Вы находитесь на странице: 1из 208

MARIA LEONOR F. A.

DE SEABRA PEREIRA

HISTÓRIA, MITO E FUGA FICCIONAL

EM

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO

PORTO
1999
MARIA LEONOR F. A. DE SEABRA PEREIRA

HISTÓRIA, MITO E FUGA FICCIONAL

EM

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO

PORTO
1999
Dissertação de mestrado
apresentada à Faculdade de Letras
da Universidade do Porto
PREFÁCIO

A presente dissertação sobre aficçãohistórica de António Cândido Franco vem na

sequência dos Seminários de Mestrado em Línguas Românicas Modernas e

Contemporâneas e traz marcas indeléveis do que, quer na fase lectiva, quer na de

preparação e discussão dos respectivos trabalhos, essa experiência intelectual para mim

significou. Por isso esta dissertação acaba por reflectir, dentro embora do respeito pela sua

especificidade académica, esse vector de continuidade - na escolha do tema, na eleição da

perspectiva de análise e também na opção por abordar certos aspectos da Vida de

Sebastião Rei de Portugal através de sucessivas aproximações em diferentes capítulos.

Concebida e realizada em condições nem sempre propícias à pesquisa e à

elaboração textual, a presente dissertação testemunha sobretudo da minha relação com

aquelas Presenças Reais de que nos fala Georges Steiner - os textos literários e os

sentidos que neles nos solicitam. E, ciosa sem dúvida da atitude de seriedade que lhe

subjaz, esta dissertação assume as modestas ambições de contributo inicial para outro

estudo mais profundo, isto é, pretende apenas apresentar uma sondagem de formas do

conteúdo e da expressão através das quais a narrativa de António Cândido Franco busca
II

um sentido transmanente para o Homem e a História - um sentido no Amor que se gera e

manifesta na Vida que lhes é imanente, mas que misteriosamente parece querer

transcendê-la.

Devo uma sincera palavra de agradecimento aos orientadores dos Seminários que

tão proveitosamente frequentei - Profs. Doutores Ferreira de Brito, Isabel Pires de Lima,

Celina Silva e Maria do Nascimento Carneiro.

Lembrarei sempre com profundo reconhecimento a orientação deste trabalho por

parte da Prof. Doutora Maria de Fátima Marinho - calorosa no acolhimento, solícita na

sugestão, generosa na facultação de bibliografia, certeira no discernimento e justa na

correcção.

Porto, Páscoa de 1999

Maria Leonor F. A. de Seabra Pereira


1

Introdução

Confrontando-me com a obra de António Cândido Franco, nesta nossa época

ao mesmo tempo afecta e relapsa a valores decisivos do tradicional património da

História («o enfraquecimento da ideia romântica de nação, o ocaso das grandes

narrativas, o cepticismo acerca das lições do passado, a consequente incerteza quanto

ao futuro, etc.») \ proponho-me intentar uma leitura estruturante e tematologicamente

orientada (História, Mito, Amor, Sagrado e Identidade nacional) de um discurso

literário que, embora com a dominante deficçãonarrativa, me interpela por fundir essa

ficção com o relato de evocação historiográfica e com especulação mitográfica, tal

como intermitentemente funde o modo narrativo com o modo lírico - entre uma

extrapolação aforismática, afectiva e sapiencial, tributária de Agustina Bessa Luís; e

variantes mitigadas da ressurreição fantasmática e paroxística de certo Raul Brandão

(1) - Isabel Pires de Lima, «Tempos sebásticos: os fins de século», in Marie-Hélène Piwrák (ed.), Regards sur
deux fins de siècles (XDC-XA). Bordeaux, Maison des Pays Ibériques, 1996, pp.. 57-59 e 70; F. J. Vieira
Pimentel, «Em tomo do ensino das literaturas nacionais: algumas considerações», Arquipélago-Linguas e
Literatura. XV, 1998, p.292.
2

(liminarmente convocado para, em pregnante epígrafe extractada do Húmus1, tonalizar

a atmosfera e patrocinar o ethos de Vida de Sebastião Rei de Portugal).

De Memória de Inês de Castro (e seu peculiar contraponto diegético) a Vida

de Sebastião Rei de Portugal (em que aquele contraponto cede lugar a único, mas

desconcertante, veio diegético), a narrativa de inspiração histórica de António Cândido

Franco ultrapassa em estranheza estrutural o que de «género híbrido» sempre teve o

romance histórico, mesmo quando os seus autores ensaiavam uma relação metafórica

com modelos arquetípicos. 3 Conjuga, antes, uma ambígua condição discursiva que

diríamos similar à dos derradeiros livros de Oliveira Martins - quando, como se

ressente na reacção epistolar de Eça de Queirós, a «lógica da ficção» progride

ironicamente através dos próprios excessos de pormenor na descrição evocativa (e

que, em vez de credibilizarem documentalmente a referencialidade, confortam com

«efeitos de real» a recriação ficcional) - com um desdobramento de inferências

especulativas e gnómicas (que tanto soam num timbre nietzscheano, como num timbre

lusíada à maneira de Pascoaes e da «filosofia portuguesa»). Depois, a narrativa de

António Cândido Franco conduz-nos para uma mais insólita condição discursiva que,

(2) - «Através da paciência e da mentira, todo o esforço do homem tende para outro homem para o homem ideal,
para a figura de sonho, que há-de ser um dia a criação dos vivos e dos mortos - o sonho realizado - o universo
realizado.»
(3) - Veja-se G. Lukács, Le Roman Historique. Paris, Payot, 1977; Carlos M. Rama, La Historia y la novela, 2a
ed., Madrid, Ed. Tecnos, 1975; Joseph Turner, «The Kinds of Historical Fiction: An Essay in Definition and
Methodology», in Genre, Oklahoma, tXII, 1979, 333-355; Harry Shaw, ne Forms of Historical Fiction, T ed.,
Ithaca & London, Cornell Univ. Press, 1985; Elisabeth Wesseling, Writing History as a Prophet -
Post-modernist Innovations of the Historical Novel. Amsterdam &Philadelphia, John Benjamins Publishing
Company, 1991 (pp. 42 segs., a propósito de Manzoni); Michel Vanoosthuyse, Le Roman Historique (Mann,
Brecht, Doblin). Paris, P.U.F., 1996 (sobretudo p. 42); Celia Fernandez Prieto, Historia Y Novela: Poética de la
Novela Histórica, Pamplona, Ed. Universidad de Navarra, 1998.
(4) - Cf. Carlos Reis, «Fait historique et référence fictionelle; le roman historique», in Dedadus (Revista
Portuguesa de Literatura Comparada), N° 2, Dezembro de 1992; idem, «Estatuto ideológico y semionarrativo de
la novela histórica», in Maria Gracia Profeti et ai, Refundación de la Semiótica. Sevilla, Editorial Don Quijote,
1993, pp. 33^9.
3

sem abdicar daquelas ressonâncias, tonaliza-as talvez mais por uma narrativa de

«paixão do conhecimento» à maneira de Agustina e sujeita-as a todas as experiências

pós-modernas, por vezes arrastando numa vertigem de deslocações espácio-temporais,

de proliferação de motivos e símbolos, de dispersão por figuras histórico-culturais e

por personae, que subverte a reestruturação da narrativa pela «arte da rosácea»

imperante no romance lírico de Vergílio Ferreira ou de Agustina Bessa-Luís (como

sabemos com Robert Bréchon e com Álvaro Manuel Machado).5

Por outro lado, sem embargo das perturbações trágico-cómicas ou mesmo

grotescas , deparo-me com difusa ilustração diegética de uma valorização sófica da

simbiose esotérica do erotismo e do sagrado (à maneira de uma Natália Correia) e,

sobretudo, com uma difusa ilustração diegética do programa de palingenesia e

prognose do narrador, que conjuga interpretação iniciática (e mítica) do Amor, visão

mítico-profética (mas não escatológica, nem providencialista)7 da História e filosofia

arracionalista e milenarista do destino português.

No fundo, nesta narrativa que não se apresenta interessada em encorpar a

bibliografia "séria" sobre o sebastianismo como episódio histórico ou sobre o

(5) - Robert Bréchon, «Prefácio à tradução francesa», in Virgílio Ferreira, Alegria Breve, 5' ed.. Lisboa,
Bertrand, 1981, pp. 7-11; Álvaro Manuel Machado, Agustina Bessa-Luís: O Imaginário Total. Lisboa, Publ.
Dom Quixote, 1983.
(6) - No sentido (aliás brandoniano, como outros rasgos de A. Cândido Franco) de que o grotesco «has a harder
message» do que a tragicomédia: «It is that the vale of tears and the circus are one, that tragedy is in some ways
comic and all comedy in some way tragic and pathetic.» (Philipe Thomson, The Grotesque. London, Methuen,
1972, p. 63).
(7) - Cf. Antonio Quadros, A Teoria da História em Portugal, Vol. n, A dinâmica da História. Lisboa, Espiral,
s./d.
4

sebastianismo como mito cultural (mas apenas interessada em manipular os seus

dados), nem pretende deixar-se assimilar pelo saturado corpus literário (narrativo,

dramático e sobretudo lírico) de tradicional exploração panegírica9 e/ou elegíaca dessa

temática sebastianista10, pode-se descobrir uma tenção profética paradoxalmente

etnocêntrica e ecuménica (além de paradoxalmente caricatural como «mentira»

artística11 e de paradoxalmente metaficcional como pós-moderna narrativa narcisista ).

De facto, sob a acracia e o humor, não se descarta a utopia de Portugal como Nação

Precursora, cumprindo um messianismo universal, não já militar, ou político, ou

económico, mas antropológico; e a atribuição dessa vocação messiânica implica

veladamente a integração superadora, em irónico regime agnóstico, da interpretação

paracletiana dos Descobrimentos portugueses (que assomou em Jaime Cortesão e

requintou até ao neo-franciscanismo joaquimita de Agostinho da Silva) e, menos

veladamente, do neo-sebastianismo linguístico-cultural (oriundo de Pascoaes e de

Pessoa e apropriado pela «filosofia portuguesa», em geral, e por António Quadros, em

(8) - Veja-se sobretudo A. Costa Lobo, Origens do Sebastianismo, 2a ed., Lisboa, Ed. Rolim, 1982; João Lúcio de
Azevedo, A Evolução do Sebastianismo, 2" ed., Lisboa, Clássica Editora, 1947; Joel Serrão, Do Sebastianismo
ao Socialismo em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 1969; António Machado Pires, D. Sebastião e o
Encoberto, Lisboa, Fundação C. Gulbenkian, 1969; José Alberto Veiga, Fonction et Signification Sociologique
du Messianisme Sébastianiste dans la Société Portugaise, Paris, Sorbonne (éd. Polie), 1979; António Quadros,
Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, 2 Vols., Lisboa, Guimarães Ed., 1982-83; Eduardo Lourenço,
«Sebastianismo: imagens e miragens», in Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade, Lisboa,
Gradiva, 1999, pp. 133-142.
(9) - Até porque, em António Cândido Franco, «Sebastião, o rei português, vale não porque a sua história seja,
nos seus valores, para ser tomada a sério, como modelo adulto e estrutural, como pensou o Malheiro Dias» (Vida
de Sebastião Rei de Portugal, Lisboa, Publ. Europa-América, 1991, p. 205).
(10) - As obras de A. Machado Pires e de António Quadros citados na nota (8) incluem larga colectânea dessa
literatura tradicional de inspiração sebástica.
(11) - «A arte tem de mentir para deixar o terreno da realidade e se fazer ideal» (Vida de Sebastião Rei de
Portugal, p. 15); «É como caricatura, e por conseguinte como arte, que o sebastianismo me interessa, e não como
sinto», afirma a dado passo o mesmo narrador (Lisboa, Publ. Europa-América, 1993).
(12) - Na acepção proposta e fundamentada por Linda Hutcheon, Narcissistic Narrative: The Metafictional
Paradox. New York/London, Methuen, 1984 (especialmente pp. 6-7, 20).
5

particular) . Assim, através de personagens e acontecimentos da intriga, através de

símbolos e mitos, e, sobretudo, através da marginalia interpretativa e sentenciosa que

incessantemente o narrador vai tecendo, ressalta a justificação e o projecto de Portugal

como lugar e agente da simbiose étnica e histórica da terra e do mar, do Norte e do

Sul, do Cristianismo e das demais grandes religiões - assim abrindo caminho para uma

nova e superior condição universal da Humanidade, dimanada enfim da primazia do

Amor. E ressalta que é o ethos amoroso que distingue D. Sebastião, que o irmana a D.

Inês de Castro, que de ambos faz as únicasfigurasgenuinamente «poéticas» da história

de Portugal e, até, seu alfa e seu ómega.14

Opto, pois, liminarmente, por uma espécie de exercício de crítica de

identificação, em que por vezes fosse dado quase por adquirido, e pudesse portanto ter

menos extensas interferências, o momento de «descida à materialidade do texto»

(como diria Jean Starobinski) e me fosse permitido situar-me mais no plano empático

da «relação crítica», isto é, da possível coincidência da minha consciência cognoscente

de leitora com a consciência do mundo inscrita na composição formal e no imaginário

do texto (como diria Georges Poulet)15.

(13) - Cf. António Quadros, Portugal - Razão eMistério, Vol. 1,2a ed., Lisboa, Guimarães Editores, 1988, p.25.
(14) - De acordo com proposições da «Introdução» de Vida de Sebastião Rei de Portugal: «Sebastião interessa-
me porque vejo nele o que vejo em Inês de Castro, o amante. O amante é o louco e também o mistificador» (p.
11 ), «Sebastião é, além de Inês de Castro, a única figura verdadeiramente poética da história de Portugal» (p.
11), «a história de Portugal está toda compreendida entre Inês de Castro e Sebastião, duzentos anos de vida a
criar mundos desde as Canárias até às Molucas» (p. 11), « Se as feridas de Inês foram a fonte onde Portugal
bebeu ao peito o leite genesíaco do seu nascimento, as feridas de Sebastião foram a fonte onde Portugal bebeu,
moribundo, o leite da velhice e da ressurreição» (p. 11 ).
Sobre a produtividade paralela dos dois mitos (inesiano e sebástico) na literatura, veja-se Maria Leonor
Machado de Sousa, Mito e Criação Literária, Lisboa, Livros Horizonte, 1985.
(15) - Sobre estas noções básicas da crítica de identificação da escola de Genève, em especial do Georges Poulet
de La Conscience Critique e do Jean Starobinski de La Relation Critique, veja-se Robert R. Magliola,
Phenomenology and Literature -An Introduction, West Lafayette-Indiana, Purdue Univ. Press, 1977, Part 1,
Chap. 2.
Em contrapartida, corro o risco de a minha intervenção, selectiva e associativa,

com os elementos do texto parecer de quando em vez relevar da heresia da paráfrase

(já condenada pelo New Criticism). Mas creio que não haverá razão para a confundir

com mera paráfrase fluida, apesar das eventuais (e pertinentes) homologias com uma

narrativa que afrouxa os nexos lógicos e privilegia a sinuosidade simbólica e profética

em desfavor da clara e ordenada discursividade.

Com efeito, se pensarmos que (para utilizarmos termos oriundos de Wolfgang

Iser) 16 as estruturas de solicitação à resposta do leitor ínsitas na narrativa de António

Cândido Franco são de impulso para a apreensão de múltiplos sentidos (errantes e

esquivos, ou reiterados e entrecruzados), não tomei isso como convite a uma leitura

desconstrutivista: respeitando a diferença (à Derrida) na obra, não reivindico tanto a

leitura como diferença desconstrucionista, mas antes, vendo essa obra como

dinamismo de sentido policodifícado, procuro uma leitura que a coloca semioticamente

«num universo codificado» .

Dentro da perspectiva adoptada, privilegiei na obra de António Cândido

Franco, para objecto do meu estudo a narrativa Vida de Sebastião Rei de Portugal,

tendo em conta a superior amplitude dos vectores ideotemáticos e o superior alcance

dos problemas técnico-formais que apresenta. Achei, porém, pertinente abrir o meu

trabalho por uma breve análise da narrativa antecedente, Memória de Inês de Castro,

(16)- Veja-se sobretudo The act of reading e Prospecting. Baltimore, The Johns Hopkins Univ. Press, 1989.
(17)- O. Calabrese, // linguagiodell'arte. Milano, Bompiani, 1985.
7

constituindo assim o Capítulo I em verdadeira introdução ao estudp da ficção de

António Cândido Franco; e julguei também pertinente não abdicar de relacionamentos

com aquele dos ensaios do autor (Teoria e Palavra) que me pareceu mais

conexionável com as questões suscitadas por Vida de Sebastião Rei de Portugal.

Na análise e interpretação desta obra, certos aspectos - tratamento de espaço e

tempo, caracterização de personagens, composição narrativa, etc. - podem ser focados

nos Capítulos II, IH, IV e V. Não se trata, porém, de meras retomas intermitentes para

enfatizar as minhas observações. Trata-se de aproximações conscientemente graduadas

e diferenciadas, não só porque vão passando de breves e sintéticas (Capítulos II e III) a

extensas e analíticas (Capítulos IV e V), mas sobretudo porque derivam de ópticas

diversas, indo da perspectivação de categorias semióticas da narratologia até à

captação e valoração das formas do conteúdo do texto.


8

CAPITULO I

MEMÓRIA DE INÊS DE CASTRO

E OS CAMINHOS DA IDENTIDADE

«Já em outro [livro] falei de Inês de Castro...», diz a determinada altura o

narrador de Vida de Sebastião Rei de Portugal1. E, com efeito, a narrativa de António

Cândido Franco faz caminho para Vida de Sebastião Rei de Portugal através de

Memória de Inês de Castro, num duplo sentido: o mais óbvio, que é o da ordem

cronológica num trajecto de maturação ficcional e estilística; e outro mais profundo,

que é de ordem semântico-pragmática e técnico-formal, na medida em que Memória

de Inês de Castro explora já macro-signos (temas, motivos, mitos, arquétipos,

personagens...) que serão decisivos em Vida de Sebastião Rei de Portugal, ao mesmo

( 1 ) - António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, p. 11.


9

tempo que ensaia já vários processos retórico-estilísticos do seu narrador

pós-moderno2.

Por consequência, parece-nos oportuno, se não indispensável, que o nosso

estudo de Vida de Sebastião Rei de Portugal faça também caminho através de uma

leitura introdutória3 de Memória de Inês de Castro e do que nela já condiciona o

confronto dos receptores com aquela obra seguinte.

1. Amor e linguagem, conhecimento e criação

Amor e identidade constiruem-se também hoje em questões vitais, que

originam apaixonada busca de um conhecimento totalizante e, dialecticamente, de

reinventar o mundo e o Homem, numa reinvenção das palavras já inventadas, à

maneira de Almada Negreiros.

Se este pressuposto e este desígnio constituem vectores principais de Memória

de Inês de Castro, também lembrando que os «limites do meu mundo são os limites da

minha linguagem» (no dizer de Wittgenstein)4 entendemos a extrema atenção que

(2) - Embora a desconcertante ousadia estrutural da narração de Vida de Sebastião Rei de Portugal só
parcialmente se entremostre na estrutura narrativa de Memória de Inês de Castro, onde reina um contar quase
tradicional dentro da alternância, na rede de parentescos dinásticos peninsulares, de dois veios diegéticos
centrados, um, em Portugal e outro nos restantes reinos ibéricos.
(3) - Dado esse carácter introdutório deste capítulo não o sobrecarregamos com reflexões possibilitadas pela
vastíssima bibliografia inesiana, em tempos inventariada por Adrian Roig (Inesiana. Coimbra, B.G.U.C, 1986).
Veja-se, apesar disso, Maria Leonor Machado de Sousa, Inês de Castro na literatura portuguesa. Lisboa, ICLP,
1984; Maria Leonor Machado de Sousa, Inês de Castro - Um Tema Português na Europa. Lisboa, Edições 70,
s./d.; Maria de Fátima Marinho, Inês de Castro - Outra era a vez.... Porto, Separata de Línguas e Literaturas -
Revista da Faculdade de Letras do Porto, 1990.
(4) - Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico Investigações Filosóficas. Lisboa, Fundação C.
Gulbenkian, p. 114.
10

António Cândido Franco - o ensaísta de Teoria e Palavra5, o crítico empático de

Pascoaes e do Saudosismo6, oficcionistade temática sebástica e inesiana - concede

não só àquele binómio mas também à linguagem que se quer a primeira e que, por isso,

pretende atingir a verdadeira nudez, donde lhe virá a força ímpar.

Na sua obra, o autor textual assume-se como o poeta, o criador da palavra e o

progenitor dos «mundos possíveis», ou o místico, o do ministério do silêncio ou da

oração - seres privilegiados que vivem pela imaginação e que se aproximam do fundo

e da nudez, centro pleno das coisas. É assim que o sonho («revelação profunda duma

existência encoberta que vive em nós»), a imaginação e a memória se podem articular

harmoniosamente. Para o narrador de Memória de Inês de Castro, o ser que sonha é

um ser em contacto com a origem do mundo, com a infância original do homem e da

criação. No dizer de António Cândido Franco «A faculdade que faz com que a poesia

se possa actualizar em espírito (...) é a imaginação.7 E a actividade imaginai que faz

com que a cada instante o significante puro apareça carregado de sentido (...) A

criação é uma forma de saturação ou de excitação da imaginação (...) que é a

faculdade humana que aproxima o homem de um sobrenatural».

(5)-A. Cândido Franco, Teoria e Palavra. Lisboa, Átrio, 1991.


Além deste ensaio, Cândido Franco intemou-se também nos domínios da teoria da linguagem e da teoria da
literatura com Teoria da Literatura na Obra de Álvaro Ribeiro (Lisboa, 1993) e com Poesia Oculta (Lisboa,
Vega, 1996).
(6) - Além da sua dissertação de doutoramento (ainda inédita) sobre Teixeira de Pascoaes, veja-se sobretudo O
mar e o Marão (Lisboa, 1989), Eleonor na Serra de Pascoaes (Lisboa, Átrio, 1992) e Transformações da
Saudade em Teixeira de Pascoaes (Amarante, Edições do Tâmega, 1990).
Para a pragmática da leitura (e seus factores contextuais) da ficção narrativa de António Cândido Franco não é
despiciendo ter presente esta apaixonada devoção por Pascoaes e pelo Saudosismo e a tensão (entre apreço pelo
seu moderno messianismo e desejo de revalorização do seu discurso em clave não-referencial) que lhe está no
cerne.
(7) - António Cândido Franco, Teoria e Palavra, Lisboa, 1991, p. 16.
(8) - Idem, Ibidem, p. 17.
11

Este poder da imaginação confiinde-se afinal com o poder divino, conferindo

assim ao homem a possibilidade de colaborar com a própria obra de Deus.

Situando-se o autor de Memória de Inês de Castro num contexto em que a

palavra e o poder criador são assim entendidos, que papel é então atribuído ao par

humano (Homem/Mulher) no encontro marcado com o Amor? E qual a razão da

escolha da situação amorosa para se cruzar com a questão política e nacional? Afinal,

que consequências identitárias, individuais e colectivas, tem esse encontro? E sendo

Pedro e Inês o par amoroso português por excelência, como Tristão e Isolda nacionais,

que significados advêm daí?

Neste fim de século, em que o amor está «estragado», como afirma Miguel

Esteves Cardoso , é forçoso que, sendo força regeneradora do próprio Homem, ele se

torne amplamente fecundo. Ainda acompanhando o mesmo autor, «escreve-se sobre o

amor porque não se pode falar dele. Uma história é a única maneira de passar a

palavras que nos envolvem, mesmo que embaracem toda a gente (...) Quando se trata

de uma história de amor é preciso não perder o amor de vista. Tê-[lo] presente nem

que seja como saudade do que nunca chegou a acontecer (...) Em O Amor éfodido10 é

a primeira vez que consegui falar do amor sem o trair (...) Quis mostrar que pertencia

ao mundo onde o amor (...) existe só por si.».11

(9) - Miguel Esteves Cardoso, «As minhas desculpas pelo romance que escrevi», in A Phala, Lisboa, Assírio &
Alvim, 1995, pp. 4-5.
(10)-Idem, O Amor éfodido, Lisboa, Assírio & Alvim, 1994.
(11) - Idem, «As minhas desculpas pelo romance que escrevi», loc. cit.
12

Tão longa citação só se justifica porque penso que o livro de António Cândido

Franco, dá, antes de mais, atenção ao fenómeno amoroso em si, pois a ligação deste

par é apresentada como se se tratasse da primeira e absoluta ligação amorosa da nossa

História. É a ligação primigénia e por isso, tal como nas culturas míticas, passível de

ser actualizada em qualquer tempo e espaço.

2. Sinais esparsos do misterioso e do genesíaco no processo

amoroso

O aparentemente discreto, mas explosivo, encontro amoroso entre Pedro e Inês

começou por intrigar e impressionar o príncipe apaixonado. As sensações provocadas

pelo súbito enamoramento e desejo são de uma violência bem patente nas palavras

escolhidas: «os cabelos desta pareciam despedir labaredas [...] o rosto tinha uma

luminosidade anormal [...] os dedos queimavam. Todas as margens do ser [...]

foram incendiadas [...] energias adormecidas [foram acordadas]. O amor é tão

inesperado como a chegada da Primavera [...] A terra é já aí céu tal como cada

pedra é já uma estrela.».12

O poder da metáfora torna evidente a capacidade transformadora do Amor

e a ânsia profundamente humana de realização amorosa. Por seu turno, o ambiente

colectivo de festa (a festa de S. Martinho) vem cruzar-se com a própria festa

(12) - António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro. Lisboa, Publicações Europa América, 1990, p. 81.
13

interior do Infante; a embriaguez, motivada pelo vinho, confundia-se com outra

embriaguez interior. «A loucura de uns era a loucura de outro».13

Nesse momento intensamente vivido «a palavra tem pouco sentido [...].

Pedro deixou cair a fala como deixou cair o coração».14 O silêncio permite uma

riqueza interior sem dúvida tumultuosa, mas profunda. «As coisas passam a ser

percebidas como imagens e como Deus fala por imagens o que perde a fala é uma

espécie de Deus».15

Passos como estes conduzem à experiência iniciática e genesíaca do Amor,

cumprindo-se na História humana, com componentes ou momentos de espanto, de

euforia dionisíaca, de recolhimento silente e, sobretudo, de autenticidade vivencial

(mesmo se não conforme às normas socialmente instituídas). Por isso, o narrador

de Memória de Inês de Castro considera que «O encontro com a mulher só faz

sentido enquanto revelação dum eco cósmico. O amor quando vivido como

modelo, e não como figurino social, acorda [nos] que o vivem um sentido

religioso. Quando uma sociedade evolui num sentido decisivo, transmitindo aos

seus filhos sucessivas descobertas aquilo que aparece não é um sábio, um queremi,

mas antes um par de amantes. Os amantes coroam sempre as mais altas exigências

dum momento. Por isso estão prontos para a morte, despojamento último».16

(13) - Idem, ibidem, p. 83.


(14) - Idem, ibidem, p. 83.
(15) - Idem, ibidem, p. 84.
(16) - Idem, ibidem, p. 84.
14

3. A excepcionalidade dos amantes

3.1. Inês

Antes de mais, Inês era mulher; e, dentro do mundo romanesco de

Memória de Inês de Castro, «Podiam-se fazer ou desfazer reinos consoante a

existência ou não existência dum certo tipo de mulheres. Conferia-se à mulher um

poder simbólico, que, apesar de aparentemente vazio, tinha mais efectividade que

qualquer outro. Passiva, silenciosa (...) ausente, a mulher aparecia-nos como um

ser contemplativo que mudava o mundo consoante a sua própria sorte. Não tinha o

dom frontal da palavra, o que a afastava dos lugares do Estado, nem o dom da

força, o que lhe vedava desde logo os lugares da guerra, mas tinha a irrequieta

beleza das coisas intemporais, que a levava por vezes a ser o bojo desconhecido de

todos os destinos. Pode-se comparar, nesse tempo, a mulher com uma flor ou com

um pássaro (...) o seu poder era imenso. Cantava em segredo, no recôndito dos
IT

quartos e dos seres, como um enigma uma diferença que todos admiravam».

Com seu ar andrógino, de cabelo ruivo cortado rente, a jovem aia de

Constança Manuel tem uma estranha «ingenuidade infantil» que, aparentemente

discreta, chama a atenção. «Inês vivia a dialéctica da ocultação e da revelação».

(17) - Idem, ibidem, p. 15.


(IS)-Idem, ibidem, p. 79.
15

A sua personalidade e a sua vida relacional eram feitas de diferenciações e,

contrariamente, de esbatimento das demarcações. Como galega, usava o seu

idioma, mas este ainda não se autonomizara do português; filha do Norte e

princesa cristã, tinha uma escrava árabe, chamada Fátima (como a filha de

Maomé), a quem os Castros crismaram de Teresa para ocultar o contraste étnico e

religioso.

Meticulosa na preparação da bebida a dar a Pedro (até escolher um vinho

verde, vinho opaco e de pouca exposição ao sol, um vinho do Norte minhoto), ela

julgou, sem saber porquê, que ao beber o vinho Pedro «beberia a sua alma».19

Por outro lado, dela se desprendem fortíssimos fluxos de impacto passional

e erótico. «De forma inesperada Inês encostou-lhe os dedos à face (...) Aqueles

dedos (...) se se tivessem encostado aos muros de Roma teriam aberto aí frechas

enormes».20

Esse poder é tanto mais estranho quanto Inês se apresenta como mulher

frágil e silenciosa. Mas confirma-se quando ela retira do dedo o seu anel e o envia

a Pedro através de Fátima/Teresa: «É um sinal de que a unidade dos dois seres

está consumada e que nada pode já impedir o convívio entre os dois. (...) Ao tirar

o anel ela despiu interiormente o vestido da alma (...) É um despojamento que tem

por objectivo uma dádiva a um ser e que tem a certeza íntima de que essa dádiva é

sentida pelo outro como um enriquecimento. E Inês quer literalmente oferecer a

(19)-Idem, ibidem,?. 80.


