, nio comete pecados; todavia, entrando em nosso lugar ele os toma sobre si em sentido real ¢ verdadeiro. Em nosso lugar, aqui nesta terra entre nds, ele nado age mais em sua prépria pessoa, mas é agora um pecador e toma os pecados por nés cometidos “sobre seu proprio corpo” (ibid., p. 277). Quando 0 misericordioso Pai viu que estivamos sendo oprimidos pela lei, que estévamos sendo mantidos sob uma maldigao e que nao seriamos libertos disso por nada, enviou seu Filho ao mundo, empilhou todos os pecados de todos os seres humanos sobre ele ¢ Ihe disse: ““S¢ o Pedro que negou, o Paulo que perseguiu, blasfemou ¢ assaltou, o Davi que cometeu adultério, 0 pecador que comeu a magi no paraiso, o ladrao na cruz. Em suma, sé a pessoa de todos os seres humanos, aquele que cometeu os pecados de todos os seres humanos. E trata de pagar e fazer satisfacdo por eles. (Ibid., p. 280.) Dever-se-ia reparar bem: 0 misericordioso Pai viu que no poderiamos ser libertos da lei por nada, por isso envia o Filho para ser um pecador amaldigoado pela lei de mancira a pagar ¢ fazer satisfagio. Como, porém, se realizam tal pagamento e satisfagiio? Como pode ele ser um pecador? Lutero usa imagens concretas que indicam que isso se realiza porque Cristo entra neste lugar, em nosso lugar, de modo pleno e total, por vontade propria. Ele vem sob a lei. A maldicao da lei contra todo aquele que esta pendurado em madeiro, diz Lutero, visava obviamente criminosos. Essa lei geral de Moisés 0 incluiu porque 0 encontrou entre pecadores e ladrdes, embora cle fosse inocente no que dizia respeito & sua prépria pessoa. Assim, um magistrado considera alguém criminoso e 0 pune se o pega entre ladrdes, embora 0 homem jamais tenha cometido qualquer coisa m4 ou digna de morte. (Ibid., pp. 277-8.) Poder-se-ia protestar dizendo que isso é um erro judicial — o magistrado pune por causa de culpa por associagao, Acontece, porém, que Jesus se colocou lé por vontade prdpria. Perante 0 juiz ele nao disse nada — exceto que esses criminosos sio seus amigos. Cristo nao foi apenas encontrado entre pecadores; antes, por sua livre vontade propria ¢ pela vontade do Pai ele quis associar-se aos pecadores e ladrées € aos que estavam imersos em toda sorte de pecados. Por conseguinte, quando a lei o encontrou entre ladrdes, ela o condenou e executou como ladrao. (Ibid., p. 278; grifo meu.) * N. do T.: Comunicagao de propriedades ou atributos. 68 E isso ocorre com toda a razio. ‘*Visto que tomou sobre si nossos pecados, nio por compulsdo mas por sua livre vontade prépria, era correto que ele suportasse a punigio e a ira de Deus — nao para sua propria pessoa, que era justa e invencivel e, por isso, nao poderia tomar-se culpada, mas por nossa pessoa.’’ (Ibid., p. 284; grifo meu.) Poder-se-ia dizer que foi seu grande amor que fez com que ele se metesse em apuros, e ele nao podia escapar — porque ndo queria. Ou, como o formulou Lutero: “‘Portanto, Cristo nao s6 foi crucificado e morreu, mas, por amor divino, 0 pecado foi colocado sobre ele.”’ (Ibid., p. 279.) O pagamento ou satisfago, contudo, nao acontece por algum mecanismo de ajuste compensatorio frente a Deus, mas, antes, pelo fato de que a lei e 0 pecado © alacam e condenam, porém nao conseguem lograr éxito, sendo, por sua vez, derrotados por sua justiga invencivel. A ei (..) diz: “‘Constato que ele é um pecador, que toma sobre si os pecados de todos os seres humanos. Nio vejo outros pecados senio os que estdo nele. Portanto, que ele morta na cruz!”’ E assim ela 0 ataca e mata. Por esta obra 0 mundo todo é€ purgado e expiado de todos os pecados, sendo assim libertado da morte e de todo 0 mal. Ora, quando © pecado ¢ a morte foram abolidos por esse tinico homem, Deus nio quer ver nenhuma outra coisa no mundo, especialmente se fosse crer, exceto tdio- somente pureza e justiga. (Ibid., p. 280.) Entretanto, Lutero também fala de modo interessante de como 0 pecado ataca Cristo: Nao apenas meus pecados e os teus, mas os pecados do mundo inteiro, passados, presentes € futuros, 0 atacam e tentam condené-lo, e de fato 0 condenam. Mas, Porque na mesma pessoa que é o supremo, maior e Unico pecador, hd também justiga eterna e invencivel, estas duas coisas convergem: 0 supremo, maior e Gnico pecado © a suprema, maior e tinica justiga, Aqui uma delas tem que render-se e ser derrotada, visto que se encontram ¢ colidem com tio violento impacto. (...) O pecado é um deus grandioso e poderoso que devora toda a raga humana, todos os seres humanos instruidos, santos, poderosos, sAbios e incultos. Ele, digo eu, ataca Cristo e quer devord-lo como devorou todos os demais. (Ibid., p. 281; grifo meu.) A expiagdo acontece quando Cristo entra de modo absoluto em nosso lugar ¢ € atacado pela lei, pelo pecado, pela morte ¢ pelo diabo. Sendo encontrado cfetivamente revestido de nossos pecados, ele € objeto da justa ¢ aterrorizante investida da maldig&o. Ele nao podia protestar sua prépria inocéncia. Ele era um. de nés. Sustentar de qualquer maneira sua propria inocéncia equivaleria a nos desertar e nos deixar em nossos pecados. Mas ele veio por nés e, assim, tinha que entrar na morte e destruicao. O grito de abandono na cruz é real. Para Lutero, nao se pode olhar para a cruz como se ela fosse simplesmente o dpice de uma vida de elevados propésitos morais, no qual Jesus permanece fiel até o fim e se oferece ativamente a Deus em nosso lugar. Isto corresponderia 4 imagem do trafego em diregao ao céu, porém nao a inversio de direg4o efetuada por Lutero. A tradicao retratava 0 sacrificio de Cristo como um oferecimento ativo de si mesmo a Deus. Em sentido estrito, a morte de Cristo nao era necessdria de modo absoluto, mas apenas de modo 69 concomitante, pois assim aprouve a Deus", Desta maneira, a tradig&io ensinava que Cristo gozou da visio beatifica no momento do abandono na cruz’. Isto se assemelha a concepgdes mais recentes que se afastam do grito de abandono e falam da perseveranca de Jesus face & tragédia, Nao € 0 que faz Lutero. Cristo sente em sua consciéncia ser amaldigoado por Deus e entra real e verdadeiramente na condenagio eterna da parte de Deus Pai por ndés'*. A morte de Cristo nao é um oferecimento ativo de acordo com algum esquema disponivel de recompensa. Nao hé tal coisa. Em conseqiéncia, sua morte 6 pode ser um sofrimento passivo, uma “‘paixdo’’ no sentido estrito do termo. Sob a ira, a morte e coisas assim nao ha nada para fazer exceto sofré-las ¢ morrer. Cristo, envolto em nosso pecado, s6 pode permitir ser atacado. O evento tem que ser real, ¢ 0 resultado oscila na balanga. Esta é a razio das imagens e da linguagem dramiticas empregadas por Lutero, Nao se trata de ornamento imaginoso ou da utilizagZo de varias imagens, em que uma conceptualidade poderia ser muito bem substituida por outra. Era, mais uma vez, uma tentativa de dizer o que uma coisa 6, de falar do que é realmente 0 caso. A lei, o pecado, a morte e a maldigdo que pesa sobre a existéncia humana atacam Jesus. Para que haja qualquer esperanga para nés, seres humanos, eles tém que ser derrotados. Dai também o uso persistente que Lutero faz da imagem do diabo como Leviati que fica preso no anzol da divindade. Lutero remolda a imagem para que ela se enquadre em sua inversdo. A tradig&o falava da humanidade ou da carne como isca que atrafa 0 dem6nio. Muitas vezes a linha de pescar era retratada como uma corrente de seres humanos que se estendia de Adio até Cristo — para mostrar que Cristo ‘‘pertence a came’’ como nds. Enganado pela came ao procurar seu resgate, 0 diabo fica preso no anzol da divindade. Para Lutero, nao é simplesmente acame ou a humanidade que é a isca; € a carne pecaminosa que atrai Leviata. A linha € a corrente de seres pecadores para os quais nado ha esperanga: Adao que , Davi © adtiltero, Pedro o negador, Paulo o perseguidor... e Jesus. isa haver batalha, pois s6 vitoria ou derrota Iver a questo”. O caso é que o pecado € 0 obstaculo, ndo meramente a finitude ou a mortalidade. O diabo s6 pode atacar como acusador através de poderes reais: a maldigdo da lei. O ataque sério porque acontece com razio e nés nao temos defesa. $6 a libertagio da maldigdo pode salvar. 