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DE SEABRA PEREIRA
EM
PORTO
1999
MARIA LEONOR F. A. DE SEABRA PEREIRA
EM
PORTO
1999
Dissertação de mestrado
apresentada à Faculdade de Letras
da Universidade do Porto
PREFÁCIO
preparação e discussão dos respectivos trabalhos, essa experiência intelectual para mim
significou. Por isso esta dissertação acaba por reflectir, dentro embora do respeito pela sua
aquelas Presenças Reais de que nos fala Georges Steiner - os textos literários e os
sentidos que neles nos solicitam. E, ciosa sem dúvida da atitude de seriedade que lhe
subjaz, esta dissertação assume as modestas ambições de contributo inicial para outro
estudo mais profundo, isto é, pretende apenas apresentar uma sondagem de formas do
conteúdo e da expressão através das quais a narrativa de António Cândido Franco busca
II
manifesta na Vida que lhes é imanente, mas que misteriosamente parece querer
transcendê-la.
Devo uma sincera palavra de agradecimento aos orientadores dos Seminários que
tão proveitosamente frequentei - Profs. Doutores Ferreira de Brito, Isabel Pires de Lima,
correcção.
Introdução
literário que, embora com a dominante deficçãonarrativa, me interpela por fundir essa
como intermitentemente funde o modo narrativo com o modo lírico - entre uma
(1) - Isabel Pires de Lima, «Tempos sebásticos: os fins de século», in Marie-Hélène Piwrák (ed.), Regards sur
deux fins de siècles (XDC-XA). Bordeaux, Maison des Pays Ibériques, 1996, pp.. 57-59 e 70; F. J. Vieira
Pimentel, «Em tomo do ensino das literaturas nacionais: algumas considerações», Arquipélago-Linguas e
Literatura. XV, 1998, p.292.
2
de Sebastião Rei de Portugal (em que aquele contraponto cede lugar a único, mas
romance histórico, mesmo quando os seus autores ensaiavam uma relação metafórica
com modelos arquetípicos. 3 Conjuga, antes, uma ambígua condição discursiva que
especulativas e gnómicas (que tanto soam num timbre nietzscheano, como num timbre
António Cândido Franco conduz-nos para uma mais insólita condição discursiva que,
(2) - «Através da paciência e da mentira, todo o esforço do homem tende para outro homem para o homem ideal,
para a figura de sonho, que há-de ser um dia a criação dos vivos e dos mortos - o sonho realizado - o universo
realizado.»
(3) - Veja-se G. Lukács, Le Roman Historique. Paris, Payot, 1977; Carlos M. Rama, La Historia y la novela, 2a
ed., Madrid, Ed. Tecnos, 1975; Joseph Turner, «The Kinds of Historical Fiction: An Essay in Definition and
Methodology», in Genre, Oklahoma, tXII, 1979, 333-355; Harry Shaw, ne Forms of Historical Fiction, T ed.,
Ithaca & London, Cornell Univ. Press, 1985; Elisabeth Wesseling, Writing History as a Prophet -
Post-modernist Innovations of the Historical Novel. Amsterdam &Philadelphia, John Benjamins Publishing
Company, 1991 (pp. 42 segs., a propósito de Manzoni); Michel Vanoosthuyse, Le Roman Historique (Mann,
Brecht, Doblin). Paris, P.U.F., 1996 (sobretudo p. 42); Celia Fernandez Prieto, Historia Y Novela: Poética de la
Novela Histórica, Pamplona, Ed. Universidad de Navarra, 1998.
(4) - Cf. Carlos Reis, «Fait historique et référence fictionelle; le roman historique», in Dedadus (Revista
Portuguesa de Literatura Comparada), N° 2, Dezembro de 1992; idem, «Estatuto ideológico y semionarrativo de
la novela histórica», in Maria Gracia Profeti et ai, Refundación de la Semiótica. Sevilla, Editorial Don Quijote,
1993, pp. 33^9.
3
sem abdicar daquelas ressonâncias, tonaliza-as talvez mais por uma narrativa de
(5) - Robert Bréchon, «Prefácio à tradução francesa», in Virgílio Ferreira, Alegria Breve, 5' ed.. Lisboa,
Bertrand, 1981, pp. 7-11; Álvaro Manuel Machado, Agustina Bessa-Luís: O Imaginário Total. Lisboa, Publ.
Dom Quixote, 1983.
(6) - No sentido (aliás brandoniano, como outros rasgos de A. Cândido Franco) de que o grotesco «has a harder
message» do que a tragicomédia: «It is that the vale of tears and the circus are one, that tragedy is in some ways
comic and all comedy in some way tragic and pathetic.» (Philipe Thomson, The Grotesque. London, Methuen,
1972, p. 63).
(7) - Cf. Antonio Quadros, A Teoria da História em Portugal, Vol. n, A dinâmica da História. Lisboa, Espiral,
s./d.
4
dados), nem pretende deixar-se assimilar pelo saturado corpus literário (narrativo,
De facto, sob a acracia e o humor, não se descarta a utopia de Portugal como Nação
(8) - Veja-se sobretudo A. Costa Lobo, Origens do Sebastianismo, 2a ed., Lisboa, Ed. Rolim, 1982; João Lúcio de
Azevedo, A Evolução do Sebastianismo, 2" ed., Lisboa, Clássica Editora, 1947; Joel Serrão, Do Sebastianismo
ao Socialismo em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 1969; António Machado Pires, D. Sebastião e o
Encoberto, Lisboa, Fundação C. Gulbenkian, 1969; José Alberto Veiga, Fonction et Signification Sociologique
du Messianisme Sébastianiste dans la Société Portugaise, Paris, Sorbonne (éd. Polie), 1979; António Quadros,
Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, 2 Vols., Lisboa, Guimarães Ed., 1982-83; Eduardo Lourenço,
«Sebastianismo: imagens e miragens», in Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade, Lisboa,
Gradiva, 1999, pp. 133-142.
(9) - Até porque, em António Cândido Franco, «Sebastião, o rei português, vale não porque a sua história seja,
nos seus valores, para ser tomada a sério, como modelo adulto e estrutural, como pensou o Malheiro Dias» (Vida
de Sebastião Rei de Portugal, Lisboa, Publ. Europa-América, 1991, p. 205).
(10) - As obras de A. Machado Pires e de António Quadros citados na nota (8) incluem larga colectânea dessa
literatura tradicional de inspiração sebástica.
(11) - «A arte tem de mentir para deixar o terreno da realidade e se fazer ideal» (Vida de Sebastião Rei de
Portugal, p. 15); «É como caricatura, e por conseguinte como arte, que o sebastianismo me interessa, e não como
sinto», afirma a dado passo o mesmo narrador (Lisboa, Publ. Europa-América, 1993).
(12) - Na acepção proposta e fundamentada por Linda Hutcheon, Narcissistic Narrative: The Metafictional
Paradox. New York/London, Methuen, 1984 (especialmente pp. 6-7, 20).
5
Sul, do Cristianismo e das demais grandes religiões - assim abrindo caminho para uma
Amor. E ressalta que é o ethos amoroso que distingue D. Sebastião, que o irmana a D.
identificação, em que por vezes fosse dado quase por adquirido, e pudesse portanto ter
(como diria Jean Starobinski) e me fosse permitido situar-me mais no plano empático
(13) - Cf. António Quadros, Portugal - Razão eMistério, Vol. 1,2a ed., Lisboa, Guimarães Editores, 1988, p.25.
(14) - De acordo com proposições da «Introdução» de Vida de Sebastião Rei de Portugal: «Sebastião interessa-
me porque vejo nele o que vejo em Inês de Castro, o amante. O amante é o louco e também o mistificador» (p.
11 ), «Sebastião é, além de Inês de Castro, a única figura verdadeiramente poética da história de Portugal» (p.
11), «a história de Portugal está toda compreendida entre Inês de Castro e Sebastião, duzentos anos de vida a
criar mundos desde as Canárias até às Molucas» (p. 11), « Se as feridas de Inês foram a fonte onde Portugal
bebeu ao peito o leite genesíaco do seu nascimento, as feridas de Sebastião foram a fonte onde Portugal bebeu,
moribundo, o leite da velhice e da ressurreição» (p. 11 ).
Sobre a produtividade paralela dos dois mitos (inesiano e sebástico) na literatura, veja-se Maria Leonor
Machado de Sousa, Mito e Criação Literária, Lisboa, Livros Horizonte, 1985.
(15) - Sobre estas noções básicas da crítica de identificação da escola de Genève, em especial do Georges Poulet
de La Conscience Critique e do Jean Starobinski de La Relation Critique, veja-se Robert R. Magliola,
Phenomenology and Literature -An Introduction, West Lafayette-Indiana, Purdue Univ. Press, 1977, Part 1,
Chap. 2.
Em contrapartida, corro o risco de a minha intervenção, selectiva e associativa,
(já condenada pelo New Criticism). Mas creio que não haverá razão para a confundir
com mera paráfrase fluida, apesar das eventuais (e pertinentes) homologias com uma
esquivos, ou reiterados e entrecruzados), não tomei isso como convite a uma leitura
leitura como diferença desconstrucionista, mas antes, vendo essa obra como
Franco, para objecto do meu estudo a narrativa Vida de Sebastião Rei de Portugal,
dos problemas técnico-formais que apresenta. Achei, porém, pertinente abrir o meu
trabalho por uma breve análise da narrativa antecedente, Memória de Inês de Castro,
(16)- Veja-se sobretudo The act of reading e Prospecting. Baltimore, The Johns Hopkins Univ. Press, 1989.
(17)- O. Calabrese, // linguagiodell'arte. Milano, Bompiani, 1985.
7
com aquele dos ensaios do autor (Teoria e Palavra) que me pareceu mais
nos Capítulos II, IH, IV e V. Não se trata, porém, de meras retomas intermitentes para
CAPITULO I
E OS CAMINHOS DA IDENTIDADE
Cândido Franco faz caminho para Vida de Sebastião Rei de Portugal através de
Memória de Inês de Castro, num duplo sentido: o mais óbvio, que é o da ordem
pós-moderno2.
estudo de Vida de Sebastião Rei de Portugal faça também caminho através de uma
de Inês de Castro, também lembrando que os «limites do meu mundo são os limites da
(2) - Embora a desconcertante ousadia estrutural da narração de Vida de Sebastião Rei de Portugal só
parcialmente se entremostre na estrutura narrativa de Memória de Inês de Castro, onde reina um contar quase
tradicional dentro da alternância, na rede de parentescos dinásticos peninsulares, de dois veios diegéticos
centrados, um, em Portugal e outro nos restantes reinos ibéricos.
(3) - Dado esse carácter introdutório deste capítulo não o sobrecarregamos com reflexões possibilitadas pela
vastíssima bibliografia inesiana, em tempos inventariada por Adrian Roig (Inesiana. Coimbra, B.G.U.C, 1986).
Veja-se, apesar disso, Maria Leonor Machado de Sousa, Inês de Castro na literatura portuguesa. Lisboa, ICLP,
1984; Maria Leonor Machado de Sousa, Inês de Castro - Um Tema Português na Europa. Lisboa, Edições 70,
s./d.; Maria de Fátima Marinho, Inês de Castro - Outra era a vez.... Porto, Separata de Línguas e Literaturas -
Revista da Faculdade de Letras do Porto, 1990.
(4) - Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico Investigações Filosóficas. Lisboa, Fundação C.
Gulbenkian, p. 114.
10
não só àquele binómio mas também à linguagem que se quer a primeira e que, por isso,
oração - seres privilegiados que vivem pela imaginação e que se aproximam do fundo
e da nudez, centro pleno das coisas. É assim que o sonho («revelação profunda duma
criação. No dizer de António Cândido Franco «A faculdade que faz com que a poesia
com que a cada instante o significante puro apareça carregado de sentido (...) A
palavra e o poder criador são assim entendidos, que papel é então atribuído ao par
escolha da situação amorosa para se cruzar com a questão política e nacional? Afinal,
Pedro e Inês o par amoroso português por excelência, como Tristão e Isolda nacionais,
Neste fim de século, em que o amor está «estragado», como afirma Miguel
Esteves Cardoso , é forçoso que, sendo força regeneradora do próprio Homem, ele se
amor porque não se pode falar dele. Uma história é a única maneira de passar a
palavras que nos envolvem, mesmo que embaracem toda a gente (...) Quando se trata
de uma história de amor é preciso não perder o amor de vista. Tê-[lo] presente nem
que seja como saudade do que nunca chegou a acontecer (...) Em O Amor éfodido10 é
a primeira vez que consegui falar do amor sem o trair (...) Quis mostrar que pertencia
(9) - Miguel Esteves Cardoso, «As minhas desculpas pelo romance que escrevi», in A Phala, Lisboa, Assírio &
Alvim, 1995, pp. 4-5.
(10)-Idem, O Amor éfodido, Lisboa, Assírio & Alvim, 1994.
(11) - Idem, «As minhas desculpas pelo romance que escrevi», loc. cit.
12
Tão longa citação só se justifica porque penso que o livro de António Cândido
Franco, dá, antes de mais, atenção ao fenómeno amoroso em si, pois a ligação deste
História. É a ligação primigénia e por isso, tal como nas culturas míticas, passível de
amoroso
pelo súbito enamoramento e desejo são de uma violência bem patente nas palavras
escolhidas: «os cabelos desta pareciam despedir labaredas [...] o rosto tinha uma
inesperado como a chegada da Primavera [...] A terra é já aí céu tal como cada
(12) - António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro. Lisboa, Publicações Europa América, 1990, p. 81.