(20) - Idem, ibidem, p. 81.
16

sua alma a Pedro, não como emblema do corpo mas como plano transcendente».

Na circularidade inquebrável do anel, está a imagem da totalidade a que o Homem

pode aspirar.

O viver de Inês era discreto. O facto de ser silenciosa e pouco comunicativa

não impedia que um pequeno culto lhe fosse votado. Qual Eva original, «Inês tinha

uma dimensão quase obscura, determinada pela sua extrema beleza e pureza. Os

frades de Alcobaça consideravam-na uma Virgem, no sentido de mulher que pariu

a divindade». Estes poderes de fecundidade - «Certos despojos de Inês poderiam,

segundo ideia da época, provocar fertilidade; e, em Maio, muitas mulheres vão em

peregrinação quase inconsciente, tocar o miolo carcomido e bichoso» da árvore

em que, pela última vez, se sentou23 - têm na relação com Pedro qualquer coisa de

orgiástico e de louco.

3.2. Pedro

Pedro começa por se distinguir, em prenúncios de índole e destino

excepcionais, pela sua ascendência.

Com efeito, era bisneto de Pedro de Aragão, que tinha o «poder de

espiritualizar a matéria»; era neto de poeta (D. Dinis) e de mística (a Rainha Santa

Isabel). Era filho de Afonso IV, o rei que «defrontara à mão o leão solar de Roca»,

(21) - Idem, ibidem, p. 85.


(22) - Idem, ibidem, p. 86.
(23)-Idem, ibidem, p. 147.
17

num embate em que tudo é misteriosa promessa de sabedoria e redenção: Afonso

tem então a idade de 33 anos; o confronto dá-se numa serra pedregosa, onde a

floresta se precipitava em abismos e deixava entrever «seculares raízes» que

punham à mostra «o ventre da terra»,24 e cuja neblina fantástica fazia adivinhar

esconderijos dos «génios de fumo»; o animal magnífico atacou-lhe as pernas, isto

é, as raízes humanas, e, incrivelmente, depois de dominar Afonso, afastou-se em

direcção ao mar, como se fosse «um mensageiro, com o seu andar prudente da

imagem».25

Por outro lado, Pedro foi criado na província, entre mulheres do povo, «ao

colo de camponesas e serviçais bojudas»26. Essas mulheres tinham «peitos batidos

mas tenazes, escuros, que o leite tornava ainda rijos e direitos»27 - como que

garantindo o vínculo às fontes naturais da força (telúrica, animal, humana

primitiva).

Sempre em contacto com a natureza, seduziam-no a floresta, o rio, o mar, a

ilha com as brumas. Em Atouguia apreciava os trabalhos da forja e em Atouguia

construirá o touril, seu primeiro acto político e simultaneamente seu primeiro acto

simbólico - propiciatório do «sol negro da morte que o touro corporiza» e da

força humana «que está decidida a fitar as trevas de frente».28

(24) - Idem, ibidem, p. 13.


(25) - Idem, ibidem, p. 40.
(26) - Idem, ibidem, p. 23.
(27) - Idem, ibidem, p. 37.
(28) - Idem, ibidem, p. 37.
Pedro viveu sempre longe dos pais e nunca teve por modelo o pai.

Respeitava-o apenas. Sempre aceitou modelos bem diferentes, que passavam tanto

pelo campino bravo e meio-árabe das planícies de além do Tejo, como o romeiro

galego de olhos claros e pele rosada. O Norte e o Sul coexistiam desde cedo na

vida deste rei, dando-lhe originalidades que fariam prever já acontecimentos

desagregadores, significativos e também reestruturantes.

Os próprios sonhos ou visões são elucidativos da sua condição excepcional.

São eles que ao serem vivenciados por Pedro levantam frequentemente «certezas

inelutáveis» e «premonições inabaláveis». Em visão onírica surge, desde logo, nas

longas noites de lua nova, a figura salvadora da mulher, fogo e labaredas, mas

também água e silêncio - prazer e revelação («A mulher dá-lhe o seio moreno e

Pedro, que estava deitado, levanta-se de olhos abertos...»)29. Noutra visão onírica,

é o arqueiro que o atinge em pleno coração; noutra ainda, é o Pássaro que o fitava

«com rosto humano»30 e que deposita junto dele três fios sedosos «três longos

cabelos femininos que tanto podiam ser da cor do ouro como da cor do fogo» - e

a carga simbólica do número três consolida-se, noutro passo de romance, com as

três línguas de fogo do Espírito Santo, portadoras das conotações de luz e

conhecimento.

Por outro lado, no domínio do premonitório os sonhos cruzam-se com

outros tipos de eventos com ressonâncias extraordinárias. Assim, mais à frente, a

(29) - Idem, ibidem, pp. 38 e 39.


(30) - Idem, ibidem, p. 62.
19

personagem masculina avistou um pássaro que pela sua beleza era assustador:

«Havia nele algo de infinito (...) uma revelação (...) surgia uma equivalência entre

o perfil de Inês e o deste pássaro».31 Mas de novo voltará, em sonho, a visão de

um outro pássaro na árvore fantástica à beira-mar, qual Fénix das cinzas renascida.

Se, por um lado, os sonhos são fundamentais, por outro não menos

importantes são os confrontos de Pedro com a morte, ou através da relação com

Inês, ou através do exercício do poder régio, ou na luta com os touros.

Os touros são vistos como seres surgidos «do ventre da eternidade caótica

(...) únicos capazes de se prestarem ao sacrifício» (palingenésico?). Ora, em

Atouguia, Pedro vence «o touro da direita, o pensativo, o sentimental», mas vem a

ser gravemente ferido pelo touro da esquerda, «o emotivo e apaixonado»; mas

sobre esse dramático lance pairam as virtudes que lhe atribui o narrador: «A terra

bebe sangue (...) Nas suas origens, na Ibéria, o homem que morria trilhado pelo

touro era não só o herói, como aquele que haveria um dia de retornar»32. A morte,

trazendo consigo as forçosas conotações de sofrimento e sacrifício, atingia assim

dimensão sagrada e de cariz religioso, sobre cujas raízes étnico-culturais o

narrador pós-moderno não se coíbe de especular e dissertar.

«A tauromaquia é o encontro da terra e do céu, do touro e do centauro

voador, pégaso alado e mítico que deposita o homem ao pé das urnas íntimas da

terra. (...)

(31) -Idem, ibidem, p. 90.


(32) -Idem, ibidem, pp. 166, 171.
20

A tauromaquia era momento originário da poesia, e talvez de toda a arte,

porque era, entre os iberos, o momento da tragédia. Em vez de um caprídeo, bode

helénico, nós na Ibéria inventámos o touro como momento representativo original.

O touril era uma pequena Ibéria minúscula onde o touro nascia, trazendo consigo a

plenitude sombria duma natureza virgem que, pelo sacrifício, se haveria de tornar

sagrada.

O sacrifício é o elo entre a morte e o amor.»33

Também os confrontos com a necessidade de Pedro fazer justiça e a sua

notória, mas sublimada, anomalia, sob o signo mágico da simbologia tradicional

tão relevante desde o índice anteposto («Eu sou o cão», clama, quando a multidão

recua ao vê-lo devorar o coração de Pêro Coelho) tornam Pedro o iniciador de um

novo ciclo. Ele - que a narração contrapontada (e tão posmodernamente

minuciosa e desconcertante) da história político-militar do Portugal trecentista e

das Espanhas coevas mostra insolitamente desinteressado dos conflitos e conluios,

expedientes e golpes, casamentos estratégicos e coonestações passionais que

lavrassem para lá das fronteiras - substitui, no seu processo de vingança, a guerra

pela justiça. Nos três momentos cruciais de aplicação dessa justiça o ideal

cavaleiresco já não está presente. A justiça não serve mais a classe nobre e «com

Pedro o rei emancipa-[se] da sua própria classe»34, num projecto a que, para o

narrador, o amor não podia ser indiferente. Por isso, quando a condenação à morte

(33) -Idem, ibidem, pp. 166-167.


(34) - Idem, ibidem, p. 200.
de dois escudeiros, por terem assassinado um judeu, foi recebida com espanto, o

rei explica que o que estava em causa era o homem em si e não o grupo

étnico-religioso a que pertencia, enquanto o narrador acrescenta que «O amor

tinha-lhe dado uma universalização que situava o homem português, pela primeira

vez, no lugar verdadeiro do seu ser e não no fictício da sua condição social ou

étnica».35

Da mesma maneira, Martim Bubal veio a ser condenado à morte e degolado

por ter mandado arrancar a barba, pelo por pelo, a um funcionário régio que

exigira o pagamento de certa contribuição fiscal.

Por outro lado, o último acto de justiça do seu reinado é a trasladação de

Inês, com tudo o que tem de consabido em desígnio simbólico e em assombro

expressionista, mas também de potencial profético, na antecipação do ciclo

político dos nossos dias, pois o cortejo processional chega a Alcobaça por volta do

meio-dia do dia 25 de Abril e certa «gente humilde dos campos, (...) espécie

comum de vadios (...) Tinham posto na lapela cravos vermelhos que eram como

nódoas de sangue».36

Para o narrador de Memória de Inês de Castro, Pedro fez na sociedade o

que Isabel de Aragão parece ter feito no espírito: «(...) Pedro levou para a política

um amor, quase hedonista, ainda que sacro, enquanto que Isabel trouxe a essa

mesma política um amor de tipo místico, profundamente inspirado no exemplo de

S. Francisco de Assis».37

(35) - Idem, ibidem, p. 203.


(36) - Idem, ibidem, p. 225.
(37) - Idem, ibidem, p. 201.
22

3.3. A relação (erotismo, natureza, espírito)

O encontro com o amor tem um grande poder transformador e provoca

uma abertura aos segredos profundos da vida e da natureza.

O narrador de Memória de Inês de Castro afirma explicitamente que «A

descoberta do amor é talvez tão importante como a descoberta do fogo, e entre as

duas há decerto relações ontogenéticas profundas. A descoberta do fogo, que não

é apenas a descoberta do seu uso e da sua manipulação, mas a descoberta do seu

poder, agregou o homem em círculo, enquanto que o amor deu ao homem a ideia

do encontro com uma totalidade, mas é também o sentido de unidade. A única

diferença que há entre o mundo antigo e o homem novo é a que o amor estabelece.

A modernidade começou com a descoberta do amor, tal como a história começou

com o uso do fogo».

É por causa das poderosas forças do amor que a interioridade se aprofunda,

de preferência numa relação silenciosa com a fértil natureza.

As frequentes imagens oriundas do campo semântico da terra e da água

põem em evidência a sugestão constante de fecundidade, de gestação, ou renovo.

Tanto a vegetação abundante, como as úberes zonas ribeirinhas, ou os leitos dos

rios cheios de peixe, mostram os poderes de uma natureza disponível e pronta a

abrir-se ao Homem que a entende e a busca. As raízes, que procuram a humidade

(38) - Idem, ibidem, pp. 88 e 89.


23

estabilizadora e tonificante desse chão, revitalizam-se de seiva e florescem em

copas protectoras de pássaros que preferencialmente cantam em auroras de meses

primaveris. O ninho, as searas, os animais (sobretudo os pássaros e o touro), a

caça, a pesca, são outras tantas referências constantes ao longo do romance e que

se tornam ricas em conotações, pela sua bruteza ou pelas sugestões líricas, na

autenticidade pacificante de um percurso.

Os frequentes sonhos das personagens surgem em espaços em que o

telúrico se impõe e é também essa situação que estabelece uma aproximação

profunda entre o Homem e a terra onde tem raízes, desenvolvendo um processo de

identificação não só pessoal mas também colectivo, que constantemente ganha

sabor de revelação.

Não esqueçamos que, como o narrador valorativamente testemunha, na

serra «o homem (...) falava com as vacas (...) A mulher amassava o pão (...)

Herdava-se pouco e construia-se muito (...) É que na serra cada homem era rei e

cada mulher uma rainha que modelava nas mãos o próprio mundo, ou seja, o pão.

(...) O homem que ama valoriza a natureza. A frontalidade com que o homem

enfrenta a paisagem é sempre a mesma frontalidade com que enfrenta o seu

próprio corpo». E se pensarmos que é difícil enfrentar o corpo (pois, em nós, o

corpo é o outro...), avaliamos como o desenvolvimento desta relação humana com

a natureza nada tem de evasiva.

(39) - Idem, ibidem, pp. 90 e 91.


24

Por outro lado, a relação amorosa de Pedro com Inês só chega à

pragmática sexual depois de um longo processo. Neste processo intuímos o que,

segundo o narrador, se comprova: «O verdadeiro erotismo é um alto enlace

espiritual, a que só a linguagem dos místicos, pode, como emblema, aceder».

É por isso que o entendimento espiritual, pouco comum, existente entre

Pedro e Inês, faz deles um par de excepção que na natureza e no silêncio procuram

ouvir os ecos primitivos de puras verdades. É na descrição da cena da nudez de

Inês na véspera da partida de Alenquer, qual deusa saída das águas - Pedro

«entrou no quarto e viu-a nua. (...)» - que nos é dito que «A humanidade tinha-se

calado para dar lugar aos deuses» e que «o mundo regredia à idade mitológica».

Se juntarmos a estas afirmações as palavras de Inês - «chama-me mãe» - e o

canto de um «canário de oiro»41 somos remetidos para a evocação de um estádio

edénico.

3.4. Os filhos

É natural que um par com tais carismas, e que consuma a união entre o

norte e o sul, estenda as marcas da excepcionalidade aos filhos.

Já antes do nascimento do primeiro filho de Inês, «uma velha que,

envolvida em panos pretos limpos e brilhantes, fitava a ocidente o mar»,

(40) - Idem, ibidem, p. 92.


(41) - Idem, ibidem, p. 98.
(42) - Idem, ibidem, p. 111.
25

profetizara - «Tal filho vejo-o eu (...) capaz de aspergir a água e purificar com ela

não só a vossa casa, mas (...) o próprio mundo. O seu nome (...) não pode ser

senão João»43 - envolvendo assim o nascituro numa aura de Baptista, sagrador do

advento redentivo de novo ciclo do Humano.

Sintomaticamente, a primeira criança de Pedro e Inês nasceu a 25 de

Dezembro, ao meio-dia, num ambiente de pobreza e austeridade em clara

consonância, mas em variante solar, com a história bíblica da Natividade de Jesus.

Além disso, consequentemente, um monge de Alcobaça tentou a todo o custo

chamá-lo Emanuel; e a figuração dos progenitores confunde-se intencionalmente

com S. José e a Virgem, «uma virgem já modelada pelo verbo de S. Bernardo e

pelas estórias exemplares de Tristão e Isolda».44

Porém, será com o filho de Fátima, o mestiço João (afinal, o futuro Mestre

de Avis), que advirá uma mutação alternativa, no mesmo sentido do que se

pressentia na aplicação da justiça com que Pedro causara espanto e mesmo

reprovação: «como quis um historiador do fim do século XIX, a primeira

transformação de fundo no organismo social português»45 (comenta o narrador

pós-moderno).

(43) - Idem, ibidem, p. 112.


(44) - Idem, ibidem, p. 171.
(45) - Idem, ibidem, p. 164.
26

3.5. Fátima

É que, afinal, outra personagem do romance se vem a revelar não menos

importante que Pedro ou Inês: Fátima.

De dignidade aprumada, era limpa como as raparigas algarvias que se

moviam entre perfumes e flores, sendo, por isso, apreciadas pelos senhores da

guerra. Figura de mulher inicialmente apagada, surge-nos como mera trabalhadora

dos campos dos Castros; mais tarde converte-se em criada de quarto. Inês «que a

tratara sempre por Fátima», apesar de, como já assinalámos, os Castros lhe

chamarem Teresa, por razões étnico-religiosas - «sentia-a como presença

indispensável, presença irremediavelmente ligada à sua».

Esta personagem está presente em todos os momentos importantes na vida

da sua ama seja no primeiro encontro com Pedro, seja no momento em que vai

entregar o anel de Inês ao seu amado, seja nos tempos de difícil coexistência com

Constança. É ainda ela que leva consigo as crianças aquando do assassinato de

Inês.

A força interior desta figura romanesca vai-se acentuando, ou porque o

narrador diz abertamente que «substituía Inês junto dos miúdos», ou porque,

mercê de verdadeira aparição, surge junto de Pedro protegendo-o e lavando-lhe os

ferimentos provocados pela luta com os touros de Atouguia.

(46) - Idem, ibidem, p. 79.


27

Mais tarde, de volta a Moledo, o Infante viu Inês nesta rapariga que era sua

criada, «Uma Inês transfigurada pela morte e revelada no único corpo possível: o

de Fátima». Então, num dos passos mais representativos do discurso típico de

Memória de Inês de Castro e mais eficazes como aproximação ao discurso de Vida

de Sebastião Rei de Portugal (pela desenvoltura com que o narrador estrapola

significados e estabelece correlações do particular ou ocasional para o essencial,

explorando miticamente estruturas antropológicas do imginário e antecedentes

históricos e étnicos, aludindo ao saudosismo gnóstico), o que Pedro vê «não é a

mulher amada, mas sim a sombra dessa mesma mulher. A mulher amada está no

Céu e a sua sombra na terra (...) Inês era a estrela, Fátima uma espécie humilde de

flor. Se Inês era feita de fogo, Fátima era as suas trevas (...) vinha do Algarve e a

sua ascendência era uma mistura, já secular, de sangue árabe e berbere (...) Fátima

é um contraponto eficaz de Inês e a sua expressão de saudade».47

Serena e silenciosa, a relação de ambos em breve é marcada por um sonho:

Fátima vê vir um pássaro transportando «uma espada viva que mais parecia uma

roseira. Nela brotavam rebentos e escorriam gotas duma lava esbranquiçada e

ardente». Tal como nos textos bíblicos, o anjo disse: «estás fecundada pelo poder

milagroso de Deus (...) eu sou o mensageiro da aurora, o pombo que desce do céu

como o correio divino (...) o teu filho é predestinado a ser a hora, a luz que se

eleva da chama».49

(47) - Idem, ibidem, pp. 176 e 177.


(48) - Idem, ibidem, p. 179.
(49) -Idem, ibidem, p. 180.
28

No capítulo denominado «A Fénix», Pedro tem outro sonho em que, junto

de uma falésia que abruptamente caía sobre o mar, uma «árvore fantástica» queria

chegar ao céu; um enorme pássaro colorido, que Pedro confronta com outro que

lhe aparecera quinze anos antes, parecia renascer das cinzas outonais, tal como a

Fénix mítica; e se um deles, garça real, podia identificar-se com Inês, o outro, mais

misterioso, podia ser Fátima, a sombra de Inês.

Só que a sombra de Inês era mais forte do que a própria Inês. Pedro não

sabia que enigma obscuro envolvia a sua vida, capaz de explicar a influência que

uma mulher algarvia tinha num príncipe herdeiro de dinastia tão elevada como a de

Borgonha. As surpresas aumentam no nascimento do filho de Fátima: as dores de

parto acometem-na no barco à vista de Lisboa e prolongam-se por três dias, pondo

mãe e criança em perigo; a parturiente exânime adormece e é dentro do sono que

pede a Pedro que mande tocar os sinos da Sé, pois o nascimento daquela criança

dependia disso; o filho da criada algarvia nascia sobre a mobilidade fria e húmida

das águas, o que lembrava a enigmática profecia da peregrina que anunciara que

com a água viria o futuro; o próprio rei D. Afonso IV morre no momento em que

o neto nasce. Um mundo novo parecia ter chegado, plurivocamente envolto em

sinais alarmantes.

Pedro, atentamente, reflecte nas origens de Fátima e confronta-as com as

de Inês - sobressaindo então o carácter contextualmente escandaloso desta ligação

com Fátima, tendo em conta os aspectos étnicos, sociais e religiosos, aliás logo

denunciados pelo contraste com o tipo físico europeu. Ao tempo cria-se que o

Norte continuava a ser o «único cadinho possível de uma civilização portuguesa


ou peninsular». Por isso, os frades de Alcobaça distanciam-se de Fátima. No

fundo, o sector político preponderante tem medo de que ela represente «uma

perversão do próprio sentido político português». E, de facto, para o narrador de

Memória de Inês de Castro, é porque essa perversão se consumou que a Ia

dinastia chegou ao fim; mas logo acrescenta: «Uma perversão profundamente

positiva, diga-se, porque decisiva para o delineamento da missão de Portugal».50

Começa-se agora a esboçar, com mais precisão, a importância decisiva que

vai ter esta figura de mulher algarvia (alusivamente retomada em Vida de

Sebastião Rei de Portugal) 51. «Há no Algarve o mistério duma outra coisa que

não sendo Portugal o é também (...) A mulher algarvia foi o que faltou para

cimentar Portugal, tal como mais tarde a mulher índia ou africana serão a parcela

que faltava para criar o mundo», especula o narrador pós-moderno, que logo, em

rasgo tão familiar a um António Cândido Franco enquanto estudioso devoto de

Pascoaes e da sua dialéctica mnésico-prospectiva da Saudade, sentencia: «A

mulher algarvia é uma espécie de memória colectiva que não se limita a recordar o

que passou, mas também recorda o que há-de vir (...)», daí partindo para

considerações historiosóficas de que Jaime Cortesão (jovem poeta saudosista e,

depois, intérprete neo-franciscanista da Expansão) fora mediador: «Foi ela que

autonomizou Portugal, dando-lhe um destino ultramarino e atlântico, e garantindo

para sempre que as pretensões centralizantes de Castela não seriam aqui bem

sucedidas. Não que o português não veja idealmente a unidade ibérica como um

(50) -Idem, ibidem,?. 181.


(51) - Cf. infra, Cap. IV.
30

marco decisivo do seu destino, mas porque considera que isso se há-de fazer não a

partir de Madrid mas a partir dos povos periféricos».

De resto, tal como «O ventre da mulher algarvia foi o ventre que, por

excelência, concebeu Portugal»52, também será nos ventres anónimos que deram

ao homem português dimensão africana que residirá o mistério da sobrevivência de

Portugal e, ainda, do seu desaparecimento - segundo o Agostinho da Silva

invocado pelo próprio narrador de Memória de Inês de Castro.

Para tal narrador, o promontório de Sagres é simbolicamente também o

ponto de convergência de dois mares, duas religiões, duas cores de pele e duas

culturas. Com o Algarve, Portugal poderia ter como objectivo não a

(re)construção de um simples país mas a construção do universo.

A relação de Pedro e Inês/Fátima constitui-se, pois, num dos vínculos

essenciais da formação e da concretização deste significado existencial português,

conjugando os valores dos antigos godos germânicos e os caracteres das minorias

semitas.

Convirá sublinhar que esta relação toca até o poder político em Portugal.

Passa-se de uma luta de morte entre árabes e cristãos, lógica continuação do

Salado, a uma aliança amorosa e até a uma cooperação. É a inflexão de um sentido

político que resulta no melhor da nossa existência histórica e mítica. Não é uma

dissolução mas uma aculturação que produziu novos filhos, novos povos e novas

nações.

(52) - A. Cândido Franco, op. cit., p. 182.


31

Ousadamente, a narrativa de António Cândido Franco projecta estas

observações nos nossos dias e afirma que «ainda não exaurido, Portugal pode hoje,

num derradeiro esforço criativo, que será todavia o último, criar o mundo, num

universo sem fronteiras»53 onde os povos e as nações cooperem. Portugal morrerá

mas dará lugar à fraternidade universal que é hoje o sentido último e definitivo da

sua existência.

4. Alcance do mito inesiano

Do amor de Pedro e Inês surgiram três níveis de leitura diferentes mas que

coincidem na estrutura: a narrativa histórica, a lenda mítica e a imaginação

saudosa. Nem sempre a narrativa histórica dá fundamento ao mito. No entanto,

frequentemente a propensão bem portuguesa para a hiperbolização do sublime

nacional tem produzido frutos. É a qualidade do amor que uniu Pedro e Inês,

qualidade sobrehumana e imortal, que os coloca no horizonte primordial do mito.

Esta excepcionalidade habita carne débil e começa na própria morte,

sacrifício e sofrimento redentores. É pela destruição que se atinge a possibilidade

de reconstruir a vida e o mundo. Ora, só a dimensão mítica possibilitará ao par

amoroso ter a missão de fundar o reino perpétuo do amor entre Homem e Mulher.

É que os mitos mantêm-se na «semiconsciência da alma popular», para

parafrasearmos Afonso Botelho no cuidadoso modo de não falar no inconsciente

(53) - A. Cândido Franco, op. cit., p. 183.


32

de Freud, «caos de forças inominadas, cujo império não poderá dar ao homem a

unidade e a harmonia que ele espera de um verdadeiro Deus». No dizer do mesmo

Afonso Botelho, «é indispensável que a origem mítica religue Deus à humanidade

através do sonho e não através do vácuo do inconsciente de que dimanam

fantasmas tão poderosos quanto desconhecidos.»54.

Não esqueçamos que o mito como biografia divina foi posto em causa pelo

Cristianismo: Deus revela-se através do Mistério, ou através da sua presença

espiritual onde e como quer, mas sempre de modo a aumentar a inteligência

humana. Nesse sentido é que o Espírito Santo desceu sobre os Apóstolos no

Pentecostes, sob a forma individual de língua de fogo.

O mito pode ser fundado pela inteligência da individualidade humana,

assistida pela revelação divina, embora se conserve, se altere e cresça pelo rito de

um povo. Foi porventura em António Patrício que se descobriu e recuperou a

razão mítica de Pedro/Inês. Esse retorno à origem tem de ter em conta a

simbolização do corpo e a criação do reino de supervivência do amor. E que

contrariamente a Tristão e Isolda, a nossa narrativa mítico-amorosa começa pela

realidade da morte que tinha de ser superada.55

Em Memória de Inês de Castro de António Cândido Franco, a necessidade

de superação da morte é também uma linha profundamente trabalhada apesar da

convivência amorosa do par concentrar fortemente a atenção do narrador. Quanto

(54) - Afonso Botelho, «Mito da supervivência do Amor», in Independência - Revista de Cultura Lusíada,
Lisboa, N° 7,1994, pp. 9-12.
(55) - Cf. Afonso Botelho, Da Saudade ao Saudosismo. Lisboa, ICLP, 1990, Cap. 4, pp. 175 segs.
33

mais intrigantemente a divinização do par se operar, mais fácil depois se tornará

interpretar dados que confirmarão posteriormente aquele carácter sobrenatural.

«Os amantes são seres religiosos que encarnam em si a mentalidade primitiva do

sacrifício: eles entregam-se à morte como o homem se entregava ao touro nas

origens da Ibéria. Enfrenta-se a morte como se enfrenta o amor e tudo na morte

sacrificial é a representação do amor (...) A morte é a imitação do amor e só

morre, de forma absurda para além da divindade, o ser apaixonado ou amoroso»56.

Ao elevar o corpo da amada Pedro trilha já o caminho da ressurreição. A

Encarnação propicia a Ressurreição mas não esqueçamos que o corpo, durante

tanto tempo depreciado, encontra aqui um seu hino. Inês é a excelsa mediadora do

eterno presente do mito e Pedro é o sofredor que cria o tempo e o espaço da

saudade que vai conferir perpetuidade ao mito.

5. Inferências prospectivas

A subjectivização do romance de linhas históricas - tendência dos finais

deste século XX, na lição de Elisabeth Wesseling e de Linda Hutcheon, entre

outros - aparece bem documentada nesta obra.

Os símbolos valorizados e os sonhos constantes mais não são que futuros

projectados a partir de seres históricos e passado reais. Em contrapartida, apesar

do fio narrativo principal aparentemente se diluir, as duas figuras centrais não me

(56) - A. Cândido Franco, op. cit., p. 172.


34

parece rarefazerem-se, ao invés do que afirma Estela Guedes em recensão crítica a

Memória de Inês de Castro. " Pelo contrário, o par emerge com mais força desse

universo histórico de intrigas paralelas entre as quais são estabelecidas correlações

várias.

É neste quadro de construção ficcional que o passado memorial é raiz de

um futuro que se quer eufórico e é premonitoriamente anunciado pelos múltiplos

sonhos, visões, profecias, pelos elucidativos encontros com animais (leão, dragão,

pássaros - garça ou fénix, canário dourado), em ambientes de «serra pedregosa»

que se esventra em raízes e é propícia a fantasias («sob cada uma das pedras se

escondia um génio»), ou de beira-mar aurorai, ou ainda de pequenos bosques junto

à terra húmida muito fértil. Estes ambientes põem em evidência a riqueza de seiva

da Natureza-Mãe acolhedora, ninho de novos e diferentes filhos.

O intenso amor deixa um rasto de fogo que por si só tem força expansiva.

É um fogo carnal e espiritual, imanente e transcendente. Porém, se Inês é Ignis, é

também Agnus, o cordeiro imolado; e ao amor vem, pois, juntar-se a ideia de

sofrimento sacrificial. Pedro vem manter o calor inesiano, como pétreo que é,

alimentando assim a faceta mítica.

Importa, aliás, evocar o que no outro ambíguo romance de António

Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, o narrador homólogo diz

(57) - Maria Estela Guedes, «António Cândido Franco, Memória de Inês de castro», in Colóquio/Letras, n° 120,
Abril-Junho 1991, pp. 218-219.
35

acerca de Inês de Castro: «Para mim, o ventre de Inês de Castro é essencial à

nacionalidade, e é nessa terra mole e patriótica que eu vejo brotar o sangue

luminoso das quinas. Elas só se rasgaram definitivamente no coração de Portugal

com as feridas de Inês de Castro, essa fonte que alimentou Portugal ao peito e que

ainda hoje nos dá a beber o leite genesíaco do nascimento da criação».58

António Cândido Franco deixa pois claro, pela voz do narrador, a

importância histórica e política daquela figura feminina mitificada, que a pode

aproximar de Átis ou Osíris: «Foi ao peito opulento e genesíaco de Inês que

Portugal ganhou fé num destino do tamanho do mundo, porque acho que só o

amor é que dá aos homens e às nações o sentido da liberdade e da aventura (...) A

história de um povo [vale] pela intensidade instantânea com que as suas figuras

viveram as suas experiências [concretas]»59.