16 WISLOFF, op. cit. pp. 975s. 17 ID, ibid., pp. 99-100. 18 WA 5,603,34; WA 56.3028. Cf. WISLOF, op. cit, p. 9. 19 Purece fazer pouca diferenca para Lutero se 0 atacante € a I lo, morte, a maldigdo ou o diabo. A Tei ataca Jesus eo mata (LW 26:280). Do mesmo modo, o pecado “ataca Cristo e quer devori-lo como devorou tedos os demais. (..) E necessirio que 0 pecato seja vencido e morta (..)" (bid, p. 281.) Ou a mone: “A. todo-poerosa imperatriz do mundo inteiro (..) entrechoca-se com a vida com forga plena, estando prestes a derroti-la¢ engoli-la: ¢ ela consegue 0 que tenta, No entanto, porque a vida era imonal, ela emergiu vitorioss."” (ibid.) E @ maldigao “se entrechoca com a béngio" (ibid., pp. 281-2). Todos esses agressores podem ser mencionados virtualmente dum s6 félezo. 70 A disputa é travada em Cristo, em seu proprio corpo, nao no nivel de Deus ou da divindade como tal. Trata-se de uma luta de poder naquele que é atacado. A vit6ria sé vem porque nele esti também o poder da vida que triunfa. O duelo é real. E exatamente assim é maravilhoso. Nao se trata simplesmente de um resultado previsto ou inevitavel. Cristo podia morrer e morreu efetivamente. So- freu a agonia da morte e do abandono. Contudo, na ressurreigéo o poder divino supera até a morte, e assim vence, mata, devora, destrdi, enterra e abole a morte, 0 pecado, a maldi¢ao, a lei e todos os tiranos. Lutero expressa tanto a realidade da morte de Jesus quanto a invencibilidade da vida em Cristo usando f6rmulas que contrapdem ambas as coisas na pessoa de Cristo — frmulas que constituem a base cristol6gica para formulas antropoldgi- cas subseqiientes, tais como simul iustus et peccator*: Ele estava condenado e ao mesmo tempo abencoado, vivo e ao mesmo tempo morto, triste € ao mesmo tempo alegre, a fim de absorver todo mal'em si mesmo e distribuir toda bondad Os que crucificaram Cristo criam que ele estava totalmente abandonado por Deus e condenado (...), ou © consideravam meramente humano e¢ assim inteiramente morto, a0 passo que ele estava, a0 mesmo tempo, bem vivo em toda a sua pessoa (toia persona.) Dizer que Cristo venceu a morte e 0 pecado é, ao mesmo tempo, dizer que ele é divino, pois tais obras pertencem unicamente ao poder divino -— na verdade, € isto que € 0 poder divino. Conceber a divindade desta forma €, para Lutero, parte integrante de sua grande inversao. Pois compete exclusivamente ao poder divino destruir o pecado e abolir a more, criar justi¢a e conceder vida. Esse poder divino [os escoldsticos] atribuiram a nossas proprias obras ao dizer: ‘Se fizeres esta ou aquela obra vencerds 0 pecado, a monte ca ira de Deus.’’ Desta mancira fizeram de nés verdadciro Deus, por natureza!? Esta € a argumentagdo de Lutero em favor do carater exclusivo da expiagao em Cristo. Deus da de si para vencer a morte e 0 pecado. S6 0 poder divino pode realizar isso. E preciso ver que a ressurreigao agora passa a ser parte plena ¢ funcional da expiagio. Desde que Cristo foi ressuscitado nao hé mais pecado, morte ou maldi- do, pois aqueles que estdo na fé sio agarrados pela ressurreigao. Na medida em que crés nisto, na mesma medida o tens. Se crés que 0 pecado, a morte e a maldigdo foram abolidos, eles foram abolidos, pois Cristo os venceu superou em si mesmo, e quer que creiamos que assim como em sua pessoa nio ha mais a mascara do pecador ou qualquer vestigio de morte, da mesma forma isso no est4 mais em nossa pessoa, visto que ele fez tudo por nds.” * N. do T.: Simultaneamente justo ¢ pecador. 