13
Pedro deixou cair a fala como deixou cair o coração».14 O silêncio permite uma
riqueza interior sem dúvida tumultuosa, mas profunda. «As coisas passam a ser
percebidas como imagens e como Deus fala por imagens o que perde a fala é uma
espécie de Deus».15
sentido enquanto revelação dum eco cósmico. O amor quando vivido como
modelo, e não como figurino social, acorda [nos] que o vivem um sentido
religioso. Quando uma sociedade evolui num sentido decisivo, transmitindo aos
seus filhos sucessivas descobertas aquilo que aparece não é um sábio, um queremi,
mas antes um par de amantes. Os amantes coroam sempre as mais altas exigências
dum momento. Por isso estão prontos para a morte, despojamento último».16
3.1. Inês
poder simbólico, que, apesar de aparentemente vazio, tinha mais efectividade que
ser contemplativo que mudava o mundo consoante a sua própria sorte. Não tinha o
dom frontal da palavra, o que a afastava dos lugares do Estado, nem o dom da
força, o que lhe vedava desde logo os lugares da guerra, mas tinha a irrequieta
beleza das coisas intemporais, que a levava por vezes a ser o bojo desconhecido de
todos os destinos. Pode-se comparar, nesse tempo, a mulher com uma flor ou com
um pássaro (...) o seu poder era imenso. Cantava em segredo, no recôndito dos
IT
quartos e dos seres, como um enigma uma diferença que todos admiravam».
princesa cristã, tinha uma escrava árabe, chamada Fátima (como a filha de
religioso.
verde, vinho opaco e de pouca exposição ao sol, um vinho do Norte minhoto), ela
julgou, sem saber porquê, que ao beber o vinho Pedro «beberia a sua alma».19
e erótico. «De forma inesperada Inês encostou-lhe os dedos à face (...) Aqueles
dedos (...) se se tivessem encostado aos muros de Roma teriam aberto aí frechas
enormes».20
Esse poder é tanto mais estranho quanto Inês se apresenta como mulher
frágil e silenciosa. Mas confirma-se quando ela retira do dedo o seu anel e o envia
está consumada e que nada pode já impedir o convívio entre os dois. (...) Ao tirar
o anel ela despiu interiormente o vestido da alma (...) É um despojamento que tem
por objectivo uma dádiva a um ser e que tem a certeza íntima de que essa dádiva é
sua alma a Pedro, não como emblema do corpo mas como plano transcendente».
pode aspirar.
não impedia que um pequeno culto lhe fosse votado. Qual Eva original, «Inês tinha
uma dimensão quase obscura, determinada pela sua extrema beleza e pureza. Os
em que, pela última vez, se sentou23 - têm na relação com Pedro qualquer coisa de
orgiástico e de louco.
3.2. Pedro
espiritualizar a matéria»; era neto de poeta (D. Dinis) e de mística (a Rainha Santa
Isabel). Era filho de Afonso IV, o rei que «defrontara à mão o leão solar de Roca»,
tem então a idade de 33 anos; o confronto dá-se numa serra pedregosa, onde a
direcção ao mar, como se fosse «um mensageiro, com o seu andar prudente da
imagem».25
Por outro lado, Pedro foi criado na província, entre mulheres do povo, «ao
mas tenazes, escuros, que o leite tornava ainda rijos e direitos»27 - como que
primitiva).
construirá o touril, seu primeiro acto político e simultaneamente seu primeiro acto
Respeitava-o apenas. Sempre aceitou modelos bem diferentes, que passavam tanto
pelo campino bravo e meio-árabe das planícies de além do Tejo, como o romeiro
galego de olhos claros e pele rosada. O Norte e o Sul coexistiam desde cedo na
São eles que ao serem vivenciados por Pedro levantam frequentemente «certezas
longas noites de lua nova, a figura salvadora da mulher, fogo e labaredas, mas
também água e silêncio - prazer e revelação («A mulher dá-lhe o seio moreno e
Pedro, que estava deitado, levanta-se de olhos abertos...»)29. Noutra visão onírica,
é o arqueiro que o atinge em pleno coração; noutra ainda, é o Pássaro que o fitava
«com rosto humano»30 e que deposita junto dele três fios sedosos «três longos
cabelos femininos que tanto podiam ser da cor do ouro como da cor do fogo» - e
conhecimento.
personagem masculina avistou um pássaro que pela sua beleza era assustador:
«Havia nele algo de infinito (...) uma revelação (...) surgia uma equivalência entre
um outro pássaro na árvore fantástica à beira-mar, qual Fénix das cinzas renascida.
Se, por um lado, os sonhos são fundamentais, por outro não menos
Os touros são vistos como seres surgidos «do ventre da eternidade caótica
sobre esse dramático lance pairam as virtudes que lhe atribui o narrador: «A terra
bebe sangue (...) Nas suas origens, na Ibéria, o homem que morria trilhado pelo
touro era não só o herói, como aquele que haveria um dia de retornar»32. A morte,
voador, pégaso alado e mítico que deposita o homem ao pé das urnas íntimas da
terra. (...)
O touril era uma pequena Ibéria minúscula onde o touro nascia, trazendo consigo a
plenitude sombria duma natureza virgem que, pelo sacrifício, se haveria de tornar
sagrada.
tão relevante desde o índice anteposto («Eu sou o cão», clama, quando a multidão
pela justiça. Nos três momentos cruciais de aplicação dessa justiça o ideal
cavaleiresco já não está presente. A justiça não serve mais a classe nobre e «com
Pedro o rei emancipa-[se] da sua própria classe»34, num projecto a que, para o
narrador, o amor não podia ser indiferente. Por isso, quando a condenação à morte
rei explica que o que estava em causa era o homem em si e não o grupo
tinha-lhe dado uma universalização que situava o homem português, pela primeira
vez, no lugar verdadeiro do seu ser e não no fictício da sua condição social ou
étnica».35
por ter mandado arrancar a barba, pelo por pelo, a um funcionário régio que
político dos nossos dias, pois o cortejo processional chega a Alcobaça por volta do
meio-dia do dia 25 de Abril e certa «gente humilde dos campos, (...) espécie
comum de vadios (...) Tinham posto na lapela cravos vermelhos que eram como
nódoas de sangue».36
que Isabel de Aragão parece ter feito no espírito: «(...) Pedro levou para a política
um amor, quase hedonista, ainda que sacro, enquanto que Isabel trouxe a essa
S. Francisco de Assis».37
poder, agregou o homem em círculo, enquanto que o amor deu ao homem a ideia
diferença que há entre o mundo antigo e o homem novo é a que o amor estabelece.
caça, a pesca, são outras tantas referências constantes ao longo do romance e que
sabor de revelação.
serra «o homem (...) falava com as vacas (...) A mulher amassava o pão (...)
Herdava-se pouco e construia-se muito (...) É que na serra cada homem era rei e
cada mulher uma rainha que modelava nas mãos o próprio mundo, ou seja, o pão.
(...) O homem que ama valoriza a natureza. A frontalidade com que o homem
Pedro e Inês, faz deles um par de excepção que na natureza e no silêncio procuram
Inês na véspera da partida de Alenquer, qual deusa saída das águas - Pedro
«entrou no quarto e viu-a nua. (...)» - que nos é dito que «A humanidade tinha-se
calado para dar lugar aos deuses» e que «o mundo regredia à idade mitológica».
edénico.
3.4. Os filhos
É natural que um par com tais carismas, e que consuma a união entre o
profetizara - «Tal filho vejo-o eu (...) capaz de aspergir a água e purificar com ela
não só a vossa casa, mas (...) o próprio mundo. O seu nome (...) não pode ser
Porém, será com o filho de Fátima, o mestiço João (afinal, o futuro Mestre
pós-moderno).
3.5. Fátima
moviam entre perfumes e flores, sendo, por isso, apreciadas pelos senhores da
dos campos dos Castros; mais tarde converte-se em criada de quarto. Inês «que a
tratara sempre por Fátima», apesar de, como já assinalámos, os Castros lhe
da sua ama seja no primeiro encontro com Pedro, seja no momento em que vai
entregar o anel de Inês ao seu amado, seja nos tempos de difícil coexistência com
Inês.
narrador diz abertamente que «substituía Inês junto dos miúdos», ou porque,
Mais tarde, de volta a Moledo, o Infante viu Inês nesta rapariga que era sua
criada, «Uma Inês transfigurada pela morte e revelada no único corpo possível: o
mulher amada, mas sim a sombra dessa mesma mulher. A mulher amada está no
Céu e a sua sombra na terra (...) Inês era a estrela, Fátima uma espécie humilde de
flor. Se Inês era feita de fogo, Fátima era as suas trevas (...) vinha do Algarve e a
sua ascendência era uma mistura, já secular, de sangue árabe e berbere (...) Fátima
Fátima vê vir um pássaro transportando «uma espada viva que mais parecia uma
ardente». Tal como nos textos bíblicos, o anjo disse: «estás fecundada pelo poder
milagroso de Deus (...) eu sou o mensageiro da aurora, o pombo que desce do céu
como o correio divino (...) o teu filho é predestinado a ser a hora, a luz que se
eleva da chama».49
de uma falésia que abruptamente caía sobre o mar, uma «árvore fantástica» queria
chegar ao céu; um enorme pássaro colorido, que Pedro confronta com outro que
lhe aparecera quinze anos antes, parecia renascer das cinzas outonais, tal como a
Fénix mítica; e se um deles, garça real, podia identificar-se com Inês, o outro, mais
Só que a sombra de Inês era mais forte do que a própria Inês. Pedro não
sabia que enigma obscuro envolvia a sua vida, capaz de explicar a influência que
uma mulher algarvia tinha num príncipe herdeiro de dinastia tão elevada como a de
parto acometem-na no barco à vista de Lisboa e prolongam-se por três dias, pondo
pede a Pedro que mande tocar os sinos da Sé, pois o nascimento daquela criança
dependia disso; o filho da criada algarvia nascia sobre a mobilidade fria e húmida
das águas, o que lembrava a enigmática profecia da peregrina que anunciara que
com a água viria o futuro; o próprio rei D. Afonso IV morre no momento em que
sinais alarmantes.
com Fátima, tendo em conta os aspectos étnicos, sociais e religiosos, aliás logo
denunciados pelo contraste com o tipo físico europeu. Ao tempo cria-se que o
fundo, o sector político preponderante tem medo de que ela represente «uma
Sebastião Rei de Portugal) 51. «Há no Algarve o mistério duma outra coisa que
não sendo Portugal o é também (...) A mulher algarvia foi o que faltou para
cimentar Portugal, tal como mais tarde a mulher índia ou africana serão a parcela
que faltava para criar o mundo», especula o narrador pós-moderno, que logo, em
mulher algarvia é uma espécie de memória colectiva que não se limita a recordar o
que passou, mas também recorda o que há-de vir (...)», daí partindo para
para sempre que as pretensões centralizantes de Castela não seriam aqui bem
sucedidas. Não que o português não veja idealmente a unidade ibérica como um
marco decisivo do seu destino, mas porque considera que isso se há-de fazer não a
De resto, tal como «O ventre da mulher algarvia foi o ventre que, por
excelência, concebeu Portugal»52, também será nos ventres anónimos que deram
ponto de convergência de dois mares, duas religiões, duas cores de pele e duas
semitas.
Convirá sublinhar que esta relação toca até o poder político em Portugal.
político que resulta no melhor da nossa existência histórica e mítica. Não é uma
dissolução mas uma aculturação que produziu novos filhos, novos povos e novas
nações.
observações nos nossos dias e afirma que «ainda não exaurido, Portugal pode hoje,
num derradeiro esforço criativo, que será todavia o último, criar o mundo, num
mas dará lugar à fraternidade universal que é hoje o sentido último e definitivo da
sua existência.
Do amor de Pedro e Inês surgiram três níveis de leitura diferentes mas que
nacional tem produzido frutos. É a qualidade do amor que uniu Pedro e Inês,
amoroso ter a missão de fundar o reino perpétuo do amor entre Homem e Mulher.
de Freud, «caos de forças inominadas, cujo império não poderá dar ao homem a
Não esqueçamos que o mito como biografia divina foi posto em causa pelo
assistida pela revelação divina, embora se conserve, se altere e cresça pelo rito de
(54) - Afonso Botelho, «Mito da supervivência do Amor», in Independência - Revista de Cultura Lusíada,
Lisboa, N° 7,1994, pp. 9-12.
(55) - Cf. Afonso Botelho, Da Saudade ao Saudosismo. Lisboa, ICLP, 1990, Cap. 4, pp. 175 segs.
33
tanto tempo depreciado, encontra aqui um seu hino. Inês é a excelsa mediadora do
5. Inferências prospectivas
Memória de Inês de Castro. " Pelo contrário, o par emerge com mais força desse
várias.
sonhos, visões, profecias, pelos elucidativos encontros com animais (leão, dragão,
que se esventra em raízes e é propícia a fantasias («sob cada uma das pedras se
à terra húmida muito fértil. Estes ambientes põem em evidência a riqueza de seiva
O intenso amor deixa um rasto de fogo que por si só tem força expansiva.
sofrimento sacrificial. Pedro vem manter o calor inesiano, como pétreo que é,
(57) - Maria Estela Guedes, «António Cândido Franco, Memória de Inês de castro», in Colóquio/Letras, n° 120,
Abril-Junho 1991, pp. 218-219.
35
com as feridas de Inês de Castro, essa fonte que alimentou Portugal ao peito e que
história de um povo [vale] pela intensidade instantânea com que as suas figuras
que são os seus (em que raízes pessoais e colectivas não encontram segurança na
terra onde mergulham), a ficção ultrapassa a história, tal como, por exemplo, em A
Margem da Alegria de Ruy Belo, sobressai não tanto a história antiga mas a
ficção, todavia historiosófica, tais são as raízes agora muito mais esquecidas. E se,
desnorte, maior é a necessidade de mobilizar dados históricos num voo louco mas
primeira, mas por vezes, fora de vista, longe do quotidiano, ela oculta-se deixando
que uma tome forma e corpo, impondo-se. Conforme o instante, segundo o intuito,
vou afundar».61
curioso sublinhar como só em Pedro e Inês o autor julga poder ancorar e aninhar
(61) - Lídia Martinez, Cartas de Pedro e Inez - O mel do meu consolo, Lisboa, Ulmeiro, 1994, p, 9.