Em António Cândido Franco, autor que se inscreve na corrente dos tempos

que são os seus (em que raízes pessoais e colectivas não encontram segurança na

terra onde mergulham), a ficção ultrapassa a história, tal como, por exemplo, em A

Margem da Alegria de Ruy Belo, sobressai não tanto a história antiga mas a

capacidade de evocação e memória ou do que essa memória representa no

inconsciente de uma colectividade (como evidencia Fátima Marinho).60 Nessa

ficção, todavia historiosófica, tais são as raízes agora muito mais esquecidas. E se,

(58) - António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, p. 11.


(59) - Idem, ibidem, p. 64.
(60) - Maria de Fátima Marinho, Inês de Castro - Outra era a vez..., loc. cit.
36

como no caso português, mergulham no mar, ainda maior é a sensação de

desnorte, maior é a necessidade de mobilizar dados históricos num voo louco mas

tentador de fazer renascer um futuro luminoso, elevado, quente, credível, pessoal

mas com conotações universais.

É assim que a Lídia Martinez de Cartas de Pedro e Inez - O mel do meu

consolo, no texto «Das origens...», à maneira de nota e aviso «à intenção do leitor

que percorre estas páginas», escreve: «A identidade sagrada reclama a língua

primeira, mas por vezes, fora de vista, longe do quotidiano, ela oculta-se deixando

que uma tome forma e corpo, impondo-se. Conforme o instante, segundo o intuito,

ambas se proporcionam (...) As minhas raízes andam no chão do mar em que me

vou afundar».61

Em textos líricos datados de '83 a '94 e escritos em Lisboa, Paris e Nova

Iorque, o autor procura-se, num desvario dos sentidos e do pensamento; e é

curioso sublinhar como só em Pedro e Inês o autor julga poder ancorar e aninhar

as suas ansiedades. Como a hora é de questionação, o mel do seu consolo poderá

ser encontrado na descoberta de que Amour est le mot.

Tal como outras obras contemporâneas de difuso parentesco temático, esse

livro revela preocupações de grande elevação interior, mas através de imagens de

um expressionismo chocante e provocatório. Aí, como em Miguel Esteves

Cardoso, a provocação e até a obscenidade podem ser facetas da amargura

desesperada de quem procura plenitude e só encontra mediocridade.

(61) - Lídia Martinez, Cartas de Pedro e Inez - O mel do meu consolo, Lisboa, Ulmeiro, 1994, p, 9.
37

Aproxima-se o fim do milénio que traz consigo traços de indeterminação e

de medo perante o desconhecido. É que o fim de milénio é portador, por causa do

peso que sobre nós e a nossa cultura os símbolos adquiriram, de um conjunto de

opostos que Calabrese enumera e de entre os quais faço ressaltar a esperança e o

temor, o progresso e a decadência, a renovação e a catástrofe. Por um lado, o

simbolismo sobrepõe-se à moral e à violência da significação, por outro só a

compreensão permite escapar à violência. Mas talvez todos os projectos de

compreensão não escapem (como acontece com a semiótica em Calabrese)62 à

suspeita de que não passam de utopias.

Também o Homem português tenta varrer o marasmo, nas crises cinzentas

de abatimento servindo-se de figuras míticas, catalisadoras de forças

desconhecidas ou soterradas e que é preciso redescobrir, reanimar, relançar. A

sociedade actual, na sua ausência de fundamentos e ideologias, mergulhada num

relativismo total, dilui o élan pessoal do homem reduzido à dimensão social. O

indivíduo mais do que nunca assume-se numa dimensão social, tal como para o

Portugal dos nossos dias vem analisando Boaventura de Sousa Santos.63 Mas é,

justamente, essa hiperbolização sociologizante da dimensão exterior que corre o

risco de lhe criar um vazio interior insuportável - como, aliás, teme o Gilles

Lipovetsky de O Crepúsculo do Dever.64

(62) - De Ornar Calabrese, além da obra atrás citada, veja-meM/Z/e di questi anni. Roma, Laterga, 1991.
(63) - Veja-se sobretudo Pela Mão de Alice - O social e o político na pós-modernidade. Porto, Ed.
Afrontamento, 1994.
(64) - Gilles Lipovetsky, O Crepúsculo do Dever - A ética indolor dos novos tempos democráticos. Lisboa, Dom
Quixote, 1994.
38

CAPITULOU

UMA NARRATIVA PLURICODIFICADA (VECTORES

DE MODOS, GÉNEROS E SUBGÉNEROS EM

VIDA DE SEBASTIÃO REI DE PORTUGAL)

Instruídos pela análise e interpretação de vectores temático-formais de

Memória de Inês de Castro e pela consequente constatação das reconversões

estruturais que o seu tratamento peculiar implicou para a narrativa de inspiração

histórica, ficamos mais aptos para o estudo de Vida de Sebastião Rei de Portugal,

mas também predispostos a encetá-lo pela problemática da sobredeterminação do

corpo textual pelas entrecruzadas interferências de diversas categorias

arquitextuais (nomeadamente de códigos de modos, de géneros e de subgéneros

literários) - condição prévia para a tentativa de compreensão do universo

simbólico dessa narrativa de António Cândido Franco.


39

1. As interferências de dois modos literários

Partindo desta perspectiva de problematização estrutural, ressalta um

primeiro nível de ambiguidade na codificação do texto que põe em causa a sua

pertença exclusiva ao modo narrativo. Com efeito, ao iniciar a leitura de Vida de

Sebastião Rei de Portugal damo-nos conta de que a dimensão poética deste

romance é inegável.1

Em correlação com a recorrência de motivos, de imagens, de simbologias,

avultam a tentativa (em parte gorada) de comando melódico da prosódia de

páginas e páginas, a subalternização da função habitual das descrições, a

atemporalidade provinda da fusão do tempo presente, passado e até futuro, do tom

de interiorização sumular do narrador («Sebastião [é] o amante [...] o amante é o

louco e também o mistificadon>)2, do alcance mítico e nacional de certas

(1 ) - Aliás, António Cândido Franco e também autor - com Murmúrios do Mar de Peniche (Lisboa, 1977), Conto
de Inverno (Lisboa, 1983), Na Roménia do Coração (Lisboa, 1984), Matéria Prima (Lisboa, 1986), Arte Régia
(Lisboa, 1987), Corpos Celestes (Porto, 1990) e Estrela Subterrânea (Porto, 1993) - de poesia lírica «afim da
proclamação hierático-hermética, onde as figuras cósmico-astrológicas respondem à operatividade alquímica da
imaginação desveladora do jogo de correspondências, permutas e metamorfoses do macro e do microcosmos, do
céu e da terra, do homem e do universo» (Paulo A. E. Borges, «António Cândido Franco», in Biblos -
Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, Lisboa, Ed. Verbo, Vol. H, 681-683).
(2) - António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal. Lisboa, Publicações Europa-América, 1991
p.ll.
40

afirmações3, a subject!vização e reflexividade da narrativa4 tal como dela fala

Elisabeth Wesseling em Writing history as a prophet, a quase ausência de

diálogos, pois em tão distendida narração as únicas sete ou oito falas que surgem

em discurso directo não passam de afirmações com carácter de monólogo (não se

sabendo sequer a quem pertence uma delas - todavia, tão importante que dela

dependia a sorte da batalha de Álcacer-Quibir: «Mas foi nesse momento que se

ouviu a voz que disse: - Ter! Ter! Volta! Volta! A batalha perdeu-se [...] por

causa dessa voz [...] Resta-nos saber quem deu aquela voz de «ter» [...] Eu

pessoalmente estou convencido que uma voz de comando deste tipo [...] só

poderia ter partido do rei»).5

Como é peculiar do modo lírico, o obscuro, o irracional, o pulsional não se

representam em clara ou linear discursividade e o nosso narrador parece querer

ardentemente libertar a palavra da univocidade e as categorias da narrativa de uma

velha arquitectura.

Estamos, pois, perante um caso de hibridismo e até de desconstrução. Não

(3) - («[se] Inês é fonte que alimentou Portugal ao peito e que ainda hoje nos dá de beber o leite genesíaco
do nascimento e da criação [...] Sebastião é fonte onde Portugal bebeu, moribundo, o leite da velhice e da
resurreição [...] A loucura de Sebastião não é [...] caso patológico pessoal [...] toda a dinastia de Avis,
criada nas planícies do sul onde só ardem horizontes infinitos [tinha] nos olhos um Sonho [...] na boca
uma sede de Além [...] Da sua paixão [Fernando e Henrique] nascerão continentes inteiros como mais
tarde Sebastião com essas mesmas forças fará nascer a Ilha do Encoberto [...] continente muito mais
importante que a América [porque] supra-existe como supra-existe uma estrela a quinhentos milhões de
anos-luz [...] Falar de Sebastião é falar do fim, mas falar do fim é para mim começar do princípio.» idem,
ibidem, pp. 11, 12,13,14,15).
(4) - «É na derrota que ele é grande [...] Assim com a batalha perdida e com dez mil guitarras atrás [...]
Sebastao foi mais um homem interessado em inventar as coisas impossíveis do que em administrar o
visível» (idem, ibidem, p. 15).
(5) - Idem, ibidem, p. 160.
41

podemos negar que o texto é basicamente uma narrativa, mas uma narrativa em

que o contar é desvelar e atingir novos sentidos, e sempre no âmbito do discurso

centrado na subjectividade do narrador.

As categorias tradicionais da narrativa são portanto aqui recriadas,

recombinadas, reorganizadas. A acção não é estanquemente exterior, nem se

circunscreve à que decorre da actuação do rei Sebastião, nem nela

fundamentalmente reside. É que paralelamente ao evoluir do já de si

desconcertante rei-Messias que se torna mito, e que é bufão, e que quer a derrota,

existe um narrador que busca sem cansaço um quotidiano vivo, que desfaça a cinza

da mediocridade e que seja génese da galvanização de um colectivo que é o povo

português.

A preponderância do narrador sobre o narrado e a sua configuração

excêntrica exigem um trajecto sinuoso de discurso. A narração, por outro lado,

utiliza múltiplas focalizações de personagem, aumentando a sinuosidade discursiva.

As descrições quer de espaços (Ribatejo, Alentejo, Algarve, enfim o Sul e a

planície sem fim; ou Sintra, a floresta fecunda e avassaladora; ou o mar, o rio, a

água, em que o fluir imparável se cruza com semas de infinito e fertilidade), quer

de pessoas (os familiares, já por si seres de excepção; os amigos, de uma

originalidade premonitória; o próprio povo, antevendo a maravilha das gerações)

pretendem apenas reforçar características e propensões especiais da subjectividade

axial - Sebastião ou o próprio narrador -, aproximando-se ainda do papel que no

modo lírico costuma caber às notações de espaço e tempo, ou aos passos de


42

descrição e narração.6

Do ponto de vista do tempo, podemos afirmar que há um sem número de

subversões gradativas, que vão provocar a vigência de uma indefinição

cronológica ou de uma certa atemporalidade tão próprias do discurso lírico e

mitificante («Tal como eu vejo [...]» «A história de Sebastião não acabou ali [...]»

«Morrera com o fim do dia e levantara-se com as estrelas da noite [...]»

«Imagino-o [...] encontrei-o» «A primeira vez que vi Sebastião...» «voltei a

encontrá-lo...» «Observei-o mais de perto...» «Só o voltei a encontrar mais

tarde...»).7

As estratégias para a criação dessa indefinição temporal ou dessa

atemporalidade são progressivamente mais fortes e repetidas, resultando de vários

procedimentos como a frequente sobreposição de duas temporalidades diegéticas

- a que envolve o protagonista e a do narrador, a propósito de um mesmo lugar

ou situação ou personagem (tal como em «Chegou a Ceuta [...] Conheço bem

Ceuta», ou em «Pedro de Alcáçova Carneiro [tem] senso do oportuno

[contrariamente ao que acontece hoje em que a] política é força de fracos e

aparente inteligência de outros...»).8

A intriga é múltipla. Há mesmo episódios que se justapõem como os que

contam acontecimentos que se passaram com os progenitores e antepassados do

jovem rei, com os aios que para ele foram escolhidos e com os amigos, de algum

(6) - Vitor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 4" ed., Coimbra, Almedina, 1982, pp. 550-
572.
(7) - A. Cândido Franco, op. cit. pp. 116, 170, 171, 177, 178, 179, 180.
(8) - Idem, ibidem, p. 117, 140.
43

modo marginalizados, com quem priva. Estes episódios têm, no entanto, sempre

uma linha que os une, e que é a metaforização deste Messias («Sebastião é o

renascimento de um povo... Foi ao seu peito que Portugal ganhou a certeza de que

o seu destino era não só do tamanho do mundo mais imortal... A história de um

povo conta-se pela intensidade instantânea com que as figuras viveram a sua

experiência... Sebastião vestiu[-se] de mistério... troquei a memória [Inês] pela

esperança... Sebastião para mim é o contrário de uma memória... ele torna-se numa

realidade vital e sempre sanguínea... Foi ao seu peito... que... Portugal... bebeu... o

leite da revolta e da liberdade...»).9

2. A fecunda ambiguidade dos códigos de géneros

Além da problemática do hibridismo de modos literários, levanta-se também

a questão do hibridismo de géneros na concretização textual da narrativa - que

per se não distingue o discurso historiográfico de outros tipos de discurso10 - em

Vida de Sebastião Rei de Portugal. É biografia? É ensaio? É ficção novelesca?

No fundo, a obra de António Cândido Franco, como várias outras da

literatura contemporânea, e em especial do Pós-Modernismo, agudiza um

fenómeno literário raro até ao Pré-Romantismo, mas mais ou menos recorrente

(9) -Idem, ibidem,?. 140.


(10) - Cf. Hayden White, The Content of Form - Narrative Dircourse and Historical Represention.
Baltimore/London, The Johns Hopkins Univ. Press., 1987, p. 29.
44

desde a revolução romântica: uma mesma obra pode acolher, ou buscar, e fundir

«programas» de mais que um género ou subgénero, assim tornando complexa a

codificação da mensagem e polivalentes os elementos da sua sintagmática, sem

deixar de facultar ao leitor os meios para uma recepção integrada da mesma

obra.11

Provocatoriamente introduzida pela inserção da obra em determinada

colecção editorial, a plurivocidade genológica instaura-se desde o título. Este, de

facto, e de acordo aliás com a integração numa série editorial de BIOGRAFIAS,

parece prometer, ao sabor de compreensível voga recente desse género12, uma

biografia. Mas tudo isso se vem a revelar catáfora ardilosa, pois em excursos de

natureza ficcional e em intrusões anisocrónicas do autor textual/narrador a

narrativa ultrapassa até o que seria comportável pela modalidade mista de

existência própria duma biografia romanceada13 e pelo desenvolvimento dum plot,

na acepção de E. M. Forster14, numa ambiguidade que se mantém na maior parte

do livro. «Neste livro vou falar do rei Sebastião», anuncia de chofre esse autor

textual/narrador; e depois, quase no fim da introdução, afirma: «É a história do

mais estranho rei de Portugal que se vai contar a seguir»; de permeio, sublinha:

«Acho que a história e as aventuras de Sebastião, tão quixotescas, são mais

(11) - Cf. Maria Corti, «I generi letterari in prospecttiva semiológica», in Strumenti Critici, VI, 1, 1971.
(12) - Cf. Maria de Fátima Marinho, «Isabel de Aragão, Rainha Santa: entre o romance e a biografia», in
Vitorino Nemésio, Vinte anos depois, Lisboa/Ponta Delgada, Ed. Cosmos & S.I.E.N., 1998, p.681 (e
segs.).
(13) - Sobre a problemática e as concepções contemporâneas de narrativa biográfica, veja-se o vol.
colectivo Le Désir biographique, N° 16 dos Cahiers de Sémiotique Textuelle, Paris (Univ. Paris X), 1989.
(14) - E. M. Forster, Aspects of the novel. London, Edward Arnold, 1937, pp. 113 segs.
45

apropriadas a serem contadas a uma criança que a um historiador. [...] Mattoso15

deve achar um aborrecimento atroz essa figura [...] Sebastião é mais um herói

infantil [...] que um herói da História.». Mas, em contrapartida, considera que

«Fazer da história uma imaginação onde todos os prodígios conseguiram ser

verosímeis foi a virtude rara deste rei português, que, se foi inconscientemente

para Alcácer-Quibir de guitarra fadista, teve bom-senso suficiente para reaparecer

depois de morto.».16

Ora, o processo que o narrador usa para se referir ao rei é o de ir

desvalorizando o seu interesse histórico lentamente, para, ao mesmo tempo, o ir

fazendo entrar na ficção. A utilização recorrente de um processo de repetição

surte efeito; e nós assistimos, com naturalidade, à messianização da figura por

causa das constantes aproximações e até comparações com o Messias cristão - no

nascimento tão desejado, no carácter de excepcionalidade de Sebastião (em que,

de início, são paradoxalmente feitos sobressair a sabedoria e o bom-senso), etc. É

também devido à recorrência dessa ideia, segundo a qual Sebastião constitui um

ser marcado e predestinado, que o mito nasce e cresce - com tal força que chega a

haver pretensas reincarnações do protagonista nas vicissitudes do trajecto

quotidiano do narrador (que, coincidindo com o autor textual, se permite

incidentalmente cruzar a sua suposta "biografia" com a não menos suposta

(15) - Parecem óbvios os efeitos conotativos contrapolares retirados da evocação contrastiva deste
antropónimo - nome de um dos mais importantes historiadores da actualidade (e o que mais se consagrou
ao estudo medievalista da Identidade de um Pais...) e do seu antepassado autor de manuais de
historiografia que formaram gerações de jovens portugueses.
(16) -A. Cândido Franco, op. cit., pp. 11, 17, 16, 17.
"biografia" do protagonista histórico).

Não entendamos com isto, de modo algum, que o histórico é esquecido. As

informações de base historiográfica são abundantes; e as suas fontes são

meticulosa e profusamente indicadas. Estas informações têm como objectivo

manter o jogo, o disfarce de preocupação histórica. Para dar credibilidade ao que

conta, o narrador afirma que, «para escrever este livro», teve de «subir as

apertadas ruas de Tânger e andar no meio dos passeios apinhados de gente em

Alcácer-Quibin>17, numa atitude de reconhecimento dos locais por onde o rei

andara.

Constatamos, portanto, que a ambiguidade de que falávamos continua a vir

à superfície em múltiplos momentos (enquanto, lembre-se, o narrador, tal qual o

entrevimos fazer em Memória de Inês de Castro, vai interminamente entretecendo

a sua especulação ensaística de antropologia cultural e de filosofia da História).

Com o desenrolar da narração, a ficção parece ir cavalgando cada vez mais o

histórico, sem que no entanto esta dimensão alguma vez venha a desaparecer. Ora

se destaca a loucura genial e divinal do menino, ora surge a preocupação de

apontar dados que reforçam o posicionamento histórico. O narrador convoca, para

a criação de um universo que é ficcional, dados efectivamente oriundos da História

de Portugal, figuras representativas do mundo da arte (pintura, escultura,

fotografia, cinema, teatro e literatura) nacional ou internacional, e ainda

perspectivas proféticas singulares ou pertencentes a um imaginário colectivo.

(17) - Idem, ibidem, p. 17


47

Num rasgo simultaneamente lúdico e pregnante, como parece próprio da

narrativa pós-moderna, tornam-se abundantes as alusões (cuja importância relativa

ponderaremos noutro capítulo) a figuras míticas ou a figuras históricas que depois

foram envolvidas em fumos imaginativos como D. Afonso Henriques, Inês de

Castro, os Cavaleiros da Távola Redonda e Dom Quixote. A carga cultural está à

vista, devendo-se ainda pôr em destaque referências a Aristóteles e a Platão, a

textos sagrados de orientações religiosas diferentes (a Bíblia e o Corão), etc.

Outras relações com personalidades das ideias e das artes são estabelecidas.

Podem ser portugueses do passado: António Ferreira, Camões, Camilo, Oliveira

Martins, Sampaio Bruno, Fialho de Almeida, António Nobre, João Lúcio,

Pascoaes, Mário Beirão, Sá Carneiro, Fernando Pessoa (e Alberto Caeiro), A.

Botto, António Sérgio, Aquilino, etc. Podem ser portugueses do presente: Luís

Pacheco, Paulo de Carvalho, Raul Solnado, Almeida Faria. Podem ainda ser

estrangeiros como Exupéry, Grouxo Marx, Holderlin, Cervantes, Oscar Wilde,

Andy Wharol, Wagner, Goethe, Racine, Frank Sinatra.

Através de todas essas convocações - tão díspares no tempo, no espaço, na

índole -, o que sobressai é a sua função instrumental para a persistente digressão

mental do autor textual/narrador em torno duma mancheia de interesses

antropológicos e políticos.

De facto, um vector que tem muita força ao longo da obra é a reflexão

(metalinguística, metaliterária, meta-histórica, etc.) constantemente presente na

intromissão de um narrador que opina sobre a palavra e o conhecimento, a verdade

e a mentira, os acontecimentos e as personagens, ou que especula sobre o trágico e


o cómico, ou que se pronuncia sobre a própria arquitectura da obra, etc. Um forte

sabor de ensaio vai-se assim instaurando. É mais um caminho discursivo que

amplia, numa perspectiva aparentemente desconstrutivista, a polivalência de um

universo de sentido que se quer insolitamente construído.

Tal não parece suficiente para considerarmos esta obra prevalecentemente

ensaística e não narrativa (entre ficcional e historiográfica). Porém a assiduidade e

o carácter ostensivo que assumem, nessa narrativa em princípio heterodiegética, as

intrusões do narrador em registo de discurso abstracto e as consequentes

digressões, parecem pelo menos justificar que encaremos Vida de Sebastião Rei de

Portugal na perspectiva genologicamente híbrida do romance-ensaio, neste caso

centrado num problemática e orientado por um pensamento que têm também

genealogia híbrida (de que surgem sinais esparsos ao longo do texto).

Estamos, na verdade, perante um romance-ensaio que retoma uma temática

cara a correntes tradicionalistas - a identidade nacional e o papel precursor da

Nação portuguesa no devir da História humana -, mas para a reequacionar numa

óptica ao mesmo tempo documental e especulativa, crítica e mítica.

Estamos, enfim, perante um romance-ensaio que visa tanto o reencontro de

Portugal com o seu ser profundo, quanto (de certo modo na linha de projectos

libertários) o entendimento dessa sua ontologia como missão de mediador para o

advento de um novo ecumenismo cultural (osmose de religiões, de raças, de

padrões axiológicos e éticos, de costumes e artes, etc.) e de uma nova forma de a

Humanidade estar no mundo (uma nova ordem internacional, já não ditada por

conflitos de Poder, mas por harmonias de Amor).


49

3. A intersecção de códigos de subgéneros

Ao hibridismo de vectores de géneros vem Vida de Sebastião Rei de

Portugal juntar o hibridismo de vectores de sub-géneros. A obra tem cruzamentos

múltiplos de programas sub-genéricos.

Apresenta, desde logo, elementos e artifícios de romance histórico...

ironicamente, ou ludicamente, ou suicidariamente, cioso de fundamentar o seu

valor documental e testemunhal. Se em Memória de Inês de Castro, como ficou

aludido no introdutório Capítulo I, só avulta o minucioso deslindar dos meandros

da história político-militar das cortes e dos reinos peninsulares, em Vida de

Sebastião Rei de Portugal proliferam os processos de fundamentação referencial:

ressalta a indicação profusa e meticulosa das fontes, chegando mesmo a sua

enumeração sistemática a constituir-se em apêndice na parte final do romance; as

notas de rodapé surgem para dar aparente certificação ao que se diz do

protagonista; a indicação de datas, contrastante pela precisão com o tom do

discurso, surge aqui e além; no próprio texto do romance são referidos autores

conectados com a pesquisa documental e com a ciência historiográfica (antiga e

contemporânea) - tais como: D. João de Castro, Jorge Ferreira de Vasconcelos,

José Pereira Baião, Aleixo de Meneses, Barbosa Machado, Sales Loureiro; o

próprio nome do último capítulo, Notas sobre o Encoberto, e a sua estrutura têm

um inegável sabor histórico.


No entanto, nem sequer se pode afirmar seguramente que a diegese se situa

em épocas remotas: para além, como veremos, de estar sujeita a múltiplas e

inverosímeis subversões, ela arranca de uma figura que tem séculos, mas a

construção mítica torna essa figura atemporal (D. Sebastião como que reincarna

no desejo obsessivo do narrador de querer galvanizar o sentir e o agir nacionais do

presente!...), em contraste com o que indiciariam as características apontadas, a

que poderíamos ainda juntar pequenos pormenores elucidativos - como quando a

narrativa, retomando a tópica e o imaginário consagrados pela ficção historicista,

fala das ruínas, das madeiras apodrecidas e do testamento na parte final (neste

caso, à maneira de Eurico, o Presbítero de Herculano).

Subsidiariamente, a recriação dúplice do protagonista como «santo» e

como «herói» conduzirá a que passos discontínuos de Vida de Sebastião Rei de

Portugal se conexionem como actualização paródica do esquema quer da narrativa

hagiográfica, quer da novela de Cavalaria.18

Também do romance psicológico nos lembramos em determinados

momentos quando o fluxo da corrente da consciência se derrama, como se de

monólogo interior se tratasse.

Aspectos de romance passional são, por seu turno, introduzidos na

narrativa, no capítulo referente à ligação amorosa dos pais de Sebastião, e que é

marcada pela fatalidade, pois ambos praticamente desapareceram depois do

(18) - Cf. Lucette Valensi, Fables de la Mémoire - La glorieuse bataille des trois rois. Paris, Seuil, 1992,
pp. 202-204, e Isabel Pires de Lima, op. cit., p. 67.
51

nascimento de Sebastião. Esse capítulo, que é o primeiro, tem o nome de Amor. Aí

se afirma: «a história de amor de ambos é tão trágica e tão bela como a de Inês de

Castro e a de Pedro [...] João e Joana são como dois irmãos que se reconhecem

um ao outro, não tanto pelo que lhes é comum, mas muito mais pelo que lhes é

diferente [...] João é o masculino de Joana como Joana é literalmente o feminimo

de João [...] o encontro dos dois irmãos [é] como uma das imagens privilegiadas

da totalidade [...] João quando viu Joana apaixonou-se [...] João é entre nós, na

nossa história, uma das melhores personificações de Eros [...] há entre João e

Joana um jogo amoroso muito profundo [...] a necessidade de ambos estarem

juntos é demasiado forte [...] João atravessa corredores subterrâneos para poder

ter Joana nos braços [...] João morre de sede». 19

Além disso, poderemos dizer que algo no universo diegético do romance

nos faz lembrar o romance picaresco, embora a nível de composição tudo se passe

de uma outra maneira: é que as aventuras narradas são as de um outro, as do bufão

Sebastião, e dos seus amigos, embora em determinados momentos estas surjam

misturadas com as do próprio narrador omnisciente e, então, autodiegético, mas

distanciado (trata-se, como veremos, de encontros com as desconcertantes

reincarnações de Sebastião ou simplesmente com as personagens que miticamente

emergem num quotidiano baço e anódino).

Na conformação induzida do horizonte de expectativas do leitor, junto à

hipótese de romance picaresco surge a de um imbricado e dúplice romance de

(19) - A. Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, pp. 19, 22, 25, 27, 29.
formação, se se puser o acento no processo de construção e consolidação de um

ser, que progressivamente se vai afirmando cultural, psicológica e socialmente, e

de um outro eu, o do narrador, que persegue a procura de uma identidade pessoal

e colectiva. No primeiro caso, é elucidativo o capítulo III, «O Menino», em que os

aios do rei cumprem a sua função educativa; ou o capítulo IV, «Teoria de

tragédia», em que o processo de maturação do jovem adolescente passa pelos

encontros empáticos com o ovelheiro, o eremita, os saltimbancos, e pela

convivência com os seus amigos (filho do duque de Aveiro, filho do Conde de

Vimioso, Francisco de Portugal, filho do Senhor de Vagos e Cristóvão Távora).

Este desenrolar do processo de maturação de personagem lembra-nos sem dúvida

itinerários de formação. De resto, a própria carga culturalista de todo um passado

está presente e torna-se enfática sublinhando o conhecimento de uma tradição.

Por seu turno, o discurso heróico, de tons épicos, parece presente algumas

vezes. O herói tem grandiosidade e tem marcas de excepcionalidade; mas laivos de

loucura risível conotam de farsa ou de grotesco as próprias virtualidades de

narrativa epicizante.

De toda esta multiplicidade já se retirariam sentidos que profetizam

orientações de um futuro incerto. Só que a esta plurívoca estrutura do discurso

ainda se vem juntar uma voz que ri e uma voz que reflecte metalinguisticamente no

trágico, no cómico, no verdadeiro, no verosímil.

Entretanto, Vida de Sebastião Rei de Portugal vem reavivar, com seus

elementos paródicos e lúdicos, que o problema do riso é, no discurso das

modernidades, um problema sério Em O Nome da Rosa de Umberto Eco, o


53

invocado 'Tratado do riso' de Aristóteles é motivo para vários assassinatos; a sua

importância era tão decisiva que ele não só era temido como drasticamente

escondido. «O riso é próprio do Homem, é sinal da sua racionalidade, traduz

dúvida», como em certo momento afirma uma personagem do romance já citado.20

Ora, se é da introdução da atitude da dúvida e da atitude de questionação que

muitos perigos provêm, quando essa dúvida vem pela via do riso os perigos são

maiores ainda. O riso - um riso com essas potenciais implicações - parece estar na

obra de António Cândido Franco ligado à paródia e à actividade lúdica.

