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MAIS-QUE-SAGRADO MAIS-QUE-PROFANO Mario Perniola mais radical das contradigBes entre 0 sagrado! @ o pro- fano, que caracterizam a cultura do século XX, foi pen- sada pela filosofia e pela teologia nos primeiros anos do séoulo. Para Durkheim (1971, p.411, cujo livro Le forme ‘elementari della vita religiosa constitui junto & obra dé Mauss, 0 ponto de partida de uma reflexéo antropolégica sobre o sagra- do, onde esta oposi¢éo é absoluta: segundo ele, “ndo existe na historia do pensamento humano um outro exemplo de duas categorias de coi- sas to profundamente diversas, tio radicalmente opostas uma da ou- tra”. Sagrado e profeno constituem para Durkheim dois mundos entre os quais ndo hé nada de comum, completamente heterogéneos, @ que se excluem reciprocamente; néo se pode pertencer @ um sem ter abando- nado outro. "A coisa sagrada - escreve Durkheim (ibid, p.43} - 6, por dofinicgo, aquela que o profano néo deve € néo pode tocar impunemen- te (1. O8 dois géneros néo podem aproximer-se, conservando ao mesmo tempo, a prépria natureza." Na mesma medida, para Rudolf Otto (1966, p.38), cujo livro il sa- ro exerceu ao lado da obra de Séderblom uma grande influéncia na teologia contemporénea, o sagrado contrasta totalmente com tudo aquilo que é habitual, familiar, mundano: ele 6 algo essencialmente aiverso em relagdo & natureza, ao mundo, A razéo e até {come na teolo- ia negative), em relago 20 ser. A negagao, 0 contraste, a oposigio séo Para Otto (ibid, p.38) "os Unicos meios permitidos a reflexdo conceitual para apreender 0 mistério” do sagrado. Ele 6, por detinigao, impenetré vel 9 paradoxal, absolutamente inacessivel & compreenséo conceitual que nos guia e nos acompanha na vida profana ‘Opresente texto reproduz, com adaptacées © complementagées, o ensaio homénime, Pubblcado na revista Fondement, 1966, 4 MAIS-QUE-SAGRADO MAIS-QUE-PROPANO , Mario Perniola ” As reflexdes antropolégica e teolégica sobre 0 sagrade no inicio do século XX sio, com certeza, profundamente diferentes entre si, por quanto concerne a determinagao positiva da nogéo de sagrado. Para a primeira, 0 sagrado é um fendmena essencialmente social e coletivo; para a segunds, é um fenémeno essencialmente subjetivo e individual. Todavia, eles se encontram nao sé na rigorosa excluséo reciproca do sagrado e do profano, que seré depois retomada e ratificada por muitos estudiosos de antropologia e de histéria das roligiées, como Caillois (1939, p.20), mas também num projeto de caréter sincrético que escon- de as diferencas existentes entre as varias confissdes religiosas ©, so- bretudo, aponta para a conciliagao entre monoteismo e politetsmo, en- tre a tradigéio judaico-cristé © 0 paganismo. Finalmente, num terceiro fator, eles resultam convergentes quando consideram que a nogo de profano 6 por si mesma, dbvia e nao necessita de uma anélise mais aprofundade A revisio critica da relag8o entre sagrado e profano, realizada no decorrer dos uitimos decénios, contestou estes trés pressupostos. Al guns mostraram que sagrado @ profano so to opostes @ incompativeis como se acrecitou, Evans-Pritechard (1978, p.261, por exemplo, sustentou que sagrado © profano pertencem a0 mesmo nivel de compreenstio @ cconstituem dimensées tao interligadas que resultem indissociéveis. Se- ‘undo ele, © estudo das origens dos conceitos de sagrado e profano deve ser substituldo pelo exame das relagdes existentes entre as duas nogdes © das situagées concretas nas quai eles operam: “O que é sagrado pode 6-10 somente em certos contextos € em certas ocasiées, mas ndo em outras". Outros estudiosos colocaram em dtivida a simetria da oposigo sagrado/profano ou para reafirmar a primazia absoluta do sagradso, identifi cado tout court com 0 real, como Mircea Eliade (1873}, ou, a0 contrério, como Di Nola (1977, v.xIl, p.313:366), para sustentar a prioridade da ai mensao profane sobre 0 sagrado, o qual constituria somente um romen- to de crise devido a ineficdcia de instrumentos de controle da verdade. A ‘posigéo radial entre 0 sagrado e 0 profano parece ter dado lugar a uma concepcéo de sociedade como uma textura, onde se entielagam elemen- tos sagrados e elementos profanas, sem que os limites ontre os dois 18 MAIS-QUE-SAGRADO MAIS-QUE-PROFANO . Mario Persiota estejam nitidamente marcados (WUNENBURGER, 1981, p.76). Dentro das mesmas nogdes de sagrado e de profano & necessério realizar difo renciagées ulteriores, que tornam 0 quadro atual bastante complex @ articulado (ISAMBERT, 1982, 9.303). A intend sinerética, implica na nogéo de sagrado, levou & chamada querolle du sacré (MARTIN, 1970, vale dizer, 0 protesto da- quoles que néo aceitam a comparago entre a singularidace das crencas da tredigéo judaico-cristé © 0 paganismo. A reviséo critica da taoria clés sica se manifestou, por isso, como uma profanagéo do sagredo com a intengéo de mostrar que “o sagrado 6 um elemento do'profano" e que acima dele, esté 0 divino na sua absolute transcendéncia: “a revelagéo bibica e crista - escreve pelo catolicismo, Henri Bouillard (1974, p.54) - contesta, assume e transfigura a experiéncia pags do sagrado, pelo fato de substituir a um divino, mats ou menos imanente no cosmo, um po- der soberano que esté acima de toda representago”. Emmanuel Levi nas (1877, p.89) - do lado hebraico - considera o sagrado como a pe- numbra onde fioresce @ bruxaria © opts a ele a dimenséo do santo, consideradc como senso ético, que permite a ultima