20 WA 3,426,346, 2 WA 4.33,33-7. 22 LW 26:283. 23 LW 26:284. A O crente tem tudo daquele que triunfou sobre a morte. No entanto, deve-se reparar nisto: a cruz, a grande inversdo, tem que chegar até nds, tem que ser feita *‘a nds’’. Nao podemos ficar assistindo como espectadores ociosos, especulando sobre as coisas do além, querendo saber como a expia¢ao atua no céu™. Ela atua como aquilo que é aqui na terra: a morte do Filho de Deus por nossos pecados. Sua morte s6 pode atuar como a morte do pecador que estd contra ele, pois, em ultima andlise, ser pecador € ser alguém que ndo quer receber de Deus. O obstaculo & reconciliagdo € a descrenga: 0 pecado, nao os pecados. A ira de Deus s6 termina quando © pecador morre ¢ o crente € ressuscitado na fé, pois s6 entio Deus, 0 doador ilimitado, ¢ aplacado. Entdo Deus esté satisfeito. E por isso que Lutero podia fazer a surpreendente afirmagiio de que ‘‘a ira de Deus é aplacada quando 0s pecados so perdoados’’, Deus atinge 0 alvo quando se the permite ser para nés o que ele é: 0 criador e doador de todo o bem. Entéio a expiagio é feita. Tal pensamento leva ao ceme da questo, ao ‘‘por nés’’. Para que a ira de Deus, a maldicao a qual estamos sujeitos, tenha fim e a expiagio seja feita, a cruz tem que atuar em nés e por nés. Temos que ser salvos e feitos novos por ela. A natureza de Deus consiste em fazer algo a partir do nada. Por isso quem ainda nio nada no pode ser feito qualquer coisa por Deus. Os seres humanos, porém, sempre fazem algo a partir de alguma outra coisa. Mas isso é obra va, infrutifera. Assim, Deus exalta sé os rejeitados, dé satide sé aos doentes, restaura a visdo sé dos cegos, vivifica s6 os mortos, toma piedosos s6 os pecadores, toma sibios s6 os tolos, em suma, tem miseric6rdia s6 dos miseraveis ¢ dé graga s6 aos que ndo a tém, Por isso 08 orgulhosos, santos, sdbios ou justos nio podem ser material de Deus e obra de Deus; antes, fazem de si mesmos santos facticios, pretensiosos, falsos, pintados, isto &: fingidos.* Nao ha caminho direto para Deus ou a salvacio sob 0 velho esquema da lei, voltado para o céu. Sob tal esquema, Deus nao pode ser um Deus de amor, um Deus que dé. A ira simplesmente nunca terminari na realidade. Na melhor das hipoteses, Jesus ser apenas o fornecedor de ‘‘ajuda’”” — que pode ser chamada de ‘‘graga’’ ou de qualquer outra coisa — em nossas tentativas de aplacar a ira, ou, na pior das hipoteses, sera s6 um exemplo. A expiagdo em qualquer sentido efetivo € impossivel; a ira continuara. E isso o que Lutero quer dizer ao afirmar que Jesus precisa morrer para terminar a ira de Deus; ele tem que morrer para se dar a nds, para assim pér fim & ira de Deus sobre nés. Ora, se Deus nao pode ser um Deus de amor sob tal esquema, € nds nio queremos renunciar ao esquema, 0 caminho s6 pode ser indireto: s6 pode passar pela cruz. A ira de Deus nao pode ser posta de lado ou abrandada. Na verdade, 24 LW 26:287: “A especulagdo pela qual Cristo é compreendido nio € a tola imaginago dos sofistas € monges acerca de coisas prodigiosas que estiio além deles, € uma consideragio teolégica, fiel ¢ divina da serpente pendurada da haste, isto é, de Cristo pendurado na cruz por meus pecados, por teus pecados e pelos pecados do mundo inteiro. (...) Portanto, € evidente que s6 a fé jusifica."* 25 WA 1,183,39-184,10 (1517). 