Surge assim um jogo de deformação muitas vezes angustiadamente cómico.

Este jogo burlesco, diferente da crítica e da polémica, é sempre, no dizer de S.

Galopentia Eretescu, um acto de dupla comunicação literária, de desconstrução

feita de mimetismo e deslocamento visando ora uma figura histórica ou literária,

ora as convenções de uma corrente ou de um género. A paródia pode mesmo

questionar um estatuto de escritor ou uma configuração epocal da literatura. A

relação paródica não é unilinear, é sempre pluralmente constituída e tem objectivos

vários que vão desde a canonização até à desmitificação, da dessagração malévola

ao puro jeu littéraire. A relação paródica é, pois, um misto de sátira e de apreço,

de choque e de sedução, de confronto e de identificação - como na obra de

(20) - Umberto Eco, O Nome da Rosa. Lisboa, Difel, 1980, p. 128.


(21)- Cf. Sanda Galopentia-Eretescu, «Grammaire de la parodie», in Cahiers de linguistique théorique et
appliquée, 1969, VI, p. 171.
(22) - Cf. Nella Gianeto, «Rassegna sulla parodia nella letteratura», in Lettere Italiane, 1977, XXLX, 4,
PP. 469-471; e, de um modo geral, Linda Hutcheon, A theory of parody., New York, Methuen, 1985 (éd.
port: Uma Teoria da Parodia. Lisboa, Edições 70, 1989).
Cândido Franco se verifica em relação à figura histórica do rei

Desejado/Encoberto, em relação ao paradigma da ficção historicista e ao

paradigma do romance-ensaio.

O constante desdobramento irónico a nível do discurso narrativo, que é

repetidamente usado neste romance, aumenta a pluralidade significativa em

sentidos sem conta. O louco ri porque perscruta o insondável, apreende o sentido

profundo e contraditório das coisas e dos seres, subverte os padrões prévios,

infringe a doxa. O louco que ri é sábio. No livro que analisamos o sábio é a

criança, o palhaço, o anão da fábula, o saltimbanco. «Sebastião, para ser

entendido, precisa de ser visto como um bufão», o bufão que vai de guitarra e

espada de papel para Alcácer-Quibir. Para o narrador, «um palhaço só nos provoca

o riso porque lhe aconteceu as piores desgraças e Sebastião é uma espécie de

palhaço da nossa história». Por isso, o desinibido demiurgo de Vida de Sebastião

Rei de Portugal assevera: «escrevia mais depressa as aventuras

cómico-maravilhosas do rei Sebastião para as crianças lerem, que um ensaio muito

académico sobre o seu reinado [...] Acho que as crianças de um jardim-escola

comprendem melhor o rei Sebastião que a Academia das Ciências de Lisboa

t...]»23. E curiosamente a criança gosta de jogar, tal como as personae já

apontadas.

Sebastião goza desta multiplicidade, gosta de jogar, de rir, de sonhar, como

(23) - A. Cândido Franco, op. cit., pp. 14, 16.


55

aliás os seus enamorados progenitores.24 A espada de papelão que usa, os milhares

de guitarras que fez levar para a batalha e o dourado das roupas que usara em

Alcácer Quibir traduzem o grau de loucura do sábio jovem rei. Aliás, aqui como

em outras vertentes da obra, um mesmo valor marca as formas de conteúdo e as

formas de expressão. Trata-se do ludismo que se afigura já indissociável da

manipulação culturalista.

Pelo distanciamento e descentramento de cada um perante si mesmo,

atinge-se uma visão polifacetada, que quer propiciar um renascer, um refazer. Se

com a ironia há distanciação e desvalorização do objecto, com a meta-ironia

damo-nos conta do seu processo de funcionamento. E são os aspectos processuais

da movimentação típica de mudança que cativam um narrador que se sente em

busca da identidade própria e até colectiva.

O narrador afirma em determinada altura: «A figura mais trágica é aquela

de quem mais me rio» [...] «se isto não é verdade não faz mal nenhum que a

mentira é muito mais poética que a verdade. A mentira é trágica como a verdade é

só histórica...». E que falta à verdade histórica uma dimensão decisiva, a

possibilidade de imaginar, fingir, jogar.

Não podemos deixar de reter e de valorizar o remate desta obra narrativa

de António Cândido Franco: ela acaba com a inscrição da quadra e da data de

(24) - Cf. ibidem, p. 27 («João quando viu Joana apaixonou-se e pôs-se a fazer disparates. O amor é louco
e gosta é de rir»).
(25) -Idem, ibidem, pp. 15,16,17,18.
56

produção - «Domingo de Carnaval de 1991» - como que vindo convocar

derradeiramente o leitor para a promoção retrospectiva dos muitos elementos

paródicos, dispersos ao longo da construção da narrativa e que, de algum modo,

inscrevem essa obra naquela tendência que Bakhtine teorizou como a própria

carnavalização da literatura.

4. Abertura final

A estética da pluralidade e da surpresa, sob a paixão crítica, leva a que, no

dizer de Octávio Paz,27 a modernidade seja uma espécie de autodestruição

criadora.

Ora, o confronto com a intrincada intencionalidade de desconstrução e

metamorfose do discurso narrativo em Vida de Sebastião Rei de Portugal faz-nos

reavaliar como a nossa civilização já passou pela crença nos deuses, pela sedução

da Razão e das ideologias, mas também pela "morte de Deus" e pela descrença no

Progresso.

Seguindo ensaístas como Linda Hutcheon e Elisabeth Wesseling, pode

afirmar-se que a utilização do passado no discurso narrativo visa a invenção de

outras versões da História. É a possibilidade kunderiana de assim se introduzir

todo um potencial utópico e consequentemente ucrónico. A noção de falsificação

(26) - Idem, ibidem, p. 206.


(27) - Cf. Los hijos dei limo. Del romanticismo à la vanguardia. Barcelona, Seix Barrai, 1985.
57

da história desaparece, pois há toda uma estratégia de construção ficcional do

passado, com irónica aparência de ahistórica e de apolítica. É a tácita

subjectivização e transcendentalização da História. As estruturas transhistóricas e

arquetípicas surgem no discurso narrativo, solicitando o reconhecimento do velho

no novo, do típico no individual.

Nas sociedades míticas o arquétipo temporal, o modelo do presente e do

futuro, é o passado - passado memorial na origem das origens. A vida social não

devem como história, mas realiza-se em ritual. Ora, para nós o tempo é mudança e

o remédio contra a mudança é a recorrência. O futuro pode querer-se fim de

tempo e recomeço. Por isso o fim de século (o nosso e o do autor estudado) busca

a recognição do passado original.

Marcada por Heidegger, a poética alia-se à ontologia e à antropologia,

quando o indivíduo já não se vê definido como globalidade ético-psicológica

coerente. Esta crise da pessoa humana - influência da psicanálise ou da psicologia

das profundezas - é consequência e reflexo da crise ideológica, ética e política, que

corrói a sociedade ocidental contemporânea. Por isso, essa sociedade (a nossa e a

do autor estudado) tem de instalar um espanto recriador no seu logocentrismo

típico.

Ao mesmo tempo, assume-se que a palavra dinâmica, gera conhecimento

(tanto pessoal quanto colectivo) e é transformadora. Por isso, numa obra ficcional

de tom mítico, ela procura não deixar aprisionar-se por categorias arquitextuais

castradoras, mas tradicionalmente aceites pelo romance. Para se entender o que é,

em Cândido Franco, a palavra e a poética convirá recorrer à sua obra ensaística


Teoria e Palavra, e lermos o que aí é dito: «A teoria é o pensamento, essa

irrealidade real, impossível de subsistir por si, enquanto que a palavra é a

materialidade mesma, a realidade com qualquer coisa de irreal, também ela em

última instância impossibilitada de subsistir por si mesma [...] A relação da teoria

com a palavra é assim a relação que se estabelece [...jentre a letra e o pensamento

[...] um não uma coisa a um nome, mas um conceito a um som [...]. Todo o som

cria um sentido [e] a passagem do som ao sentido é um acto poético»28.

Esta palavra, que vive da descoberta de sentidos entre o emissor e o

receptor, é regeneradora. Por isso, no texto da conferência atrás indicado, é dito:

«A reconquista do Paraíso, única que interessa reter, começa com o momento em

que as palavras parecem alterar a natureza ontologicamente degradada do mundo,

incorporando em si as coisas. A magia inicia assim aquilo que só a poesia

finaliza.».29 Mas, se se quer que a palavra se torne primigénia, ela tem de ser

arrancada ao seu contexto habitual no acto de reinvenção. Veja-se no mesmo

texto: «Há um momento na vida em que nos sentimos como que

descontextualizados em relação a tudo que nos rodeia. A necessidade de

interrogação e até de reconstrução [...] nasce desse desfasamento. Há também um

momento, em tudo idêntico a este, em que o texto perde todas as suas referências

possíveis, além de perder toda a sua convencionalidade de sentido o que não

(28) -António Cândido Franco, Teoria e Palavra. Lisboa, Átrio, 1991, p. 9, 10, 11.
(29) - Idem, ibidem, p. 16.
59

significa [...] perder todo o significado». Por outro lado «é pela aptidão que o

homem tem de criar com as palavras um sobremundo [...] que o homem se torna

ao anoitecer, quando se ouve o pássaro de Minerva, um criador».30

Finalmente, o confronto teórico-crítico com o texto Vida de Sebastião Rei

de Portugal não deve decerto processar-se no alheamento de mais estas

considerações do seu autor: «[...] a situação da teoria da palavra [é] uma situação

carnavalesca, muitas vezes de puro gozo, que nada tem a ver com o aparato do

empirismo científico das construções de outras áreas vizinhas».31

(30) - Idem, ibidem, pp. 19, 20.


(31) - Idem, ibidem, p. 62.
60

CAPÍTULO III

CONTAR DE NOVO E/OU CONHECER

1. De novo «Era uma vez...»

Gradativamente, a segunda metade do século XX vem a revelar-se como uma

época em que os criadores literários perdem o medo de voltar a contar

acontecimentos. Depois de todas as aventuras de fragmentação, desordenação e

estranhização vividas até que um Vergílio Ferreira pudesse estatuir algures que «quem

conta histórias são as velhinhas» - num trajecto que, entre nós, vinha desde o

paroxismo expressionista de Raul Brandão, a novela fantástica de Sá-Carneiro e a

narrativa interseccionista de Almada até Ruben A. e ao romance problemático e lírico

do mesmo Vergílio Ferreira -, damo-nos conta que a sintagmática diegética está de

volta. Quererá isto dizer que a narrativa recuperou as características anteriores a todas

as metamorfoses de crise que desembocaram no nouveau romani


61

Importa, antes de mais, lembrar que já com os surrealistas, o modelo ficcional

oriundo do Realismo passara a ser entendido como forma muito imperfeita de atingir a

totalidade do real, bastante mais complexo do que esse estilo epocal oitocentista

pretendia.

Verdadeiramente, os representantes do Surrealismo defendiam que o real é

sempre inatingível pelo conhecimento empírico ou sensório-racional. Ao real profundo

e verdadeiramente significativo chega-se através das projecções fantasmáticas do

sujeito.1 Por essa razão* a abertura a todas as forças instintivas, a todas as pulsões, é

aceite e requerida sem constrangimentos.

Estas considerações voltam hoje não só a ter acolhimento, como ainda são

defendidas e publicitadas. Nesta época em que claudica ou se indefine a confiança na

Razão, no Progresso e nas ideologias, em que a ausência angustiante de um je ne sais

quoi, quem sabe o Transcendente, é traço marcante, e em que um individualismo feroz

se apodera de tudo, o criador literário, no seu trabalho de efabulação, afirma-se como

aquele que, partindo do subliminar, ou da submersa memória, quer colectiva, quer

individual, é ainda capaz de, pela linguagem, reconstruir o mundo e dar vida ao mais

insondável do Homem.

Logo, volta-se a contar, sim, na narrativa actual; mas não dentro dos

parâmetros vigentes nos modelos ficcionais herdados do século XIX. A própria

concepção de modo narrativo, com as categorias de tempo, espaço, personagens e

(1) - Cf. Ferreira de Brito, Requiem pelas vanguardas do século XX (A propósito de Les Samouraïs, de
Kristeva), Separata da Revista Intercâmbio, Instituto de Estudos Franceses da Universidade do Porto
1992.
62

narrador, alterou-se. Os géneros misturam-se; e o contar do ontem junta-se

indiscriminadamente ao desejo (e àfiguraçãodiscursiva) do que deve ser o hoje e o

amanhã - num mesmo projecto, dúplice mas inextricável, de conhecimentos na/pela

experiência estético-literária.

2. Literatura e conhecimento

O entendimento da literatura como meio privilegiado de conhecimento não é de

hoje. Bem ao contrário, desde a Antiga Grécia que a literatura ocidental se nos

apresenta até como antecipação divinatória de descobertas científicas posteriores e

como fonte de revelações (ou de catástrofes, na acepção de René Thorn) que têm a ver

com o aprofundamento e mesmo a crise de paradigmas cognitivos.

Na sequência desta aventura bimilenária - em que a intuição imaginativa e

simbólica se une à autognose e à psicologia das profundezas, - merece agora destaque

a tentativa de reconstrução de mundos que arrancam da memória de uma tradição e de

uma história em que se vão inscrevendo, muitas vezes ironicamente, acontecimentos

extraordinários e inesperados, que só se entendem numa fuga desesperada à

linearidade positivista que massacrou gerações anteriores, e numa busca incessante de

soluções mais gratificantes.

Este poder conferido à criaçãoficcionalvem ao encontro de uma descoberta

curiosa, e agora difundida por António Damásio, de que «certos aspectos do processo

da emoção e do sentimento são indispensáveis para a racionalidade. No que têm de

melhor, os sentimentos encaminham-nos na direcção correcta, levam-nos para o lugar


63

apropriado do espaço de tomada de decisão onde podemos tirar partido dos

instrumentos de lógica».2 Mais uma vez, não só a primazia da inteligência emocional,

mas também a parte nocturna da nossa existência - sonhos, aspirações,

pressentimentos, intuições, delírios, fantasmas, quimeras, manifestações irracionais -

despertam maior interesse, porque de novo se crê que é daí que as grandes

alternativas/revelações terão de surgir.

Não esqueçamos, aliás, que os sentidos do mistério e do sagrado se

aprofundam em períodos de confusão e dúvida. Daí também a pertinência de um

intermitente vector de fantástico nas narrativas de António Cândido Franco.

É em períodos onde reina uma atmosfera mental como a que hoje envolve a

literatura ocidental, que mais avulta quanto, para muitos, o humano sofre amplo

domínio do misterioso. «Peur et désir» alimentam a ânsia do Homem de ir mais além.3

E dentro desta perspectiva que, como Valéry já ponderava, «Le faux et le merveilleux

sont plus humains que l'homme vrai».4

Por outro lado, como Octávio Paz múltiplas vezes afirmara, o romancista

«recria um mundo» e «por isso recorre aos poderesrítmicosda linguagem e às virtudes

transmutadoras da imagem (...). Ritmo e exame de consciência, crítica e imagem, o

romance é ambíguo (...). Sua impureza brota da sua constante oscilação entre o

conceito e o mito...».5

(2) - António R. Damásio, O erro de Descartes.Emoção, razão e cérebro humano. Lisboa, Europa
América, 1995, p. 14. Veja-se ainda Daniel Goleman, Inteligência Emocional. Lisboa, Círculo de
Leitores, 1995.
(3) - Marcel Schneider, Histoire de la littérature fantastique en France, Paris. Fayard, 1985.
(4) - Paul Valéry, Cours de poétique. Paris, Gallimard, 1937.
(5) - Octávio Paz, O arco e a lira. Rio de Janeiro, Edições Nova Fronteira, 1982, p. 224.
Por conseguinte, após percurso já longo, o romance reafirma a sua vitalidade

cultural. Só que, enquanto hipercódigo resultante de articulada interacção de códigos,

o paradigma genológico do romance encontra-se sujeito ao processo de erosão e de

renovação próprio do sistema literário; e por isso, ele hoje não se cumpre a descrever

nem a examinar a realidade, nem sonda apenas a existência enquanto kunderiano

campo das possibilidades humanas e mundo da subconversação sarrautiana. Antes,

num discurso torrencial em que o lúdico e o culturalista se aliam, se deixa tentar por

uma estratégia de reconstrução simbólica, de aparente e hesitante referencialidade.

Os jogos de associação de pessoas, factos e lugares, os saltos lógicos próprios

do raciocínio abdutivo (à maneira de Sherlock Holmes, como diria Ch. S. Pierce) e a

sua coonestação por desenvoltas digressões sapienciais ou súmulas caracterizantes, são

constantes. A dimensão poética emerge também nesta narrativa pós-moderna. É que

poesia é «operação capaz de transformar o mundo (...) exercício espiritual, (...)

método de libertação interior. A poesia revela este mundo, cria outro (...) sublimação,

compensação, condensação do inconsciente», no dizer de Octávio Paz.6

Com todos estes poderes activados da imaginação, do campo simbólico e do

campo associativo, o fio condutor da narrativa surge, em importantes autores

contemporâneos, preso à memória - uma memória ancestral, étnica e também pessoal.

Na evocação constante do narrador, o histórico foraece-lhe as raízes profundas que,

afinal, lhe possibilitam as mais inesperadas ou inverosímeis efabulações e fantasias -

num regime, já atrás identificado, de subjectivização e de transcendentalização da

(6) - Octávio Paz, op. cit., p. 15.


65

História. Por isso, um dos veios mais emergentes (e mais fecundos) da narrativa

pós-moderna é sem dúvida, como confirma a obra de António Cândido Franco, o do

récit (neo-)histórico - forma notável de conhecimento não tanto do que terá sido

quanto do que poderia ter sido.7

3. História e ficção na narrativa contemporânea

Nesta segunda metade do século XX, a narrativa continua a fírmar-se como

representação literária orientada pela condição histórica do Homem, no desenrolar do

seu devir. «História eficção»- no dizer de Paul Ricoeur - «referem-se ambas à acção

humana, embora o façam na base de duas pretensões referenciais diferentes...»8: num

caso, de acordo com as regras da evidência e da requerida monovalência típicas de

todo o corpo da ciência; noutro caso, de acordo com intuitos estéticos e com regras

convencionadamente polivalentes.9

É verdade que, se a base de referencialidade historiográfica sempre teve

importância no romance histórico, nele mesmo a efabulação não se revelara já menos


10
importante ao longo do século XIX. Desde então os universos ficcionais e

(7) - Cf. Earl Miner, «That Literature Is a Kind of Knowledge», in Critical Inquiry, Vol. 2, N° 3, Spring
1976, pp. 487-518, e Edmond Cros, Literatura, Ideologia y Sociedad. Madrid, Gredos, 1986.
(8) - Paul Ricoeur, «Pour une théorie du discours narratif», in D. Tiffeneau (ed.), La narrativité. Paris,
C.N.R.S., 1980, pp. 3-68.
(9) - Para uma visão matizada das similitudes e disparidades entre narrativa historiográfica e narrativa de
ficção, pode ver-se: Hayden White, Metahistory: The historical imagination in nineteenth-century Europe.
Baltimore and London, The Johns Hopkins Univ. Press, 1973; idem, Tropics of discourse. Baltimore and
London, The Johns Hopkins Univ. Press, 1978; Paul Ricoeur, Temps et récit. Paris, Seuil, Vol. I, 1983,
Vol. II, 1984, Vol. JH, 1985; Hayden White, The content of the form, éd. cit.; G. Genette, «Récit
fictionnel, récit factuel», in Fiction et diction. Paris, Seuil, 1991.
(10) - Veja-se a obra atrás citada de Michel Vanoosthuyse, Le Roman Historique.
66

referenciais têm coexistido nesse tipo de narrativa, se bem que a reconstrução histórica

tenha vindo a perder importância e a componente efabulatória tenha vindo a adquirir

um peso cada vez maior à medida que tem encontrado maior legitimação

teórico-literária e pragmático-cultural. u Nesse sentido, Maria de Fátima Marinho pode

evocar considerações de escritores oitocentistas como Manzoni e de ensaístas

contemporâneos como Roudat, Lukacs e A. N. Wilson que evidenciam uma crescente

perspectivação crítica.12

Não surpreenderá, pois, que hoje um cultor da ficção de aparência historicista

- justamente António Cândido Franco - chegue a afirmar, quando se desdobra em

ensaísta de Teoria da Palavra, que «Acreditar no poder criador da mente do homem

não é só acreditar na acção real da mentira, é saber que só pela mentira o homem pode

cooperar criativamente com a verdade [...] A mentira é que alimenta a memória. Só

pela mentira é que o homem recorda e não esquece.»13

3.1. A tradição do romance histórico e o seu sobredeterminado

relançamento

A narrativa, enquanto modo literário, não pode ser alheia às inflexões dos

vários movimentos literários, nem às transformações e preocupações globais,

(11) - Cf., entre outros, Isabel Roman, «La organization enunciativa de la novela histórica» in Discurso,
N°2, 1988, p. 119.
(12) - Maria de Fátima Marinho, O romance histórico de Alexandre Herculano, Porto, 1992 (sep. de
Línguas e Literaturas, Revista da Faculdade de Letras, II série, Vol. LX), pp. 98, 99.
(13) - António Cândido Franco, Teoria e Palavra, p. 27.
67

ideológicas ou filosóficas, que àqueles subjazem. É, pois, natural que a narrativa

evolua e reflicta as grandes questões de cada época.

Ora, nesta perspectiva, há que reconhecer e valorizar mais uma vez o

interesse que pelo passado nacional se torna hoje bem notório - não como facto

inédito, mas como relançamento de uma tendência oitocentista. Com efeito, o

interesse pela História e, em especial, pela Idade Média, era elemento constitutivo

da estética romântica, realizado sobretudo no drama e na narrativa historicistas.

O cânone do romance histórico, tal como o estabeleceu Herculano em nota

da revista Panorama, aponta para a revivescência da poesia nacional e popular,

para a representação da vida íntima das épocas passadas e para a ressurreição

estética da vida social da época histórica em que decorre a acção novelística,

expressando o modo de sentir e de existir do Povo (isto é, de uma nacionalidade,

conduzida pelo seu Volksgeist) u. Este cânone é, aliás, o que se pode deduzir da

leitura dos romances de Scott.

A narrativa histórica, inicialmente, obrigava à colocação da diegese em

épocas históricas remotas, à utilização de estratégias narrativas capazes de

reconstituírem com minúcia ambientes e lugares, e, ainda, à colocação das figuras

referenciais muitas vezes em segundo plano, não só para protecção da imagem

dessas mesmas personalidades como para facilitar a liberdade do escritor, na sua

(14) - Cf. Castelo Branco Chaves, O romance histórico no romantismo português. Lisboa, I.C.L.P., 1979.
68

tarefa criativa.15

«Aquela mania que [...] se apoderou de nossos autores de chamar as

personagens de romances e melodramas de Carlos Magno, Francisco I ou

Henrique IV...»16 era uma 'mania' elucidativa dos interesses e gostos daquele

momento histórico.

Se em quase todas as épocas da História se cria uma utopia, geralmente

prospectiva, verificamos que, curiosamente, a utopia romântica tem a

particularidade de se projectar sobre o passado, de aparecer afinal como utopia

retrospectiva - embora visasse antes ser genuinamente refontalizante, mas não

menos interventiva. Querendo-a compensação ou factor de reconversão das

realidades presentes, os românticos, antes de a colocarem no futuro, fizeram-na,

originalmente, atravessar o passado.

A busca de uma identidade nacional, abalada pelas convulsões

sócio-políticas dos fins do século XVIII e inícios do século XIX, provocou um

revisitar da Idade Média no intuito de encontrar, nessa época de formação das

nacionalidades europeias, os fundamentos de soluções para os problemas coevos.

Idênticas razões explicarão hoje a emergência pujante do romance ou da


IT
novelística histoncista.

(15) - Cf. G. Lukács, Le roman historique, Paris, Payot, 1965. Sobre este paradigma e sua realização
oitocentista, veja-se, além do estudo citado de Maria de Fátima Marinho, a obra de Harry E. Shaw, The
Forms of Historical Fiction - Sir Walter Scott and his Successors, 2" ed. Ithaca/London, Cornell
University Press, 1985.
(16) - Alfred de Musset, «Cartas de Dupuis a Cartonei», apud Luzia Lobo, Teorias poéticas do
Romantismo. Porto Alegre, 1987; Jacques Leenhardt, «A construção da identidade pessoal e social através
da história e da literatura», in J. Leenhardt e Sandra J. Pesavento (orgs.), Discurso Histórico e Narrativa
Literária. Campinas, Editora da UNICAMP, 1998, p. 41.
(17) - Cf. Adriana Alves de Paula Martins, História e Ficção - Um diálogo. Lisboa, Fim de Século Ed.,
1994, pp. 17-21; Maria de Fátima Marinho, «O romance histórico pós-moderno em Portugal», in Actas do
Quinto Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, Oxford/Coimbra, 1998, pp. 1011-1021.
Já em ensaio de 1977 ponderava argutamente Álvaro Manuel Machado,

como que adivinhando o seu crescendo nas décadas de oitenta e de noventa:

«Assim, se tentarmos analisar com imparcialidade crítica a criação literária em

Portugal pós-25 de Abril, chegamos rapidamente à conclusão de que cada era nova

se contempla no espelho imaginário da sua própria história. É essa uma procura

essencial de identidade. Eis a razão por que os temas da revolução republicana de

1910 ou o da revolução liberal de 1820 ou o da revolução de 1383 ou ainda o

tema longínquo, mas omnipresente na sua essência mítica, das Descobertas, ou até

o tema da fundação de Portugal estão a surgir frequentemente em romances,

novelas, poemas, teatro, ensaios literários ou de história, mesmo quando

conjugados com o testemunho imediato.».18

Por um lado, é pois um problema de reequacionação de identidade que

poderá explicar o relançamento actual da narrativa histórica, não só

quantitativamente mais relevante, mas também redireccionada. Na verdade,

enquanto até aos anos sessenta a ficção de inspiração histórica (narrativa ou

dramática) visava, como no modelo romântico, a intervenção de certa literatura

politicamente engagée (Sttau Monteiro, Cardoso Pires, Bernardo Santareno...)

através da transposição de questões de actualidade para situações e agentes de

tempos passados, agora a ficção historicista, com a subversão daquele modelo,

(18) - Álvaro Manuel Machado, A novelística portuguesa contemporânea. Lisboa, ICLP, 1977, pp. 88-89.
70

visa outras formas de conhecimento e uma nova reflexão sobre a identidade

nacional e sua incorporação na história da Humanidade.

Quer as obras ensaísticas - que vão desde a perspectiva sociológica

pós-marxista de um Boaventura Sousa Santos sobre um Portugal que

(pretensamente) «não tem destino»19 até às perspectivas mais matizadas de

Eduardo Lourenço na sua psicanálise mítica do imaginário nacional e da

inquietação ontológica de Portugal como Destino™, ou às perspectivas mais

mitófilas e etnocêntricas de um Agostinho da Silva21, ou à ontologia de Portugal

desenvolvida por António Quadros nos parâmetros mentais da «filosofia

portuguesa»22 -, quer em obras de carácter ficcional (José Saramago, Agustina

Bessa Luís, J. Cardoso Pires, Almeida Faria, Mário Cláudio e, entre outros, A.

Cândido Franco), verificamos que o problema nacional de desterritorialização

(consumado em '74 com o 25 de Abril) e de reterritorialização (ainda em curso,

com a integração numa Europa com quem vivemos de costas voltadas tantos

séculos) nos tem vindo a causar trauma profundo, para o qual ainda não

conseguimos superação.

Por outro lado, como ressalta por exemplo na narrativa de Mário de

(19) - Esta é uma das teses anti-tradicionalistas de Boaventura de Sousa Santos em Pela mão de Alice. O
social e o politico na pósmodernidade. Porto, Afrontamento, 1994.
(20) - Eduardo Lourenço, Labirinto da Saudade, Lisboa, Dom Quixote, 1978; idem, Nós e a Europa ou as
duas razões, 3" ed., Lisboa, INCM, 1990; idem, Portugal como Destino. Lisboa, Gradiva, 1999.
(21) - Agostinho da Silva, Considerações e outros textos. Lisboa, Assírio & Alvim, 1988.
(22) -António Quadros, Portugal, Razão e Mistério, 2 Vols., Lisboa, Guimarães Ed., 1986 e 1987; idem,
A ideia de Portugal na literatura portuguesa nos últimos cem anos. Lisboa, Fundação Lusíada, 1989. Cf.
também, entre outros, António Telmo, História Secreta de Portugal. Lisboa, Ed. Vega, 1977; idem,
Gramática Secreta da Língua Portuguesa. Lisboa, Guimarães Ed., 1981; idem, O Horóscopo de Portugal.
Lisboa, Guimarães, Ed., 1997.
71

Carvalho , têm actuado novas cumplicidades genológicas numa idêntica ambição

discurso historiográfico, por oposição ao discurso literário, era considerado

objectivamente referencial.

É certo que, por parte do leitor dos estudos de História e das criações de

Literatura, é diferente a atitude perante os dois discursos narrativos - pressupondo-se

na recepção do historiográfico que os referentes textuais são congruentes com os

factos do mundo empírico (natural e histórico) e que os enunciados transmitem

informação veraz e pertinente para a integração cognitiva e prática do leitor nesse

mundo empírico, e pressupondo-se na recepção do literário que essas regras

semântico-pragmáticas são suspensas e a mensagem só tem de responder, num regime

de referencialidade mediata e de ficcionalidade polivalente, a regras estéticas.24

Todavia, discurso (de relato) historiográfico e discurso (de ficção) literário

podem assumir aspectos bem comuns: são construções em linguagem verbal (mas no

fundo semioticamente heterogéneas) de tipo narrativo25 que estão na dependência

duma categoria temporal e que pressupõem selecção e organização daquilo que vai

constituir-se em centro da narração. É evidente que, ao seleccionar e organizar, o

historiador (tal como o escritor) está a fazer opções em que imparcialidade e

objectividade são impossíveis de pôr plenamente em prática com rasura das injunções

da sua própria historicidade e subjectividade; há critérios implícitos ou explícitos de

escolha que podem ter carácter ideológico ou outro.