inteligibidada do humano. Segundo Levinas, a santidade que o hebralsmo procura, esté no péle oposto do mundo dessacralizado, onde degenera sempte o sagrado, Finalmente, a revisdo critica da oposi¢ao sagrado/profano se confirmou sobre @ nogéo de profano, Segundo alguns, 6 possivel 0 até neeessério, procurar e encontrar no profano, no mundane, a presenga de uma profunda espiritualidade, ¢ sublinhar os perigos impliitos no escatologismo, attibuindo uma grande importancia ao significado espiri- tual da sensiblidade, de maneira como oe se manifesta ne vide cotidia- na (RABUT, 19671. Conhecimento do mundo ¢ conhecimento de Deus ‘ao seriam totalmente incompativeis; @ redengao do homem, necessa- Yiamente, se vincula @ partir do nivel da vida profana: "o mundo - escre- Ve Requeplo (1968, p.395) - 6 oferecido por Deus & universalidade dos homens como 0 sacramento pascal universal da sua unilateral vocagéo a0 Reino”. Realiza-se, assim, uma sacralizago do profano, que também apresenta aspectos sécio-pollticas. Seguindo os passos de Max Weber, Que mostrou as premissas religiosas implicitas na mentalidade capitalis- MAIS-QUE-SAGRADO MAIS-QUE-PROFANO . Mario Pemiola 19 ta, @ de Carl Schmitt, que apresentou a origem teolégica dos conceitos sobre os quais se fundamenta a moderna teoria do estado, o problema de secularizagdo chama a atengao dos estudiosos: 0 denominado profa- no, apressadamente definide com referéncia aos ambitos econémico & politico, seria nada menos que um ex-sagrado, Realmente, o sagrado se manifestaria na sua forma final propria da atual sooiedade da mass- média: segundo Debord (1967, p.17), a sociedade do espetéculo é a re construgéo material, da religiao. ENTRE SAGRADO E PROFANO .. A ravisio critica da teotia cléssica da relagéio sagradoyprofano al- canga, antes de tudo,.a individuagéo de um &mbito que, conforme as cocasides e circunstincias, pode ser considerado como sagrado ou come profano © que, por isso, 6 entremeio em relagdo as duas detarmi- nagées opostas. Este permeio, este metaxd, este zwischen entre o sagrado @ 0 profano, pode ser considerado como um simples interval, come alguma coisa de provisério e de aleatério que compreende @ @) ge uma determinacéo clara e definitiva, como um momento de suspen- so preparat6rio © pré-decisivo em relagéo a uma altemativa, 2 qual nao se evita, como um lugar marginal, um confim destinado a afinar-se até ficar inconsistente como um espago que espera somente ser ocupado pelo sagrado ou palo profano, Mas se pode também, formular uma hipdtese diferente: que aquilo que est no entremeio, entre o sagrado © 0 profano, entre 0 céue a terra, seja qualquer coisa mais ampla, mais importante, talvez mesmo essancial que possa marcar espago, tanto ao sagrado quanto ao profena. Assim parece pensar Heidegger (1976, p.131) quando relaciona o habitat huma- no com a compreensdo do zwischen e define este Ultimo como medida diametral e dimensdo: “A esséncia da dimensio - esoreve - é a abertura lluminads; © por isso, diametralmente capaz de ser medida, atribuigéo (zumessung! do entremeio: acima do cau @ abaixo da terra”. 20 MAIS-QUE-SAGRADO MAIS-QUE-PROFANO . Mario Perniola Este espace intermediério nao deve ser pansado como um justo mefo entre 08 dois opostos; ele 6 tudo o mais que consente o desen- volvimento tanto do sagrado quanto do profano, Nao é a abertura de uma zona neutra no interior do dualismo entre sagrado e profano, mas a afirmago de um monstro que suporta tanto uma verséo sagrada quanto uma verséo profana. O precedente filoséfico mais importante deste duplo monisrno 6 constituido pelo estoicismo que é um espiritualismo integral, que de- termina ao /égos, a tarefa de tudo invadir, ¢ um materialismo integral que sustenta a essencial corporeidade do universo (SPANNEUT, 1957, p.131]. A presenga, em todos os seres, de um sopro divino e o rigoroso coneatenamento das causas s4o as duas faces de uma mesma institu- 40 filos6tica que pensa contemporaneamente duas séries de fenome- nos (GOLDSCHMIDT, 1977, p.106), De um monismo a outro, vai-se através de uma passagem que corre do mesmo ao mesmo; mas mes- mo néo significa {gual (HEIDEGGER, 1976, p.129). A perfeigéo do mun- do implica em um movimento de tensdo, em um intervalo, em uma diéstema; 0 entremeio néo 6 determinado pala existéncia de dois ter- mos iméveis, mas pelo movimento mesmo: "o movimento nao preen- che o intervalo, mas o determina” (GOLDSCHMIDT, 1977, p.96). « Sobre este duplo monismo se fundamenta a continuidade, entre estoicismo e filosofia cristé: os exercicios espirituais cristéos séo 0 pon- to de chegaca de uma atitude em diregéo ao sagrado @ ao profano, em Cujas basas esto a maior parte dos estéicos (POHLENZ, 1978, p.261). Isto que parece essencial 6 a adeséo aos infinitos modos em que se mostra a vontede de Deus, as infinitas dimensées em que se mostra a experiéncia histérica. © duplo monismo estéico-cristéo 6 um raciocinio essencialmente arguto, que se desenvolve, por assim dizer, a dos luces, double face. Um grande intérprete disto &, nao por acaso, Baltasar Gracin, 0 tedrico maximo do conceitualismo do século XVII, autor de livros sacros, como E/ comulgatorio, @ de livros profanos, como E/ he- 08, @ também de livros t8o sacros quanto profanos, como a Agudeza y arte de ingenio. O aforismo que ele retoma do gran maestro (Sant'ignazio) resume muito bem a atitude de quem vive no zwischen, MAIS-QUE-SAGRADO MAIS-QUE-PROFANO , Mario Pemniola a no entremeia, entre © sagrado e 0 profano: “valer-se dos meios huma- nos como se nao existissem os divinos, e dos meios divinos como se néo existissem os humanos” (GRACIAN, 1986, p.251). (© MAIS-QUE-SAGRADO............