37
indivíduo mais do que nunca assume-se numa dimensão social, tal como para o
Portugal dos nossos dias vem analisando Boaventura de Sousa Santos.63 Mas é,
risco de lhe criar um vazio interior insuportável - como, aliás, teme o Gilles
(62) - De Ornar Calabrese, além da obra atrás citada, veja-meM/Z/e di questi anni. Roma, Laterga, 1991.
(63) - Veja-se sobretudo Pela Mão de Alice - O social e o político na pós-modernidade. Porto, Ed.
Afrontamento, 1994.
(64) - Gilles Lipovetsky, O Crepúsculo do Dever - A ética indolor dos novos tempos democráticos. Lisboa, Dom
Quixote, 1994.
38
CAPITULOU
histórica, ficamos mais aptos para o estudo de Vida de Sebastião Rei de Portugal,
romance é inegável.1
(1 ) - Aliás, António Cândido Franco e também autor - com Murmúrios do Mar de Peniche (Lisboa, 1977), Conto
de Inverno (Lisboa, 1983), Na Roménia do Coração (Lisboa, 1984), Matéria Prima (Lisboa, 1986), Arte Régia
(Lisboa, 1987), Corpos Celestes (Porto, 1990) e Estrela Subterrânea (Porto, 1993) - de poesia lírica «afim da
proclamação hierático-hermética, onde as figuras cósmico-astrológicas respondem à operatividade alquímica da
imaginação desveladora do jogo de correspondências, permutas e metamorfoses do macro e do microcosmos, do
céu e da terra, do homem e do universo» (Paulo A. E. Borges, «António Cândido Franco», in Biblos -
Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, Lisboa, Ed. Verbo, Vol. H, 681-683).
(2) - António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal. Lisboa, Publicações Europa-América, 1991
p.ll.
40
diálogos, pois em tão distendida narração as únicas sete ou oito falas que surgem
sabendo sequer a quem pertence uma delas - todavia, tão importante que dela
ouviu a voz que disse: - Ter! Ter! Volta! Volta! A batalha perdeu-se [...] por
causa dessa voz [...] Resta-nos saber quem deu aquela voz de «ter» [...] Eu
pessoalmente estou convencido que uma voz de comando deste tipo [...] só
velha arquitectura.
(3) - («[se] Inês é fonte que alimentou Portugal ao peito e que ainda hoje nos dá de beber o leite genesíaco
do nascimento e da criação [...] Sebastião é fonte onde Portugal bebeu, moribundo, o leite da velhice e da
resurreição [...] A loucura de Sebastião não é [...] caso patológico pessoal [...] toda a dinastia de Avis,
criada nas planícies do sul onde só ardem horizontes infinitos [tinha] nos olhos um Sonho [...] na boca
uma sede de Além [...] Da sua paixão [Fernando e Henrique] nascerão continentes inteiros como mais
tarde Sebastião com essas mesmas forças fará nascer a Ilha do Encoberto [...] continente muito mais
importante que a América [porque] supra-existe como supra-existe uma estrela a quinhentos milhões de
anos-luz [...] Falar de Sebastião é falar do fim, mas falar do fim é para mim começar do princípio.» idem,
ibidem, pp. 11, 12,13,14,15).
(4) - «É na derrota que ele é grande [...] Assim com a batalha perdida e com dez mil guitarras atrás [...]
Sebastao foi mais um homem interessado em inventar as coisas impossíveis do que em administrar o
visível» (idem, ibidem, p. 15).
(5) - Idem, ibidem, p. 160.
41
podemos negar que o texto é basicamente uma narrativa, mas uma narrativa em
desconcertante rei-Messias que se torna mito, e que é bufão, e que quer a derrota,
existe um narrador que busca sem cansaço um quotidiano vivo, que desfaça a cinza
português.
água, em que o fluir imparável se cruza com semas de infinito e fertilidade), quer
descrição e narração.6
mitificante («Tal como eu vejo [...]» «A história de Sebastião não acabou ali [...]»
tarde...»).7
jovem rei, com os aios que para ele foram escolhidos e com os amigos, de algum
(6) - Vitor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 4" ed., Coimbra, Almedina, 1982, pp. 550-
572.
(7) - A. Cândido Franco, op. cit. pp. 116, 170, 171, 177, 178, 179, 180.
(8) - Idem, ibidem, p. 117, 140.
43
modo marginalizados, com quem priva. Estes episódios têm, no entanto, sempre
renascimento de um povo... Foi ao seu peito que Portugal ganhou a certeza de que
povo conta-se pela intensidade instantânea com que as figuras viveram a sua
esperança... Sebastião para mim é o contrário de uma memória... ele torna-se numa
realidade vital e sempre sanguínea... Foi ao seu peito... que... Portugal... bebeu... o
desde a revolução romântica: uma mesma obra pode acolher, ou buscar, e fundir
obra.11
biografia. Mas tudo isso se vem a revelar catáfora ardilosa, pois em excursos de
do livro. «Neste livro vou falar do rei Sebastião», anuncia de chofre esse autor
mais estranho rei de Portugal que se vai contar a seguir»; de permeio, sublinha:
(11) - Cf. Maria Corti, «I generi letterari in prospecttiva semiológica», in Strumenti Critici, VI, 1, 1971.
(12) - Cf. Maria de Fátima Marinho, «Isabel de Aragão, Rainha Santa: entre o romance e a biografia», in
Vitorino Nemésio, Vinte anos depois, Lisboa/Ponta Delgada, Ed. Cosmos & S.I.E.N., 1998, p.681 (e
segs.).
(13) - Sobre a problemática e as concepções contemporâneas de narrativa biográfica, veja-se o vol.
colectivo Le Désir biographique, N° 16 dos Cahiers de Sémiotique Textuelle, Paris (Univ. Paris X), 1989.
(14) - E. M. Forster, Aspects of the novel. London, Edward Arnold, 1937, pp. 113 segs.
45
deve achar um aborrecimento atroz essa figura [...] Sebastião é mais um herói
verosímeis foi a virtude rara deste rei português, que, se foi inconscientemente
depois de morto.».16
ser marcado e predestinado, que o mito nasce e cresce - com tal força que chega a
(15) - Parecem óbvios os efeitos conotativos contrapolares retirados da evocação contrastiva deste
antropónimo - nome de um dos mais importantes historiadores da actualidade (e o que mais se consagrou
ao estudo medievalista da Identidade de um Pais...) e do seu antepassado autor de manuais de
historiografia que formaram gerações de jovens portugueses.
(16) -A. Cândido Franco, op. cit., pp. 11, 17, 16, 17.
"biografia" do protagonista histórico).
conta, o narrador afirma que, «para escrever este livro», teve de «subir as
andara.
histórico, sem que no entanto esta dimensão alguma vez venha a desaparecer. Ora
Outras relações com personalidades das ideias e das artes são estabelecidas.
Botto, António Sérgio, Aquilino, etc. Podem ser portugueses do presente: Luís
Pacheco, Paulo de Carvalho, Raul Solnado, Almeida Faria. Podem ainda ser
antropológicos e políticos.
digressões, parecem pelo menos justificar que encaremos Vida de Sebastião Rei de
Portugal com o seu ser profundo, quanto (de certo modo na linha de projectos
Humanidade estar no mundo (uma nova ordem internacional, já não ditada por
discurso, surge aqui e além; no próprio texto do romance são referidos autores
próprio nome do último capítulo, Notas sobre o Encoberto, e a sua estrutura têm
inverosímeis subversões, ela arranca de uma figura que tem séculos, mas a
construção mítica torna essa figura atemporal (D. Sebastião como que reincarna
fala das ruínas, das madeiras apodrecidas e do testamento na parte final (neste
(18) - Cf. Lucette Valensi, Fables de la Mémoire - La glorieuse bataille des trois rois. Paris, Seuil, 1992,
pp. 202-204, e Isabel Pires de Lima, op. cit., p. 67.
51
se afirma: «a história de amor de ambos é tão trágica e tão bela como a de Inês de
Castro e a de Pedro [...] João e Joana são como dois irmãos que se reconhecem
um ao outro, não tanto pelo que lhes é comum, mas muito mais pelo que lhes é
de João [...] o encontro dos dois irmãos [é] como uma das imagens privilegiadas
da totalidade [...] João quando viu Joana apaixonou-se [...] João é entre nós, na
nossa história, uma das melhores personificações de Eros [...] há entre João e
juntos é demasiado forte [...] João atravessa corredores subterrâneos para poder
nos faz lembrar o romance picaresco, embora a nível de composição tudo se passe
(19) - A. Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, pp. 19, 22, 25, 27, 29.
formação, se se puser o acento no processo de construção e consolidação de um
Por seu turno, o discurso heróico, de tons épicos, parece presente algumas
narrativa epicizante.
ainda se vem juntar uma voz que ri e uma voz que reflecte metalinguisticamente no
importância era tão decisiva que ele não só era temido como drasticamente
muitos perigos provêm, quando essa dúvida vem pela via do riso os perigos são
maiores ainda. O riso - um riso com essas potenciais implicações - parece estar na
paradigma do romance-ensaio.
entendido, precisa de ser visto como um bufão», o bufão que vai de guitarra e
espada de papel para Alcácer-Quibir. Para o narrador, «um palhaço só nos provoca
apontadas.
de guitarras que fez levar para a batalha e o dourado das roupas que usara em
Alcácer Quibir traduzem o grau de loucura do sábio jovem rei. Aliás, aqui como
manipulação culturalista.
de quem mais me rio» [...] «se isto não é verdade não faz mal nenhum que a
mentira é muito mais poética que a verdade. A mentira é trágica como a verdade é
(24) - Cf. ibidem, p. 27 («João quando viu Joana apaixonou-se e pôs-se a fazer disparates. O amor é louco
e gosta é de rir»).
(25) -Idem, ibidem, pp. 15,16,17,18.
56
inscrevem essa obra naquela tendência que Bakhtine teorizou como a própria
carnavalização da literatura.
4. Abertura final
criadora.
reavaliar como a nossa civilização já passou pela crença nos deuses, pela sedução
da Razão e das ideologias, mas também pela "morte de Deus" e pela descrença no
Progresso.
futuro, é o passado - passado memorial na origem das origens. A vida social não
devem como história, mas realiza-se em ritual. Ora, para nós o tempo é mudança e
tempo e recomeço. Por isso o fim de século (o nosso e o do autor estudado) busca
típico.
(tanto pessoal quanto colectivo) e é transformadora. Por isso, numa obra ficcional
de tom mítico, ela procura não deixar aprisionar-se por categorias arquitextuais
[...] um não uma coisa a um nome, mas um conceito a um som [...]. Todo o som
finaliza.».29 Mas, se se quer que a palavra se torne primigénia, ela tem de ser
momento, em tudo idêntico a este, em que o texto perde todas as suas referências
(28) -António Cândido Franco, Teoria e Palavra. Lisboa, Átrio, 1991, p. 9, 10, 11.
(29) - Idem, ibidem, p. 16.
59
significa [...] perder todo o significado». Por outro lado «é pela aptidão que o
homem tem de criar com as palavras um sobremundo [...] que o homem se torna
considerações do seu autor: «[...] a situação da teoria da palavra [é] uma situação
carnavalesca, muitas vezes de puro gozo, que nada tem a ver com o aparato do
CAPÍTULO III
estranhização vividas até que um Vergílio Ferreira pudesse estatuir algures que «quem
conta histórias são as velhinhas» - num trajecto que, entre nós, vinha desde o
volta. Quererá isto dizer que a narrativa recuperou as características anteriores a todas
oriundo do Realismo passara a ser entendido como forma muito imperfeita de atingir a
totalidade do real, bastante mais complexo do que esse estilo epocal oitocentista
pretendia.
sujeito.1 Por essa razão* a abertura a todas as forças instintivas, a todas as pulsões, é
Estas considerações voltam hoje não só a ter acolhimento, como ainda são
individual, é ainda capaz de, pela linguagem, reconstruir o mundo e dar vida ao mais
insondável do Homem.
Logo, volta-se a contar, sim, na narrativa actual; mas não dentro dos
(1) - Cf. Ferreira de Brito, Requiem pelas vanguardas do século XX (A propósito de Les Samouraïs, de
Kristeva), Separata da Revista Intercâmbio, Instituto de Estudos Franceses da Universidade do Porto
1992.
62
experiência estético-literária.
2. Literatura e conhecimento
hoje. Bem ao contrário, desde a Antiga Grécia que a literatura ocidental se nos
como fonte de revelações (ou de catástrofes, na acepção de René Thorn) que têm a ver
curiosa, e agora difundida por António Damásio, de que «certos aspectos do processo
despertam maior interesse, porque de novo se crê que é daí que as grandes
É em períodos onde reina uma atmosfera mental como a que hoje envolve a
literatura ocidental, que mais avulta quanto, para muitos, o humano sofre amplo
E dentro desta perspectiva que, como Valéry já ponderava, «Le faux et le merveilleux
Por outro lado, como Octávio Paz múltiplas vezes afirmara, o romancista
romance é ambíguo (...). Sua impureza brota da sua constante oscilação entre o
conceito e o mito...».5
(2) - António R. Damásio, O erro de Descartes.Emoção, razão e cérebro humano. Lisboa, Europa
América, 1995, p. 14. Veja-se ainda Daniel Goleman, Inteligência Emocional. Lisboa, Círculo de
Leitores, 1995.