(23) - Maria de Fátima Marinho, «O sentido da História em Mário de Carvalho», in Línguas e Literaturas,
Revista da Faculdade de Letras do Porto, Vol. XHI, 1992, pp. 257-267.
(24) - Cf. Siegfried Schmidt, La communicazione letteraria. Milano, il Saggiatore, 1983, pp. 57-88; idem,
Foundations for the empirical study of literature. Hamburg, Helmut Buste Verlage, 1982, pp. 49-55.
(25) -Cf. Jesus Garcia Jimenez, La imagen narrativa. Madrid, Editorial Paraminfo, 1995, pp. 93-94.
72

Afinal, enquanto (trans)linguísticos construtos humanos, ambas as narrativas -

relato historiográfico e ficção literária - não se distinguem claramente num horizonte

de plausibilidade; e, no horizonte interpretativo de hoje, o próprio leitor cada vez mais

aproxima as formas efectivas do real empírico e as formas virtuais do que poderia ter

sido - «mundos possíveis» historicamente irrealizados e literariamente viabilizáveis. A

verdade e a reelaboração da verdade quase se misturam; instalada a atitude de dúvida,

sobrevêm o processo de reflexão ideológica.

Aliás, como Nelly Novaes Coelho refere, uma nova atitude narrativa de teor

surrealista fez-se sentir em Portugal, surgindo assim uma nova visão no que diz

respeito à apreensão do real objectivo. Este deixa de ser apreendido como um

fenómeno estável e passa a ser entendido como um processo que precisa de ser

descoberto no seu devir pela imaginação criadora. A «palavra-depoimento» dá lugar à

«palavra-invenção» na redescoberta do real, promovendo ou gratificando a adesão à

ambiguidade.

Esta tendência desenvolve-se na década de sessenta e agudiza-se na de setenta,

até porque a própria revolução do 25 de Abril obriga à reorganização da nossa

auto-representação histórica. Na década de oitenta o diálogo entre História e ficção

agudiza-se; José Cardoso Pires e Augusto Abelaira introduzem uma nova fase naquele

diálogo; Almeida Faria e Saramago avivam a atitude de incerteza e levam à

pulverização da identificação do discurso da História como discurso do factual.

(26) - Cf. Nelly Novaes Coelho, «Linguagem e ambiguidade na ficção portuguesa contemporânea», in
Colóquio/Letras, N° 12, Março 1973, pp. 68-74, e Adriana Alves de Paula Martins, História e ficção -
Um diálogo. Lisboa, Fim de Século Ed., 1994, pp. 18-19.
73

Viajar nessa literatura é procurar encontro com outro ou outros de quem nada

conhecemos ou que embora conhecidos têm sempre algum recanto mais sombrio ou

insondado - sua face lunar (como no canto de Rui Veloso). É, em última instância,

encontrarmo-nos com algum eu nosso, também até aí meio obscurecido. Múltiplos eus,

múltiplos eles, múltiplos tempos e espaços, velho desejo infantil não confessado de

superiormente, fora do tempo, vaguear sem fronteiras, lançando um olhar indiscreto

(como o narrador de Jacques Tati que em Playtime destapa telhados) sobre o passado,

o presente e o futuro.

Esta curiosidade quase mórbida, movida por uma interrogação universal,

traduz a busca forte e incessante do ser individual e do ser nacional. Esta viagem pelos

imaginários do autor e do leitor, em que, pelo menos do ponto de vista das

expectativas, se cortam amarras com o real empírico, seduz profundamente sobretudo

quando os elos civilizacionais são cada vez mais sofisticadamente enleantes e

decepcionantes e a cidade tece em volta dos seus habitantes teia dia a dia mais

apertada.

O enorme poder que a linguagem e o discurso literário têm de criar mundos

ficcionais converte-se, pois, em alimento básico do solitário e desidealizado homem

finissecular. Este facto tem vindo a revelar-se excepcionalmente fecundo, quer do

ponto de vista individual, quer do ponto de vista social e até político. O sonho, o

idealizado, o projecto caminham sempre à frente, ou traçando caminhos ou

provocando desafiantes interrogações. É pois natural que, após a "morte de Deus", da

crise da crença no Progresso, nas ideologias e até na Razão, o Homem ensaie resolver
74

o puzzle que arquitectou arduamente, para assim fugir ao inevitável suicídio pessoal e

colectivo.

Se esta atitude é percepcionável em casos individuais, muito mais claro é o

mal-estar nacional de que as produções literárias em língua portuguesa desta década

são sinal. São múltiplas as publicações que mostram os portugueses como náufragos,

loucos, cegos, em rota da conquista territorial ou marítima da sua História. As

incoerências estratégicas de teor cultural e político dividem opinões e colocam

profundos problemas de identificação a nível da Nação. No que a tal concerne, há um

sentimento difuso de crise; e perante os discursos identitários (e os que em registo de

crítica sociológica os enfrentam) - frequentes, como já referimos, a nível do ensaio

filosófico, literário, histórico ou político, como a nível das criações literárias - o que

mais importa aqui pôr em destaque é o interesse que o tema parece despertar, na

ansiedade da inventariação de hipotéticas soluções para que os vazios sejam

preenchidos.

Género literário de relançamento assim plurimotivado, o romance histórico

actual cruza-se com outros géneros narrativos, num hibridismo tão conforme ao

gosto sociocultural da nossa época e da estética pós-moderna.27 Usa registos

diversificados, permite discursos vários, desvanecendo limites e barreiras numa

estética simultaneamente sedutora e assustadora pela abertura que a distingue. Se

para o Romantismo, dada a sua conhecida complexidade, Paul Valéry já afirmava

que para o definir ter-se-ia primeiro de perder a noção de rigor, hoje, neste

(27) - Linda Hutcheon, A Poetics of Posmodernism - History, Theory, Fiction. New York/London,
Routledge, 1988.
pós-modernismo finissecular mal conhecido, tentar explicar o mais recente estádio

evolutivo desse género tipicamente oriundo da época romântica implica também

atender, no plano da estruturação do discurso, à complexa fragmentação do eu, à

multifacetada zona obscura da pessoa, a todos os mecanismos de frustrações e

transferências pessoais ou colectivas que a psicanálise e outras ciências têm

cuidado de desvendar.

De resto, o romance histórico contemporâneo insere-se num momento da

evolução da mentalidade ocidental ao mesmo tempo agnóstica e religiosa,

materialista e ocultista, anarquista e revivalista, céptica e sequiosa de Absoluto,

irónica e passional - enfim, mais um dos periódicos «fins de tempos» de

ressonância bíblica, em busca de novas e adequadas soluções discursivas.

3.2. Para a compreensão da narrativa histórica pós-moderna

Género narrativo de larga projecção cultural, ao mesmo tempo com os

benefícios da popularidade e da atenção crítico-compositiva por parte dos seus

cultores, o romance, como de resto é consabido, tornou-se a partir dos finais do

século XVIII o mais importante dos géneros literários modernos. Particularmente

adequado para modelizar em registo ficcional os conflitos, as tensões e o devir do

Homem inscritos na História e na Sociedade, o romance revelou desde então

enorme capacidade de rejuvenescimento técnico e de renovação temática.

Fenómeno multiforme, num tempo em que se não justificam já constrições de

Poéticas (porque ele foi alicerçar a sua vitalidade exactamente a partir da época
76

em que tais constrições se desagregaram), o romance constituiu e permaneceu

género de difícil definição, mas simultaneamente de inigualáveis potencialidades

expressivas; e, por isso, nos nossos dias surge de novo privilegiadamente

posicionado para o equacionamento literário da crise deste fim-de-século.

Sobejamente entendemos agora que «o romance é uma resposta dada pelo

sujeito à sua situação na sociedade [...]. Essa resposta supõe uma operação textual

sobre o real que vem a ser assumido por uma narrativa que implica um ou vários

narradores».28

Daí que, quando se analisa uma narrativa que, pelas suas dimensões e pela

profundidade do universo diegético representado, solicita o nome de romance

(distinto de outras narrativas como o conto e a novela), uma das questões

fundamentais a estudar seja, antes de mais, a do estatuto da autoria e da

enunciação. Esta questão conduz naturalmente à das relações autor/narrador.

Ao instituir um narrador, que é uma entidade ficcional, o autor avança

opções que se traduzem em estratégias narrativas várias. A noção de estratégia

surge aliada à concepção de comunicação literária como prática de

linguagem-em-contexto. Segundo H. Parret, a ideia subjacente à caracterização da

rede de estratégias pragmáticas «está ligada a uma certa visão integrada e

dialectizante incorporando o homem, o seu mundo e o seu discurso.» W. Iser,

(28) - W. Krysinsky, «L'énonciation et la question du récit», in M. Arrivé e J. C. Cognet (eds.),


Sémiotique enjeu. Paris/Philadelphia, Hades-Benjamins, 1987.
(29) - H. Parret, «Les stratégies pragmatiques», in Communications, 32, 1980.
77

vendo o fenómeno literário como prática interactiva, diz serem as estratégias que

«organizam simultaneamente o material do texto e as condições em que ele deve

ser comunicado».30

Não esqueçamos, complementarmente, que o narrador é detentor de uma

voz, adopta uma situação narrativa, coloca-se em determinado nível narrativo e

configura o universo diegético que modaliza.

As estratégias narrativas, accionadas por esse sujeito de enunciação que é o

narrador, destinam-se a provocar junto do leitor (e nalguns casos do narratário)

certos efeitos de compreensão, de persuasão, etc. Para atingir os objectivos

perseguidos, o narrador opta por uma certa organização do tempo, pelo destaque

conferido a uma ou outra personagem, por cuidadosa tessitura de uma ou várias

perspectivas.

Se introduzirmos, ao lado destas noções, as instruções de U. Eco, que

julgamos operativas na análise de qualquer romance, para a actuação de um «leitor

modelo»31, creio termos circunscrito alguns dos aspectos que, sendo importantes

para a compreensão de qualquer obra de carácter narrativo, se revelam

especialmente oportunos perante as obras congéneres de António Cândido Franco.

Temos, porém, de levar em conta que, se o romance se tornou género de

difícil caracterização sobretudo após a anterior crise de fim-de-século , essa

(30) - W. Iser, The act of reading. A Theory of aesthetic response. Baltimore/London, The Johns Hopkins,
Univ. Press, 1980.
(31) - Cf. Umberto Eco, Leitura de Texto Literário. Lector in fabula. Lisboa, Editorial Presença, 1983,
pp. 53 segs.
(32) - M. Raimond, La crise du roman. Des lendemains du Naturalisme aux années vingt. Paris, Libraire
JoséCorti, 1965.
78

dificuldade de análise aumentou na sequência das inovações modernistas e das

roturas vanguardistas, e, mais recentemente, das experiências desconstrutivistas e

dos hibridismos genológicos promovidos pelo Pós-Modernismo e que têm vindo a

tornar mais complexa toda a sua estrutura ou a sua aparente desorganização -

quer no âmbito global de modo e género, quer especialmente na sua vertente de

inspiração histórica.

Partindo do século XIX,33 Elisabeth Wesseling procura analisar as

inovações verificadas no romance histórico do Pós-Modernismo (que para a

autora, mais não é que «a specific collection of contemporary litterary text») e pôr

o acento no que chama de «self-reflexive and uchronian variant».

O diálogo deficçãoe História parece ir por caminhos inesperados, desde que a

literatura pós-moderna simultaneamente «reinstalls historical contexts as significant

and even determining, but in so doing, it problematizes the entire notion of historical

knowledge»35. A atitude de auto-reflexão vai fazer misturar elementos históricos com

questões epistemológicas que dizem respeito à natureza e inteligibilidade da História; a

ficção de auto-reflexividade histórica não só representa o próprio passado, como a

problematização do presente na recriação do passado e na projecção do futuro; os

romancistas pós-modernos partem do romance histórico tradicional para

inventarem visões alternativas da História e para porem em evidência grupos que

(33) - Wesseling, no prefácio do seu marcante livro Writing history as a prophet (p. VU), afirma
explicitamente que «this book pays considerable attention to the classical ninetenth century model of the
historical novel, as well as to modernist innovations of the genre».
(34) - Idem, ibidem, p. VI.
(35) - Linda Hutcheon, op. cit., p.89.
79

na historiografia oficial têm sido relegados para situações de insignificância.

Assim, "What would have happened, if...?" é a estratégia necessária para

introduzir todo um potencial utópico que torna ucrónica a narrativa ficcional. E

evidente que estas opções narrativas têm implicações políticas iniludíveis,

sobretudo quando pensarmos que a História é reescrita na perspectiva dos "losers"

e expressa anseios emancipalistas. Por outro lado, a atitude descontrutivista mostra

como da desagregação real das categorias do género, de verdade, de poder e de saber,

poderá ressurgir uma nova articulação de conceitos e realidades.

O Pósmodernismo, que tem como uma das características o ocaso das

ideologias (ou o colapso no campo sociopolítico das grandes "narrativas"

ideológicas, na acepção de Lyotard), descontrói categorias de "gender, race" e

torna-se crítico perante as noções essencialistas e mineralizantes de verdade, de

saber e de poder. O Pósmodernismo elimina as grandes teorias em favor da

particularidade dos teóricos, explora as convenções linguísticas e literárias (um

objectivo ao serviço de uma outra exploração virada para a busca de um futuro de

contornos indefinidos), «manipula as categorias de narração e de focalização» ,

mostra o paradoxal, o caótico, o amorfo de uma realidade numa perspectiva só de

aparência antimimética. Torna central a questão da incerteza ontológica; suspende

a distinção entre facto e ficção; falsifica a História como estratégia de construção

ficcional do passado.

(36) - Cf. E. Wesseling, op. cit., pp. Vl-Vm, e Richard Pearce, "Enter the frame", Triquarterly, 1974, N°
30, pp. 71-82.
(37) - B. Uspensky, A poetics of composition. Berkeley, California, 1973.
80

Esta perspectiva pós-moderna insinua-se (em ironia utópica e ucrónica)

como não-referencial, ahistórica, apolítica; é auto-reflexiva na engenhosa

promoção de uma não inocente «presence of past»; é não-nostálgica e devotada à

sua autonomia no problemático diálogo com o passado. A dedicação à conquista

da autonomia da expressão verbal é notória: se ela não é a criadora da própria

realidade é a informadora de uma consciência.

O presente do passado opõe discursos de contraculturas ao discurso da cultura

oficial utilizando várias vozes, subverte o carácter mimético do texto, implanta

elementos contestatários, assume posições irónicas, suspende hierarquias e antecipa

um imaginativo e utópico futuro. Os artistas pretenderiam ultrapassar o estado de

coisas do mundo actual pelo funcionamento exaustivo e inovador das convenções

sociais, literárias e linguísticas: no dizer de E. Wesseling, «By evoking and altering

historical facts, they ironically recycle historical materials...they envisage possibilities

for the future transformation of societyfroma stand point in the past».39

A poética do Pósmodernismo levanta inequívocas confrontações: uns

afirmam que é estranho que, utilizando materiais históricos, a sua produção se

torne ahistórica; outros, como Linda Hutcheon, afirmam que ela é «fundamentally

contradictory, resolutely historical, and inescapably political».40 Wesseling crê que

se vai ao passado para procurar as não realizadas possibilidades de certas situações

históricas e imaginar em seguida histórias alternativas que talvez possam vir a ser

(38) - Linda Hutcheon, op. cit., p. 39 epassim.


(39) - Elisabeth Wesseling, op. cit., p. 14.
(40) - Linda Hutcheon, op. cit., p. 3.
81

verdadeiras num futuro.

Seja como for, alguns Accionistas pós-modernos descobriram um modo de

inserir momentos utópicos nesses materiais do passado. Evocando-os e

alterando-os ironicamente, eles reciclam aqueles materiais históricos. Encaram

assim a possibilidade de a partir do passado gerarem um futuro outro.

Neste contexto - e o contexto é decisivo na instituição social do género

enquanto «the set of strategies, expectations and knowledge mutually shared by the

participants in a communication situation and which are relevant to that situation» -,

o género do romance histórico vive como reportório convencional de motivos e

temas sujeito a uma mutabilidade complexa, em que um passado vai sendo alterado

por um presente «Once upon a time....» é sinal (e é senha) que activa uma expectativa,

tal como os nomes de figuras históricas e de acontecimentos activam conhecimentos

que se podem assim integrar discretamente numaficcionalidadeem que escritor e leitor

se coloquem num mesmo patamar.

3.3. Características do terceiro estádio da ficção histórica

Na sua primeira fase, a novela histórica é um suplemento à historiografia

nacional, enquanto mediadora entre o passado e o público leitor contemporâneo. Ela

faz a ressurreição de um saber muitas vezes desconhecido da historiografia oficial e

que conduz o leitor ao estudo do passado: «...the historie novel writes domestic, rather

(41) - E. Wesseling, op. cit., p. 19.


82

than political history by recreating the daily lives of anonymous ordinary individuals

who have no trans behind in the historical records».42

Metaforicamente, a novela histórica podia ser uma espécie de máquina do

tempo que levava o leitor através do passado, ora difundindo fortes sentimentos

nacionalistas, ora desmistificando o carácter heróico do passado nacional.

Se Scott determinou o modelo da novela histórica inicial, na segunda fase de

imitação e de emulação foram desenvolvidos caracteres e aventuras ficcionais que

beneficiavam da investigação de acontecimentos e defigurasindividuais e anacrónicas.

É o caso de Sir Edward Bulwer Lython, que introduziu variações temáticas bem

diferenciadas como em Os últimos dias de Pompeia (1834), enquanto Shorthouse e

Walter Pater concentraram as suas novelas na introspecção psicológica. Também por

essa via Scott ia perdendo a sua vitalidade como modelo, num processo de crise muito

intuído e, afinal, estimulado por autores como Henry James e Virginia Woolf.

Estaremos agora no terceiro estádio do romance histórico, de acordo com a

teoria de Fowler.44 A mudança de concepção de género é um processo gradual; e na

óptica de Wesseling a adaptação pós-moderna dos materiais históricos pode ser vista

como o terceiro estádio da novela histórica ou como a primeira fase de «I cannot yet

(42) - Idem, ibidem, p. 48.


(43) - Basta lembrar «Sir Walter Scott» (in The captain's Death Bed and other essays) de Virginia Woolf
e «The Sense of the Past» (in The Novels and Tales ofH. J. ) de Henry James. Vide, além das obras citadas
de Harry Shaw e de Wesseling, Maria de Fátima Marinho, «Reescrever a História», in Línguas e
Literaturas - Revista da Faculdade de Letras do Porto, Vol. XII, 1995, pp. 190-191; A. Fleishman, The
English Historical Novel. Baltimore and London, The Johns Hopkins Univ. Press, 1971.
(44) . Lastair Fowler, Kinds of literature: an introduction to the theory of genres and modes, Cambridge,
Mass., Harvard Univ. Press, 1982.
83

say what», dependendo esta colocação interpretativa da perspectiva em que nos

situemos. Este terceiro estádio parodia certas estratégias incorporando figuras e

eventos históricos numa narrativa ficcional que em Scott fora original, não

obstante poder também ser vista como a terceira fase no desenvolvimento

diacrónico da ficção pseudo-factual.

Os escritores foram introduzindo inovações no paradigma herdado, como

as múltiplas focalizações, a representação da "stream of consciousness", etc., até

chegarmos ao presente estádio de metaficção histórica, próprio, segundo Linda

Hutcheon, da poética do Pós-Modernismo.45

O interesse pelo mundo exterior e a cor local foi dando lugar à enfatização da

consciência individual. O interesse exagerado pelos espaços e ambientes exteriores

(próprio do romance histórico do século XIX) torna-se francamente deslocado,

num mundo em que é a complexidade da consciência humana que suscita o desejo

de conhecimento. E como que se reflecte em todos os domínios a perspectiva

adoptada por T. S. Eliot quando, em Tradition and the individual talent, concebia o

passado como um ordem sincrónica de monumentos que deverão ser tratados como

fontes de interesse em si próprios e que passarão a fazer parte da consciência do


46

artista.

A subjectivização invade a novela histórica e a História passa a ser concebida

como uma colecção de elementos destinados à construção da personalidade profunda.

(45) - Linda Hutcheon, op. cit., p. 93, 143, etc.


(46) - T. S. Eliot, Ensaios de Doutrina Crítica. Lisboa, Guimarães Editores, 1962, pp. 21-35.
84

É, pois, comum que, numa lata acepção que abrange novelas como Orlando ou

Joseph und seine Bruder, o Bildungsroman, com a formação gradual de uma

personalidade ao longo do tempo, surja a exercer um ascendente paradigmático

sobre a actualização dos programas de géneros, em geral, e do romance histórico

em particular.

À subjectivização da História em mera situação que permite aprofundar

caracteres, vem juntar-se outra estratégia de transcendentalização dessa mesma

História, que vai buscar e alimentar motivos míticos. «This combination conjures

up parallels between historically situaded persons and events and transhistorical

archetypal structures»;47 a incorporação de motivos míticos produz a

transcendência da História como processo de mudança.

Por outro lado, não se trata apenas de, segundo a terminologia de Pierre

Barbéris, tanto interferir a «história» (como narrativa fabulosa) quanto a

«História» (como discurso dos historiadores) na recriação da «HISTORIA» (como

realidade histórica) para que o tempo e o espaço outros do texto literário

funcionem como contrapoder.48 A incorporação de motivos míticos na

transcendência da história implica um processo de transformação no estatuto do

mito, numa atitude cultural que pode levar-nos até Nietzsche com toda a força do
• 49
seu vitalismo prometaico.

(47) - E. Wesseling, op. cit., p. 80.


(48) - Pierre Barbéris, Prélude à l'Utopie. Paris, P.U.F., 1991, pp. 9, 71-72.
(49) - E. Wesseling, op. cit., pp. 80-81.
85

Aos aspectos focados vem juntar-se a auto-reflexão, diferente de

subjectivização da História, pois a primeira refere-se à organização do psicológico

e a segunda pertence à ordem do intelectual e epistemológico - consumando-se

nos «explicit commentaires upon the search for the past as carried out by historian

- like characters, and to the type of multiple focalization which reveals the

subjectivity of every interpretation of the past by juxtaposing diverging views on

the same object without discriminating between "true" or "false" versions».30

A auto-reflexão é uma das características desta terceira fase da novela e indica

novas direcções para a ficção histórica, parodiando aspectos importantes do modelo

tradicional e substituindo a função didáctica pela função crítica, com os respectivos

comentários metahistóricos. A História assume na narrativa a função de

aprofundamento ou de constituição da consciência. Surge então a atitude

metahistórica, que leva frequentemente à múltipla focalização do passado, devido à

justaposição de pontos de vista divergentes sem dicriminação entre «falso» e

«verdadeiro» nessa retrospectiva de reconstituição.

Aparece uma narrativa de Ia pessoa, situada no presente, com comentários que

podem ser ou não projecção da consciência de historiadores. Daí a múltipla

focalização, segundo múltiplas consciências históricas.

As estratégias derivadas deste carácter de auto-reflexividade produzem

alterações grandes na estrutura convencional da narrativa: o narrador omnisciente

de focalização externa, que relata o episódio do passado, frequentemente alterna

(50) - Idem, ibidem, p. 196.


86

nas suas observações com as de um participante da acção histórica. Há como que

uma narrativa adicional situada entre o passado e o primeiro narrador. Surge assim

um primeiro narrador ou focalizador que é responsável pela arte da narrativa

histórica mas está situado no presente, permitindo um vai e vem constante. A

história não é um objecto "out there" que pode ser recoberto na totalidade, mas

campo de projecção de consciências históricas por múltipla focalização.

Justapondo perspectivas diversas do mesmo objecto histórico, o novelista

pode mostrar a poli-interpretatilidade do passado (passível, no entanto, de estar sob

o controle dum narrador externo). Daí que as reflexões metahistóricas, que no

século XIX só muito raramente apareciam, sejam frequentes nos escritores nossos

contemporâneos.

Esta dependência auto-reflexiva da criação literária leva a que se aproxime

não só ficção e história, mas também ambas e a perspectiva utópica.

O significado cognitivo e político emerge quando prestamos atenção às

afinidades com a fantasia utópica e ucrónica, eufórica ou disfórica. A fantasia

utópica e ucrónica implica uma crítica a uma postura política na realidade social.

Os mundos alternativos são sempre uma espécie de espelho reverso da sociedade;

e, por isso, as potencialidades políticas da ficção utópica e ucrónica

pós-moderna actualizam-se na emergência de íntimas conexões entre saber

histórico e poder político.

(51) - Cf. Helena C. Buescu, «Travelling Through Spacetime in the 20th Century European Novel», in
Yearbook of Comparative and General Literature, 41, 1993, p. 88.
87

Mas o seu carácter híbrido não fica por aqui. É nesta terceira fase da novela

histórica que se tenta fazer a síntese entre aficçãohistórica e a policial, na medida em

que nesta o crime ocorreu no passado e se procura por conjecturas e buscas interpretar

o que se passou. A ficção científica, com todo o manancial fantástico que leva à

construção de mundos alternativos, vem, na novela histórica pós-moderna,

acrescentar-se à dimensão policial e histórica.

Entende-se que «science fiction has become the modern avatar of Utopian

thought»52, pois, com o temor de um futuro negro, sobre a pressão de uma

sociedade desumanizada e uma tecnologia incontrolável, «science fiction novels

may project a better past, which either resembles the present of the autor and his

reading public, or preindustrial, pretechnological periods [...] the 'futurologicaP

element in historical fiction, and the 'historical' element in futurological fiction

remain implicit. [,..]».53 Dai que um motivo típico seja a «time travel». As

personagens movem-se em tempos díspares fora de uma cronologia tradicional. Se

ainda não se assume a negação da História, pelo menos os materiais históricos

surgem colocados em contextos de épocas profundamente diferenciadas de modo

que personagens e acontecimentos são transferidos de uma época para outra

(propiciando outra deslocação profunda: os "losers" da História transformam-se

em "winners" ou viceversa).

A utopia fantástica implica uma crítica de uma certa orientação política da

(52) - Idem, ibidem, p. 94-96.


(53) - Idem, ibidem, p. 97-99.
88

realidade social. Os mundos alternativos assim ficcionados reflectem magnificamente

fenómenos sociais latentes. É lugar-comum que a historiografia oficial tende a escrever

a história dos vencedores. Os vencedores da História ou os seus seguidores criam o

passado à sua própria imagem. Aficçãoucrónica ensaia disputar este monopólio: pela

exploração da sua memória colectiva os perdedores constroem outras versões

históricas e querem alterar o presente e o futuro. A ingenuidade optimista e o cínico

niilismo são extremos de um mesmo patamar dessa nova ficção.

Quando se duvida da existência de uma objectiva e inteligível realidade,

compreende-se que nesta terceira mutação se passe de uma posição de respeito face à

historiografia a uma atitude metahistórica, que haja a intenção não de difundir um

saber histórico mas de o utilizar numa perspectiva epistemológica e política54, que os

novos modos de questionar o saber histórico (a auto-reflexão, a invenção de histórias

alternativas, as adaptações literárias de materiais históricos) mostrem a tendência geral

para a supressão dos referentes históricos. Mas nessa gestação moderna de uma nova

novela histórica, que passou a fazer parte da nossa consciência de género, novos

caminhos surgem com a utilização do burlesco e da paródia.

Não só histórias alternadas surgem inspiradas na ideia de que uma situação

histórica implica as múltiplas e hipotéticas possibilidades de realização. Muitas

vezes o conhecimento histórico e os seus dados são apresentados numa perspectiva

(54) -Idem, ibidem, p. 73.


89

paródica. É que os textos paródicos reciclam os «prefabricated textual materials»;55 e

as contrafactuais fantasias criam incongruências irónicas, misturando figuras históricas

e acontecimentos com sequências alteradas.

Na teoria contemporânea da paródia56, esta pode expressar atitudes várias

desde a respeitável admiração até ao senso doridículo.A carnavalesca mascarada que

Nietzsche recomenda ri-se da deifição hegeliana da História e da seriedade da

historiografia positivista. Mas no caso em que a metaficção paródica57 incide sobre o

relato do passado, «To parody is not to destroy the past: in fact to parody is both to

enshrine the past and to question it.»58. E, se a comicidade não é imprescindível para a

difonia paródica , as alterações introduzidas na narrativa histórica com o tratamento

paródico do passado não têm de implicar degradação ridícula. Por isso, Christoph

Rodiek aplica ao discurso paródico o interessante termo Kontrafaktur, originalmente

trazido da música vocal e que significa «rephrasing of a secular song [...] with

preservation of the original melody», para contrariar a «connotation of derision»

que costuma afectar a acepção convencional de paródia.60

(55) - Linda Hutcheon, A theory ofparody: the teachings of twentieth-century out forms. London and New
York, Methuen, 1985.
(56) - Além dos trabalhos já citados deSanda Galopentia - Eretescu, Nella Gianeto e Linda Hutcheon, vide
Gérard Genette, Palimpsestes. Paris, Seuil, 1982; A.A.V.V., Le Singe à la porte: Vers une théorie de la
parodie. New York, Lang, 1984; Margaret A. Rose, Parody - Meta-Fiction. London, Croom Helm, 1979;
Martin Kuester, Framing Truths - Parodie Structures in Contemporary English-Canadian Historical
Novels. Toronto, University of Toronto Press, 1992.
(57) - Cf. Wallace Martin, Recent theories of narrative, 3o ed., London/Ithaca, Cornell Univ. Press, 1994,
pp. 178-181.
(58). Linda Hutcheon, op. cit., p. 126.
(59) - Martin Kuester, Framing Truths, p. 7.
(60) - Cf. Cristoph Rodiek, "Raum darstellong im neuren erchronischen Roman", in Roger Bauer and
Douwe Fokema (eds), Procedings oftheXIIth Congres of the Comparative Literature Association, Vol. 2,
Munchen, 1990, e E. Wesseling, op. cit., p. 106.
A ideia do refazer tem em si algo de angustiante. Se o passado não nos

pode dar uma autêntica identidade, então, como recomenda Nietzsche, que uma

mascarada carnavalesca troce da séria historiografia e da deificação da própria

História. E o riso que então surge é um riso da irónica e trágica consciência de

quem sabe ter nascido tarde e não ter trazido nada de novo que não tenha já sido

dito ou feito.