+ A segunda conclusdo, que se liga & revisao critica da relagdo sa- gradofprofano, 6 a existéncia de um ambito mais-que-sagredo no con- fronto onde o sagredo parece realmente profano, Este mais-ue- sagrado pode ser chamado de divino, santo, transcendente, mas estas denominacdes sao ainda muito genéricas, porque cada um destes ter- mos, pode ser pensado de muitas maneiras. Na realidade, isto que ests 1na origam da nogéo de mais-que-sagrado 6 a compresnsdo da ciferen- ¢@, assim coma ela foi concabida pelo raciocinio teolégico € filosético do inicio do século XX, em Kerl Barth ¢ em Heidegger e em todos os que se inspiraram nas suas obras. Como se notou, 0 ponto de partida dessa compreensio é uma premissa anti-metafisica e anti-humanistica, cujas origens véo ser pesquisadas na teolagia da cruz de Lutero @ no salto kierkegeardiano entre a fase ética e @ fase religiosa O estudo da diferenga se apresenta como uma radicalizagéo da teoria classica do sagrado. O sagrado a que Durkheim se refere, nao & ainda heterogéneo o bastante e separado do mundo humano, mesmo porque 6 uma parte deste mundo. Assim, © ganz Anderes, 0 completa- ‘mente outro, a que se refere Otto, néo ¢ ainda suficientemente outro, Porque & muito ligado ao sentimento. Nem a sociedade, nem o senti- ‘mento constituem via de acesso privilegiada a0 mais-que-sagrado, a0 diferente, porquanto a diferenca tenha que fazer tanto com a histéria quanto com a sabedoria, O fato 6 que na reflexao sobre a diferenga néo 6 2 sociedade, sem o sentimento que explicam 0 sagrado, porque o mais-que-sagrado, o diferente, toma-se inexplicével, embora fonte de todas as explicagdes, ‘Supor © mais-que-sagrado como essencial, néo significa rome- tor tudo para @ neblina de um elém desconhecido, O mais-que-sagrado, 2 MAIS-QUE-SAGRADO MAIS-QUE-PROFANO .. Mario Perniola 0 diferente, esta aqui entre nds: com ele so tecidas nao s6 as grandes tramas da histéria universal, mas também, na mesma medida, as pe- quenas tramas da vida de cada um. O mais-que-sagrado nao apenas silencia 0 propésito prometsico de ser © dono do proprio destino, mas ‘se refere a pretensdo humanistica de considerar tudo como um mero instrumento para o alcance de um mesmo propésito. A compreenséo do mais-que-sagrado implica no siléncio do sujeito, no fazer-se Nit guém,” mas também na disponibilidade de aceitar, aprofundar @ adap- tar-se” @ qualquer situagéo que ele ndo possa mudar. No fundo, foi o estoicismo que primeiro introduziu na filosofia a compreenséo da diferenga, Diferente 6 0 que tem relagio aos desejos, & avidez, as aspiragdes do sujeito e que, todavia, constituem para ele, 0 bem maior: n&o 6 por acaso que os estdicos faziam distingao entre es- copo (scopés| e fim (télos) de uma ago: no primeira, o homem pode se enganar, porque seu intento nao depende dele, mas do destino, do mais-que-sagrado; no segundo, ao contrério, nao deve haver erro, por- que considera a sua adeséo & ordem do mundo, ao curso das coisas, néo importa © que se configure (GOLDSCHMIDT, 1977, p.146). Nao basta aceitar os acontecimentos obtorto collo, 6 necessério desejé-los: esta 6, para os estbicos, a cheve da felicidad © do sucesso. © MAIS-QUE-PROFANO AA terceira concluséo que se liga 4 reviséo critica da relagéo sagra- dofprofano 6 a existéncia de um €mbito mais-que-profano, no confronto do qual, © profanc parece absolutamente sagrado, A dimensao mais- ‘que-profana no aquela aberta por uma profanacao, por um sacrilégio, Por uma transgressao. Como jé revelava Durkheim (1971, p.446}, uti *cobre o concito de Nessuno cf. R, GIORGI, Figure dl Nessuno, Milano - New York, Out of {ondon Press, 1977, @@ minha cites ne "Avista di Estxea”, 1979, 0.2. 'As nogias de accitagio, aprofundemento, epropriagso sia Implistas em “Verwindunng hholdesgeriana”: cr. M. HEIDEGGER, op. cit, p46 ‘MAIS-QUE-SAGRADO MAIS-QUE-PROFANO , Mario Ferniola 2B zando as observagées de Robertson Smith sobre a ambigtidade do sagrado, 2 profanago s6 faz ampliar 0 espago do sagrado, articulando-o ‘em puro e impuro, fasto e nefasto, santo e sacrilego, divino e diabélico. Segundo esta linha, Caillois distingue um sagrado de respeito eum sagrado de transgressio © Bataille (1962, p.74) considera, realmente, a transgressdo ndo como a negagao, mas sim como 0 complemento do sagrado: "o tabu existe para ser violado”. N&o contradizendo, para Otto (1966, p.146), o demonlaco pertence & fenomenologia do sagracio. © mais-que-profano s6 pade emergir de uma radicalizagéo daquilo que a teoria cléssica de Durkheim e de Otto considera como profane. Para Durkheim, o profano é individual, a vida ordindria ocupada preve- lentemente pelo trabalho e pelas ocupagées de todos os dias, ligadas com as necessidades da vida. Para Otto, 0 profano 6 aquilo que é habi- tual, ordindrio, usual, repetitive. O mais-que-profano, portanto, 6 a com preensao radicalizada da repeticdo. Tal palavra, todavia, neste contexto, no quer dizer fidelidade e conformidade a algo original que se reconhe- ce 0 valor, a ritualizagao de uma a¢éo origindria da qual afirma a superio- ridade ontolégica. Mas ao contrario, quer dizer distanciamento @ até estranheza irrmadiével em relagao ao original, autonomia da cépia, do mais derivado, do mais repetido, do mais misturado. (© mais-que-profane ¢ 0 cotidiano despido