(3) - Marcel Schneider, Histoire de la littérature fantastique en France, Paris. Fayard, 1985.
(4) - Paul Valéry, Cours de poétique. Paris, Gallimard, 1937.
(5) - Octávio Paz, O arco e a lira. Rio de Janeiro, Edições Nova Fronteira, 1982, p. 224.
Por conseguinte, após percurso já longo, o romance reafirma a sua vitalidade
renovação próprio do sistema literário; e por isso, ele hoje não se cumpre a descrever
num discurso torrencial em que o lúdico e o culturalista se aliam, se deixa tentar por
método de libertação interior. A poesia revela este mundo, cria outro (...) sublimação,
História. Por isso, um dos veios mais emergentes (e mais fecundos) da narrativa
récit (neo-)histórico - forma notável de conhecimento não tanto do que terá sido
seu devir. «História eficção»- no dizer de Paul Ricoeur - «referem-se ambas à acção
todo o corpo da ciência; noutro caso, de acordo com intuitos estéticos e com regras
convencionadamente polivalentes.9
(7) - Cf. Earl Miner, «That Literature Is a Kind of Knowledge», in Critical Inquiry, Vol. 2, N° 3, Spring
1976, pp. 487-518, e Edmond Cros, Literatura, Ideologia y Sociedad. Madrid, Gredos, 1986.
(8) - Paul Ricoeur, «Pour une théorie du discours narratif», in D. Tiffeneau (ed.), La narrativité. Paris,
C.N.R.S., 1980, pp. 3-68.
(9) - Para uma visão matizada das similitudes e disparidades entre narrativa historiográfica e narrativa de
ficção, pode ver-se: Hayden White, Metahistory: The historical imagination in nineteenth-century Europe.
Baltimore and London, The Johns Hopkins Univ. Press, 1973; idem, Tropics of discourse. Baltimore and
London, The Johns Hopkins Univ. Press, 1978; Paul Ricoeur, Temps et récit. Paris, Seuil, Vol. I, 1983,
Vol. II, 1984, Vol. JH, 1985; Hayden White, The content of the form, éd. cit.; G. Genette, «Récit
fictionnel, récit factuel», in Fiction et diction. Paris, Seuil, 1991.
(10) - Veja-se a obra atrás citada de Michel Vanoosthuyse, Le Roman Historique.
66
referenciais têm coexistido nesse tipo de narrativa, se bem que a reconstrução histórica
um peso cada vez maior à medida que tem encontrado maior legitimação
perspectivação crítica.12
não é só acreditar na acção real da mentira, é saber que só pela mentira o homem pode
relançamento
A narrativa, enquanto modo literário, não pode ser alheia às inflexões dos
(11) - Cf., entre outros, Isabel Roman, «La organization enunciativa de la novela histórica» in Discurso,
N°2, 1988, p. 119.
(12) - Maria de Fátima Marinho, O romance histórico de Alexandre Herculano, Porto, 1992 (sep. de
Línguas e Literaturas, Revista da Faculdade de Letras, II série, Vol. LX), pp. 98, 99.
(13) - António Cândido Franco, Teoria e Palavra, p. 27.
67
interesse que pelo passado nacional se torna hoje bem notório - não como facto
interesse pela História e, em especial, pela Idade Média, era elemento constitutivo
conduzida pelo seu Volksgeist) u. Este cânone é, aliás, o que se pode deduzir da
(14) - Cf. Castelo Branco Chaves, O romance histórico no romantismo português. Lisboa, I.C.L.P., 1979.
68
tarefa criativa.15
Henrique IV...»16 era uma 'mania' elucidativa dos interesses e gostos daquele
momento histórico.
(15) - Cf. G. Lukács, Le roman historique, Paris, Payot, 1965. Sobre este paradigma e sua realização
oitocentista, veja-se, além do estudo citado de Maria de Fátima Marinho, a obra de Harry E. Shaw, The
Forms of Historical Fiction - Sir Walter Scott and his Successors, 2" ed. Ithaca/London, Cornell
University Press, 1985.
(16) - Alfred de Musset, «Cartas de Dupuis a Cartonei», apud Luzia Lobo, Teorias poéticas do
Romantismo. Porto Alegre, 1987; Jacques Leenhardt, «A construção da identidade pessoal e social através
da história e da literatura», in J. Leenhardt e Sandra J. Pesavento (orgs.), Discurso Histórico e Narrativa
Literária. Campinas, Editora da UNICAMP, 1998, p. 41.
(17) - Cf. Adriana Alves de Paula Martins, História e Ficção - Um diálogo. Lisboa, Fim de Século Ed.,
1994, pp. 17-21; Maria de Fátima Marinho, «O romance histórico pós-moderno em Portugal», in Actas do
Quinto Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, Oxford/Coimbra, 1998, pp. 1011-1021.
Já em ensaio de 1977 ponderava argutamente Álvaro Manuel Machado,
Portugal pós-25 de Abril, chegamos rapidamente à conclusão de que cada era nova
tema longínquo, mas omnipresente na sua essência mítica, das Descobertas, ou até
(18) - Álvaro Manuel Machado, A novelística portuguesa contemporânea. Lisboa, ICLP, 1977, pp. 88-89.
70
Bessa Luís, J. Cardoso Pires, Almeida Faria, Mário Cláudio e, entre outros, A.
com a integração numa Europa com quem vivemos de costas voltadas tantos
séculos) nos tem vindo a causar trauma profundo, para o qual ainda não
conseguimos superação.
(19) - Esta é uma das teses anti-tradicionalistas de Boaventura de Sousa Santos em Pela mão de Alice. O
social e o politico na pósmodernidade. Porto, Afrontamento, 1994.
(20) - Eduardo Lourenço, Labirinto da Saudade, Lisboa, Dom Quixote, 1978; idem, Nós e a Europa ou as
duas razões, 3" ed., Lisboa, INCM, 1990; idem, Portugal como Destino. Lisboa, Gradiva, 1999.
(21) - Agostinho da Silva, Considerações e outros textos. Lisboa, Assírio & Alvim, 1988.
(22) -António Quadros, Portugal, Razão e Mistério, 2 Vols., Lisboa, Guimarães Ed., 1986 e 1987; idem,
A ideia de Portugal na literatura portuguesa nos últimos cem anos. Lisboa, Fundação Lusíada, 1989. Cf.
também, entre outros, António Telmo, História Secreta de Portugal. Lisboa, Ed. Vega, 1977; idem,
Gramática Secreta da Língua Portuguesa. Lisboa, Guimarães Ed., 1981; idem, O Horóscopo de Portugal.
Lisboa, Guimarães, Ed., 1997.
71
objectivamente referencial.
É certo que, por parte do leitor dos estudos de História e das criações de
podem assumir aspectos bem comuns: são construções em linguagem verbal (mas no
duma categoria temporal e que pressupõem selecção e organização daquilo que vai
objectividade são impossíveis de pôr plenamente em prática com rasura das injunções
(23) - Maria de Fátima Marinho, «O sentido da História em Mário de Carvalho», in Línguas e Literaturas,
Revista da Faculdade de Letras do Porto, Vol. XHI, 1992, pp. 257-267.
(24) - Cf. Siegfried Schmidt, La communicazione letteraria. Milano, il Saggiatore, 1983, pp. 57-88; idem,
Foundations for the empirical study of literature. Hamburg, Helmut Buste Verlage, 1982, pp. 49-55.
(25) -Cf. Jesus Garcia Jimenez, La imagen narrativa. Madrid, Editorial Paraminfo, 1995, pp. 93-94.
72
aproxima as formas efectivas do real empírico e as formas virtuais do que poderia ter
Aliás, como Nelly Novaes Coelho refere, uma nova atitude narrativa de teor
surrealista fez-se sentir em Portugal, surgindo assim uma nova visão no que diz
fenómeno estável e passa a ser entendido como um processo que precisa de ser
ambiguidade.
agudiza-se; José Cardoso Pires e Augusto Abelaira introduzem uma nova fase naquele
(26) - Cf. Nelly Novaes Coelho, «Linguagem e ambiguidade na ficção portuguesa contemporânea», in
Colóquio/Letras, N° 12, Março 1973, pp. 68-74, e Adriana Alves de Paula Martins, História e ficção -
Um diálogo. Lisboa, Fim de Século Ed., 1994, pp. 18-19.
73
Viajar nessa literatura é procurar encontro com outro ou outros de quem nada
conhecemos ou que embora conhecidos têm sempre algum recanto mais sombrio ou
insondado - sua face lunar (como no canto de Rui Veloso). É, em última instância,
encontrarmo-nos com algum eu nosso, também até aí meio obscurecido. Múltiplos eus,
múltiplos eles, múltiplos tempos e espaços, velho desejo infantil não confessado de
(como o narrador de Jacques Tati que em Playtime destapa telhados) sobre o passado,
o presente e o futuro.
traduz a busca forte e incessante do ser individual e do ser nacional. Esta viagem pelos
decepcionantes e a cidade tece em volta dos seus habitantes teia dia a dia mais
apertada.
ponto de vista individual, quer do ponto de vista social e até político. O sonho, o
crise da crença no Progresso, nas ideologias e até na Razão, o Homem ensaie resolver
74
o puzzle que arquitectou arduamente, para assim fugir ao inevitável suicídio pessoal e
colectivo.
são sinal. São múltiplas as publicações que mostram os portugueses como náufragos,
filosófico, literário, histórico ou político, como a nível das criações literárias - o que
mais importa aqui pôr em destaque é o interesse que o tema parece despertar, na
preenchidos.
actual cruza-se com outros géneros narrativos, num hibridismo tão conforme ao
que para o definir ter-se-ia primeiro de perder a noção de rigor, hoje, neste
(27) - Linda Hutcheon, A Poetics of Posmodernism - History, Theory, Fiction. New York/London,
Routledge, 1988.
pós-modernismo finissecular mal conhecido, tentar explicar o mais recente estádio
cuidado de desvendar.
Poéticas (porque ele foi alicerçar a sua vitalidade exactamente a partir da época
76
sujeito à sua situação na sociedade [...]. Essa resposta supõe uma operação textual
sobre o real que vem a ser assumido por uma narrativa que implica um ou vários
narradores».28
Daí que, quando se analisa uma narrativa que, pelas suas dimensões e pela
vendo o fenómeno literário como prática interactiva, diz serem as estratégias que
ser comunicado».30
perseguidos, o narrador opta por uma certa organização do tempo, pelo destaque
perspectivas.
modelo»31, creio termos circunscrito alguns dos aspectos que, sendo importantes
(30) - W. Iser, The act of reading. A Theory of aesthetic response. Baltimore/London, The Johns Hopkins,
Univ. Press, 1980.
(31) - Cf. Umberto Eco, Leitura de Texto Literário. Lector in fabula. Lisboa, Editorial Presença, 1983,
pp. 53 segs.
(32) - M. Raimond, La crise du roman. Des lendemains du Naturalisme aux années vingt. Paris, Libraire
JoséCorti, 1965.
78
inspiração histórica.
autora, mais não é que «a specific collection of contemporary litterary text») e pôr
and even determining, but in so doing, it problematizes the entire notion of historical
(33) - Wesseling, no prefácio do seu marcante livro Writing history as a prophet (p. VU), afirma
explicitamente que «this book pays considerable attention to the classical ninetenth century model of the
historical novel, as well as to modernist innovations of the genre».
(34) - Idem, ibidem, p. VI.
(35) - Linda Hutcheon, op. cit., p.89.
79
ficcional do passado.
(36) - Cf. E. Wesseling, op. cit., pp. Vl-Vm, e Richard Pearce, "Enter the frame", Triquarterly, 1974, N°
30, pp. 71-82.
(37) - B. Uspensky, A poetics of composition. Berkeley, California, 1973.
80
torne ahistórica; outros, como Linda Hutcheon, afirmam que ela é «fundamentally
históricas e imaginar em seguida histórias alternativas que talvez possam vir a ser
enquanto «the set of strategies, expectations and knowledge mutually shared by the
temas sujeito a uma mutabilidade complexa, em que um passado vai sendo alterado
por um presente «Once upon a time....» é sinal (e é senha) que activa uma expectativa,
que conduz o leitor ao estudo do passado: «...the historie novel writes domestic, rather
than political history by recreating the daily lives of anonymous ordinary individuals
tempo que levava o leitor através do passado, ora difundindo fortes sentimentos
É o caso de Sir Edward Bulwer Lython, que introduziu variações temáticas bem
essa via Scott ia perdendo a sua vitalidade como modelo, num processo de crise muito
intuído e, afinal, estimulado por autores como Henry James e Virginia Woolf.
óptica de Wesseling a adaptação pós-moderna dos materiais históricos pode ser vista
como o terceiro estádio da novela histórica ou como a primeira fase de «I cannot yet
eventos históricos numa narrativa ficcional que em Scott fora original, não
O interesse pelo mundo exterior e a cor local foi dando lugar à enfatização da
adoptada por T. S. Eliot quando, em Tradition and the individual talent, concebia o
passado como um ordem sincrónica de monumentos que deverão ser tratados como
artista.
É, pois, comum que, numa lata acepção que abrange novelas como Orlando ou
em particular.
História, que vai buscar e alimentar motivos míticos. «This combination conjures
Por outro lado, não se trata apenas de, segundo a terminologia de Pierre
mito, numa atitude cultural que pode levar-nos até Nietzsche com toda a força do
• 49
seu vitalismo prometaico.
nos «explicit commentaires upon the search for the past as carried out by historian
- like characters, and to the type of multiple focalization which reveals the
uma narrativa adicional situada entre o passado e o primeiro narrador. Surge assim
história não é um objecto "out there" que pode ser recoberto na totalidade, mas
século XIX só muito raramente apareciam, sejam frequentes nos escritores nossos
contemporâneos.
utópica e ucrónica implica uma crítica a uma postura política na realidade social.