A este riso pós-moderno vem juntar-se a tendência da ficção ucrónica para

incorporar - refazendo-a pro domo sua - a tradição judaico-cristã. A atracção e a

produtividade das metáforas bíblicas mostram como este saber tem grande poder

hoje; e a própria mensagem de Cristo se vê explorada em múltiplas interpretações,

delineando-se como variante ou divergência da lição católica.

Para além de que o Homem e os Povos, situados na História, não abdicam das

suas projecções, assim como os criadores literários não prescindem da sua paradoxal

missão do jogo ficcional, julgamos que todos os elementos evocados se afiguram

pertinentes, se não imprescindíveis, no horizonte de expectativas do leitor que aborda a

narrativa histórica de António Cândido Franco e em particular Vida de Sebastião Rei

de Portugal.

4. Categorias e figuras da narrativa na nova ficção "histórica"

Tão sobredeterminada metamorfose da narrativa pós-moderna e da sua variante

com inspiração histórica não poderia obviamente realizar-se sem alterações sensíveis
91

na concepção de categorias fulcrais e no tratamento de figuras ou macro-signos

semântico-pragmáticos.

A leitura de Vida de Sebastião Rei de Portugal não só corrobora esse

pressuposto, como seria de todo inviável sem a devida compreensão e valoração

dessas alterações.

Procederemos, pois, a uma primeira percepção sintética das reconversões e dos

novos procedimentos, para prosseguirmos depois, nos capítulos seguintes, com a

análise e a ilustração textual dos elementos estruturais e temático-formais mais

relevantes (por um lado, os efeitos desconcertantes das relações entreficçãoe História

e, por outro, os efeitos de inverosímil, de maravilhoso, de simbólico, em torno de

macro-signos como o narrador, o protagonista e o tema erótico).

4.1. Estrutura do romance

O romance sempre teve como intenção contar uma biografia fictícia com

incidência numa das fases da vida do(s) protagonista(s) - infância, adolescência

ou velhice. Esta biografia será de um indivíduio, duma família ou geração, que

seguem um itinerário não só social mas espiritual e estético.

Quando se trata de modelo individual, o nome próprio no título ou a sua

substituição por um nome de carácter simbólico e abstracto é já aspecto a não

descurar. No caso desta obra de António Cândido Franco deparamos com o nome

de Sebastião, associado ao epíteto Rei de Portugal, e ainda com a precisão


92

editorial de se lhe chamar explicitamente biografia e de a integrar numa série de

BIOGRAFIAS.

Normalmente estes títulos que designam o herói parecem apontar para uma

estrutura fechada. Será que o mesmo acontece neste caso? Não parece: com o

desenvolvimento da narrativa damo-nos conta de que a denominação Biografia é

utilizada com um sentido irónico e prospectivo.

Para além de uma «Introdução» e de uma parte final denominada «Fontes»,

a narrativa tem dez capítulos, desde um primeiro, «Amor» - palavra de conotações

amplas e fecundas - até ao último capítulo, «Notas sobre o Encoberto», em que,

como se poderá deduzir, quem está oculto poderá ser descoberto num futuro

aventuroso mais ou menos longínquo. Esta descoberta é lenta e progressiva,

porque exige a aquisição de um saber não de ciência feito.

Trata-se de uma iniciação indiciada pelos nomes dos capítulos sétimo,

oitavo e nono. Só poderá entender os caminhos do Ser quem consegue ultrapassar

o real - Cap. IX, «As loucuras finais» - , depois de fazer a «Apologia da derrota»

(Cap. VIII) ao contrário da imagem social contemporânea de sucesso obrigatório,

e ir para a guerra como quem vai para uma festa (Cap. VII, «Para a festa»).

Reconhecemos que nos três capítulos anteriores se vai alicerçando, com a

«Teoria da Tragédia» (IV), «Primeira Torre» (V) e «Os Jardins de Tângen> (VI), a

formação de uma personagem, isto é, O menino que no terceiro capítulo surge

como resultado de um amor excepcional. Quanto aí há, porém, de biografia de um

ser individual (numa época de infância e adolescência) é também recriação de uma

personagem não só representativa de uma geração, mas também de uma condição


93

e de um destino nacionais; e por isso vai sendo construído numa perspectiva mítica

de âmbito nacional.

A Vida de Sebastião Rei de Portugal, narrativa onde aparecem intrigas

sociais, ameaças ou projectos de guerra, movimentações de massas sociais opostas

e representantes de várias gerações, de épocas diferentes, numa técnica de

simultaneísmo à Dos Passos, é afinal um romance que vai ganhando dimensão

colectiva e que vai mostrando intuitos de renascimento e reconstrução nacional.

Fá-lo afastando-se da estrutura canónica do relato biográfico; mas fá-lo também,

como veremos, subvertendo a estrutura tradicional da narrativa romanesca e

alterando profundamente a exploração das suas categorias.

4.2. O narrador

Como já atrás referimos, e como ficará discontinua mas amplamente ilustrado

nos capítulos seguintes, o narrador de Vida de Sebastião, Rei de Portugal assume-se

não apenas como enunciador soberano do discurso que deveria relatar a existência

daquela personagem histórica, mas também como um protagonista muito interveniente

da comunicação narrativa (responsável por desinibidas intrusões e por sucessivas

digressões) e até como protagonista de certos estratos diegéticos, sempre que certos

dados biográficos do autor textual (e, por relações de implicação, do autor empírico?)

são intrometidos nos dados da diegese principal (v.g.«Eu conheço bem Ceuta. O

primeiro relógio que tive foi comprado em Ceuta. Era miúdo e desde aí fui lá muitas

vezes. Ceuta para mim não tem mistérios, ainda que não possa pensar na cidade sem
94

uma certa melancolia. Compreendo por isso a excitação de Sebastião ao chegar a

Ceuta.»).61

Por outro lado, se os rasgos de anacronia ferem a atenção, como facetas

pós-modernas, nessas intrusões e digressões do narrador não se afigura menos

importante a desenvoltura dos mesmos expedientes propícios a uma dialogia com o

leitor e a uma actualização interactiva das potencialidades do texto («Assim, depois de

escrever sobre Inês e Sebastião não vale a pena escrever mais uma linha sobre a

história de Portugal. Por mim, depois disto, prometo tentar não voltar a fazê-lo, ainda

que às vezes o silêncio canse e seja bom incomodar os outros.», «A mim, eu peço que

o leitor me desculpe estes parágrafos sobre o Ribatejo, decerto inesperados, mas acho

que com as arenas ribatejanas e com o seu último e supremo actor, Sebastião, a Casa

de Avis se tornou uma casa tão trágica como a de Atreu.», «Fialho de Almeida diz que

no caminho de Beja lhe apareceu o primo Duarte, em ceroulas, porque por algum

motivo se lhe tinha rasgado a perna de uma calça. Mas do Fialho e das suas

extraordinárias invenções, dignas dos maiores enigmas, eu já disse que haveria de falar

um dia com o cuidado com que se fala do tédio ou das invenções de Baudelaire. Eram

quase dez horas quando [Sebastião] chegou a Beja», etc.).

Para além de tudo isso, em torno do narrador, entidadeficcionaldetentora de

toda a operatividade no romance de Cândido Franco, um conjunto de estratégias

(61)- António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, p. 117.


(62) - Idem, ibidem, pp. 18, 85, 99.
95

narrativas se delineiam. Decorrentes da prática de linguagem em contexto, essas

estratégias são as organizadoras simultâneas do material do texto e das condições em

que ele deve ser comunicado.

Ora, o imediato contexto de recepção desta Vida de Sebastião é Portugal,

enquanto país com uma história de peso mas com um poder actual cada vez menor, e

que se interroga quanto ao futuro, pondo em primeiro plano questões identitárias

globais, mas também problemas de sobrevivência económica ou de soberania nacional

para os tempos próximos.

Podemos dizer, por isso, que existem condições para receber mensagens

literárias que foquem cogitações de tal ordem, se bem que para receptores mais ligados

a esferas intelectuais. É notório que criações deste tipo, com grande carga culturalista,

só poderão ver-se desvendadas por aquele tipo de receptores atrás referidos. Bases

culturais genéricas e alargadas, de carácter histórico, político e estético, são exigidas

para se identificarem personagens, espaços, acontecimentos e múltiplas referências a

figuras históricas, políticas, literárias e artísticas, que o narrador faz proliferar não só

através da intersecção de elementos diegéticos factualmente verificáveis e de outros

plausivelmente ou inverosimilmenteficcionais,do mundo actual do protagonista e de

outros mundos possíveis (e situáveis noutras épocas), mas também através de intrusões

e digressões subjectivas.

O próprio ambiente de sugestões mágicas, míticas, sacrais, aliado à

metaforização contínua da realidade circundante, mostram bem que o tratamento

imposto ao material do texto e o momento em que o autor textual visa que ele seja

recebido apontam claramente para a hipótese de uma revelação, passível a qualquer


96

momento de ser actualizada, numa estratégia expectante em que o narrador insinua vir

ao encontro das ânsias mais profundas de um certo tipo de Homem português.

Para tanto, essa voz do narrador, constantemente presente, desdobra-se - ora

contando, ora criticando de modo mais lúdico ou mais grave, ora ainda vogando ao

sabor de uma expressão verbal criadora das próprias realidades e informadora de

consciências.63

4.3. O tempo

Segundo Wesseling, o Pós-Modernismo, partindo do romance histórico

tradicional, procura inventar visões alternativas de História, quer dando relevo a

grupos étnicos ou sociais que a historiografia oficial considera insignificantes, quer

propondo ou promovendo, através de frequentes anisocronias, uma perspectiva

insólita. Parece plausível que tal se conecte com a «espacialização da História» que os

textos pós-modernos promoveriam, segundo Amy Jeanne Elias, por razões políticas e

estéticas e que se traduzia técnico-compositivamente por uma representação não-linear

da temporalidade.64

Por outro lado, a tendência lúdica leva a que os escritores pósmodernistas

ponham em movimento a estratégia «What would have happened, if...?» que legitima

(63) - De acordo, aliás, com a teoria da linguagem e da literatura que informa ensaios de estética de
António Cândido Franco e bem assim com as teses hermenêuticas prevalecentes nos seus estudos sobre
Pascoaes e sobre a poesia saudosista.
(64) - Amy Jeanne Elias, Spatializing History: Representing History in the Postmodernist Novel. UMI,
Pensylvania State University, 1991.
97

todos os saltos temporais, dando uma dimensão ucrónica às narrativas. As grandes

categorias são relativizadas, as noções essencialistas de unidade, saber e poder são

ironizadas ou objecto de irrisão, enfim a questão da incerteza ontológica infiltra-se

através das subversões discursivas.

E, pois, evidente que tais ficções narrativas pós-modernas tornam-se

transtemporais e meta-históricas, auto-reflexivas e naturalmente autónomas.

É também nesse quadro que em Vida de Sebastião Rei de Portugal o desejo de

construção da personalidade profunda ou da consciência colectiva de Pátria

subjectiviza o Tempo e os tempos. Nessa narrativa de Cândido Franco, o século XVI

forma com o século XX uma amálgama que permite até surgirem algumas

reincarnações do rei D. Sebastião (técnico da Renault em Paris, vendedor de móveis

em Pombal ou criança loira perdida na praia da Nazaré). Esta figura mítica, com aura

sacral, adquire com simplicidade outras figurações típicas do mundo em que vive o

leitor actual, numa estratégia metafórica de salto do sonho para a realidade contextual

e vice-versa.

A chamada atemporalidade da ficção histórica pós-moderna é, pois,

fundamental em Vida de Sebastião Rei de Portugal para o entrelaçamento do

histórico, do sacro, do mítico e ainda dum certo real, ou de um barthesiano «efeito de

real» , cheio de símbolos emblemáticos da época que atravessamos.

Subjectivização e auto-reflexão, plano psicológico e plano epistemológico

(65) - Roland Barthes, «L'effet du réel», in Communications, 1968, N° 11.


98

atingem-se através de focalizações múltiplas e da justaposição de divergentes

perspectivas do mesmo objecto, ao mesmo tempo que o narrador, além de subverter o

princípio da verosimilhança, abandona preocupações de discriminação entre verdade e

mentira, e profere até afirmações provocatórias segundo as quais o mais verdadeiro é o

falso.

Por outro lado, se em Requiem pelas vanguardas do século XX, Ferreira de

Brito afirma que há uma alternância constante entre "o cá" e "o lá",66 a respeito de

Vida de Sebastião Rei de Portugal poder-se-ia dizer que há um vai-e-vem constante

entre o ontem e o hoje. Pela projecção de consciências históricas várias vincam-se as

plurais interpretações do passado, num desejo de activar presentes reversos e por isso

utópicos.

O narrador desconcertantemente esteve em Tânger e Alcácer-Quibir, conheceu

o (falso) D.Sebastião de Penamacor e o da Ericeira, assistiu ao delírio sebastianista do

Nordeste Brasileiro e descobriu Sebastião em Paris, na Tunísia, em Pombal e na

Nazaré.

É com estratégias deste tipo que o destino de Portugal surge imortalizado

porque renascido - num Eu que é também um Povo.

(66) - Ferreira de Brito, op. cit., p. 48.


99

4.4. Personagens

Para a penetração hermenêutica na narrativa de António Cândido Franco,

convém ter presente como a personagem "clássica" desapareceu ao longo do

século XX. O desenvolvimento das ciências humanas vai acompanhando o

indivíduo no seu próprio desaparecimento. A sociologia interessa-se pelas classes,

a linguística pelas grandes estruturas verbais, a psicanálise pelo inconsciente, a

antropologia abstractiza as sociedades. Uma dialéctica percorre o século; a tese

afirma que só a vida interior conta; a antítese, que a vida interior não existe... e

esta tensão conduz à morte do herói, na literatura contemporânea de vanguarda.

As personagens com contornos definidos por perspectivas diferentes são

uma colecção de estados psicológicos sobrepostos de que temos de inferir a

totalidade. O próprio eu do narrador fragmenta-se em eus sucessivos. A mudança

é constante e só vemos dele antigas imagens que já o não representam. Por isso a

mentira não é só um tema de análise psicológica mas destrói o herói que surge sem

verdade.

O homem não consegue construir uma vida privada e um mundo interior

porque a evolução histórica e social deslocou o centro de gravidade da

responsabilidade do homem para as relações das coisas entre si. O monólogo

interior emerge com toda a força e a personagem não caminha para a acção mas é

apenas um lugar de pensamento. Frases nominais, frases inacabadas, associações

de ideias e sentimentos projectam um discurso subliminar.


Ao exprimir com força e rapidez os pensamentos mais íntimos e

espontâneos pretende-se atingir mais profundamente o Eu diferente do eu

socializado e supostamente inteiriço.

A rarefacção de um mesmo espectáculo em vários pontos de vista é outra

estratégia de «despersonalização», tal como a dissociação pirandelliana em que o

Eu tem para o outro «um sentido e um valor que nunca seriam os meus». A

intenção de apagar o herói é acompanhada de uma outra intenção de atrair o leitor

para o terreno do autor.

É aqui que se forma a dinâmica mais profunda comum ao autor textual e ao

leitor. A base das narrativas num mundo desumanizado não é a personagem mas a

relação interpessoal. E esta relação é um jogo que o romancista joga com quem o

lê. Na tentativa de objectivar a personagem, a narrativa é levada até ao

behaviorismo (só é real o que é percepcionável do ponto de vista exterior, isto é, o

contraste mental) e até às técnicas da captação de imagem por máquina de filmar.

A narrativa e as personagens mostram, mas não tudo; há elipses, há hiatos, há

vazios - «só a elipse, o silêncio, a recusa de contar podem exprimir

adequadamente o que é a queda da realidade, a ausência de si, a demissão perante

a existência»67

O nome perdido ou o eu sem nome da personagem não são reencontrados

muitas vezes na nova narrativa contemporânea. É a generalização que permite este

anonimato. Todo o leitor pode ser este eu, todo o leitor pode preencher este vazio.

(67) -Claude-Edmonde Magny, L'Age du roman américain. Paris, Seuil, 1948, p. 73.
101

As personagens de António Cândido Franco têm em Vida de Sebastião Rei de

Portugal uma carga simbólica fortíssima. A sua caracterização decorre de actuações

próprias, directas ou indirectas, ou ainda do relato de actuações premonitórias de

ancestrais, de juízos de valor do narrador ou de outras vozes, bem como de

aproximação comparativa, positiva ou negativa, a contemporâneos.

Também a este nível a carga culturalista prevalece, pressupondo um leitor

capaz de identificar épocas várias e personalidades históricas múltiplas, num jogo

metafórico de rica mas exigente produtividade.

Sebastião é aproximado do Messias cristão, quer pela sabedoria, quer pela

sensatez; é marcado pela excepcionalidade dos seus pais, avós ou primos; é

identificado corporalmente por estranhos sinais; confunde-se com o bobo da corte,

surge como bufão de serviço; é envolvido constantemente pelo fascínio do Infinito,

através do azul do céu, ou da amplidão do mar, ou da lonjura da planície, ou ainda da

densidade misteriosa da floresta. Os professores, que o orientavam inicialmente, são

rigorosamente seleccionados; mas o que mais os singulariza é que mostram misteriosas

capacidades de compreensão e até de adivinhação, sem que nos seja dado dilucidar se

tais faculdades determinaram aquela escolha (e por quem? e porquê?...). Os amigos

com quem Sebastião faz percurso de amadurecimento são também muitas vezes seres

dotados de forte, mas louca originalidade.


102

4.5. Espaço

Na obra que nos propusemos analisar, em termos de espaços há um Norte e

um Sul, há cidades e serras, campos de lezíria e de charneca, etc. Como adiante

veremos, é possível destrinçar e situar a diversa funcionalidade de cada um desses

tipos de espaço; mas, se cada um destes espaços tem conotações insofismáveis, no

conjunto da sua contrastada presença afinal talvez prolonguem sobretudo uma

tendência bem arreigada na ficção narrativa ao longo do século XX, isto é, a

figuração dos riscos de um espaço labiríntico na paisagem da modernidade urbana

e das reminiscências, noutras figurações espaciais, de um paraíso perdido a

reconquistar para a condição humana.

A cidade do Homem como construção extraordinária mas avassaladora e

asfixiante não deixou de aparecer no romance do século XX. O campo

ultrapassado e decadente pode continuar, no entanto, a ser antiteticamente

apresentado como um paraíso perdido. De Paris a Cantão, de Xangai a Nova

Iorque, de Viena ao Cairo, muitas das grandes cidades surgem referidas nos

romances contemporâneos, desde John dos Passos até Malraux, sem esquecer

Musil, Queneau, etc. Outras cidades imaginárias são construídas no romance

contemporâneo, sem que com isso os seus (anti-)heróis aí encontrem pacificante

refugio. Reflexo ou desvio, mas sem dúvida espaço originado nas palavras, a

cidade mostra, como cenário ou como personagem, um percurso ou uma ocupação

do Homem.
103

Talvez por isso Philippe Hamon afirme que a cidade é um «fora» que tem

um «dentro» que se quer descobrir. Procura-se aí uma «essência», um sistema de

valores, ou uma superfície a descrever, mas «Desenhadora de imperativos

categóricos, de prescrições, de manipulações ou de persuasões, regendo rituais

sociais ou amorosos, tácticas sociais ou estratégias globais, portanto

deslocamentos de personagens, sequencialidade narrativa».68 A arquitectura real

ou de «papel» torna-se assim acessível a uma poética geral da narratividade.

Consequentemente, perante certos passos da narrativa de António Cândido

Franco ocorre-nos, à contraluz dessa tradição, que a arquitectura de uma cidade

torna-se literária porque, onde a cidade não falava e tinha uma função, surge uma

voz que vem acrescentar àquela função um sentido, ultrapassando-se assim a mera

aparência e a mera descrição. A literatura mostra, nas suas cidades (e

correlatamente nos seus espaços não-citadinos) a alma que emerge de um corpo.

Passa-se, pois, da reprodução à destruição e à metamorfose, do sonho à desilusão

e à transfiguração (como já acontecera em A la recherche du temps perdu, onde a

ressurreição das peças de um puzzle esquecido, em desordem, num jogo baralhado,

não deixa de ter parentescos com o misto de ludismo técnico-compositivo e de

intuito cognitivo que distingue a narrativa pós-moderna, em geral, e a ficção de

António Cândido Franco, em particular).

Aliados às personagens, vemos adquirir grande força significativa os espaços,

que no fundo a estratégia narrativa subservir o curso do(s) tempo(s) ou as

(68) - Philippe Hamon, Expositions. Paris, J. Corti, 1989, p. 36.


104

surpreendentes aproximações anacrónicas (v.g.«A meio do mês de Agosto toda a corte

deve intuir já da determinação de Sebastião deixar Lisboa por mar. (...) Lisboa, em

Agosto, dorme. As livrarias estão cheias de pó, as discotecas deixam amolecer os

discos e os pés colam-se, às vezes, ao alcatroado da Avenida ou da Rotunda onde o

Pombal, que se não era de Santa Comba Dão e não se alimentou de batatas era de

Soure e foi alimentado a milho, está encostado a um leão. Em Lisboa, durante o mês

de Agosto, não se dá por nada.»).69

Os espaços da sincopada sequência diegética principal são frequentemente

espaços fecundos, em que da vegetação exuberante e virginal, bem como da água que

arrasta aluvião fértil, se procuram arrancar revivificadoras soluções individuais e

colectivas, para um mundo que sofre de uma linearidade esterilizante.

Como veremos pormenorizadamente no final do capítulo IV e na abertura do

capítulo V, o espaço traz em Vida de Sebastião Rei de Portugal importantes

elementos propiciatórios ou adjuvantes para a alusão simbólica ao sagrado e para a

caracterização do protagonista e de outras das personagens.

A fecundidade, o mistério e o sacral estão presentes na floresta envolvente e

avassaladora, que frequentemente, em conluio com a noite, alberga o rei.

O elemento água surge constantemente para aplacar a secura interior ilimitada

de um soberano que era filho de João, morto em noite de chuva por ter ingerido com

sofreguidão a água assassina que está vedada a um diabético. Sob a forma de rios, de

mar, ou mesmo de chuva, a água atrai de forma iniludível o jovem monarca.

(69) - A. Cândido Franco, op. cit., p. 114.


105

Outro ambiente procurado por Sebastião é a planície de horizontes imprecisos

do sul alentejano, em que todos os sonhos parecem possíveis.

Em suma, a semiótica do espaço na narrativa de Cândido Franco corresponde

ao vector semântico-pragmático de abertura ao Infinito, que propicia a implantação de

utopias. Abrindo portas às loucuras mais ousadas, é traço definidor do estar e do viver

quotidiano de um descendente dos Reis de Portugal, cujos projectos intemporais o

tornam incompreendido e mal avaliado. Numa aventura de subversão de "winners" e

"losers", o Príncipe procura a derrota - que o espavento logístico e as tópicas violas

de Alcácer sugerem ser máscara dourada e musical da Morte alquímica - para

ressurgir por entre brumas, tal como Fénix que renascesse por entre fumos de cinzas.

4.6. Sintagmática narrativa e vectores semânticos

(Eros e Thanatos, loucura e sabedoria, paródia e prognose)

Da morte se renasce. E o Eros em expansão tem aí papel fundamental dada a

energeia que tudo altera. Força de uma vertigem, profecia que se pretende mágica mas

perto de uma realidade em que Sebastião é técnico da Peugeot e usa blusão preto, o

romance pressupõe a derrota como um arranque necessário e querido para um futuro

promissor, necessariamente luminoso e eterno.

Nascido de uma união em que Eros imperava, Sebastião como que projecta as

pulsões da sua libido para o plano da relação com o destino do reino que herdara e da

sua missão providencialista. São aquelas pulsões que explicam as ilogicidades

desenvolvidas na produção ficcional de Cândido Franco, numa estratégia de


106

prescrutação do insondável e de inconformismo perante as medíocres valorações

vigentes.

A valorização da loucura, o exacerbamento da imaginação, a ironia paródica, a

metaforização, a organização ilógica ou analógica dos processos afectivos, a fuga aos

marcos cronológicos do Tempo, as múltiplas vozes com discursos contraditórios,

tornam-se aspectos notórios ao longo desta criação romanesca.

Afinal, na senda dos surrealistas, paladinos do irracionalismo e do erotismo, os

pós-modernos, em atitude de paródia desencantada, e atribuindo à alquimia do verbo

largos poderes, procuram de novo o mágico, o maravilhoso, o sagrado e o

transcendente.

A hipótese de Lacan de que o inconsciente funciona como uma linguagem, fez

com que o autor não se visse mais como o senhor da sua linguagem: em vez de a falar,

sentia-se pelo contrário falado por ela. Era a morte do Homem, dos humanismos e da

estética tradicional. Perspectivas culturais e filosóficas como essa, dominantes em

tempos de Estruturalismos e de Neo-Positivismos, longe de toda a Transcendência,

conduziram à perda da consciência do histórico e conduziram a grave crise de

linguagem.

Tudo isso se reflectiu no nouveau roman, onde se voltou a aceitar que o único

compromisso era a literatura, embora se consumasse a ruptura com o romance de tipo

realista e psicologista. Entretanto, os autores acusados de hermetismo e artificialismo

vão conquistando espaço. E algumas décadas mais tarde conclui-se de novo que as

produções literárias têm significações plurais e fugidias.


Então, a própria crítica tem de assumir uma posição humilde de quem não

trabalha com dogmas. Como diz Ferreira de Brito, «os problemas metafísicos do

homem correspondem a mecanismos psíquicos de natureza antropológica, que nenhum

estádio económico supostamente perfeito poderá resolver»70. Acresce que o Homem,

quando perde a Fé e derroga os mitos, assume-se como sujeito insolente. Daí o tom

paródico e irónico constante das produções actuais.

Também na narrativa de António Cândido Franco assim se passa

displicentemente das questões religiosas ou sagradas e messiânicas para o tom

paródico com que alude aos políticos portugueses do dia a dia. O jogo político, social

e económico de hoje é aproximado dos grandes momentos em que uma derrota, um

amor, uma morte, tiveram indeléveis consequências históricas, pessoais ou colectivas.

O poético e o artístico surgem no horizonte de importante questionação para o

Homem das últimas décadas do século XX. Como dizia Malraux, lembrado agora por

Vergílio Ferreira, o novofim-de-século,que é afinal de milénio, será religioso.

Dança e contradança dos valores de História, do Poder e da Moral, explicam

queficcionalmentenos deixemos embalar pelo jogo lúdico que faz com que possamos

retirar de certas loucuras alguma sabedoria. O Homem que vai surgir terá de ser muito

mais estético que ético, pois só a criação artística se oporá com êxito à alienação

desumanizante.

Ora, perante o nada canónico romance de Cândido Franco, a sensação inicial

de estranheza desvanece-se e ele surge-nos como um itinerário em que a busca

(70) . Ferreira de Brito, op. cit., p. 74.


108

individual e colectiva, conduzida pela voz do narrador, nos mergulha na História, na

Tradição, no bíblico, no mágico e no mítico, como que prevalecendo-se, na relação de

cooperação hermenêutica com o leitor, da necessidade coeva de eficaz apetrechamento

para a diária colisão com o pragmatismo dissolutor em que a Razão não impera, nem a

sensibilidade se deixa cegamente condicionar.


109

CAPITULO IV

SUBVERSÃO HISTÓRICA E FUGA FICCIONAL EM

VIDA DE SEBASTIÃO REI DE PORTUGAL

1. Hibridismo histórico-ficcional

Hibridismos, pluralidades - pluralidade de vozes, pluralidade de tempos,

pluralidade de perspectivas para uma articulação interactiva de pontos de vista, no

dizer de Bakhtine1 -, enfim uma estética da abertura tão ao gosto pós-moderno, e

numa narrativa cuja tónica é pensar o passado para compreender o presente, tão ao

gosto nietzscheano - eis o que também ocorre na Vida de Sebastião Rei de Portugal,

de António Cândido Franco.

(1) - Mikhail Baktine, Esthétique et théorie du roman. Paris, Gallimard, 1978.


110

Como já sabemos de capítulos anteriores2, dentro das consequências habituais

dos factores contextuais e das pressuposições motivadas cataforicamente, a pragmática

da leitura conduziria a uma recepção da obra como relato historiográfico,

particularizado no género biográfico. Todavia permanece duvidosa a natureza da

narrativa, em termos de convenções comunicacionais de ficcionalidade e

referencialidade. É biografia? É ficção? Germinante logo no título, a ambiguidade

mantém-se em quase toda a narrativa.

Num primeiro momento de contacto com esta obra de António Cândido

Franco, as expectativas de que se vai 1er uma biografia de alguém que teve

importância histórica decisiva no trajecto colectivo de um Povo são alimentadas

quer pelo seu título Vida de Sebastião Rei de Portugal, quer ainda pelo índice

anteposto, em que surge uma introdução - parte determinante em obra que se

pretende inculcar como tendo (também) dimensão de discurso científico -, por um

capítulo X intitulado «Notas sobre o Encoberto», e no final, como encerramento,

por um espaço reservado à indicação de fontes e denominado mesmo «Fontes».