do enfase da tradi¢ao e do mito, despido da alterativa auténticoyinauténtico, levado 20 exerci- cio do desencanto, ao humano, humano em demasia de meméria ni- etzschiana. Este processo de desmistificagao, de desmascaramento, de (desiconstrugao, que tem suas reizes ainda no estoicismo, encontrou 3eU ponto maximo entre os séculos XVI e XVI, onde impropriamente foram chamados os moralistes cldssicos, de Guicciardini a Gracin, do Accetto a La Rochefoucald foram mais que nunea, os esprits forts de seu tempo. &, porém, profundamente errado ver nestes autores, os fexpoantas de um materialismo, de um atelsmo, de um racionalismo estreito. Ao contrétio, & tipico de uma ética mais-que-profana considerar com a méxima atengSo a dimenséo efetiva do sagrado, do sobrenatural, ‘operand néo s6 uma genealogia; mas também uma pragmética do sagrado, 2 MAIS-QUE-SAGRADO MAIS-QUE-PROFANO .. Mario Perniota © motor fundamental da atitude mais-que-profana é, no fundo, a reausa da nogéo de valor, compreendide como um dever ser, um So- llen, que néo tem forga de ser. Tal recusa se estende do valor moral - encontrado em Nietesche © em Heidegger (1975, p.117) @ seus crfticos implacéveis - a0 valor profano, econémico e poltice que constitui uma seculatizagao daquola. O valor de uso- escreve Baudrillard (1972, p.159) ~ 6. expresséo de tode uma motafisica:a da utiidade (,) Ela 6 a trans- crigéo no coragao das coisas da mesma lei moral.) inscrita ne coragdo do sujeito. Semelhante a isto, 2 ideologia politica - escreve Furet (1978, p43) - & "uma légica que reconstitui, sob uma forma laicd, o investi- mento psicolégico da crenga religiosa”. Paradoxalmente, para encontrar © mais-que-profano, & necessério realizar um salto aquém da moderni- dade econdmico-poltice, ineugurada pelo capitalismo e pela Revolugéo Francesa. E na idade pré-moderna, na compreenséio do cerimonial da corte que se desenvolveram as premissas de uma ética mais-que- profana (ELIAS, 1969). ENTRE MAIS-QUE-SAGRADO E MAIS-QUE-PROFANO ... As trs conclusées que formam a reviséo crftica da relagio sa- gradofprofano, parecem ser, entre elas, contraditérias © incompativeis. De fato, como 6 possivel sustentar, ao mesmo tempo, a existéncia de lum Ambito polivalente que se determina como sagrado ou como profe- No, conforms as circunstancias, a hegemonia de um ambito mais-que- Sagrado que tem a pretenséo de oxercitar-se em todo o lugar e sempre e, também, a hegemonia de um émbito mais-que-profano, que nutre as mesmas pretensdes? Resumindo nos termos mais essenciais 0 filosé- ficos, 0 problema poderia ser formulado assim: sao compativeis entre si © entremeio, a diferenca e a repetic&e? O duplo monismo que se arti- Cula sobre © par sagradofprofano pode produzir-se em outro duplo mo- Rismo articulado sobre o par mais-que-sagrado/mais-que-profano? Dife- Fenga e repeticao so as duas faces de uma mesma medalha? MAIS-QUE-SAGRADO MAIS-QUE-PROFANO .. Mario Peraiola 25 Duas ordens de consideragdes se impéem. A primeira considera com toda @ atengo a natureza toda especial da repeticéo mais-que- profana. Ela néo é 0 hdbito, 0 costume, a familiaridade, mas, precisa mente, 0 contrdtio, 6 0 aparecer de uma chance, de um Kairés, de uma ‘oportunidade na situagéo mais comum @ ébvia, Este aparecer do cife- rente no humano, demasiado-humano, todavia, nao 0 redime: a situagao permanece @ mesma, mas ela é aceitével. Nés no somos senhores nem mesmo do mais-que-profano: ele ndo se exaure em uma conside- ragao meramente intalectual. O desmascaramento consiste, realmente, no fato que também © mais-que-profano é um labirinto, néo menos do que 0 mais-que-sagrado. ‘A segunda consideragéo nasce da atengdo dada ao processo de duplicago que esté em ago neste tipo de raciocinio de otigem estéica Tudo procede como uma passagem continua tal, que o ponto de chegada &, 20 mesmo tempo, igual e diferente em relagio a0 ponto de partida Este movimento ndo pode ser interrompido, porque 0 essencial esté no meio, no inter, aberto pela duplicagao, Cada vez qua se estabelace uma oposigao, um dualismo (sagradofprofano ou mais-que-sagradofmais-que- profano} tem-se a tendéncia de colocé-los juntos, mantendo-os, porém, ‘como tais, sem anulé-os e confundi-los em uma unidade indiferenciada, mas querendos juntos. © entremeio 6, por isso, to essencial quanto a diferenga e a repetigéo: nés estamos entre o mais-que-sagraclo eo mais- que-profano, no ponte em que cada um deles se determina em oposicao @ outro, Este ponto é fecundo, porque o mais-que-sagrado @ 0 mais-que- profeno no esto fechados cada qual na sua identidade, mas so dissom- nam. Essa disseminagéo no sagrado e no profano, leva a quatro situa: (Ges: 0 mais-que-sagrado no sagrado, 0 mais-que-sagrado no profeno, o ‘mais-que-profano no sagrado, o mais-que-profano no profano, (© MAIS-QUE-SAGRADO NO SAGRADO......... E possivel encontrar uma teoria do mais-que-sagrado, também no sagredo, isto 6, no paganismo, tendo Deus como diferenga. Isto foi 26 MAIS-QUE-SAGRADO MAIS-QUE-PROFANO . Macio Perniola mostrado primeiramente, com a méxima clareze, no fim do século pas- sado, por Erwim Rohde (1982) no seu grande livro sobre a religiao gre- ga, Psiche, cujo registro fundamental é ainda aceito pela maior parte dos historiadores da religiéo graga. Rohde distingue nitidamente 0 mis ticismo estetizante do culto dionisiaco e de Platéo, uma fase mais anti- 92 da religiéo grega, na qual permanece a distingdo essencial entre o humano @ 0 divino: esta primeira fase