(51) - Cf. Helena C. Buescu, «Travelling Through Spacetime in the 20th Century European Novel», in
Yearbook of Comparative and General Literature, 41, 1993, p. 88.
87
Mas o seu carácter híbrido não fica por aqui. É nesta terceira fase da novela
que nesta o crime ocorreu no passado e se procura por conjecturas e buscas interpretar
o que se passou. A ficção científica, com todo o manancial fantástico que leva à
Entende-se que «science fiction has become the modern avatar of Utopian
may project a better past, which either resembles the present of the autor and his
remain implicit. [,..]».53 Dai que um motivo típico seja a «time travel». As
em "winners" ou viceversa).
passado à sua própria imagem. Aficçãoucrónica ensaia disputar este monopólio: pela
compreende-se que nesta terceira mutação se passe de uma posição de respeito face à
para a supressão dos referentes históricos. Mas nessa gestação moderna de uma nova
novela histórica, que passou a fazer parte da nossa consciência de género, novos
relato do passado, «To parody is not to destroy the past: in fact to parody is both to
enshrine the past and to question it.»58. E, se a comicidade não é imprescindível para a
paródico do passado não têm de implicar degradação ridícula. Por isso, Christoph
trazido da música vocal e que significa «rephrasing of a secular song [...] with
(55) - Linda Hutcheon, A theory ofparody: the teachings of twentieth-century out forms. London and New
York, Methuen, 1985.
(56) - Além dos trabalhos já citados deSanda Galopentia - Eretescu, Nella Gianeto e Linda Hutcheon, vide
Gérard Genette, Palimpsestes. Paris, Seuil, 1982; A.A.V.V., Le Singe à la porte: Vers une théorie de la
parodie. New York, Lang, 1984; Margaret A. Rose, Parody - Meta-Fiction. London, Croom Helm, 1979;
Martin Kuester, Framing Truths - Parodie Structures in Contemporary English-Canadian Historical
Novels. Toronto, University of Toronto Press, 1992.
(57) - Cf. Wallace Martin, Recent theories of narrative, 3o ed., London/Ithaca, Cornell Univ. Press, 1994,
pp. 178-181.
(58). Linda Hutcheon, op. cit., p. 126.
(59) - Martin Kuester, Framing Truths, p. 7.
(60) - Cf. Cristoph Rodiek, "Raum darstellong im neuren erchronischen Roman", in Roger Bauer and
Douwe Fokema (eds), Procedings oftheXIIth Congres of the Comparative Literature Association, Vol. 2,
Munchen, 1990, e E. Wesseling, op. cit., p. 106.
A ideia do refazer tem em si algo de angustiante. Se o passado não nos
pode dar uma autêntica identidade, então, como recomenda Nietzsche, que uma
quem sabe ter nascido tarde e não ter trazido nada de novo que não tenha já sido
dito ou feito.
produtividade das metáforas bíblicas mostram como este saber tem grande poder
Para além de que o Homem e os Povos, situados na História, não abdicam das
suas projecções, assim como os criadores literários não prescindem da sua paradoxal
de Portugal.
com inspiração histórica não poderia obviamente realizar-se sem alterações sensíveis
91
semântico-pragmáticos.
dessas alterações.
O romance sempre teve como intenção contar uma biografia fictícia com
descurar. No caso desta obra de António Cândido Franco deparamos com o nome
BIOGRAFIAS.
Normalmente estes títulos que designam o herói parecem apontar para uma
estrutura fechada. Será que o mesmo acontece neste caso? Não parece: com o
como se poderá deduzir, quem está oculto poderá ser descoberto num futuro
o real - Cap. IX, «As loucuras finais» - , depois de fazer a «Apologia da derrota»
e ir para a guerra como quem vai para uma festa (Cap. VII, «Para a festa»).
«Teoria da Tragédia» (IV), «Primeira Torre» (V) e «Os Jardins de Tângen> (VI), a
e de um destino nacionais; e por isso vai sendo construído numa perspectiva mítica
de âmbito nacional.
4.2. O narrador
não apenas como enunciador soberano do discurso que deveria relatar a existência
digressões) e até como protagonista de certos estratos diegéticos, sempre que certos
dados biográficos do autor textual (e, por relações de implicação, do autor empírico?)
são intrometidos nos dados da diegese principal (v.g.«Eu conheço bem Ceuta. O
primeiro relógio que tive foi comprado em Ceuta. Era miúdo e desde aí fui lá muitas
vezes. Ceuta para mim não tem mistérios, ainda que não possa pensar na cidade sem
94
Ceuta.»).61
escrever sobre Inês e Sebastião não vale a pena escrever mais uma linha sobre a
história de Portugal. Por mim, depois disto, prometo tentar não voltar a fazê-lo, ainda
que às vezes o silêncio canse e seja bom incomodar os outros.», «A mim, eu peço que
o leitor me desculpe estes parágrafos sobre o Ribatejo, decerto inesperados, mas acho
que com as arenas ribatejanas e com o seu último e supremo actor, Sebastião, a Casa
de Avis se tornou uma casa tão trágica como a de Atreu.», «Fialho de Almeida diz que
no caminho de Beja lhe apareceu o primo Duarte, em ceroulas, porque por algum
motivo se lhe tinha rasgado a perna de uma calça. Mas do Fialho e das suas
extraordinárias invenções, dignas dos maiores enigmas, eu já disse que haveria de falar
um dia com o cuidado com que se fala do tédio ou das invenções de Baudelaire. Eram
enquanto país com uma história de peso mas com um poder actual cada vez menor, e
Podemos dizer, por isso, que existem condições para receber mensagens
literárias que foquem cogitações de tal ordem, se bem que para receptores mais ligados
a esferas intelectuais. É notório que criações deste tipo, com grande carga culturalista,
só poderão ver-se desvendadas por aquele tipo de receptores atrás referidos. Bases
figuras históricas, políticas, literárias e artísticas, que o narrador faz proliferar não só
outros mundos possíveis (e situáveis noutras épocas), mas também através de intrusões
e digressões subjectivas.
imposto ao material do texto e o momento em que o autor textual visa que ele seja
momento de ser actualizada, numa estratégia expectante em que o narrador insinua vir
contando, ora criticando de modo mais lúdico ou mais grave, ora ainda vogando ao
consciências.63
4.3. O tempo
insólita. Parece plausível que tal se conecte com a «espacialização da História» que os
textos pós-modernos promoveriam, segundo Amy Jeanne Elias, por razões políticas e
da temporalidade.64
ponham em movimento a estratégia «What would have happened, if...?» que legitima
(63) - De acordo, aliás, com a teoria da linguagem e da literatura que informa ensaios de estética de
António Cândido Franco e bem assim com as teses hermenêuticas prevalecentes nos seus estudos sobre
Pascoaes e sobre a poesia saudosista.
(64) - Amy Jeanne Elias, Spatializing History: Representing History in the Postmodernist Novel. UMI,
Pensylvania State University, 1991.
97
forma com o século XX uma amálgama que permite até surgirem algumas
em Pombal ou criança loira perdida na praia da Nazaré). Esta figura mítica, com aura
sacral, adquire com simplicidade outras figurações típicas do mundo em que vive o
leitor actual, numa estratégia metafórica de salto do sonho para a realidade contextual
e vice-versa.
falso.
Brito afirma que há uma alternância constante entre "o cá" e "o lá",66 a respeito de
plurais interpretações do passado, num desejo de activar presentes reversos e por isso
utópicos.
Nazaré.
4.4. Personagens
afirma que só a vida interior conta; a antítese, que a vida interior não existe... e
é constante e só vemos dele antigas imagens que já o não representam. Por isso a
mentira não é só um tema de análise psicológica mas destrói o herói que surge sem
verdade.
interior emerge com toda a força e a personagem não caminha para a acção mas é
Eu tem para o outro «um sentido e um valor que nunca seriam os meus». A
leitor. A base das narrativas num mundo desumanizado não é a personagem mas a
relação interpessoal. E esta relação é um jogo que o romancista joga com quem o
a existência»67
anonimato. Todo o leitor pode ser este eu, todo o leitor pode preencher este vazio.
(67) -Claude-Edmonde Magny, L'Age du roman américain. Paris, Seuil, 1948, p. 73.
101
capacidades de compreensão e até de adivinhação, sem que nos seja dado dilucidar se
com quem Sebastião faz percurso de amadurecimento são também muitas vezes seres
4.5. Espaço
Iorque, de Viena ao Cairo, muitas das grandes cidades surgem referidas nos
romances contemporâneos, desde John dos Passos até Malraux, sem esquecer
refugio. Reflexo ou desvio, mas sem dúvida espaço originado nas palavras, a
do Homem.
103
Talvez por isso Philippe Hamon afirme que a cidade é um «fora» que tem
torna-se literária porque, onde a cidade não falava e tinha uma função, surge uma
voz que vem acrescentar àquela função um sentido, ultrapassando-se assim a mera
deve intuir já da determinação de Sebastião deixar Lisboa por mar. (...) Lisboa, em
Pombal, que se não era de Santa Comba Dão e não se alimentou de batatas era de
Soure e foi alimentado a milho, está encostado a um leão. Em Lisboa, durante o mês
espaços fecundos, em que da vegetação exuberante e virginal, bem como da água que
de um soberano que era filho de João, morto em noite de chuva por ter ingerido com
sofreguidão a água assassina que está vedada a um diabético. Sob a forma de rios, de
utopias. Abrindo portas às loucuras mais ousadas, é traço definidor do estar e do viver
ressurgir por entre brumas, tal como Fénix que renascesse por entre fumos de cinzas.
energeia que tudo altera. Força de uma vertigem, profecia que se pretende mágica mas
perto de uma realidade em que Sebastião é técnico da Peugeot e usa blusão preto, o
Nascido de uma união em que Eros imperava, Sebastião como que projecta as
pulsões da sua libido para o plano da relação com o destino do reino que herdara e da
vigentes.
transcendente.
com que o autor não se visse mais como o senhor da sua linguagem: em vez de a falar,
sentia-se pelo contrário falado por ela. Era a morte do Homem, dos humanismos e da
linguagem.
Tudo isso se reflectiu no nouveau roman, onde se voltou a aceitar que o único
vão conquistando espaço. E algumas décadas mais tarde conclui-se de novo que as
trabalha com dogmas. Como diz Ferreira de Brito, «os problemas metafísicos do
quando perde a Fé e derroga os mitos, assume-se como sujeito insolente. Daí o tom
paródico com que alude aos políticos portugueses do dia a dia. O jogo político, social
Homem das últimas décadas do século XX. Como dizia Malraux, lembrado agora por
queficcionalmentenos deixemos embalar pelo jogo lúdico que faz com que possamos
retirar de certas loucuras alguma sabedoria. O Homem que vai surgir terá de ser muito
mais estético que ético, pois só a criação artística se oporá com êxito à alienação
desumanizante.
para a diária colisão com o pragmatismo dissolutor em que a Razão não impera, nem a
CAPITULO IV
1. Hibridismo histórico-ficcional
numa narrativa cuja tónica é pensar o passado para compreender o presente, tão ao
gosto nietzscheano - eis o que também ocorre na Vida de Sebastião Rei de Portugal,
Franco, as expectativas de que se vai 1er uma biografia de alguém que teve
quer pelo seu título Vida de Sebastião Rei de Portugal, quer ainda pelo índice
No mesmo sentido actuam o teor das notas ao longo do livro e ainda, mais
Alcácer-Quibir.
(2) - Cf. supra, Cap. n, pp. segs., e Cap. Dl, pp. segs.
Ill
espessura) dos outros que lhe estão próximos. Supremacia clara de uma figura face
a uma simples vida de um Rei de Portugal, se é que para tal elemento peritextual
poderemos fazer esta leitura em termos de cratilismo secundário. Muito mais longe
que faculta visitas a eras variadas, sem documentos de passagem, sem limitações;
futuro.
subversivo que a obra quer ser: «cita-se assim a escrita com o mesmo à-vontade
Para que a luz surja mais esplêndida e a vida tenha dimensão plena, para
que «É preciso fazer da escrita uma lareira tão pacífica como o Inferno» e é
dados históricos, mas é facto também que a fantasia pancrónica se infiltra de modo
apresenta, apenas em parte assim se mantém; e mesmo quando mais o induz, sob as
figura e projecto de bufão que quer a derrota, etc. Não esqueçamos que o narrador
sensatez.
sedução pela planície de indefinidos horizontes no sul alentejano, pela floresta fecunda
utópico.
dos seus ancestrais - pais, avós ou primos - marcam o jovem rei, mas também a
narrativa que o recria (e os contrastes que explora, como por exemplo quando os avós
que o seu neto tem uma genialidade e uma abertura a projectos intemporais que o
extensiva quer aos seus mestres, meticulosamente escolhidos, quer àqueles que
técnica de composição.
Destas várias formas, o ficcional - e um ficcional estranho, por vezes
de polivalência.
supor uma ligação ao romance do século XIX, mas como que ultrapassando o seu
lúdica).
João de Castro, Sales Loureiro surgem, com desenvoltas anacronias, para manter o
romance, se assim pode ser chamado, ao mesmo tempo pode evocar no leitor o
histórico e de projecção profética vai cavalgando cada vez mais o suposto relato
É assim que nomes tão díspares - quer em cronologia, quer em funções - como
Inês de Castro, Spínola, Trotsky, Mattoso e D. Quixote são evocados, para já não
Esta utilização de testemunhos não é nova. Não é mais que uma técnica de
enunciado estilhaçado que não domina. Afinal muito importam os não-ditos dessa
quer a Camões, quer a Luísa Sigeia, quer a Adão e Eva, quer a Jim Morrison, quer
Mendonça, são indicados como tendo papel importante na vinda (para Portugal) e
Jorge Ferreira de Vasconcelos, quer como autor do livro Memorial das Proezas
ou inesperadas e excessivas.