72 tem que ser magnificada contra nés para nos afastar de nossos caminhos. A cruz nao € um método que visasse apelar para nossa simpatia ou boa vontade. A alegre permuta ndo é uma barganha para conquistar o velho Addo. Por isso Lutero diz a respeito dessa permuta: ‘Temos que olhar para essa imagem e agarré-la com fé firme. Quem faz isso tem a inocéncia e a vitéria de Cristo, no importa quo grande pecador seja. Mas isso ndo pode ser apreendido pela vontade amorosa; s6 pode ser apreendido pela razio iluminada pela fé. Por conseguinte, somos justificados pela fé somente, porque unicamente a fé apreende essa vit6ria de Cristo.” A f€ que simplesmente recebe 0 Cristo pendurado na cruz ilumina a razio para compreender como as coisas realmente sao. Tal razio enxerga precisamente que s6 podemos ser justificados pela fé, que a ira de Deus fecha para sempre qualquer outro caminho, Na verdade, Deus tem que ser um Deus de ira para conosco antes de ser um Deus de misericérdia para nés. O horror de Gélgota é 0 tinico caminho que leva ao Reino. Externamente, a graga parece ser pura ira, de tio profundamente que esta oculta, coberta de (...) grossas peles (...), € nds mesmos nio podemos nos sentir de outra forma em nés do que Pedro diz (2 Pe 1.19) com razio: Somente a Palavra nos ilumina em lugar tenebroso. De fato, um lugar tenebroso. Assim, a fidelidade e verdade de Deus sempre tem que tomar-se primeiramente uma grande mentira antes de poder tomar-se a verdade, pois é chamada de grande heresia perante 0 mundo. Desta maneira sempre parece também a nds que Deus vai nos abandonar, no manter sua palavra € tomar-se um mentiroso em nossos coragdes. Em suma: Deus nao pode ser Deus a menos que se tome primeiramente um diabo, ¢ nés no podemos ir para © céu a menos que tenhamos estado primeiramente no infemo, nao podemos ser filhos de Deus a menos que tenhamos sido primeiramente filhos do diabo (...)7 Uma razio iluminada pela f¢ no Jesus pendurado na cruz tem que contar com © deus absconditus. A ira de Deus nio pode ser apreendida pela razdo. Ela é magnificada até 0 ponto em que, para o mundo e a criatura caida, Deus e 0 diabo néio podem ser distinguidos. Isto se deve ao fato de a cruz significar no apenas a morte de Jesus, mas também a morte do pecador. A morte de Jesus ndo é um substituto para a nossa; ela é nossa morte. E a morte daquele que esta voltado contra Deus, daquele que simplesmente no quer receber de Deus. Uma razio iluminada pela fé reconhece que nado ha caminho que passe ao largo da cruz; o unico caminho passa através dela. Uma raz4o iluminada por tal fé também reconheceré — a posteriori — algo da necessidade da cruz. Ela era necessdria nado porque Deus precisasse dela, mas porque ele quis nos salvar de nosso cativeiro, de nossa insisténcia em nossos préprios projetos — de nossa insisténcia em ter um Deus de ira. Lutero identificou 26 DW 26:284. Grifo mea. 27 WA 31/1,249,16-250,1 (1530). 73 © problema com exatidao quando viu que se trata da questo de quem sera Deus. Quando nos recusamos a reconhecer que destruir 0 pecado e a morte € algo que compete exclusivamente ao poder divino €, ao invés disso, o empreendemos por nOs Mesmos € com nossas obras, atribuimos divindade a nés mesmos. Entao nos defrontamos com a ira do Deus que quer unicamente ter miseric6rdia. Para dar realmente fim & ira, Deus entrega o Filho & morte, para assim nos fazer morrer € tornar-nos novos nele. Do ponto de vista de um tedlogo da cruz, nao podia haver outro caminho. O tedlogo da gloria poderia especular sobre a possibilidade de que Deus 0 tivesse feito de outro modo, ou dizer que a morte fez parte do auto- oferecimento de Jesus a Deus s6 em sentido concomitante. Mas isso é desviar os olhos do horror de Gélgota e evitar a maneira como as coisas sio efetivamente. Se Deus de fato poderia ter agido de algum outro modo, entio nfo hi nenhuma justificativa para agir do modo como agiu. O horror de Gélgota, o terrivel prego, € grande demais. Assim diz Lutero: Cristo ensina (...) que nao estamos perdidos e que os pecadores tém vida etema unicamente porque Deus teve piedade, e mais: que isso Ihe custou seu préprio Filho amado, a quem pés dentro de nossa miséria, nosso inferno e nossa morte. (...) Agora, se houvesse algum outro caminho que conduz ao céu, ele certamente o teria estabe- lecido; por conseguinte, no ha outro caminho.