que se expressou nos poomas homéricos no culto dos heréis, foi cultivada pela teoria que “uma col- sa 6a descendéncia dos homens, outra & aquela dos deuses”. A esta fase pertencem, segundo Rohde, também os mistérios de Eleusis, os quais, por isso, nada se fez com 0 misticisme diorisiaco. Os mistérios de Eleusis representariam, por isso, no paganisro rego, uma teoria do mais-que-sagrado, © mistério que era imposto aos iniciados nunca foi revelado, por- que néo havia nada a relevar: a teoria eleusine era teoria do nada (SABBATUCCI, 1979, p.145), Ela néo introduzia a um estado de sobreexci- taco, a um meravilhoso longinquo e estranho a vida cotidiana: depois de ter estado em Elousis cada um voltava a sua casa e vivia a vida de antes, retomava seu lugar no mundo, “0 iniciado, segundo Sabbatueci, 6 aquole que, quando morre, sabe que & um bam morrer, @ desta yerdade pode ter consciéncia somente enquanto vivo, porque quando morrer se extinguiré como todos 08 outros; 0s outros, ao invés, morrem sem te- rem sabido por que se nasce @ se morte, cu pior, convencidos de que morrer seja um mal” (ibid, p.158). A aceitacéo da diferenca resguarda do 56 a vida, mas também @ morte, Esta aceitagdo implica em um ato do surpresa, cheio de temor @ respeito: sebds, ciziam os gregos, com referencia certa 20 culto de Deméter, a deusa dos mistérios oleusines. Esse ato implica também @ sobretudo, a compreenso da alegria: tal era mesmo a tonalidade emotive fundamental dos mistérios eleusinos (MEAUTIS, 1959, 0.86). A pesquisa do mais-que-sagrado no paganismo néo se limita & Grécia. Ela atinge também, a religiéo romana, que foi pensada, durante séoulos, @ quinta esséncia da idotatria, Jé Wissowa (1904, p.280) tinha shamado atengao sobre 0 origindrio aniconismo dos Romanos, que du- MAIS-QUE-SAGRADO MAIS-QUE-PROFANO , Mario Perniola a ante os primeiros cento e'setenta anos da sua histéria nao teriam tido estatuas dos deuses, Mas foi sobretudo Koch (1937) no seu livro Jupp ter romano a considerar, positivamente, a falta de mitos da religiéo ro- mana: isto ndo seria devido a incapacidade de criar mitos, mas ao con- trério, devido a um processo de desmitificacdo que merece ser estude- do separadamente, Portanto, também na religiéo romana haveria.a obra um mais-que-sagrado, que se manifesta na recusa da fabulagao antro- pomérfica, no esquecimento do mito, na indeterminago das figuras divinas, as quais freqlientemente assumem as caracteristicas mais ‘opostas @ incompativeis. O mais-que-sagrado romano se manifesta sobretudo na extrema prudéncia nos confrontos com o divino, no com- portamento de cautela, circunspecgao, de atenta @ respeitosa observa- 80 dos sinais, dos portentos, dos prodigios: disto tudo nasce a divina- tio, recentemente definida por Dumézil {1974} como “uma formidével maquina de informagao nos confronts com o invisive!”. Todavia, os sinais nao so nunca determinados @ univocos: em tiltima anélise, tudo 6 enviado as duplicagbes, as muttiplicagées, a alferenca da histéria, Enfim, viu'se @ manifestagdo do mais-que-sagrado até nas religides dos assim ditos povos primitivos, objeto de estudo dos etndlogos e antropblogos, consideradas pelo evolucionismo do século passado ‘como primeiro degrau de um longo processo que teria encontrado 0 ‘coroamento no menotefsmo. © pensamento pagio - como mostra Marc ‘Augé (1982] no seu Génio del paganesimo - nao & simples, nem tosco. Ele 6 0 contréri, artifice de articuladtssimas ¢ laboradissimas duplica- des e multiplicages dos signos e dos processes de inverséo, de mi- metismos, de aliminagao, que esto no pélo oposto da escatologia visi- ‘onéria: portanto, nenhume pretensiio de dominio do sagrado, mas ao contrario, maxima plasticidade @ capacidade de adaptacdo nos confron- tos das infinites imprevisdes do mais-que-sagrado, da ciferenca. Toda- Via, tal atitude que o paliteismo tem por definigao, ndo ¢ ilimitada; existe alguma coisa que destr6i a sua l6gica: este inimigo radical do politeismo Vai ser provavelmente, procurado nas manifestades do idéntico, no mis- 28 MAIS-QUE-SAGRADO MAIS-QUE-PROFANO , Mario Perniola ticismo estetizante, no sectarismo, mas também ne confuséo, no nivela- mento indiscriminado, na redugSo indiferenciada ao igual. A detinigéo que Pascal (1962, p.6) deu ao espirit de finosse 6 a mais adequada para entender 0 mais-que-sagrado politlstico: Pascal definia tal esptito, refe- findo-se @ uma “multiplcidade de principios to ténues @ téo numero- 08 que 6 quase impossivel néo se esquecer de algum". Estes principi- 08 néo séo tratados todos da mesma forma e séo tantas que & necessé- rio um sendo muito perspicaz e delicado para sentilos e depois julgar do modo correto ¢ justo. (O MAIS-QUE-SAGRADO NO PROFANO Uma dimensao profana, considerads como ambito de interesse, se contrapée, geralmente, a uma dimenséo sagrada, considerada como Embito de desinteresse (BATAILLE, 1971). A mesma palavraletina sacer se refere a qualquer coisa de cistinto © separado do mundo profane do trabalho © das relagées habituais, da economia e da polttca (BENVENISTE, 1976, p.427). Este estatuto de separagéas foFtransmi do pela rligido & cultura tourt court, como consequéncia dos processos de secularizagao e de leicizagao feitos hé séculos: os produtos artisticos ou filoséficos mantiveram, até hoje, uma aura cuja origem sacra 6 evi- dente, A idia de que o reina do espirito esteja além 0 acima de todos 08 interesses, solidéria com a nogéo grega de bios theoreticds @ com ' nogio