Logo no início do capítulo II Bosh é invocado («a época ... tem a sua
Lusitana, das aias da princesa Leonor e do retrato do rei D. João III da autoria de
Cristóvão Lopes, que nos vão dando perspectivas diferentes de uma situação e de
se postula que foi através desta figura que Portugal ganhou a certeza de que o seu
simbólicas - Castor e Polux, Dionisos e Apolo, Eros e Psique, Janus, Átis, Osíris,
Adonis, Cerbero, Quiron, Édipo -, e bem assim, como já atrás assinalámos, figuras
e sonho que introduz, a Oscar Wilde, sensual decadentista mas também mestre do
(11) - Cf. ibidem, pp. 11,31,35,36,66, 101, 128, 138, 145, 149, 167, 174, 178, 180, 183, 184,204,205.
.
120
incertamente também, através de uma voz que ri, disfarçando assim, com máscara
interpretativo sobre qualquer outro leitor, não deixaria de ser estimulante ver as
passagem do som ao sentido é um acto poético que por analogia se pode encontrar
pensa ou entende com a razão e cria com a imaginação. A criação do mundo foi
um acto de imaginação o que nos pode levar a encarar esta faculdade como
divina»13 -, à criação verbal e seu alcance - «Há um momento na vida em que nos
sentimos como que descontextualizados em relação a tudo aquilo que nos rodeia.
perde todas as referências possíveis [...] é a nudez [...] o vazio branco [...] a
«sem a poesia que é capaz de avançar do som para o sentido, a redenção universal
das coisas e dos seres não seria possível. [...] Através da significação [...] uma
pedra pode desdobrar-se em uma asa, seu duplo [...] o aprofundamento do sentido
acaba por ser sempre, à medida que vai progredindo, o aprofundamento mesmo do
desconhecido [,..]».15
Por isso, Jacques Lacan afirma que o literal é litoral, ou seja que toda
poético é sempre uma litoralidade, uma estranheza que se aprofunda como espírito
ou como inconsciente. Também nesse sentido se nos impõe aquilo que a dado
eternidade fora. Ele não só recusou, como dizem as crónicas, o sono ligeiro dos
vivos, como acabou por recusar o sono profundo dos mortos. Sebastião nunca
afirmação e negação, silêncio e ruído. Talvez por isso, nos domínios da criação
lugar de relevo. Então a obra vale por meio de busca, de construção ou não da sua
relevo por excelência, tornando-se o centro das atenções (tal como, falando no
meio dos seus bailados, um Béjart que tanto impressionou os jovens portugueses
no final da década de sessenta, num papel subversivo outro que o fez aliás ser
voltei a encontrar o rei»18 ou ainda «só voltei a encontrar Sebastião numa loja de
móveis em Pombal» e finalmente «na Nazaré [...] o jovem Sebastião tinha calções
ilimitada.
parece deste modo penetrar directamente na mente que pensa e podem surgir
desde as primeiras linhas, embora aqui e além apareçam modestas terceiras pessoas
fazer - «Vou falar...» -, a inserir esta obra no seu anterior trajecto - «já em outro
acho que», «Eu sei isso ...mas a mim...», «Sebastião interessa-me», «eu vejo
nele...», «vejo esse Sebastião», «acredito que»... O narrador, que é essa voz,
dinastia de Avis»).
tanto as construções apassivantes como as construções infinitivas mais não são que
máscaras de uma primeira pessoa que está sempre presente e que aos olhos do
sob as aparências».
ora actor da intriga, explica-se por uma presença do autor que não é da ordem da
uma liberdade extremamente cómoda. Porém, parece por vezes querer constituir
uma outra história pessoal. A invasão do discurso pelo autor textual não destrói a
125
tese.
Por sua vez, o leitor que se pode identificar ou não com o narrador sente-se
destino do discurso.
não são de natureza tão diversificada como aqueles que surgem na obra de Alfred
aquele a que Tadié chama montagem, já não apenas como processo de adaptação
narratividade filmica, mas como composição aberta em que, acentuando o que fora
apresentava duas histórias numa tentativa de lhes dar relevo especial pela técnica
organização final mais abrangente sem dúvida. ítalo Calvino afirma em Se numa
noite de Inverno: «Faço com que sejam contadas demasiadas histórias ao mesmo
tempo, porque quero que se sintam à volta da narrativa outras histórias até à
saturação, [...], - num espaço preenchido da história que talvez não seja mais do
que o tempo da minha vida, onde nos podemos, como no espaço, deslocar em
(22) - Idem, ibidem, p. 110 («Em 1913-1914 Jean Cocteau redige o seu romance mais curioso Le Potomak
publicado em 1919. Composto de fragmentos esparsos, de textos sobrepostos, e, numa terça parte, de
desenhos, os «Eugène», este livro conta a história de um monstro, o Potomak, e a aventura interior do
autor»).
(23) - Idem, ibidem, p. 113.
(24) - Apud Jean-Yves Tadié, op. cit., p. 114.
127
sabor irónico cada título é um elemento de frase e o livro não é mais do que um
jogo de muitos começos em que cada título pode ser um início de um romance
diferente.
entrada rápida porque não permitida. Essa expedição revela-se difícil, porque
sugere uma passagem por sobre uma muralha que sugere altura, portanto
dificuldade, e que sugere também acesso a alguma coisa que tem de ser protegido.
Esta ideia de múltiplas visões de alguma coisa aponta para os vários testemunhos
Vamos encontrar o mesmo plural sugestivo nos títulos dos capítulos VI, IX
Sebastião, nos vários locais africanos por onde vai andando. Este entrelaçar de
histórica e - para o leitor, nessa altura da narrativa - já figura mítica. Este capítulo
mostra-nos uma técnica que afinal diz implicitamente o que nunca é afirmado: «O
que faltava aos Portugueses não era encontrar o império do Encoberto [mas] fazer
mundo de discurso onde a ironia se afigura «the only way we can be serious
today»25, ou para um mundo de jogo, em que já se não imita mas se produz alguma
coisa que se pretende diferente, então uma nova retórica surge em que são
escreve Jacques Bens, «mais do uma técnica de composição, é uma certa maneira
realidade nunca revela senão uma parte do seu rosto, autorizando mil
acreditar que a realidade nunca mostra senão uma ínfima parte da sua face,
limites dessa área especial, o ser humano estava protegido e tudo tinha sentido,
pois estava-se em contacto mais ou menos directo com o Céu, habitado ou não por
divindades pessoais.
António Cândido Franco, é que este rei Sebastião, através do narrador, procura
reencontrar o seu axis mundi, numa tentativa de dar sentido ao seu viver e de o
libertar da falta de objectivos da Corte e dos parentes, que pouco lhe diziam e que
Por essa razão, Sebastião vai privilegiar o Sul de Portugal, cuja imensidão
Sul vai destacar-se enquanto terra moldável, produto de rios e rias; tal como as
areias marinhas possuem a força do mar, esse Sul surge como espaço propício à
além»27. É neste espaço que a dinastia de Avis foi criada, tal como esta figura
O sonho africano alimentado por esta dinastia que quer virar as costas «não
representar», começara com o primeiro rei de Avis «que tinha os olhos asiáticos e
devia ser filho de uma mulher do Sul, quem sabe se vinda dos desertos do Adrar,
paraíso desaparecido, por outro lado sente-se a fria rigidez cinzenta e baça do
importância, tal como Lisboa que aparece aos olhos de Joana, e na boca do
narrador, como «uma ilha ou um reduto final perdido já entre o verde e o vidro do
Atlântico [...] era uma cidade de Neptuno»30. Esse Tejo, de quando em quando,
é-nos apresentada como o local onde Sebastião melhor exercitou a solidão e onde
(28) - Idem, ibidem, p. 12. Neste passo e noutros afins retomam-se as conotações da personagem Fátima
em Memória de Inês de Castro ( cf. supra Cap. H).
(29) - A. Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, p. 22.
(30) - Idem, ibidem, p. 26.
(31) - Idem, ibidem, p. 27.
(32) - Idem, ibidem, p. 28.
132
Roca permitem-lhe ensaiar voos altos, mas trágicos e destrutivos porque tão
ganha força se nos lembrarmos que o Pentecostes cristão assinala a descida das
fecundo. Daí que, no Ribatejo, o homem não possa esquecer as suas raízes
que Portugal tem uma «pré-história tão antiga como a própria criação do
mundo».35
e vive no campo onde vem a matar «o seu primeiro porco selvagem»36. É de facto
se foi aí, neste «nosso primeiro sertão», que o português descobriu a liberdade, e
se ali Africa começa, é também nessa terra que vive, entre burros, cavalos
mar. Ora se afasta para os matos «em Sintra ou em Mege», ora se afasta para a
ao mar e ao campo tal como ainda hoje o Homem Português. É por isso que o
Ribatejo maravilha não só o rei, mas também o narrador. Surge como «a grande
praia», «reino marítimo onde o cabo de um leme se pode transformar com toda a
tem feito terra». É o homem desta lezíria «enorme areal», campino ou toureiro,
Inverno, no meio dos choupos tristes e dos seus lençóis de água, a lezíria provoca
que liga o homem às suas raízes primitivas e primordiais. É aí que se contacta com
a «pré-história cosmogónica».
Porém, para que este espaço mantenha a sua força e a sua ligação a eras
Atreu.40
«tourada é capaz de fazer mais terror e mais alívio que a lembrança dos passos do
calvário e o sangue da cruz [...] a morte de um touro [é] uma coisa mais trágica
o toureio a actividade última que liga o homem da era industrial às eras genesíacas
e gloriosas do Paraíso.
passar por Viana do Alentejo, por Cuba, por Vidigueira, por Grândola, por Beja,
Sebastião convence-se, e com ele o narrador, que «nada na Europa está tão perto
Os horizontes claros, os campos sem fim, as árvores ora verdes ora pardas
O narrador coloca-nos perante o rei a atravessar uma terra que não tem
tempo - e que, por isso, como nos fará saber a desconcertante exploração da
cronologia pelo narrador, não aceitará a industrialização (mesmo que ela exista
não entrará no coração dos homens, ali onde, por exemplo, se prefere andar a pé
Entradas, o rei podia «andar em espaços livres, perder-se por valados e riachos»
Mas este tipo de atracção por certos espaços, multiplica-se através de Mértola,
viagem que se pode conceber». Esta região revelou-se «como uma parte do Jardim
o mar algarvio que o espantou pelo seu rugido. Fora nesse Algarve ermo que
para a «fome obstinada»47 de projectos africanos (em razão dos quais, embora
Bispo e Sagres, que eles motivarão o seu regresso praticamente todos os anos.
cabo de Santa Maria agradam-lhe muito, tal como Tavira, Castro Marim e o rio
Guadiana.
Acho, que é um das duas colunas onde Hércules sustém o mundo»; ou quando se
banha na baía, deixando actuar sobre si a ligação que tem ao mar; ou quando se
Tânger, de início com um sol escaldante, logo depois com um «vento de mar que
faz toldar por completo o horizonte» e ainda com «uma humidade que encharca o
possível.
primeiro plano, uma vez que com ela vem todo um novo ciclo de rejuvenescimento
com papel antecipatório (o calor aproxima-nos ainda mais das terras africanas), ou
com função ominosa (estava tudo seco quando o pai de Sebastião sente aquela
devires.
Portugal, poder-se-á dizer que ele é múltiplo e anómalo, quer no plano diegético,
personagem há dezenas de anos, assume agora que viu Sebastião em Paris, como
ter 7 anos». Este incidente ocorreu em dia cheio de neblina, com nevoeiros ao fim
da tarde.51
limitou a ficar acordado pela eternidade fora. Ele não só recusou, como dizem as
crónicas, o sono ligeiro dos vivos, como acabou por recusar o sono profundo dos
após dia, está largamente desmultiplicado e subvertido nesta narrativa. Não que o
esta aparente ordem cronológica dos factos que conta, mas sim, no primeiro caso
que a transcende, essa relação surge como uma hierofania: a ligação humana de
perde, pois, relevância e poder por um lado, mas readquire-o anomalamente num
plano mítico. Este par tinha de ser apresentado como excepcional, pois seria dele
Encoberto.
Sublinhe-se ainda que João, esgotado por esta relação única na sua
fará entrar na eternidade. Esta necessidade ontológica primitiva é que explica que
o seu tempo de vida, humanamente curta, tenho sido pleno. Essa plenitude abolirá
aquela duração temporal, porque é de ordem extra-humana. É nestes momentos -
Homem é verdadeiramente ele próprio. Há quase que uma suspensão temporal nos
momentos vividos por este par responsável pelo processo em que o príncipe
Sebastião é gerado.
míticas. A renovação histórica anuncia-se pelo corte temporal que se sente existir
isso, o princípio.
No que diz respeito aos capítulos em que a figura principal vai crescendo,
se vai instruindo e se vai formando, há que referir como os seus tempos não são os
aristocratas também estes com ânsia de ser, ou no convívio com animais. Então, de
modo entrecortado, as revelações anunciam-se ou impõem-se. Tanto as estações
do ano, como as duas faces do dia, na passagem da luz às trevas e das trevas à luz,
Mundo Novo.
tempos não são os mesmos, mas também que o Homem não evolui radicalmente no
seu caminho.