* Assim sendo, 0 tratamento dado por Lutero a questio indica 0 caminho para superar as velhas antiteses da doutrina da expia jatisfagao versus vit objetivo versus subjetivo. A ira divina contra o pecado é satisfeita quando o amor obtém a vitéria. Quando a auto-entrega divina cm Jesus faz surgir a pessoa de fé, a pessoa que recebe, Deus atingiu seu alvo. O amor vence a ira por nés e em nés. Em conseqiiéncia, a inversio de diregdo existente na doutrina da expiagio de Lutero leva, muito naturalmente, a uma aplicagaio — proclamago da Palavra e concessiio dos sacramentos — que faz a aco para os ouvintes, para criar fé. Se a ira de Deus é aplacada quando os pecados so perdoados, quando 0 corpo e 0 sangue de Cristo sao dados ‘‘por nés’’, a expiagao é feita a nés entdo. A inversio € levada até o fim. ‘‘Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo nos confiou o ministério da reconciliagéo.’’ A expiacao estd na proclamacio, no fato de ser dada. A justificagéo do ser-Deus de Deus, 0 sucesso de Deus em ser Deus, se assim se pode dizer, consiste precisamente em sua capacidade de chegar até nds, de fazer a reconciliagao e ainda ser Deus. O que Lutero realizou nos indica a direg&o certa. Seu mérito permanente é a grande inversio: a expiagdo ocorre quando Deus consegue, ao custo da morte do Filho, chegar até nés que vivemos sob a ira. Deus tem éxito em dar-se a nds de tal maneira que poe um fim real a existéncia sob a ira, o pecado e a morte. A miseric6rdia de Deus obtém a viléria sobre a ira por nos. 28 WA 10/3,162.10. Cf. WISLOFF, op. cit., p. 98, nota 47. 74 Particularmente importante é o modo como Lutero procede para tirar as rosas da cruz. Cristo vem para nosso meio e sofre uma morte real “‘envolto em nossos pecados”’. Ele nao esté pagando a Deus de acordo com algum esquema celestial de contabilidade. Ele morre — sofrendo a punicéo de ser encontrado ‘‘entre ladrGes"’, porque assim 0 quis. Ele também nao é um herdi religioso a demonstrar a poténcia de sua consciéncia de Deus ou sua fidelidade sua vocagiio até o fim, tomando-se, assim, exemplo para todas as nossas aspiragoes religiosas. Ele morreu sentirido em si mesmo e em sua consciéncia a agonia da separagao Ultima. Deus est4 oculto em sua morte; na verdade, Deus morre. Isto significa que sao subita- mente eliminados todos os sistemas pelos quais a teologia procurou resgatar Jesus da morte, atribuindo-lhe um sentido que obscurece o fato de que ela ocorreu. Nossas teorias teolégicas nao podem salvar Jesus, assim como nao podem salvar 4 nds, $6 Deus, 0 Deus que cria ex nihilo*, que ¢ 0 poder da propria vida, pode fazer isso. S6 a ressurreigao salva da morte. Uma cruz sem rosas traz algo novo: faz morrer ¢ ressuscita. Apreciacées criticas Lutero teve éxito? A critica vem geralmente do ponto de vista da tradigio, em sua maior parte de tedlogos cat6licos romanos”. As criticas podem ser redu- zidas a duas principais. Em primeiro lugar, a oposigao radical de amor e ira parece romper a unidade de Deus, especialmente quando se diz ou sugere que ele trava uma batalha contra si mesmo. Surge af a ameaga do dualismo. Em segundo, a atividade salvadora no Deus-homem Jesus parece ser executada exclusivamente pela divindade; a humanidade nao participa. Na “‘alegre permuta’’, Jesus remove nossa natureza pecaminosa a fim de nos dar sua natureza sem pecado. O humano, sustentam os criticos, nao é ativo, mas unicamente passivo. A concepgdo de Lutero resulta num dualismo em Deus e num monenergismo na salvagio que elimina a natureza humana