medieval de vida contemplativa (ESSER, 1973, p.738). A nogao de desinteresse estético, que encontrou 0 exemplo maximo na Critica do juizo Kantiana, se movimenta no interior de tal tradigao (ERHARDT, 1970, p.488). Se 0 sagrado 6, pot isso, ligado ao desinteresse, 0 mais- ue-sagrado deveria implicar, 8 primeira vista, om uma nogagao do into- esse ainda mais radical da tradicional, Acontece, ao invés, 0 contri. A resenga do mais-que-sagrado no profano, no mundo da economia @ do MAIS-QUE-SAGRADO MAIS-QUE-PROFANO , Mario Perniola 29 trabalho, se entende somente a partir do aprofundamento da nogio de interesse @ ndo na sua negagéo. De resto, basta um breve estudo sobre a historia moderna do conceito de interesse, para se dar conta que o desinteresse esconde uma problemética positive: 0 interesse superior. Isto assumiu muitos aspectos: 0 interesse de estado, distinto na tratatistica politica do sé- culo XVII, do interesse do principe; o interesse ptibico, contraposto, por muitos teéricos da politica, ao interesse privado; 0 interesse comum separado por Rousseau, dos interesses particulares; 0 intoresse distan- te, anteposto por Jhering, ao interesse momenténeo (ORNAGHI, 1984); © interesse da alma que, na literatura esniritual, nada pode fazer com os interesses mundanos; o interesse da razio, de que falam Kant e Fichte como qualquer coisa de irredutivel aos interesses das inclinag6es sensi- veis (HABERMAS, 1970, p.188) Na realidade, todos estes interesses superiores s6 fazem esten- der a légica do profano ao territério sagrado, ampliando enormemente o Ambito de aplicagao da famosa maxima o interesse néo mente, Todos elas se baseiam no pressuposto que o homem possa estar sempre a onto de compreender racionalmente, onde esté seu verdadeiro inte- resse. Em suma, nao se sai da légica da identidade. O mais-que-sagrado Introduz, ao invés, a ldgica da diferenca. ‘A nogéo de interesse superior constitui um aprofundamento, ainda insuficiente, do concsito de interesse. Ela mostra, claro, a dimenséo an- tropolégica do interesse, 0 caréter essencialmente interessado do modo de ser do homem, e, também, as sues mais altas e sagradas manifesta- 628. Mas, he escapa a esséncia propriamente dita do interesse. Interes- 0 ver do latim interesse, que quer dizer estar entre, ou também impes- soalmente haver uma diferenga entre portanto ser de importéncia, im- portar. © interesse &, entéo, etimologicamente ligado ao intermeio @ com a diferonga. Darhe um significado @ parte (como o que serve a qualquer identidade, soja pelo estado, pela comunidade ou pela razéol, ou entéo, Considerélo exclusivamente como vantajoso, cil, significa reduzir, de modo unilateral, sua esséncia, Originariamente, segundo um uso ainda 30 MAIS-QUE-SAGRADO MAIS-QUE-PROFANO . Maria Peraiola vivo do século XY, interesse quer dizer tanto vantagem quanto dano, tanto utiidade quanto detrimento (ORNAGHI, 1984, p.4), tanto Entfernung quanto Gegenwértigkeit, tanto distancia quanto presenga (ESSER, 1973, P.738). Assim de improviso, o mais-que-sagrado, o diferente irrompe no profano, no mundo da economia e da politica. N6s no somos inteiramen- te senhores do nosso interasse, porque ele ndo pode ser determinade por rnés. Em qualquer situagdo que se encontre, o homem & sempre jntor- e88e, no interior da dimensao do interesse; néo existe nada fora disso na condigéo humana, Até 0 destino mais humilde solcite uma-participagso, um amor destinad, um interesse, @ fim de que se realize, Quanto a van- tagem © ao dano, eles correm um em diregéo 26 outro, invertem-se um. no outro. O homem esté entre um @ outro, mas néo como espectador passivo. O estar-enire quer dizer tar sempre a possibilidade de encontrar- ‘se em uma dimenso mediativa e interrogativa em toro a vantagem @ ao dano, 20 util e 20 indtil,&s infinitas dissimulagées co mais-que-sagrado no labirinto do mundo, (© MAIS-QUE-PROFANO NO SAGRADO ‘A manifestagdo do mais-que-protano, da repeti¢go no Mundo sa- grado 6 0 rito, Porém, s6 muito recentemente, o rito comoga a ser pen- sado na sua autonomia. Na realidade, a antropologia herdou da tilosofia um preconceito antisitual, cujos efeitos se mantém até hoje. A antro- Pologia sempre subordinou o rito a algo mais: ele foi, vez ou outra, via de resgate do homem da incerteza @ da angiistia, meio de eficdcia sock al (Durkheim), instrumento de aga no mundo sobrenatural (Malinowski), paradigma arqustipo com 0 intuito de fixar a relagéo entre @ condicéo humana e aquilo que a ela se subtrai (CAZENEUVE, 1972), Na tendéncia inaugurada por Hahn @ desenvolvida por Meinhof Le Coaur © Masure - afirma-se a prioridade hist6rico-cronolégica da ago ritual: para cada atividade Util, estaria, originariamente, uma acéo ritual Inverte-se somente a determinagdo de premissa funcionalistica, mas MAIS-QUE-SAGRADO MAIS-QUE-PROFANO , Mario Perniola au no se chega & compreensio do tito, enquanto rito, da repeticéo en- quanto repetigo, do mais-que-profano no sagrado. ‘A postura antivitual da antropologia é evidente através do exame da relagao miterrito, Sobre este argumento foram formuladas duas teo- rias: a primeira prevaleceu até o fim do século passado e sustenta que o Tito vem antes do mito (William James, Robertson Smithl; @ segunda, que ¢ hoje a mais difundida, sustenta que o rito é a atualizacao do mito, Todavia, ambas apresentam um pressuposto antivitual. Realmente, a primeira relaciona o tito a primitividade da raligido: quanto mais uma religido & primitiva tanto menor & 