Não esqueçamos, por outro lado, como o messianismo, ainda que com
dificuldades, valoriza o Tempo e a História. Esta só pode ser aceite porque cessará
aspecto sugerir que havia um empolamento pessimista mas, ao que parece, poderá
e, consequentemente, de regeneração.
tivermos presente que essa Redenção só é possível porque Jesus Cristo em data
CAPÍTULO V
convoca nas suas desiguais intrusões). Importa agora que alguns têm
hierofanias, o autor cria ambiente onde a linguagem possa fazer surgir realidades
também na linha dos estóicos com a exegese alegórica1, notamos que nesta
(1) - Mircea Eliade, O sagrado e o profano - A essência das religiões. Lisboa, Livros do Brasil, p. 8.
146
História das Religiões2, é procedimento que vemos reaproveitado neste livro que
dos seus componentes, alterando o seu jogo de faz de conta em sentido cativante e
premonitório.
de outros, como aparecem eivados de uma energia anímica que passa para as
ainda e sobretudo ele próprio. O contacto com a terra de aluvião, com a floresta,
com o mar ou com a água do rio, tem efeitos de transformação mágica. Essa
recorrente evidenciação de uma força energética que das coisas se comunica aos
que o autor textual parece querer aproximar das mentalidades pré-lógicas dos
criadores, está sempre subjacente ao texto e faz-nos sentir esses espaços como
de sacralidade entram em osmose com a personagem principal, que por seu turno
se vai enriquecendo de novos atributos que mostram o papel especial a que vai
sendo votado e que ora o aproximam de entidades totémicas (v.g. quando ele é o
e salva). Com efeito, é assim que a narrativa de António Cândido Franco faz
(5) - Desde a padronização da fenomenologia do sagrado levada a cabo por R. Otto em Das Heilige
(Breslau, 1914).
148
importa ter presente que para a visão simbólica o número das coisas ou dos factos
animista os números, como os nomes, libertam forças que formam uma corrente
Agostinho, seríamos levados (como Emile Mâle) a sublinhar a ideia de que não só
mundo físico e mundo moral se constroem sobre números eternos, como também a
(6) - Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dictionnaire des Symboles, Paris, Éditions Robert Laffont, 1985,
p. 677.
(7) - Jean-Yves Tadié, O romance no século XX, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1992, pp. 105, 106.
149
relevantes são o três (e seus múltiplos), o quatro (menos manifesto, mas muito
presente através dos quatro Elementos - terra, água, ar, fogo) e o sete (em que
«Fontes», avança na sua acção por três fases e cada uma dessas fases cobre três
Infante D. Luís, único poeta entre os tios de Sebastião e aquele de que mais terá
herdado o seu espírito. Aos 3 anos D. Henrique, depois cardeal-rei, «pensa já com
horas», aprendeu a falar latim «em três dias e três noites com André de Resende».
Três anos tinha Sebastião quando D. João III morreu; é um «rei de 3 anos, que uns
as galés que Sebastião solicita quando decide partir a primeira vez para Marrocos;
«na madeira das três galeras» fazem as ondas um rumor que o narrador evoca sem
mais. Três dias se recolhe Sebastião, em pranto de luto pela morte de seu mestre
Por outro lado, não será caso isolado, ou pelo menos despiciendo, o lance
em que «Os quatro moços de caça levam com eles sete falcões, um gavião e um
tigre com olhos verdes» - onde, aliás, os dois números grados surgem associados
Sebastião, com asas de gavião e olhos de gazela» (sendo esta símbolo da acuidade
passo, Sebastião revela-se «tão ágil como um tigre»10, sendo este símbolo de poder
(9) - António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, pp. 40, 47, 47, 49, 51, 88, 97, 114, 115,
136, 155.
(10)- Idem, ibidem, p. 111.
151
quatro: cada período lunar dura sete dias e são quatro os períodos que integram o
ciclo lunar.
Apolo onde era típico, a totalidade do espaço e do tempo. Símbolo da vida eterna,
2. «Cão» e «Touro»
depois de ter sido companheiro no dia da vida. O cão, para quem o invisível é familiar,
não se contenta em guiar os mortos; serve também de intercessor entre este mundo e
virtudes medicinais ou sexuais são outros tantos atributos fabulosos deste animal.
Primavera.11
alguém que «Tem uma vista apuradíssima e desde muito cedo que se sente nele um
faro palpitante, mais instintivo que reflexivo...Os seus olhos eram vermelhos e quase
percepção, por um lado, e a força que se desprende dos seus olhos, por outro, que nos
em que possuía «uma bela estampa canina...», de que «o focinho tinha qualquer coisa
(11) - Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, op. cit., pp. 239, 245.
(12) - António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, p. 20.
de matreiro e brincalhão» e de que os olhos «eram luminosos e avermelhados.
Pareciam rubis de vidro vermelho ou brasas vivas [...] como o fogo puro», é outro
intuitiva e nervosa («Tem esse ar nervoso e apertado dos cães de pêlo muito liso e
castanho»).13
comunicativo, subtil e penetrante. Está sempre vivo e atento. Ele é Eros a satisfazer
Psique [...] Eros é um cão de mercúrio, frio à vista mas quente no contacto. [...]
delinquência...»14
o narrador, pretende mostrar que Sebastião é gerado por pais que têm excepcionais
a simbologia do cão retorna, é então para conotar práticas do já jovem rei - «Todos
sua capacidade corporal [...] cada vez capaz de revelar mais e mais dotes
negra a cabeça de um cão com coleira de cabedal, e que tanto pode ser uma das
guia é o cão [...] e que bem pode chamar-se Tejo, nome vulgar de cão no
Ribatejo...».17
sinais corporais pouco normais («seis dedos no pé direito [...] de unhas fortes e
rijas [...] duras como cascos») desde o seu nascimento de criança tão desejada.18
Apresentado no capítulo III como «um menino que tem alguma coisa de
Cristóvão de Morais como um jovem toureiro («na cabeça um curto chapéu que
mais parece o toucado de dois bicos que os toureiros usam»)20, como alguém que
para se defender usa «Essa protecção no centro do corpo, que sobe e o envolve
que eram mais dignos de um campino da lezíria» e se torna «um exímio corredor
de touros».21
fertilizará a terra.
vindo da Ásia Menor, mostra-nos o iniciado a receber a energia vital deste animal
luta das forças do bem contra as do mal que daria acesso à luz eterna. Neste
princípio da vida.22
figura de Mitra surge no capítulo IV, encimado pelo impressionante título «Teoria
Dezembro, tal como Cristo, depois de ter encontrado o touro espetou-lhe a faca «e
deixou-o moribundo. Ele desfez-se em sangue, ferido de morte. Deste sangue que
se espalhou por todos os lados, nasceram depois, num instante, todas as pedras,
todas as plantas, todos os animais e até todas as estrelas. O touro era o ser que
continha o sangue e por isso, ao dar vida, ele empresta o princípio vital a tudo
dessa cultura e até desse homem [...] campino ou toureiro. Nada como o touro
pode dar-nos o sentido do Ribatejo e da sua cultura humana, que foi largamente a
cultura que o português exportou para o mundo quando por ele andou. Eu acho
(22) - Jean Chevalier/Alain Gheerbrant, Dictionnaire des Symboles, pp. 929-934; Alexandre H. Krappe,
La genèse des Mythes, Paris, 1952, p. 87; Mircea Eliade, Traité d'histoire des religions, Paris, 1968, pp.
82 e 157.
(23) - António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, p. 81.
(24) - Idem, ibidem, p. 73.
157
sonhar».25
«mestre materno capaz de criar a matéria», confunde-se com a terra; e «na arena
do Ribatejo é o touro que dá vida à lezíria, esse enorme areal que à força de
na fábula mítica de Mitra, a terra assim fecundada dará origem a mundos novos. É
por isso que «uma praça de touros é mais religiosa e mais bela que uma igreja [...].
Nada há mais parecido a esse anfiteatro grego, esse recinto onde os deuses se
cada touro eu encontro os tempos de criação original, que são tempos não só
touros sacraliza este último espaço de modo claro e insistente (até chegar o
porque é na tourada que ele aprende que o sangue da morte redime a Natureza
também o touro que se ergue real e vitorioso, no horizonte, com os seus cornos
nascer».28
Tal como no antigo Egipto o touro que traz entre os chifres um disco solar
Tragédia») o narrador afirma que «O toureiro é a última profissão viril que liga o
mundo [...] que lhe era dado governar com a mesma temeridade, o mesmo sentido
este jovem rei é capaz de ter força e capacidade de originar novo ciclo de
referenciado como tendo «um dos flancos traseiros marcados com uma lua» e «os
facto, vai até afirmar que «tourear a pé é estar tão perto do touro que se acaba por
pôr a sua máscara. Sempre achei que os minúsculos chapéus de duas abas pretas
muito com a meia-lua que os touros têm nos cornos. Os toureiros que lidam a pé
estão tão próximos do alcance do touro que acabam por se transformar em alguma
coisa de parecido com ele». Claro está que Sebastião «correu de novo touros e
voltou a espantar as pessoas [...] com os seus hábitos estranhos de tourear a pé»,
próprio a soprar fumo pelas narinas e a arranhar com o casco na arena» (ou, o que
para o narrador não está longe da equivalência, assim o imaginou, antes de todos,
«É o momento em que a fusão do homem e do touro parece mais uma cópula entre
dois seres que se desejam ardentemente que numa luta de morte. De repente, o
touro vacilou nas pernas e o sol desapareceu no horizonte. (...) A morte do touro
amor».35
daquela terra fecunda. Aí surge Sebastião «como um jovem touro, todo vestido de
negro», cujo sangue se torna em «alimento» que ainda hoje «está a fecundar os
afirma-se que Sebastião «queria era andar pelo Ribatejo»38, em terra fértil e
renascimento: «Cita-se assim a escrita com o mesmo à-vontade com que num
querer fundar contextos adequados à gestação de uma nova epifania política para
Portugal.
«Nas antigas línguas [...] terra e touro diziam-se da mesma maneira e com
ambiguidade entre criador e criado. Mas, por outro lado, como é próprio da
sub-capítulo sobre o amor, quando se quer analisar este livro ambiguamente ficcional
de uma figura política tão carismática como Sebastião e que não se afirmou
do Príncipe, logo no capítulo I que se intitula «Amon>, deixa-nos entrever que uma
importante significação simbólica lhe é atribuída. Há, antes de mais, uma insinuação de
bem-estar indizível que se torna magicamente envolvente para o leitor. Sentimos que
aliança de paixão e razão numa sabedoria que é fruto de conquista mais do que de
herança.
A alusão à raiz latina dos nomes dos pais de Sebastião (João e Joana) e à sua
significação vem reforçar a ideia de que são um só ser com as suas componentes
a expressão do que foi a curta vivência em comum, as suas conversas, os seus passeios
as expressões fisionómicas que ecoam de modo exemplar, não só trazendo até nós
palavras lapidares de Octávio Paz - «o aqui e o lá, o mortal e o imortal por momentos
aluvião.
inteiramente um no outro, não tanto pelo que lhes é comum, mas muito mais pelo que
lhes é diferente [...] João é o masculino de Joana como Joana é literalmente o feminino
(43) - Octávio Paz, A chama dupla - Amor e erotismo. Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, p. 80.
(44) - António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, p. 19.
164
sua proximidade de parentesco não podia ser maior, nem menos vertiginosa: «o
parentesco entre ambos quase não podia ser mais cerrado e o seu amor é quase um
incesto é uma união excepcional, eco da ligação original, embora tida por transgressão
grave do ponto de vista civilizacional («o amor entre irmãos, ou melhor até entre
gémeos, é não só um dos mitos poéticos mais cativantes como a forma de Amor
que mais longe está, como transgressão moral e cultural, da civilização»). Sendo
num jogo de desdobramento do ser que sente e conhece ao mesmo tempo como
Castor e Polux, afinal João e Joana, seres distintos, diferentes entre si, poderiam
indiciar, desde o modo como nos mostra quanto a comunicação entre os dois foi
relação amorosa dos pais de Sebastião num plano mítico, explicando que a doença
precoce, rápida e mortal do Príncipe D. João mais não é que a doença do amor,
pois «Eros adoece com facilidade, que Eros é o corpo, lugar de todas as
A ligação amorosa entre os dois torna-se cada vez mais profunda, não
são vistos pelas duas personagens amorosas como tendo alguma coisa de «aurorai»
bom dia para morrer, porque «deve estar bem presente nesse dia que tanto
passado para o futuro, guarda das portas entre um universo e outro, observador do
do mês. Consentaneamente, para o narrador, «Os túmulos têm», nesse primeiro dia
Sebastião, filho de um Príncipe cuja «biografia é, no seu tempo, pelo menos tão
interessante como hoje a de Jim Morrisson» (visto o vocalista dos Doors como
53
«grande poeta rimbaldiano»), vem ao mundo sob o signo do advento de nova era.
Por um lado, a vida de João é mergulho vital na natureza, feito a dois, pois
outro lado, sendo João um hebético conduzido à morte como «última ilusão do
amon>54, morrerá de sedes pavorosas, mas a sede que o matará jovem é duplicemente
insaciável e, talvez por isso, o filho a que irá dar origem herdará um grande apelo do
dimensão erótica, tal como aparece em seus pais, não existe nele. Dado que o erotismo
itinerário de atracção sensual pela natureza, tão profundo como o do pai, mas de
maneira solitária. Nessa natureza Sebastião busca a beleza fecunda do desejo que
outros buscam na mulher, como se para a endossar depois à morte que o espera (não
nos terrenos férteis das suas juvenis errâncias, mas num deserto que ele irá fecundar
interesse pelo sexo oposto», «estava encarnadíssimo, o coração sem nexo e os olhos
cheios de névoas», «A impressão que a carne feminina lhe fazia era quase uma agonia e
é possível que esse pudor que ele sentia e mostrava fosse muitas vezes um dos sinais
Pernambuco dos que «tiveram lugar na Antiguidade em torno de figuras como Átis,
A fecundadora união de Sebastião não é com uma mulher mas com uma morte
que miticamente o fará reviver vezes sem fim, até aos nossos dias, num projecto
político de manter viva a chama de uma nação e de um império. Seria «um V Império
dos nossos finais do séc. XX. Neste sentido, Sebastião vai aparecendo vestido com
momento.