No mesmo sentido actuam o teor das notas ao longo do livro e ainda, mais

curiosamente, as ilustrações atinentes ao confronto dos exércitos luso e mouro em

Alcácer-Quibir.

Porém, mal lê a introdução do livro o leitor dá-se conta que grande

(2) - Cf. supra, Cap. n, pp. segs., e Cap. Dl, pp. segs.
Ill

subversão genológica começa a ser anunciada, para depois a ficção se ir instalando


ao longo da obra.

É verdade que já na própria capa e na folha de rosto da publicação, se

observarmos bem a mancha gráfica do título verificamos que o nome Sebastião

está em caracteres que têm o triplo do tamanho (quer em altura, quer em

espessura) dos outros que lhe estão próximos. Supremacia clara de uma figura face

a uma simples vida de um Rei de Portugal, se é que para tal elemento peritextual

poderemos fazer esta leitura em termos de cratilismo secundário. Muito mais longe

iremos, à medida que formos penetrando na narrativa.

Desnorte, curiosidade, sem dúvida interesse, para quem gosta de viagem

que, acredita-se, possa ser inesperada e aventurosa. Viagem ao redor de uma

figura histórica, ao sabor da imaginação, através de múltiplos espaços, de

plurívocos tempos - ambição primordial de entrar em poderosa máquina de tempo

que faculta visitas a eras variadas, sem documentos de passagem, sem limitações;

enfim, desejo profundo de abalar impunemente o presente pelo passado e pelo

futuro.

A escrita, ao mesmo tempo simples, por vezes quase desleixada, e

provocatória de tão desconcertante, é convocada para a criação desse momento

subversivo que a obra quer ser: «cita-se assim a escrita com o mesmo à-vontade

com que num redondel se cita [...] um touro».3

Para que a luz surja mais esplêndida e a vida tenha dimensão plena, para

(3) - António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, p. 206.


112

que o real empírico seja interrogado e dilucidado em sentido transmanente, para

que a identidade pessoal e colectiva se indague, entende o autor textual e narrador

que «É preciso fazer da escrita uma lareira tão pacífica como o Inferno» e é

preciso que «A caricatura [estimule] a inteligência».4

Assim, desde início a leitura fica solicitada ambiguamente a acompanhar um

suposto estudo de ciência histórica e a descobrir que o acto de criação ficcional do

escritor provocará a emergência de novos mundos.

É verdade que boa parte do que é narrado acerca de Sebastião assenta em

dados históricos, mas é facto também que a fantasia pancrónica se infiltra de modo

inequívoco. A acção da narrativa não é sempre exterior ao narrador; quando assim se

apresenta, apenas em parte assim se mantém; e mesmo quando mais o induz, sob as

intermitentes aparências de recondução ao relato biográfico, está longe de se

circunscrever à acção que prepara ou traduz a actuação de Sebastião como figura

histórica de rei ou que dela decorre. É que, paralelamente ao evoluir do já de si

desconcertante rei, a figura e o trajecto do protagonista, retractados pelo narrador,

projectam-se oscilantemente com traços messiânicos e mitificantes, mas também com

figura e projecto de bufão que quer a derrota, etc. Não esqueçamos que o narrador

sublinha que «Sebastião é mais um herói infantil que um herói da História»,

acrecentando que um historiador como «Mattoso deve achar um aborrecimento atroz

essa figura»5; mas ao mesmo tempo Sebastião é mitificado e até aproximado do

(4) - Idem, ibidem, p. 206.


(5) -Idem, ibidem, p. 16.
113

Messias cristão, pelos dons extraordinários quer de sabedoria, quer de episódica

sensatez.

Os próprios laços com elementos virtualmente tão comuns e anódinos na

referencialidade como na ficcionalidade - o espaço, por exemplo - tornam-se

importantes para delinear alguns traços da natureza extraordinária de Sebastião. A

sedução pela planície de indefinidos horizontes no sul alentejano, pela floresta fecunda

e avassaladora de Sintra e pela água, marca claramente a sua abertura ao infinito

utópico.

Do mesmo modo a excepcionalidade (quer em sentido positivo ou negativo)

dos seus ancestrais - pais, avós ou primos - marcam o jovem rei, mas também a

narrativa que o recria (e os contrastes que explora, como por exemplo quando os avós

de Sebastião são também apresentados de maneira a que se sinta, por oposição,

que o seu neto tem uma genialidade e uma abertura a projectos intemporais que o

tornam incompreendido e consequentemente mal avaliado).

A excepcionalidade a nível dos familiares mais directos de Sebastião é

extensiva quer aos seus mestres, meticulosamente escolhidos, quer àqueles que

constituem o grupo de amigos mais chegados e com quem vai estabelecendo um

caminho de amadurecimento - também ele premonitório da aparente desgraça da

derrota e da prevalência do mito através dos séculos. Este percurso de formação

dado através de uma profunda alteração da estrutura tradicional do Bildungsroman

(comum também no romance pós-moderno, como já atrás vimos que observou

Wesseling) contribui para o hibridismo da sua codificação e para o refazer da sua

técnica de composição.
Destas várias formas, o ficcional - e um ficcional estranho, por vezes

anómalo, e apresentado por um discurso não menos estranho do ponto de vista

retórico-estilístico e não menos insólito do ponto de vista técnico-compositivo -

subverte o primeiro modelo narrativo implantado no horizonte de expectativas do

leitor. Mas, em contrapartida, outros abundantes, recorrentes e ostensivos

elementos de Vida de Sebastião Rei de Portugal actuam em sentido contrário, não

deixando a leitura acomodar-se numa perspectiva genológica, nem estabilizar

sequer num protocolo assente nas convenções comunicacionais deficcionalidadee

de polivalência.

Com efeito, no quadro desse regime discursivo em Vida de Sebastião Rei

de Portugal os elementos históricos estão sempre presentes. As fontes são

meticulosa e profusamente indicadas. As notas de rodapé surgem para deixarem

supor uma ligação ao romance do século XIX, mas como que ultrapassando o seu

cuidado de certificação histórica (embora o carácter de erudição extemporânea

quase torne despiciendo esse aparente intuito e relance o efeito de manipulação

lúdica).

De resto, não se afigura menos dúbia esta estratégia de certificação, pois

imediatamente nos apercebemos de que os dados históricos são como que

reciclados de modo a readquirirem novas significações. As datas e as atestações

precisas contrastam com o tom do discurso, ora especulativamente mitificante, ora

parodicamente corrosivo. E nomes (e autores) tão díspares como Barbosa

Machado, Jorge Ferreira de Vasconcelos, José Pereira Baião, Aleixo de Meneses,


115

João de Castro, Sales Loureiro surgem, com desenvoltas anacronias, para manter o

jogo e o disfarce da preocupação historiográfica.

O apêndice, com uma listagem que se pretende aparentemente exaustiva

das «Fontes», a referência metatextual na parte final à narrativa como testamento

(à boa velha maneira de Eurico, o Presbítero de Herculano) e ainda frases pontuais

alusivas às ruínas e às madeiras apodrecidas, mostram-nos os matizes com que este

romance, se assim pode ser chamado, ao mesmo tempo pode evocar no leitor o

paradigma de matriz romântica e se insere numa linha de inovação da narrativa

pós-moderna do século XX - pois a ostentação de tais elementos, pretensamente

documentais e revivalistas, só acentua as conotações paródicas e/ou mitófilas de

que o cotexto fantasista ou profético os impregna no quadro, como veremos, de

uma mais vasta componente de relacionações culturais tão desconcertantemente

heterogéneas que impõem ao texto e à leitura uma indelével tonalidade lúdica.

A medida que a narração avança, a ficção irónica de desconstrutivismo

histórico e de projecção profética vai cavalgando cada vez mais o suposto relato

biográfico, sem que, no entanto, tal dimensão venha a desaparecer. A duplicidade

mantém-se até ao fim : ora a ficção investe na desconcertante bizarria e na loucura

genial e divinal do «menino»/«meninotauro», verdadeiramente fecunda,

transtemporal e que se espera futuramente salvadora; ora surge a preocupação de

apontar dados que reforcem o posicionamento histórico.


116

2. Perspectivismo fragmentário e conotação culturalista

Na «Introdução», o narrador vai convocar para a narração os testemunhos

dos «painéis de Nuno Gonçalves»6 e dos representantes da geração de Avis

antepassados de Sebastião, assim como vai estabelecer paralelos com outras

figuras históricas, quer passadas, quer contemporâneas, ou com figuras de ficção.

É assim que nomes tão díspares - quer em cronologia, quer em funções - como

Inês de Castro, Spínola, Trotsky, Mattoso e D. Quixote são evocados, para já não

falar de Platão, Aristóteles ou de Cristo ou Alá. Também instituições como a

Academia das Ciências de Lisboa do duque de Lafões ou a Academia da História

do marquês de Alegrete não fogem à citação nestas primeiras páginas.

Esta utilização de testemunhos não é nova. Não é mais que uma técnica de

um certo perspectivismo. As várias vozes, paralelas e ordenadas, ou concorrentes,

ou ainda misturadas, produzem visões contraditórias. A subconversação

sarrauteana7 é transpessoal, atinge um nível de profundidade tão grande que o que

importa é o leitor ser convidado a compreender-se ao ser atravessado por um

enunciado estilhaçado que não domina. Afinal muito importam os não-ditos dessa

farândola enunciativa, em que se introduzem fragmentos textuais que parecem

(6) - Idem, ibidem, p. 12.


(7) - Nathalie Sarraute, L'ère du soupçon. Paris, Gallimard, 1956.
117

exteriores ao enredo e que constituem o chamado «olho da câmara», de modo que

as personagens são vistas por uma grelha de perspectivas correspondente a uma

espécie de consciência colectiva.

No capítulo I continua a alternância entre «João tem...», «Joana estava»,

«Sebastião nasce», «Luís relata-lhe» ou «A história dos pais de Sebastião é», «A

doença que se declarou» e «Passados oito dias do nascimento da criança vão

baptizá-la». Também neste capítulo há aproximação das personagens quer a Dante

quer a Camões, quer a Luísa Sigeia, quer a Adão e Eva, quer a Jim Morrison, quer

a Frank Sinatra. Dois diplomatas, Lourenço Pires de Távora e Luís Sarmento de

Mendonça, são indicados como tendo papel importante na vinda (para Portugal) e

no regresso (a Espanha) de Joana, mãe de Sebastião. António Sérgio e José Régio

são convocados a propósito das características da criança que nascera.8

São referidos o retrato do rei Sebastião no Livro das Ensinanças del-rei D.

Sebastião e um retrato de Joana por António Moro, que se encontra em Madrid, e

ainda de uma xilogravura de João, que se encontra na Biblioteca Nacional de

Madrid. Fala-se de um arquivista monumental, António Caetano de Sousa, e de

Jorge Ferreira de Vasconcelos, quer como autor do livro Memorial das Proezas

da Segunda Távola Redonda, quer como o autor de «versos alusivos à partida da

princesa D. Joana». De novo uma instituição, agora a Universidade, através dos

(8) - A. Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, p. 31.


(9) - Idem, ibidem, p. 33
seus catedráticos, é evocada (de modo irónico!...). Acentuam-se os intuitos de

corrosão de certa imagem de figuras ou instituições conhecidas. Esta subversão de

imagem pressente-se pelo ridículo em que a narração as faz cair, ou pela

aproximação provocatória de entidades francamente longínquas e contraditórias,

ou inesperadas e excessivas.

Logo no início do capítulo II Bosh é invocado («a época ... tem a sua

consciência em Bosh») , sugerindo a emergência de toda um irracionalismo

profundo. Neste capítulo «era importante que se contassem as histórias da época»

e que se conhecessem os ascendentes de Sebastião. São os testemunhos de

Alexandre Herculano e Pedro Nunes, de Carolina Michaelis, João Leão e Nuno

Henriques, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, de Barbosa Machado na Monarquia

Lusitana, das aias da princesa Leonor e do retrato do rei D. João III da autoria de

Cristóvão Lopes, que nos vão dando perspectivas diferentes de uma situação e de

um quadro em que os vários fragmentos, tão ao gosto da criação romanesca no

século XX, vão ensaiando uma visão de conjunto.

A intriga múltipla, com episódios quase justapostos, adquire unidade num

veio intermitente (ora subterrâneo, ora patente) em que se inscreve Sebastião e o

renascimento de um Eu que é também o renascimento de um Povo, isto é, em que

se postula que foi através desta figura que Portugal ganhou a certeza de que o seu

destino era não só de alcance mundial, mas também imortal.

Nesta tragédia do renascer o narrador vai ainda convocar figuras míticas ou

(10) -Idem, ibidem,?. 37.


119

simbólicas - Castor e Polux, Dionisos e Apolo, Eros e Psique, Janus, Átis, Osíris,

Adonis, Cerbero, Quiron, Édipo -, e bem assim, como já atrás assinalámos, figuras

da história política, cultural e artística, recriadas ou não, do passado ou da

actualidade, portuguesas - Camões, Oliveira Martins, Teixeira de Pascoaes,

Pessoa, A. Sérgio, Agostinho da Silva, A. Botto, Aquilino, Luís Pacheco, Solnado,

Almeida Faria - ou estrangeiras - Cervantes, Oscar Wilde, Wagner, Groucho

Marx, Andy Wharol.11

Seria curioso explorar qual o sentido da introdução de cada uma destas

personalidades. Parecem especialmente fecundas as referências a Pascoaes e, entre

os colaboradores d'A Águia, a poetas oriundos do espaços meridionais

privilegiados por Sebastião e pelo narrador (Mário Beirão, do Alentejo, e João

Lúcio, do Algarve), mas também a sua cohabitação com as referências a Luís

Pacheco, estranho surrealista, a Saint-Exupéry, com todo o manancial de aventura

e sonho que introduz, a Oscar Wilde, sensual decadentista mas também mestre do

esteticismo e da perversidade como conhecimento (sobretudo na sua ficção de

especularidade culturalista), a Wharol, com os seus desenhos, pinturas e

composições desconstrutivistas, a Wagner no que tem de épico crepuscular e

erótico-místico, a Cervantes com a duplicidade do Quixote, a Groucho Marx com

a comicidade moderna que lhe é inerente, etc.

Em todo o caso, avultam os poderes e os interesses daquele narrador, que

(11) - Cf. ibidem, pp. 11,31,35,36,66, 101, 128, 138, 145, 149, 167, 174, 178, 180, 183, 184,204,205.
.
120

gere uma intriga com as características já apontadas e que, numa perspectiva de

experimentação, utiliza a expressão verbal para aprofundar apaixonadamente o

conhecimento de si e do outro. Se o futuro é incerto, a expressão verbal chega-nos

incertamente também, através de uma voz que ri, disfarçando assim, com máscara

carnavalesca, a angústia que eventualmente sinta.

De resto, embora o autor empírico não tenha nenhum privilégio

interpretativo sobre qualquer outro leitor, não deixaria de ser estimulante ver as

características da Vida de Sebastião Rei de Portugal à luz do que, em Teoria e

Palavra, António Cândido Franco enuncia, quando se refere ao acto poético - «a

passagem do som ao sentido é um acto poético que por analogia se pode encontrar

na passagem da realidade textual à realidade do mundo que é a magia. A magia

trabalha e trabalhou em torno e a favor da reconstituição da unidade ontológica

entre o nome e a coisa, unidade esta perdida com a falta adâmica» -, a

imaginação - «a faculdade que faz com que a poesia se possa actualizar em

espírito [...] é a imaginação. A imaginação aproxima o homem dum sobrenatural

ou seja de um sentido que se desdobra infinito para dentro da sua própria

interioridade [...] a exercitação da imaginação é que leva à criação [...] o homem

pensa ou entende com a razão e cria com a imaginação. A criação do mundo foi

um acto de imaginação o que nos pode levar a encarar esta faculdade como

divina»13 -, à criação verbal e seu alcance - «Há um momento na vida em que nos

(12) - A. Cândido Franco, Teoria e Palavra, p. 17.


(13) - Idem, ibidem, pp. 17-18.
121

sentimos como que descontextualizados em relação a tudo aquilo que nos rodeia.

A necessidade de interrogação e até de reconstrução [...] nasce desse

desfasamento. Há também um momento, em tudo idêntico a este, em que o texto

perde todas as referências possíveis [...] é a nudez [...] o vazio branco [...] a

vertigem [...] É a aptidão que o homem tem de criar com as palavras em

sobremundo [...] que o homem se torna verdadeiramente ao anoitecer, quando se

ouve o pássaro de Minerva, um criador».14

A ambiguidade do mundo ficcional, no que tem de efabulatório e de

referencial, é a ambiguidade do signo verbal. Sem a palavra que significa, ou seja,

«sem a poesia que é capaz de avançar do som para o sentido, a redenção universal

das coisas e dos seres não seria possível. [...] Através da significação [...] uma

pedra pode desdobrar-se em uma asa, seu duplo [...] o aprofundamento do sentido

acaba por ser sempre, à medida que vai progredindo, o aprofundamento mesmo do

desconhecido [,..]».15

Por isso, Jacques Lacan afirma que o literal é litoral, ou seja que toda

aquela literariedade que se pode encontrar, como letra consciente, em texto

poético é sempre uma litoralidade, uma estranheza que se aprofunda como espírito

ou como inconsciente. Também nesse sentido se nos impõe aquilo que a dado

passo o narrador pondera: «Sebastião não se limitou a ficar acordado pela

eternidade fora. Ele não só recusou, como dizem as crónicas, o sono ligeiro dos

vivos, como acabou por recusar o sono profundo dos mortos. Sebastião nunca

(14) - Idem, ibidem, p. 20.


(15) - Idem, ibidem, p. 28
122

adormeceu e arrisca-se sempre a pregar-nos a mais inesperada das partidas».

3. Invasão da narrativa pelo autor textual

No nosso século XX, as estruturas profundas, disfarçadas, encobertas

emergem, deixando adivinhar a extrema complexidade de um Homem que tenta

reencontrar-se entre tendências completamente opostas, presença e ausência,

afirmação e negação, silêncio e ruído. Talvez por isso, nos domínios da criação

artística, a ficção ou prova a morte do escritor ou dá ao autor textual/narrador um

lugar de relevo. Então a obra vale por meio de busca, de construção ou não da sua

pessoa e do mundo aonde parece querer viver.

A apoteose do artista já existia no século XIX, mas na ficção do século

XX, que desemboca na narrativa pós-moderna, as personagens são manipuladas

como marionetas e é o próprio autor textual/narrador que passa a ocupar lugar de

relevo por excelência, tornando-se o centro das atenções (tal como, falando no

meio dos seus bailados, um Béjart que tanto impressionou os jovens portugueses

no final da década de sessenta, num papel subversivo outro que o fez aliás ser

colocado na fronteira por politicamente indesejável).

Ora, consonantemente, em Vida de Sebastião Rei de Portugal o que mais

desconcerta, ao lado do evidente hibridismo da obra a nível de modo, género e

(16) - António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, p. 184.


123

sub-género, é a emergência de um narrador que parece ter estado em Tânger e

Alcácer-Quibir, como parece ter conhecido os falsos D. Sebastiães de Penamacor e

da Ericeira, ou ter estado em contacto directo com os acontecimentos de «delírio

sebastianistas» do Nordeste Brasileiro. O nosso pasmo atinge o auge quando ele,

gradativamente, vai sobrepondo estes seus insólitos testemunhos: «vi Sebastião em

Paris. Tinha ele o fato-macaco de Renault»17 ou «Passados meses, na Tunísia,

voltei a encontrar o rei»18 ou ainda «só voltei a encontrar Sebastião numa loja de

móveis em Pombal» e finalmente «na Nazaré [...] o jovem Sebastião tinha calções

azuis e cabelos loiros».19

Este narrador omnisciente, graças às múltiplas focalizações não fecha as

possibilidades romanescas, nem restringe as hipóteses de recriação deste universo,

antes as alarga numa versatilidade desconcertante, se não numa fecundidade

ilimitada.

No livro de António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, a

enunciação invade completamente o enunciado como voz do autor e narrador em

ordem a uma «Comunidade momentânea de pensamentos» com o leitor.20 Este

parece deste modo penetrar directamente na mente que pensa e podem surgir

assim graus de identificação: «E que a primeira pessoa é um imaginário vivo».

A primeira pessoa do singular investe avassaladoramente pelo romance,

desde as primeiras linhas, embora aqui e além apareçam modestas terceiras pessoas

(17) - Idem, ibidem, p. 177


(18) -Idem, ibidem, pp. 178-179.
(19) -Idem, ibidem, pp. 182-183.
(20) - Jean-Yves Tadié, O romance no século XX. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1992, p. 13.
124

do singular e do plural. Esta voz aparece na Introdução, a explicitar o que quer

fazer - «Vou falar...» -, a inserir esta obra no seu anterior trajecto - «já em outro

[livro] falei de Inês de Castro...» - e a repetir frequentemente «Para mim», «eu

acho que», «Eu sei isso ...mas a mim...», «Sebastião interessa-me», «eu vejo

nele...», «vejo esse Sebastião», «acredito que»... O narrador, que é essa voz,

serve-se também, na demiurgia do seu discurso tendencialmente indiferenciador de

story e plot, da terceira pessoa do singular - «Sebastião é», «Sebastião tem», «o

primeiro rei de Avis» - ou da terceira do plural («as figuras representativas da

dinastia de Avis»).

Aqui e além, recorre à partícula apassivante (presente em «A história

faz-se», em «É a história do mais estranho rei de^Portugal que se vai contar») ou

ainda ao infinitivo impessoal («Falar de Sebastião é falar»). Creio contudo que

tanto as construções apassivantes como as construções infinitivas mais não são que

máscaras de uma primeira pessoa que está sempre presente e que aos olhos do

próprio narrador se torna inconfessadamente excessiva. Esta primeira pessoa

permite utilizar o discurso analítico, a interpretação múltipla, «a leitura da essência

sob as aparências».

A intervenção do narrador, ora relatador/retransmissor, ora testemunha,

ora actor da intriga, explica-se por uma presença do autor que não é da ordem da

autobiografia, nem necessariamente da narrativa autodiegética, e que lhe permite

uma liberdade extremamente cómoda. Porém, parece por vezes querer constituir

uma outra história pessoal. A invasão do discurso pelo autor textual não destrói a
125

ficção e a obra escapa-se assim ao estatuto unívoco do ensaio e ao do romance de

tese.

Por sua vez, o leitor que se pode identificar ou não com o narrador sente-se

desafiado, olha, interpreta, questiona e cria. E assim um dos resultados mais

curiosos e importantes desta experiência pós-moderna vem a consistir no facto de

que a invasão da narrativa pelo autor provoca idêntica intromissão do leitor no

destino do discurso.

4. Processos de (re)construção e abertura narrativa

A técnica de desagregação e de (re)construção que, implica a

fragmentariedade aproxima a obra literária da obra pictórica cubista, embora

saibamos que não houve verdadeiro cubismo romanesco, mesmo no início do

século. Os fragmentos podem em última análise formar um conjunto unificado, até

lógico, embora caleidoscópico.

E certo que os textos e testemunhos de várias épocas aproximados entre si

não são de natureza tão diversificada como aqueles que surgem na obra de Alfred

Jarry, nem nos descendentes surrealistas.21 No entanto, a concepção de sequências

narrativas é francamente alterada, em parte pelos efeitos retirados por dois

processos semelhantes aos das artes plásticas - a fragmentação e a colagem (que

(21) - Idem, ibidem, p. 111.


126

por vezes haviam sido explorados em cooperação intersemiótica de escrita e

desenho, como em Le Potomak de Jean Cocteau).

Um outro processo narrativo comum nesta obra de Cândido Franco é

aquele a que Tadié chama montagem, já não apenas como processo de adaptação

literária (às vezes com assimilação de alternâncias e encaixes) da técnica de

narratividade filmica, mas como composição aberta em que, acentuando o que fora

ensaiado por romances como Palmeiras Bravas (onde William Faulkner

apresentava duas histórias numa tentativa de lhes dar relevo especial pela técnica

de contraponto musical), há histórias entrelaçadas que nos levam a reconstituir um

conjunto sobre as meras relações simbólicas criadas naquela alternância de

histórias. Para o leitor há, primeiro e aparentemente, uma desmontagem.

Só depois se vai dando conta de que as várias histórias se constituem numa

organização final mais abrangente sem dúvida. ítalo Calvino afirma em Se numa

noite de Inverno: «Faço com que sejam contadas demasiadas histórias ao mesmo

tempo, porque quero que se sintam à volta da narrativa outras histórias até à

saturação, [...], - num espaço preenchido da história que talvez não seja mais do

que o tempo da minha vida, onde nos podemos, como no espaço, deslocar em

todas as direcções»24. Como o próprio Calvino assinala, a montagem é um espelho,

(22) - Idem, ibidem, p. 110 («Em 1913-1914 Jean Cocteau redige o seu romance mais curioso Le Potomak
publicado em 1919. Composto de fragmentos esparsos, de textos sobrepostos, e, numa terça parte, de
desenhos, os «Eugène», este livro conta a história de um monstro, o Potomak, e a aventura interior do
autor»).
(23) - Idem, ibidem, p. 113.
(24) - Apud Jean-Yves Tadié, op. cit., p. 114.
127

e até mesmo especularidade posta em caleidoscópio; neste tipo de construção de

sabor irónico cada título é um elemento de frase e o livro não é mais do que um

jogo de muitos começos em que cada título pode ser um início de um romance

diferente.

Não esqueçamos que o capítulo II do livro Vida de Sebastião Rei de

Portugal tem como título «Incursões sobre a muralha». O plural do primeiro

substantivo é elucidativo. Não se trata de uma surtida mas de várias. A própria

palavra alberga dentro de si a ideia de entrada em território desconhecido, mas

entrada rápida porque não permitida. Essa expedição revela-se difícil, porque

sugere uma passagem por sobre uma muralha que sugere altura, portanto

dificuldade, e que sugere também acesso a alguma coisa que tem de ser protegido.

Esta ideia de múltiplas visões de alguma coisa aponta para os vários testemunhos

que aparecem neste capítulo.

Vamos encontrar o mesmo plural sugestivo nos títulos dos capítulos VI, IX

e X, que depois dão prossecução aos mesmos processos narrativos.

No capítulo VI, «Os Jardins de Tângen>, de novo o narrador mistura

variadas histórias do que acontece em Lisboa e do que se passa à volta de

Sebastião, nos vários locais africanos por onde vai andando. Este entrelaçar de

histórias parece ter como objectivo mostrar o carácter antitético profundo

existente entre os que estão em Lisboa, e que são os burocratas, e os que

acompanham Sebastião, os sonhadores, os que amam o transcendente e o

impossível. Histórias justapostas para alguns leitores, histórias entrelaçadas para


128

outros, sem dúvida histórias que se vão constituindo em frame e em puzzle de

Sebastião, sempre passíveis de serem alterados ou completados.

No cap. IX, «As loucuras finais», com as várias reencarnações de Sebastião

ao longo dos tempos surgem as várias histórias e representações da sua figura

histórica e - para o leitor, nessa altura da narrativa - já figura mítica. Este capítulo

mostra-nos uma técnica que afinal diz implicitamente o que nunca é afirmado: «O

que faltava aos Portugueses não era encontrar o império do Encoberto [mas] fazer

o esforço para nascer a Ilha do Encoberto», espécie de «Pasárgada».

No capítulo X, já referido, mais uma vez aparece a técnica dos fragmentos,

da montagem de várias histórias do puzzle, ou da mera adição de testemunhos

múltiplos. São convocadas figuras do mundo da história, da literatura e da cultura

em geral. É Camilo Castelo Branco, é Barbosa Machado, é Sampaio Bruno, é

Malheiro Dias, é de novo António Sérgio, é Alberto Caeiro, etc.

Se se renuncia a uma estrutura fechada, se se passa de um mundo de

discurso considerado «sério», que se pretende imagem mimética do real, para um

mundo de discurso onde a ironia se afigura «the only way we can be serious

today»25, ou para um mundo de jogo, em que já se não imita mas se produz alguma

coisa que se pretende diferente, então uma nova retórica surge em que são

exploradas muitas possibilidades de enunciação, «frente a um enunciado

supostamente invariável» como nas investigações da chamada Oulipo (Ouvroir de

Littérature potentielle). Estas alterações começam por ser técnico-formais, embora

(25) - Linda Hutcheon, op. cit., p. 39.


129

tragam depois grandes consequências a nível significativo. «A potencialidade»,

escreve Jacques Bens, «mais do uma técnica de composição, é uma certa maneira

de conceber a coisa literária», que abre para um «realismo moderno. Porque a

realidade nunca revela senão uma parte do seu rosto, autorizando mil

interpretações, significações e soluções, todas igualmente prováveis».26

Também perante Vida de Sebastião Rei de Portugal o leitor é induzido a

acreditar que a realidade nunca mostra senão uma ínfima parte da sua face,

permitindo múltiplas interpretações prováveis. É este conjunto de possibilidades e

de probabilidades que imprime à narrativa o cariz de jogo, mas de jogo cognitivo,

em que só as peças reunidas se tornarão legíveis e ganharão sentido para o leitor

convidado a uma descoberta infinita.

5. Espaço(s), tempo(s), estratégia(s), narrativa(s)

A grande preocupação do homem primitivo era encontrar o centro do seu

mundo. Descoberto esse axis mundi, o seu entorno converter-se-ia em espaço

sacralizado, em oposição a outro, mais ou menos caótico ou absurdo. Dentro dos

limites dessa área especial, o ser humano estava protegido e tudo tinha sentido,

pois estava-se em contacto mais ou menos directo com o Céu, habitado ou não por

divindades pessoais.

(26) - Apud Jean-Yves Tadié, op. cit., p. 117.


130

Ora, o que se sente no romance Vida de Sebastião, Rei de Portugal de

António Cândido Franco, é que este rei Sebastião, através do narrador, procura

reencontrar o seu axis mundi, numa tentativa de dar sentido ao seu viver e de o

libertar da falta de objectivos da Corte e dos parentes, que pouco lhe diziam e que

o não aceitavam nem compreendiam.