0 nlimero de seus mitos @ de suas crengas; a segunda estabelece uma relagéo de dependéncia do rito ao mito (Mircea Eliade’, A atitude anti-ritual da antropologia foi rebatida por Lévi-Strauss nas paginas finais do L’uomo nuda. Nesta obra ele reduz o ritual a uma imitologia implicita: “a mitologia explicita © a mitologia implicita constitu- fem duas modelidades diversas de uma idéntica realidade”; “gastos e objetos intervém fn foco verbl, substituem es palavres”. Para Lévi- Strauss (1971, p.5971 ritual tem uma dimenséo maniaca e desesperada. Do mesmo modo, também os helenistas atribuern ao mito um papel privilegiado, em nome da conaxao existente entre a ciéncia dos mitos ¢ a Grécia antiga. & evidente a perticipagae de um pensamento mitico entre os especialistas da cultura arcaica (Griaule, Leenhardtl Tudo isto mostra uma verdadeira incapacidade de pensar o fend meno da repetigéo ritual enquanto tal, sem sustentd-lo sobre a fungéo, sobre a origem, sobre 0 mito. E, todavia, néo se trata simplesmente de uma oposigéc entre emotividads e regra. Na desconsideraggo da autonomia do rito efetive-se 0 preconcei- to de uma tradigao que esta disposta a reconhecer sentido no gesto, somente se for subordinedo pelavra, Uma ago repetitiva que no encontra seu ponto de apoio num conto genealégico, numa crenca indi- vidual @ coletiva, 6 considerada, quase unanimements, pela tradigio filoséfica ocidental, dos neo-platénicos a Diderot, de Agostinho a Lévi- Strauss, como um comportamento vazio, asterectipads, supérfiuo, resi dual, patolégico, manfaco, desesperado, que pode ser, no maximo, ob- 32 MAIS QUE-SAGRADO MAIS-QUE-PROFANO . Matia Perniola jeto de apreciagéo estetica. Nem mesmo a psicandlise libertou o ritual desta milenéria condenagao: assim, relacionando-o ae comportarmento dos obsessivos, confitmou sua negagéo. Porém, na antropolagia, comera @ aparecer pouce a pouco, @ exi- géncia de uma teotia do ritual que procede seguindo uma ldgica inde- pendente do mito. Os estudos de Victor Turner (1972) @ de Max Glukman (IL RITUALE) testerunham a necessidade de abrir novos ca: minhos neste setor de pesquisa. Ainda mais significativas so algumas publicagées coletivas muito recentes, que procuram sublinhar @ auto- nomia do rito (INSTITUT, 1981) Ume completa emancipagéo do rito a0 mito surge, porémn, so- mente a partir do momento em que se v8 nele, néo somente 0 sagrado, mas também 0 mais-que-profano. Qutrossim, neste caso, 2 religiéo romana antiga, pelo seu caréter ao mesmo tempo cerimonial e pregmé- tico, representa um ponto de referéncia privilegiado, Montesquieu (1949-1951) ja observava que o aparente absurdo do ritualismo romano era co-essencial com a extrema plasticidade no confronto do real: ‘mesmo esta singular estratégia intolactual, que conseguia fazer coinci- dir 0 respeito mais escrupuloso dos ritos com a aceitago mais precon- Geituosa do dado, constitiria, segundo ele, uma das causas,principais da grandeza dos Romanos. 0 caso da religiso romana antiga mostra que © pensamento do ritual néo apresenta um caréter miope @ riisonatsta: ao contréri, ele fol definido como “uma agéo sacerdotal pronta a apre- sentar muitas contribuigées novas” {BAYET, 1957, p.42) @ a intograr cada espécie de culto estrangeire. Um efetivo aprofundamento teérico do mais-que-profano do rito romano deveria interragar-se também, so- bre © significado do ius, entendido como essencialmente distinto da lex: néo ato voluntariamente vinculado & comunidade, mas patrimdnio que requer uma interpretacéo, cuja obrigatoriedade nao depende da vontade de um Unico sujeito politico, mas sim da conformidade & real- dade das coisas (BIONOI, 1964, p.34-69), ‘A presenga do meis-que-profano no sagrado no emerge somen- te do estudo das antigiidades romanas. Ao contrério, ole é um fenéme- no por exceléncia contempordineo, porque conectado com a dissemina- MAIS-QUE-SAGRADO MAIS.QUE-PROFANO , Mario Perniola 33 do des culturas religiosas em escala planetéria e com a sua miscigena~ do. A permanéncia e a reprodugdo dos rituals so sequidamente acom- panhados pelo esquecimento e pela perda dos mitos correspondentes. Particularmente significativo a tal propésito, é 0 caso do Brasil, onde as religides africanas foram transplantadas, esquecenco totalmente os mitos originérios e incorporando elementos da agiografia® catélica e dos cultos amerindios (BASTIDE, 1960, p.334h; os sincretismos singulares, que ali nasceram, constituem um objeto de estudo extremamente inte- ressante, proprio para mostrar os aspectos mais-que-profanos: “o tran- se ndo 6 necassariamente religioso, mas se utiliza de simbolos religio- S08 pata mascarar outras preocupagées” (BASTIDE, 1977, p.201). No decorrer do ditimo dec&nio, assistiu-se a um crescimento de elementos mais-que-profanos no interior de esquemes do rituais sagrados (ARCELLA, 1990). Aspectos enélogos so documentéveis também na Itélia: por exempio, no culto da Madontia dell’Arco, em Népoles, que no é uma mera sobrevivéncia, mas um fendmeno em expanséo.