Sebastião, que está no fim de uma era e no início de outra, e que parece ter
alicerçada no contacto com natureza fecunda, tem fortes raízes num outro mundo de
Por isso, na leitura de Vida de Sebastião Rei de Portugal ganha pertinência que
porque obriga a fortalecer a vontade, pois pratica a retenção do sémen, como nos
se o culto da castidade no Ocidente esteve ligado à ideia de que a alma imortal era
da Tradição cristã o desprezo pelo corpo não impera, visto que há a exaltação
gloriosos» no Cristianismo.
ordem a nova síntese ecuménica), o leitor pode ser levado a evocar como no Oriente o
castidade, quer no Oriente quer no Ocidente, pôde ser vivida como exercício ou prova
que produz uma fortificação espiritual e permite dar o salto do humano para o
sobrenatural.
Não menos ocorrerá ao leitor que, embora na tradição ocidental a fusão entre
atingidos pela ascese como pelas práticas eróticas. O prazer sexual é assim aproximado
divindade que faz ponte entre a escuridão e a luz, a matéria e o espírito, o sexo e a
170
ideia, o aqui e o além. Eros foi presença invisível para a sua enamorada Psique. Tal
como o sol durante o dia, o excesso da luz torna-o invisível. Psique, a mulher mortal,
personificação da alma, eleva-se à imortalidade divina pelo amor de Eros que sente
atracção pela alma da pessoa amada, pela primeira vez na história de deuses
de Apuleio que nos mostra a transgressão, o castigo e a redenção de Lúcio.58 São estes
uma única pessoa - corpo e alma. O amor procura a pessoa inteira, embora não haja
trajectória da cultura ocidental o amor surge muitas vezes como fruto dafilosofiae do
sentimento poético - via através da qual o amor se teria tornado, para nós,
erotismo pode não explicar-se redutoramente pela misoginia, nem pela falta de
escatologia, como alfa e ómega do mundo e do Ser. Mircea Eliade apresenta múltiplos
indiana).59 No Homem, esta imagem duma unidade primeira tem expressão sexual,
primeira divisão cósmica, que diferencia noite e dia, céu e terra, também distingue yin
e yang, macho e fêmea. O Adão primordial, não macho mas andrógino, torna-se em
Adão e Eva. O andrógino é um ser duplo que possui os atributos dos dois sexos, ainda
unidos. Adónis, Dionisos, Castor e Polux têm ainda estes traços. No limite, toda a
que perdeu esta unicidade, vai procurar restabelecê-la através da purificação. Então a
espiritual, tal como surge em São Paulo e São João. Mircea Eliade60 refere a este
Cândido Franco.
(59) - Mircea Eliade, O mito do eterno retorno. Lisboa, Edições 70, 1981, p. 126 e segs.
(60) - Mircea Eliade, Méphistophèles et I 'androgyne. Paris, Gallimard, 1962.
172
de Sebastião.
actividade política são os extremos das relações humanas. À relação privada opõe-se a
reflecte-se tanto na relação amorosa como na vida pública. Se a ideia de alma está
que a sensibilidade, valor indiscutível para o Homem cuja alma não é só intelecto,
desaparece nos corações vazios, ou fúteis, ou áridos - como o das personagens que
regime de anulação do sonho, da imaginação, etc. Por isso, se infere que para narrador
efémero e eterno.61
pessoa e da atitude de pasmo que o mistério da pessoa deve exercer sobre nós. A
(61) - Octávio Paz, A chama dupla - Amor e erotismo, pp. 111 e segs.
173
personagens e do protagonista
por isso, motivam modos de dizer novos (não só, nem sobretudo, pelo ineditismo
linguagem apenas pode sugerir, por termos tirados da experiência natural, o que
D. Sebastião: «Agora neste livro vou falar de Sebastião. Eu acho que a história de
Portugal está toda compreendida entre Inês de Castro e Sebastião, duzentos anos
foram a fonte onde Portugal bebeu ao peito o leite genesíaco do seu nascimento,
sobre a respectiva personagem histórica. Assim, ele será herói ou anti-herói, e será
apontar uma espada, mas uma espada de papelão, numa atitude grotesca de lutador
criado nas planícies do Sul, vai, de costas para um Norte activo e produtivo (mas
incompreendido, e acossado por uma patologia pessoal, mas sim de alguém que é
escapa-se da História com as suas dez mil guitarras, porque está interessado em
isso, o narrador faz questão de inferir que Sebastião era «um ser sujeito à
quer como rei, quer como homem. Fugiu espavorido da «estúpida» corte de D.
João III, «farto do tio que tinha ar de caprídeo, farto da avó que era maníaca e
farto das primas que passavam os dias a enfiar colares». Recusava o espaço da
esta atitude criativa produzisse obra era necessário que ele se afastasse
trajecto de vida como que preparado pelo amor excepcional entre os seus
austeridade, «com horas muito rígidas para levantar e deitar». Tinha de fazer
«A futura misoginia de Sebastião [que] poderá ter herdado da mãe alguma desta
certa severidade na sua tristeza; porém o Tejo surpreende-a e vem alterar-lhe a sua
João surge-nos como um ser com «outro ânimo, outra lucidez e uma outra
apuradíssima», e tem «um faro palpitante [...] mais instintivo do que reflexivo».69
O narrador sublinha que conseguira sobreviver entre nove irmãos; e, tendo uma
como também fita o escuro «como um jovem galgo [...] tem o nervoso intenso que
lenço preso à cintura, como esses rabichos que os toureiros usam às vezes no
pescoço»). O seu «ar lúcido» era «o ar de estratosfera por onde andam aqueles
esquerdo é diferente do direito e é possível que este príncipe, com alguma coisa de
mitológicas como Átis, Adónis ou até Osiris» («cujo corpo dava, depois de morto,
também a Frank Sinatra («esse adolescente que morreu à janela, a cantar debaixo
«Os olhos tinham um pouco a ver com os do pai, que eram baços e
a liberdade e as palavras sábias de pequeno príncipe, como o fogo puro que tão
tal como fará mais tarde com o filho do Príncipe D. João, o mesmo narrador tanto
evidência o fascínio que João sente pelo «azul do mar», símbolo, como o azul
celeste, do Infinito.73
satisfazer uma sede física enorme que se agudiza quando «os campos estavam
todos carbonizados e amarelos». Esta patológica sede insaciável mais não é do que
sinal de uma outra sede de absoluto, para a qual João não encontra solução. É por
isso que surge a morte como via para uma última e imprescindível abertura; é por
isso que, para o narrador, «a história de ambos é tão trágica, e tão bela como a de
Filho deste raro e trágico amor, Sebastião, criado sem pai e sem mãe, é
alimentado por uma misteriosa mulher que vozes sem nome e António Caetano de
A seu lado, há que destacar o aio Aleixo de Meneses cujo perfil evidencia a
«ar seco e fantasmagórico e cabelo raro» faz lembrar Quixote; mas, ao mesmo
manipular e acabou por se afastar da corte, indo para Beja «onde caça e estuda»;
e, tendo-o por liberal, generoso e ágil de espírito, considera o narrador que ele
seu tio».7
imaginário popular e conhecido por ser «meticuloso sem ser exigente».79 Também
estes mestres sentiam seduções e interesses que podiam vir a desenvolver certas
Num núcleo contrastivo de personagens temos seu avô, D. João III, que no
capítulo II, «Incursões sobre a muralha», nos surge como indolente, como incapaz
Neste grupo surge também seu tio Henrique, frio de carácter, ambicioso,
trabalhador.
não entende o neto, nem os seus interesses, nem as sua pretensas empresas.
Enleada pela corte lisboeta, não intui nem consegue 1er as entrelinhas mais
completamente despercebidas.
pensado ou do verificado.
mar e rio, ou ria), no meio de animais (ovelhas, cavalos e touros), de dia, de noite
e dos que lhe estão perto por afinidades electivas como «poetas», convirá
explicitar ainda algumas das características inerentes a esse epíteto. Assim, para
de cada um deles.
(81) - «António Sérgio chamou-lhe asno e eu acho que sim, que o burro de Balaão viu no caminho o que o
profeta não foi capaz de ver (...). Um burro vê mais depressa os anjos e os arcanjos dos outros mundos que
um homem, por mais letrado e filósofo que seja.» (idem, ibidem, p. 14), «a sua história, como a de um
pobre tolo, está cheia daqueles disparates que acabam mais por fazer rir que chorar e cujo interesse o
nosso António Sérgio não foi capaz de medir. O elogio do disparate que fez rir e a apologia dos tolos à D.
Quixote, num mundo cada vez mais esburacado pelo juízo dos homens sérios e razoáveis, bem pode, ó
António Sérgio, começar.» (p. 205).
(82) - Idem, ibidem, pp. 12, 24, 28 e 29.
(83) - Idem, ibidem, p. 49.
183
adorável», mas com «seis dedos no pé direito», «bébé ambíguo, de unhas fortes e
rijas e de cor tão mimosa e tenra como uma flor», «orelhas peludas de burro e
burro de José Régio talvez porque [...] António Sérgio chamou pedaço de asno a
Sebastião»).85
perversões mentais».86
cada vez mais notória quer pelas situações que Sebastião vive e que se assemelham
Numa primeira fase, apenas com meia dúzia de anos faz pasmar os seus
mestres e a própria corte: emite opiniões pertinentes que ultrapassam a sua idade,
próprio Sebastião parece dizer que «será capitão de Deus» e que afirma «Em
A esta maturidade pouco própria da idade vem aliar-se uma sageza intuitiva
adivinha são dois aspectos que raramente coexistem, mas que Sebastião parecia
precocemente desenvolver.
que o rodeiam (e note-se, o narrador), passando a ser voz corrente os seus feitos
como o facto de os seus ferimentos sararem «de um dia para o outro» e o seu
sangue secar dificilmente onde cai. Assim ganhava aura e gerava maravilhoso: «As
grandes temporadas».91
queria era andar pelo Ribatejo que é o Tejo feito terra»92, intuímos que, sem
pedras e troncos de árvores pesados, confere-lhe uma força tal que começam a
O espanto é geral ao saber-se que, com 11 anos, cortara com a espada uma
estábulos, onde acaba por dormir, paralelamente ao ter-se tornado «num domador
com uma pré-história cosmogónica ainda, que formou o seu espírito de louco e de
aventureiro. Sebastião governou o mundo que lhe era dado governar com a mesma
na arena com um touro. (...) Em vez do açougue ou das prisões preferiu as arenas
e os campos. Nunca lhe perdoaram, na corte de João III, corte que vivia de
seguros e de empréstimos numa mistificação ímpar, a limpidez da alma que uma tal
atitude exigia.».95
rústicos e primitivos agradavam ao jovem rei; e talvez por isso o contacto com o
povo fosse fácil e natural quer nas conversas que alimentava, quer nos jogos que
organizava.
também e que «começa a causar alguma apreensão». São as pessoas com quem
princípios, na adolescência faz pasmar pela «constância com que vive os princípios
que por serem princípios muitas vezes originais acabam por ser marginais às
A sua temeridade assustava, mas o mais grave era o desinteresse pelo sexo
Todavia, como os que foram crianças sábias acabam sempre por ser loucos,
primeira atitude de louco surge com a ida a Alcobaça para exumar alguns dos seus
transtornado e sonhador.
tomar banho nas águas do Oceano» com grande temeridade. As areias de Almeirim
não têm segredos para este jovem príncipe para quem, sedento de energias
indomável de sonhar).
O seu «sentido do estranho», que talvez lhe tenha sido comunicado pela
supõe que Sebastião terá herdado essa faculdade «decerto do tio Luís», o poeta
maneirista).101
maneira que passamos a aceitar que tudo seja possível com esta figura - até as
esforço do homem tende para outro homem, para o homem ideal, para a figura de
sonho, que há-de ser um dia a criação dos vivos e dos mortos - o sonho realizado
- o universo realizado.»104
CONCLUSÃO
Sérgio.
da narrativa pós-moderna.
autor textual e narrador cujo contexto vertical se distingue por insólito e fecundo
sobretudo a "loucura" - , porque visa uma sabedoria de vida regida pelo «sonho»
vínculo essencial que António Cândido Franco estabelece entre D. Sebastião e Inês
de Castro; daí, o valor ímpar que atribui a essas duas figuras míticas.
194
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SHAW, Harry -The Forms of Historical Fiction, 2a ed., Ithaca & London, Cornell
Univ. Press, 1985.
ÍNDICE
PREFACIO
INTRODUÇÃO
CAPITULO I
MEMÓRIA DE INÊS DE CASTRO E OS
CAMINHOS DA IDENTIDADE 8
CAPÍTULO II
UMA NARRATIVA PLURICODIFICADA
(VECTORES DE MODOS, GÉNEROS E SUBGÉNEROS
EM VIDA DE SEBASTIÃO REI DE PORTUGA!) 38
CAPÍTULO III
CONTAR DE NOVO E/OU CONHECER 60
CAPÍTULO IV
SUBVERSÃO HISTÓRICA E FUGA FICCIONAL
EM VIDA DE SEBASTIÃO REI DE PORTUGAL 109
CAPÍTULO V
FIGURAÇÃO SIMBÓLICA E MARAVILHOSO
EM VIDA DE SEBASTIÃO REI DE PORTUGAL 144
COCNCLUSÃO 191
BIBLIOGRAFIA 194