de Jesus. A continuidade trinitéria da concepgio tradicional ameaga vir abaixo. Deus luta contra Deus; 0 Deus em Jesus Cristo luta para vencer a natureza humana pecadora. E sua obra exclusiva. Um tratamento completo de tal critica nos levaria além dos limites deste locus. Talvez a resposta mais apta e direta fosse dizer que as criticas procedem, em sua maior parte, de um esquema tradicional que deixa de tomar em conta a radical inversao de diregdo. A censura feita a nivel cristolégico acerca da passiv: dade ou ndo-cooperagio da natureza humana de Cristo na salvagio constitui virtualmente um paralelo exato da censura feita a nivel antropolégico no sentido de que 0 esforgo humano nao coopera na salvagdo dos seres humanos. Quando a *N. do T.: A pantir do nada, 20 Veja BEER. op. cit., pp. 264ss.. para um bom resumo de tal crit cen dialogue, Paris, Cerf, 1964 (UnSa, 50), pp. 45388. x: ambém Yes M.-J. CONGAR, Chnétiens 75 tarefa humana é compreendida como ascensao em diregao ao céu através da lei, a critica é grave. Se, porém, a diregdo € invertida, se a ascensdo através da lei € precisamente a maldigdo, se a armadilha ineludivel da humanidade caida € conce- ber a si mesma ¢ a Deus nos termos daquele esquema, de modo que sempre se estio repartindo porgées de atividade humana e porgdes de atividade divina, na esperanga de que a soma das duas venha a constituir a salvagio — se o problema é esse, entio se faz necessdrio algo muito mais radical. O Cristo de tal esquema nio iria salvar a boa criagdo de Deus. Ele s6 tentaria nos assistir a0 procurarmos escapar dela em nosso caminho rumo ao céu, e, nos termos de Lutero, sé nos converteria em seres falsos e hipécritas. O que Lutero acentua é precisamente que se tem que morrer para tudo isso a fim de ser salvo. Cristo de fato se opde cooperagio de tal natureza humana pecaminosa. Ele propde-se a erradicé-la para que a verdadeira natureza humana, aquela que confia em Deus e 0 ama, possa emergir da sepultura. Entéo nos tomamos de novo a criatura que Deus tencionou. Ent&o se pode dizer que Deus amou 0 mundo, sua prépria criagio, de tal maneira que deu seu Filho unigénito. Entéo Deus reconciliou consigo 0 mundo em Cristo. ‘Trata-se com certeza de um erro grave dizer que um Cristo que entra no mundo sob a ira e a maldi¢ao ‘‘envolto em nossos pecados”’ nao realiza nada de acordo com sua natureza humana. Ele sofre e morre! E claro que ele nao realiza nada pelos critérios do mundo. Mas o que havia para ‘‘fazer’’ ante Pilatos e os sacerdotes? Nao ha diivida de que o milagre foi justamente o fato de ele nao ter feito nada. ‘‘Ainda assim, seja feita tua vontade, e nado a minha!”’ Se houvesse qualquer coisa para fazer, seu Pai teria enviado “‘legides de anjos’’. Nesse lugar, porém — precisamente na came, de acordo com a natureza humana —, ele “‘realizou todas as coisas’; ‘‘venceu o mundo’’, Cumpriu a vontade do Pai na came. Lutero sem dtivida viu isso de modo muito mais radical do que a tradigio. Tem que haver realmente uma morte antes que possa hayer vida; e a morte nao pode ser simplesmente uma impostura. Nao pode ser transformada em apoio para © velho esquema. Clamores teolégicos pela continuidade podem por demais facil- mente ser tentativas de escapar da morte: ‘‘Passa de mim este cdlice...’” Pela mesma razdo, a dicotomia entre ira e amor nao pode ser evitada. Nao hd como construir uma continuidade teolégica entre os dois, porque nesse caso a ira simplesmente permanecerd em vigor. Continuidade aqui significa que o velho continua e a ira vence. A ira s6 pode ser derrotada; 0 esquema da lei, sob 0 qual nos colocamos é real de fato e representa uma verdade terrivel. Se insistirmos em ter Deus dessa maneira, ele acederé — e a coisa vai ser muito real. Deus é irado fora da promissao. A ira sé pode ser vencida num acontecimento