® (© MAIS-QUE-PROFANO NO PROFANO 0 mais-que-profano néo se manifesta somente no sagrado, mas ‘também no profano: a repeticgo aparece no século XVI e depois como sinonimo da boa educagao, etiqueta, cédigo de boas maneiras, regra do saber viver. Sobre tudo isto se constitui uma cotidianeidade de auto- controle, de politesse, de urbanidade, que prescreve comportamentos adequados para cada ocasiéo (ELIAS, 1976). Impulsos profanos podem ser satisfeitos sé indiretamente © de modo néo evidente, A urbenidade SN. T. Literature que trata da vida dos santos, bostos © venerévels, “Pata o estudo dastes assuntes foram dedicados o¢ eeguintas semingrios interdlscpline res: La transe mediternea rituale de "fujent", sheure de M, Costa @ M, Pemiola (Universite di Solero, 14-15 ottobre 1983); Proteata @ transe in India @ cure di M. Petre ‘ole (XXI Festival dl Santareangelo, 9 luglio 91) ed Estetica del Sacro, a cura di A, Motta (Universita de Pernambuco, Recto, 28-28 magsio 6 1 giugno 1992), 3 MAIS-QUE-SAGRADO MAIS-QUE-PROFANO . Matio Perniola 6 a prépria presenga do mais-que-profano no profano, contraposta & vilania, a vulgeridade, & ma educago que so caracterizadas pelo com- pleto abandono a avidez ¢ &s desordenadas peixdes do sujeito. O mais- queprofano se determina, portanto, também como uma duplicacéo, aumento, multiplicagéo: aquilo que 6 Gnico, irrepetivel, irreverstvel, ja- mais 6 bom, porque 6 trégico. A partir do momento em que proferimos ao orginal, @ sua cépia in- discemivel, entramos no ambito do simulzcro, A cifuséo desta palavra, no decorrer dos Ultimes anos, corresponde a afirmar-se uma prospectiva ‘mais-querprofana no interior do profano, que néo parece mais‘dominado pelo modalo da inovagéo, mas sim, polo da repetigao. Ao fim dos anos cinqUenta, Pierre Klossowski (1963, p.217) introduz 6 termo simulacro no debate filoséfico, entendendo-c como falsidade em boa consciéncia, erro desejado. Todavia, na sua obra, a nogéo de simulacro parce ficar junto a uma prospectiva sagrada em conformidade com a origer de pelavra que designava a estétua dos deuses pagéos {KLOSSOWSKI, 1983), No quadro desta acepcdo sagrada, sola, porém, para contestéla, avanga 0 ensaio de ‘Van Overbeke (1974) sobre o simulacro cibemstico. No entanto, Audouard (1966) ¢ sobretudo Deleuze colocam em evidéncia 0 aspecto essencial mente antiplaténico do simulacro, opondo-o & nogdo plattnied de {cone (OELEUZE, 1984). Mais recentemente, 2 nogdo de simulacro yen sendo utlizada para designar alguns aspectos essenciais da sociedade da mess ‘média, como a predominancia da imagem sobre a realidade, da cOpia sobre 0 original, do duplo sobre o exemplar. Delineiam-se aqui, duas interpretagdes: a de Jean Baudrillard (1881) que tende a dar uma interpretagdo tragica da no-realizagao soci ale a deste que escreve, para o qual 0 simulacra marca, na realidade, 0 fim de cade tragicidade © o surgimento de uma problemética mais-que- profana (PERNIOLA, 1980) Todavia, 0 triunfo da repeticao e do simulacro no mundo contem- parfineo, no deve ser entendido como vitéria da benelidede, da trivial dade, ou, pior ainda, do falso, Este modo de pensar & prisionsiro da Mmetafisica, a qual tem uma concepgao estatica e rigida da realidade. MAIS-QUE-SAGRADO MAIS-QUE-PROFANO , Mario Perniola 35 Vale a pena questionar-se sobre qual ¢ 0 contrério do duplo. Clé- ment Rosset (1985) 0 definiu o objeto singular. aquele que é idéntico a si mesmo © do qual no 6 possivel fazer-se nenhuma reprodugao, o objeto mais inidentificavel, indascritivel ¢ invisivel e que é caracterizado pelo fato de ser simples © Unico. Sobre a base destas determinagdes, Rosset (1991) constréi uma filosofia do ser de inspiragéo parmenidea nfo destoa da obra de Emanuele Severino. A pesauisa deste que escreve movetrse na diregéio de uma on- tologia do duplo, que aprofunda suas origens em Herdclito e que tem assondncia com 0 estilo do pensamento enigmatico e paradoxal dos Lltimos escritos de Luigi Pareyson (PERNIOLA, 1982). A minha atencdo s@ volta ndo sobre o conflita entre o original @ @ cépia, o Unico @ © duplo, © objeto singular @ o simulacro, mas entre dois tipos de duplos que sé 098 dois, mais-que-profanos: um duplo caracterizado pela transparéncia reflatora nos confrontos de todos os conhecimentos @ pala habilidade de reproduzi-los de mansira asséptica e destacada (e portanto, uma espécia de j4 conhecitio), @ um duplo caracterizado pela fecundidade, isto 6, pela capacidade de fazer sempre renascer 0 conhecimento atra- vés de um processo de substituigéo do velho pelo novo te, portanto, uma espécia de geragdo permanente) (PERNIOLA, 1991). Ora, os dois termos desta polaridade, o homem espelho e 0 homem novo séo du- plos, todavia, de modo diferente © contraditério, & é esta co;presenga de aproximacdo e de disténcia entre modos e estilos de vida mais-que- profanos que constituem o enigma do simulacro @ o ponto de partida ara uma ontologia do duplo. De resto, a idéia estdica de um eterno retomo, em virtude do qual tudo se repetiré do mesmo modo, por infinitas vezes, constitui @ mais radical @ categérica afirmagao de um sentir mundano mais-que-profano, que se estende ao universo inteiro. ‘Texto publcado orginalments com o tule Pid-che-sacra, Pi-cheprofano pela editora Mimesis, Mio, 1992, Pubicagdo autorzada pelo autor. Tatigéo de Dione M.D, Busett 36 MAIS-QUE-SAGRADO MAIS-QUE-PROFANO , Mario Perniola REFERENCIAS BIBLIOGRAHICAS « ‘ARCELLA, L. Rio Macumba, Roma: Bulzoni, 1990 ‘AUDOUARD, X. Le simulacre. Cahiers pour analyse. n3, mag. - gu, 1996, AUGE, M. Génie atu paganisme. Parigi: Galimard, 1982. BASTIDE, R. il sacro selvaggio. Tradugao por M. Giacometti, Milano: Jaka Book, 1977. Les religions africaines au Brésil, Paigi: P.ULF., 1960. BATAILLE, G. Lerotisme. Tradugéo por A. del'Orto, Milano: Sugaréo, 1962. ——. "Théorie de la religion”. in: Oeuvres complétes. Parigi: Gallimard, 1971.3, BAUDRILLARD, J. 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