histérico concre- to, e o Deus de amor manifesto nesse acontecimento s6 pode ser crido, ‘de coragio”’. Ser salvo significa precisamente ser liberto da ira, liberto da lei, de ter que fazer isto ou aquilo. S6 se pode crer que Deus nao esté dividido, que Deus € uno. Deus nao esta dividido porque na revelagio efetiva, no acontecimento con- creto, ele se revela como aquele cujo tnico alvo é ser um Deus em que se confia livre e verdadeiramente como Deus de misericérdia. Esse Deus se recusa a aceitar 76 qualquer outro caminho. O que Lutero quer dizer é que s6 podemos ser salvos pela fé. S6 a fé nos devolverd a criagdo de Deus juntamente com nossa verdadeira natureza humana. Se Lutero é para ser criticado, terd que sé-lo no sentido de que ele nao foi — ou talvez nio tivesse condigdes de fazé-lo em seu contexto — longe o suficiente. O peso da tradi¢do ainda era grande demais. A inversio de diregdio assinalada pela idéia da *‘alegre permuta’’ representa um grande avanco. Entretan- to, ainda ha vestigios de algo como que fisico em tal permuta. Naturezas e pecados parecem ser deslocados de 14 para cA como se fossem grandezas por demais quantitativas. Além disso, os poderes que atacam o Cristo ‘‘envolto em nossos pecados’’ ainda parecem ter uma coloragao excessivamente abstrata e mitolégica para olhos contempordncos. Se é que se hé de formular alguma critica, as formu- lagdes de Lutero ainda contém uma porgio grande demais da tradicional carga metafisica e mitolégica. Ele nos apontou a diregdo certa, e muitas vezes usou formulagées que podemos usar como alicerce. E tarefa do capitulo final langar mio disso e tentar elaborar algumas propostas construtivas. 7 3 Reconciliacao com Deus Reconciliagao com Deus sé pode acontecer através da vinda de Deus ands em Jesus para morrer e ser ressuscitado. A necessidade da cruz esta arraigada na decisio de Deus de ser um Deus de misericérdia a despeito de nossa servidio e rejeigdo. Para ser fiel a essa decisio, Deus tem que vir a nds e suportar a rejei¢do de modo concreto e efetivo. A ira de Deus € 0 anverso de sua miseric6rdia: ele nao quer ser conhecido senao como Deus de miseric6rdia. A cruz € 0 prego que Deus, em miseric6rdia, paga para ser concretamente por nds, para dar a morte ao velho e fazer surgir 0 novo, Quando a fé é criada, Deus atingiu 0 alvo Cur Deus homo? Por que Deus se fez homem — e mais: por que ele 0 fez exatamente da mancira como o fez? Por que Deus sofreu e morreu uma morte vergonhosa na cruz? Lutero nos indicou a diregio certa. As teorias da expiagio lidaram demasia- damente com abstragdes e nao prestaram suficiente atengio cuidadosa & maneira como as coisas so. Agora é hora de dar o passo final. O fato é que nés simplesmente ndo podemos nos dar bem com Deus. Nao podemos nos reconciliar com Deus. Por qué? Simplesmente porque Deus é Deus. Nao podemos suportar isso. Deus € 0 Criador todo-poderoso do céu e da terra. Ele governa todas as coisas, e sua vontade sera feita em tiltima andlise. Isso ¢ demais. Além disso, de acordo com as Escrituras, Deus é um Deus que elege. Ele escolhe. ‘“Terei miseri- cordia de quem eu tiver misericérdia’’ é virtualmente 0 nome de Deus. O préprio pensamento de um Deus tal é uma ameaga para nés. Cur Deus homo? Precisamente porque nao podemos nos reconciliar com Deus, precisamente porque ele é um Deus que elege, esse Deus “‘por causa de seu préprio nome”’ tem que vir a nés para ter misericérdia de modo concreto, histérico. is uma vez podemos deixar que Lutero seja nosso guia. A situagdo que temos descrito e para a qual conduz nossa exposigao da expiagéo é exatamente aquela descrita por Lutero em Do arbitrio cativo. Quando diz que podemos usar 0 termo “‘vontade livre’ — se € que temos que usé-lo — para designar nossa 78

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