Por essa razão, Sebastião vai privilegiar o Sul de Portugal, cuja imensidão

de horizontes favorece o sonho, o gosto da aventura e sacode a mesquinhez

rotineira que leva à degenerescência pessoal e colectiva vigentes. Nesta narrativa o

Sul vai destacar-se enquanto terra moldável, produto de rios e rias; tal como as

areias marinhas possuem a força do mar, esse Sul surge como espaço propício à

criação de um sonho cosmogónico, fundamental à realização do Príncipe, do

narrador e, com certeza, de alguns leitores.

As «planícies do sul» aparecem, logo no início, como espaços ondem

«ardem horizontes infinitos», e onde é possível «um delírio de expansão e de

além»27. É neste espaço que a dinastia de Avis foi criada, tal como esta figura

estranha que será o seu paradoxal remate.

O sonho africano alimentado por esta dinastia que quer virar as costas «não

só ao Norte como ao bom-senso que esse Norte laborioso e activo podia

representar», começara com o primeiro rei de Avis «que tinha os olhos asiáticos e

devia ser filho de uma mulher do Sul, quem sabe se vinda dos desertos do Adrar,

(27) - António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, p. 12.


131

na Mauritânia» O desejo cheio de misticismo de alcançar o céu mistura-se aqui

com a ansiedade de permanecer em Africa.

Se, por um lado, a brancura luminosa do sul inspira «tristeza e melancolia»,

faz vibrar ecos de outro mundo perdido, reaviva talvez a reminiscência de um

paraíso desaparecido, por outro lado sente-se a fria rigidez cinzenta e baça do

Norte («As cidades do Douro têm todas elas um rigor de pedra»).29

O próprio Tejo, rodeado de extensos e claros campos, adquire grande

importância, tal como Lisboa que aparece aos olhos de Joana, e na boca do

narrador, como «uma ilha ou um reduto final perdido já entre o verde e o vidro do

Atlântico [...] era uma cidade de Neptuno»30. Esse Tejo, de quando em quando,

mostrava «águas escuras cheias de tranquilidade e mistério»31, ou águas límpidas e

azuis (de revelação?), ou ainda se convertia em rio de tempestade.

Sintra, com a sua exuberância de verde e os seus nevoeiros misterientos,

é-nos apresentada como o local onde Sebastião melhor exercitou a solidão e onde

ele e o seu bando melhor alimentaram os desejos de aventura. Já Joana e João,

seus pais, «passavam dias retidos e retirados em Sintra, a correr os bosques».32

É aí que os seus propósitos se transformam em desafios a um mundo

demasiado cauteloso e a um quotidiano sem chama nem ideal. Sintra e o cabo de

(28) - Idem, ibidem, p. 12. Neste passo e noutros afins retomam-se as conotações da personagem Fátima
em Memória de Inês de Castro ( cf. supra Cap. H).
(29) - A. Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, p. 22.
(30) - Idem, ibidem, p. 26.
(31) - Idem, ibidem, p. 27.
(32) - Idem, ibidem, p. 28.
132

Roca permitem-lhe ensaiar voos altos, mas trágicos e destrutivos porque tão

desmedidos. Pode ver-se naquelas paragens o príncipe «a olhar o céu como se

bebesse o azul» e «a correr à procura das ondas do mar»33, numa atitude de

desafio que, segundo o narrador, caracteriza bem o genuíno homem português.

É também nesta serra, «onde tudo nasce de forma espontânea»34, que

repetidamente Sebastião passa o Pentecostes. A sugestão de que uma sabedora

escolha de caminhos só se poderá fazer em tal ambiente de excepção e de segredo

ganha força se nos lembrarmos que o Pentecostes cristão assinala a descida das

línguas de fogo, manifestação do Espírito Santo que traz consigo o dom do

conhecimento e o dom das línguas.

A campina é-nos pintada com «veios de água límpidos e cheios, pastos

enovelados onde começa a despertar o verde», num prenúncio de renascer

fecundo. Daí que, no Ribatejo, o homem não possa esquecer as suas raízes

primitivas. Sente então o espírito distendido; e é nesse ambiente que se descobre

que Portugal tem uma «pré-história tão antiga como a própria criação do

mundo».35

Sebastião convive com o vale de Santarém, «atravessa as areias da lezíria»

e vive no campo onde vem a matar «o seu primeiro porco selvagem»36. É de facto

neste Ribatejo que avulta o desenvolvimento físico de Sebastião; mas sobretudo,

(33) - Idem, ibidem, p. 114.


(34) -Idem, ibidem,?. 138.
(35) - Idem, ibidem, p. 84.
(36) - Idem, ibidem, pp. 66, 67.
133

se foi aí, neste «nosso primeiro sertão», que o português descobriu a liberdade, e

se ali Africa começa, é também nessa terra que vive, entre burros, cavalos

selvagens, touros e bezerros, num banho de realidade primigénia e regeneradora, o

príncipe que se propõe relançar por palingenesia o espírito da Nação e a sua

missão política universalista.

Em ambiente de verde refrescante e de fertilidade inequívoca, vê-se

frequentemente o rei, completamente nú, a correr pelas areias ou a tomar banho no

mar. Ora se afasta para os matos «em Sintra ou em Mege», ora se afasta para a

praia, «a de Cascais ou a da Caparica».37

Dorme em grutas, anda a pé «horas atrás de horas». Sebastião está preso

ao mar e ao campo tal como ainda hoje o Homem Português. É por isso que o

Ribatejo maravilha não só o rei, mas também o narrador. Surge como «a grande

praia», «reino marítimo onde o cabo de um leme se pode transformar com toda a

facilidade no cabo de uma enxada». É a «tensão constante entre a terra e a água,

um antigo fundo de mar que à força de estrume e de sangue, ou seja de sonho, se

tem feito terra». É o homem desta lezíria «enorme areal», campino ou toureiro,

que dá os traços culturais ao povo português.38 Quer na Primavera, quer no

Inverno, no meio dos choupos tristes e dos seus lençóis de água, a lezíria provoca

bem-estar em Sebastião. Esta terra ribatejana é «um belíssimo cordão umbilical»

que liga o homem às suas raízes primitivas e primordiais. É aí que se contacta com

(37) - Idem, ibidem, p. 69.


(38) - Idem, ibidem, p. 81, 82.
134

a «pré-história cosmogónica».

Porém, para que este espaço mantenha a sua força e a sua ligação a eras

genesíacas é fundamental que o touro, na Golegã ou em Abrantes, veja a sua força

caótica ser enfrentada aventureira e igualitariamente. Então, aí, a dinastia de Avis,

através do seu último representante vem a adquirir a tragicidade da casa de

Atreu.40

Como corroboraremos no próximo capítulo, é nesse Ribatejo «coração da

Ibéria», e no espaço da praça de touros, espaço parecido com o anfiteatro grego,

«recinto onde os deuses se mascaravam de homens e homens de deuses», que se

sente que não há lugar para a inutilidade ou o absurdo. É um local de profunda

religiosidade. O toureiro surge «mais belo que um padre paramentado» e a

«tourada é capaz de fazer mais terror e mais alívio que a lembrança dos passos do

calvário e o sangue da cruz [...] a morte de um touro [é] uma coisa mais trágica

que a crucifixação»41. Aliás, na translação narrativa de António Cândido Franco é

o toureio a actividade última que liga o homem da era industrial às eras genesíacas

e gloriosas do Paraíso.

O Alentejo, que começa por ser denominado «Arábia do Ocidente» - ao

passar por Viana do Alentejo, por Cuba, por Vidigueira, por Grândola, por Beja,

Sebastião convence-se, e com ele o narrador, que «nada na Europa está tão perto

(39) - Idem, ibidem, p. 84.


(40) - Idem, ibidem, pp. 84-85.
(41) -Idem, ibidem, pp. 84, 82, 82.
135

da Arábia e do Suez como o Alentejo»42 - surge-nos, também por isso, como o

espaço solitário conveniente ao aprofundamento do sentido da existência ou à

tomada de decisões graves e solenes, porque prenhes de consequências

inesperadas. Os «horizontes limpos» e os «campos que se perdiam de vista» eram

fundamentais para a manutenção de uma nostalgia edénica e, ao mesmo tempo,

para o renascer da esperança no aparecimento de futuros imaginados e

propiciadores de vivências transcendentes. Adequada ao ambiente geral, Castro

Verde é sentida como «terra de visões e de mistérios»; e todo o Alentejo «é

planície de loucura, de fome e seca [...] é o primeiro ponto da Europa onde se

sente fome e sede e onde o olhar de calor esbraseado, enlouquece».43

Os horizontes claros, os campos sem fim, as árvores ora verdes ora pardas

e torradas seduziam Sebastião. Se em certa jornada a planície «gélida e

cristalizada» de Viana do Alentejo o prende, «as herdades isoladas e a terra

escaldante» de Grândola ou Vidigueira aproximam-no da Arábia ou do Suez.

O narrador coloca-nos perante o rei a atravessar uma terra que não tem

tempo - e que, por isso, como nos fará saber a desconcertante exploração da

cronologia pelo narrador, não aceitará a industrialização (mesmo que ela exista

não entrará no coração dos homens, ali onde, por exemplo, se prefere andar a pé

do que de carro «para não incomodar simplesmente as árvores do jardim e o

rouxinol, que todos os dias lá vai cantar»).44

(42) - Idem, ibidem, pp. 91, 92.


(43) - Idem, ibidem, pp. 101, 117.
(44) - Idem, ibidem, p. 99.
136

Na dureza barrenta da paisagem «onde nasce a margaça e voam abetardas»,

Castro Verde surge-lhe envolta em mistério. Em Beja, ou à volta da cidade, em

Entradas, o rei podia «andar em espaços livres, perder-se por valados e riachos»

ou viver a agitação das fogueiras e das suas pilhas de madeira. Em Cabeços,

Sebastião olha as nuvens em fuga, e, em Almodovar e Messejana, experimenta o

corta-mato, longe de estradas e trilhos, e caça. Passa Colos e Odemira, deslumbra-

se com as cores suaves do céu e da terra e com a proximidade do mar. A chuva, o

verde, as flores, as águas «límpidas e azuis, cheias de peixe prateado», fazem-no s

adivinhar o ambiente de excepcionalidade que o rei e o narrador parecem sentir.45

Mas este tipo de atracção por certos espaços, multiplica-se através de Mértola,

Serpa, Moura, Olivença, etc.

O mesmo se diga ainda para terras mais a sul. Ir ao Algarve «é a melhor

viagem que se pode conceber». Esta região revelou-se «como uma parte do Jardim

do Éden, sempre em flor»46. Sebastião não consegue resistir à solicitação de ir ver

o mar algarvio que o espantou pelo seu rugido. Fora nesse Algarve ermo que

Henrique, membro de Avis com um papel tão preponderante, encontrara alimento

para a «fome obstinada»47 de projectos africanos (em razão dos quais, embora

sofridamente, deixará morrer o irmão Fernando em Fez). Seja Aljezur, ou Lagos

ou S. Vicente ou Sagres ou Albufeira ou o próprio Guadiana, tudo no Algarve nos

é descrito de modo deslumbrante.

(45) -Idem, ibidem, pp. 101-102.


(46) - Idem, ibidem, p. 103.
(47) - Idem, ibidem, p. 13.
Sebastião criou tais ligações a lugares como Lagos, S. Vicente, Vila do

Bispo e Sagres, que eles motivarão o seu regresso praticamente todos os anos.

Uma e outra vez em Portimão e Monchique «os dias continuam límpidos e

azuis» . O rio Arade encanta-o e em Silves os belos jardins, os laranjais e as

amendoeiras fazem-no pensar que o Éden seria semelhante. Albufeira, Loulé e o

cabo de Santa Maria agradam-lhe muito, tal como Tavira, Castro Marim e o rio

Guadiana.

«Há, no Algarve, uma febre de riqueza e de luxo» que perturba também o

narrador, «para além de [lhe] secar a boca e incendiar os olhos».49

Marrocos e Ceuta não param de exercer um poder de atracção enorme

sobre o rei. Isso transparece quando, ao chegar a Ceuta, contempla o «monte

Acho, que é um das duas colunas onde Hércules sustém o mundo»; ou quando se

banha na baía, deixando actuar sobre si a ligação que tem ao mar; ou quando se

extasia perante Alcácer-Ceguer, «cidade afundada na verdura no meio de palavras

selvagens [...] com gaivotas a sobrevoarem a pequena praia». Em seguida é

Tânger, de início com um sol escaldante, logo depois com um «vento de mar que

faz toldar por completo o horizonte» e ainda com «uma humidade que encharca o

ar» e com um «orvalho transparente [que] embebe a terra».50

(48) - Idem, ibidem, p. 104.


(49) - Idem, ibidem, p. 117.
(50) -Idem, ibidem,^. 117, 121, 125.
138

Em suma, prevalecem os espaços meridionais de planura erma e de terra

moldável, ressumante de fertilidade, associados às ideias de força aventurosa e

corajosa, de criação ou recriação de novas e reconfortantes realidades. No

entanto, também a montanha e os sítios altos são valorizados como propiciadores

de reflexões sérias e profundas, de decisões graves e ajustadas, de acesso ao

transcendente ou de contacto com o sagrado. Por outro lado, também a floresta se

impõe como espaço propiciatório, pois nela se misturavam a fertilidade da terra e

o mistério que darão origem a um ambiente primitivo de magia, onde tudo é

possível.

Quanto às estações do ano, que moldam o espaço, a Primavera surge em

primeiro plano, uma vez que com ela vem todo um novo ciclo de rejuvenescimento

da natureza. O Outono e o Inverno aparecem por vezes no seu papel de épocas

fundamentais à preparação daquela outra, essa sim com papel preponderante. O

Verão aparece de quando em quando, aliado à ideia de calor e até de sauna, ou

com papel antecipatório (o calor aproxima-nos ainda mais das terras africanas), ou

com função ominosa (estava tudo seco quando o pai de Sebastião sente aquela

sede insaciável a que só a morte pode responder).

Quanto às horas do dia, o entardecer e sobretudo a noite, com a sua

misteriosa escuridão, preparam uma aurora especial, símbolo de outros desejados

devires.

No que diz respeito ao tratamento do tempo em Vida de Sebastião Rei de

Portugal, poder-se-á dizer que ele é múltiplo e anómalo, quer no plano diegético,

quer no plano semionarrativo.


139

Não poderíamos deixar de referir o capítulo IX, «Loucuras finais», em que

a subversão temporal se torna provocatória. O narrador que acompanha a

personagem há dezenas de anos, assume agora que viu Sebastião em Paris, como

mecânico de automóveis, na Tunísia, em barco de pescadores ou a divertir-se

«numa motoreta de transportar peixe», em Pombal como comerciante de móveis e,

finalmente, na Nazaré, revrtendo à infância. Tratava-se de uma criança que «dizia

ter 7 anos». Este incidente ocorreu em dia cheio de neblina, com nevoeiros ao fim

da tarde.51

Afinal, como já sabemos que o narrador afirma algures, «Sebastião não se

limitou a ficar acordado pela eternidade fora. Ele não só recusou, como dizem as

crónicas, o sono ligeiro dos vivos, como acabou por recusar o sono profundo dos

mortos. Sebastião nunca adormeceu e arrisca-se sempre a pregar-nos a mais

inesperada das partidas».52

O tempo histórico, que se desenrola com a logicidade cronológica do dia

após dia, está largamente desmultiplicado e subvertido nesta narrativa. Não que o

facto seja clara e explicitamente afirmado. Porém, a técnica ficcional de juntar e

aproximar fenómenos ocorridos em momentos bem conhecidos e datados, faz que,

com grande naturalidade, se assista a estes saltos temporais sem reacções de

rejeição. Surgem no leitor interrogações sobre a possível coerência perceptiva,mas

a ficcionalidade potencialmente fantástica ou lúdica em que somos mergulhados

(5\)-Idem, ibidem,??. 179, 180-181, 181-182.


(52) - Idem, ibidem, p. 184.
140

desde o início faz-nos esquecer, ou desvanecer, ou integrar superadoramente os

elementos dissonantes e anómalos.

Há tantas analepses e prolepses, há tantos avanços e recuos que a categoria

de tempo, em que os muitos acontecimentos se vão inscrevendo, perde quer o

cariz convencionado de sequência, quer o valor habitual de duração contínua.

É certo que, como já atrás referimos, no Capítulo I se fala dos progenitores

de Sebastião e da ligação amorosa que há-de frutificar naquele ser estranho e

sonhador, tal como de seguida, ao longo de quase seis pequenos capítulos, se

assiste ao crescimento, à educação e à formação geral do príncipe. Porém, não é

esta aparente ordem cronológica dos factos que conta, mas sim, no primeiro caso

por exemplo, o carácter de excepcionalidade daquela relação amorosa.

É como se fosse uma relação vinda do centro do mundo, de um mundo

arcaico e real sem tempo. Impregnada da força do Ser, participante de realidade

que a transcende, essa relação surge como uma hierofania: a ligação humana de

João e de Joana actualizaria a mítica ligação primordial. O elemento temporal

perde, pois, relevância e poder por um lado, mas readquire-o anomalamente num

plano mítico. Este par tinha de ser apresentado como excepcional, pois seria dele

que proviria a criação do Homem, Sebastião, e do mundo futuro, a Ilha do

Encoberto.

Sublinhe-se ainda que João, esgotado por esta relação única na sua

ansiedade de ascenção ao absoluto, não resiste e morre na satisfação da sede que o

fará entrar na eternidade. Esta necessidade ontológica primitiva é que explica que

o seu tempo de vida, humanamente curta, tenho sido pleno. Essa plenitude abolirá
aquela duração temporal, porque é de ordem extra-humana. É nestes momentos -

que acontecem em suspensões essenciais do ordinário decurso da História - que o

Homem é verdadeiramente ele próprio. Há quase que uma suspensão temporal nos

momentos vividos por este par responsável pelo processo em que o príncipe

Sebastião é gerado.

Assiste-se à transformação de personagens históricas em personagens

míticas. A renovação histórica anuncia-se pelo corte temporal que se sente existir

aquando do aprofundamento da ligação dos progenitores do príncipe. Tanto João

como Sebastião se sacrificam nas chamadas purificações periódicas que provocam

a renovação da Vida e do Tempo. Este corte temporal anuncia-se e ganha corpo

ao longo do livro, na medida em que se pressente que Sebastião é o fim e, por

isso, o princípio.

A abolição da sequência e da duração cronológicas tem afinal uma intenção

trans-histórica ou (dada a precedência discursiva do autor textual/narrador) uma

intenção meta-histórica, na medida em que pretende manter viva, hoje, a figura de

Sebastião na sua energia mítica.

No que diz respeito aos capítulos em que a figura principal vai crescendo,

se vai instruindo e se vai formando, há que referir como os seus tempos não são os

diegeticamente comuns, pois já vimos que os tempos habituais para se cumprir

esse processo humano são subvertidos.

Já sabemos que os grandes momentos de formação profunda, qual herança

paternal, são encontrados em plena natureza, no convívio com populares ou

aristocratas também estes com ânsia de ser, ou no convívio com animais. Então, de
modo entrecortado, as revelações anunciam-se ou impõem-se. Tanto as estações

do ano, como as duas faces do dia, na passagem da luz às trevas e das trevas à luz,

concorrem para a suspensão temporal. Cada chegada à Primavera, cada chegada à

manhã, propiciam momentos de renovação únicos. As alterações lunares estão

ligadas às movimentações de morte e ressurreição, à fertilidade e à regeneração.

Não só se pressentem então concepções cíclicas, como estas parecem

subjazer a todo o romance. A própria aproximação de Sebastião a Osíris e,

crescentemente, a Cristo insiste implicitamente na repetição periódica de

Nascimento, Paixão, Morte e Ressurreição. A reactualização anual deste drama

ontocosmológico cria assim a possibilidade do ressurgir do Homem Novo e do

Mundo Novo.

Confirma-se assim o carácter imutável do cosmos, mas também o carácter

reversível dos fenómenos históricos. A aproximação das sociedades, cheias de

sinais de degenerescência, do século XVI e do século XX mostra-nos que os

tempos não são os mesmos, mas também que o Homem não evolui radicalmente no

seu caminho.

Não esqueçamos, por outro lado, como o messianismo, ainda que com

dificuldades, valoriza o Tempo e a História. Esta só pode ser aceite porque cessará

um dia. A regeneração periódica da Criação é substituída por uma regeneração

única que acontecerá num Mo tempore futuro.

Como é comum quando interferem sistemas cíclicos, sente-se em Vida de

Sebastião Rei de Portugal que o momento histórico contemporâneo representa

uma decadência em relação aos momentos históricos anteriores. Poderia este


143

aspecto sugerir que havia um empolamento pessimista mas, ao que parece, poderá

também traduzir uma vertigem de optimismo: é que, se já se sentiam os sinais

anunciadores da Morte, também já e sobretudo se faziam sentir os de ressurreição

e, consequentemente, de regeneração.

Nesta obra, sente-se a presença, se não o confronto, de duas concepções -

daí resultando, por vezes um travo a paradoxo: a concepção arcaica, arquetípica e

ahistórica, e a moderna, que se quer histórica. Se lembrarmos, por um lado, que no

Cristianismo o Tempo adquire um sentido, o de Redenção, e se, por outro lado,

tivermos presente que essa Redenção só é possível porque Jesus Cristo em data

historicamente definida veio ao mundo, como Filho de Deus, então entendemos, o

carácter bipolar e ambivalente desta obra enquanto narrativa a seu modo

messiânica, com protagonista mitificado em outro Messias.


144

CAPÍTULO V

FIGURAÇÃO SIMBÓLICA E MARAVILHOSO EM

VIDA DE SEBASTIÃO REI DE PORTUGAL

1. Ambientes e números para as iluminações

A tentativa de criação de novos mundos possíveis vai revelar-se também no

campo da sugestão ou promoção de iluminações rimbaldianas e até de hierofanias

e, por consequência, dos ambientes e dos espaços propiciatórios.

Como vimos mais minuciosamente na perspectiva própria do capítulo

anterior, em Vida de Sebastião Rei de Portugal não são homogéneos os espaços

que o narrador oferece às personagens e oferece a si mesmo (e às figuras que

convoca nas suas desiguais intrusões). Importa agora que alguns têm

características especiais e que, opondo-se a outros menos significativos, se

distinguem como espaços afectos à revelação e à sacralidade.


145

Na tentativa de sacralização desses espaços, que muitas não são, à partida,

os que pela história das religiões quase estereotipadamente o leitor associaria às

hierofanias, o autor cria ambiente onde a linguagem possa fazer surgir realidades

inesperadas, e sobretudo possa transformar e fazer renascer os mundos existentes.

Quer numa linha descritiva de factos de magia e religiosidade popular, à maneira

de Heródoto, quer na linha de Parménides e Empédocles em que as forças da

Natureza surgem como que personificadas e se convertem em deuses, quer

também na linha dos estóicos com a exegese alegórica1, notamos que nesta

narrativa os espaços surgem envoltos em sugestões de mistério, de magia, de

revelação, de realização dos trabalhos e dias a uma fonte absoluta do sentido -

numa palavra, de sagrado.

Por oposição, a incapacidade de percepção destes fenómenos - que,

manifestada em torno de Sebastião, a narrativa de António Cândido Franco sugere

que diacronicamente releva da insensibilidade do homem urbano - participa da

mediocridade do ambiente cortesão da época de Sebastião; e ambas mostram a

degenerescência da sociedade e diminuem a Humanidade - então como agora,

segundo se infere das correlações estabelecíveis entre diversos passos do discurso

de Cândido Franco, que desenvoltamente intromete na evocação histórica

considerações sobre instituições e opções dos nossos tempos.

(1) - Mircea Eliade, O sagrado e o profano - A essência das religiões. Lisboa, Livros do Brasil, p. 8.
146

A criação de ambiente mítico com base em fenómenos da natureza, que já

vem do período mitológico dos camponeses primitivos, como refere Muller na

História das Religiões2, é procedimento que vemos reaproveitado neste livro que

procura pulverizar a estrutura tradicional da narrativa pela acentuada subversão

dos seus componentes, alterando o seu jogo de faz de conta em sentido cativante e

premonitório.

Aqueles espaços excepcionais surgem não só caracterizados diferentemente

de outros, como aparecem eivados de uma energia anímica que passa para as

personagens, sejam estas os pais de Sebastião, sejam acompanhantes do rei, seja

ainda e sobretudo ele próprio. O contacto com a terra de aluvião, com a floresta,

com o mar ou com a água do rio, tem efeitos de transformação mágica. Essa

recorrente evidenciação de uma força energética que das coisas se comunica aos

humanos assume por vezes semelhanças de atmosfera animista; e esta vem a

revelar-se pregnante, para o leitor, quando do seu seio emerge também um

totemismo elementar, através da constante evocação de um animal, espécie de

antepassado da raça humana - o touro. Somos pois transportados para um sentir

que o autor textual parece querer aproximar das mentalidades pré-lógicas dos

primitivos, de cunho religioso (estudado, por exemplo, por Lévy-Bruhl) , ou que

se quer aproximar de manifestações comportamentais e rituais passíveis de

explicação psicológica (à maneira de Wundt, de James ou de Freud).

(2) -Apud Mircea Eliade, op. cit., pp. 15 e 16.


(3) - Idem, ibidem, p. 17.
(4) -Idem, ibidem, p. 19.
A recomposição e redefinição da figura histórica de Sebastião passa antes

de mais pela revisitação de múltiplos espaços, nacionais ou não. Trata-se de uma

revisitação pois a alusão à nostalgia edénica, ao «illud tempore» dos deuses

criadores, está sempre subjacente ao texto e faz-nos sentir esses espaços como

«déjà vus». Estes espaços que se vão apossando de características de fertilidade e

de sacralidade entram em osmose com a personagem principal, que por seu turno

se vai enriquecendo de novos atributos que mostram o papel especial a que vai

sendo votado e que ora o aproximam de entidades totémicas (v.g. quando ele é o

próprio touro ou o próprio húmus), ora até do Messias bíblico.

Curiosamente, a instância narradora aproxima espaços do século XVI e do

século XX e mistura-lhes elementos representativos das estruturas específicas do

fenómeno religioso, como se quisesse afinal inseminar aí orientações de diferentes

estudiosos contemporâneos5 das relações com o sagrado (matriz de toda a

religiosidade, enquanto mundo da primordial exuberância da vida que tudo fecunda

e salva). Com efeito, é assim que a narrativa de António Cândido Franco faz

Sebastião e os seus pares aprofundarem a vivência arracional no contacto com o

«mundo sensível», numa tentativa de alcançar o inalcançável, qual «mundo

inteligível» (para parafrasearmos a conhecida e fértil binomia platónica). Em

contrapartida, Sebastião e esses seus próximos são mal interpretados pelas

personagens comuns; e, incompreendidos, vêmo-los submersos no «mysterium

tremendum» mas, ao mesmo tempo, no «mysterium fascinans» do mundo.

(5) - Desde a padronização da fenomenologia do sagrado levada a cabo por R. Otto em Das Heilige
(Breslau, 1914).
148

Conexamente, a leitura de Vida de Sebastião, Rei de Portugal pode

também catalisar a revelação através da cooperação interpretativa em torno de

sugestões numéricas. Dentro do mesmo espírito de exploração de sabedorias

ancestrais que anima o universo semiótico da narrativa de A. Cândido Franco,

importa ter presente que para a visão simbólica o número das coisas ou dos factos

permite aceder a uma verdadeira compreensão dos seres e da vida. Se na tradição

animista os números, como os nomes, libertam forças que formam uma corrente

subliminar, na cultura ocidental Platão fazia da interpretação dos números o mais

alto grau do conhecimento e a essência da harmonia cósmica e interior; a tradição

pitagórica associou também intimamente a ciência dos números aos ritmos

cósmicos; e de Boécio a Nicolau de Cusa pensou-se que a simbólica dos números

era o melhor meio de aproximação às Verdades divinas. Fundando-nos em Santo

Agostinho, seríamos levados (como Emile Mâle) a sublinhar a ideia de que não só

mundo físico e mundo moral se constroem sobre números eternos, como também a

beleza, sendo harmonia, se constrói sobre números.

Através da melhor tradição literária ocidental, até à Légende des Siècles de

V. Hugo, passou o antropomorfismo simbólico do número; e, em pleno século

XX, entre as próprias Vanguardas históricas, em especial com o Surrealismo,

actua o princípio de que «contar permite construir e simbolizar» e um gosto

esotérico pelo valor dos números.7 A estrutura aritmética colhe a predilecção de

(6) - Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dictionnaire des Symboles, Paris, Éditions Robert Laffont, 1985,
p. 677.
(7) - Jean-Yves Tadié, O romance no século XX, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1992, pp. 105, 106.
149

muitos escritores do século XX - desde Raymond Queneau a Almada Negreiros; e

na narrativa a numeração dos capítulos traduz por vezes a presença de uma

estrutura profunda, que emerge em processos da estrutura de superfície, como o

diálogo, o monólogo, o alcance ditemático, a difonia paródica, etc.

Em Vida de Sebastião Rei de Portugal os símbolos numéricos mais

relevantes são o três (e seus múltiplos), o quatro (menos manifesto, mas muito

presente através dos quatro Elementos - terra, água, ar, fogo) e o sete (em que

três e quatro se somam).8

O livro, para além da «Introdução» e das «Notas finais» a que se juntam as

«Fontes», avança na sua acção por três fases e cada uma dessas fases cobre três

capítulos. E não escasseiam os passos em que o narrador nos dá a captar a

interferência desse símbolo numérico. No dia 3 do terceiro mês de 1506 nasce o

Infante D. Luís, único poeta entre os tios de Sebastião e aquele de que mais terá

herdado o seu espírito. Aos 3 anos D. Henrique, depois cardeal-rei, «pensa já com

certeza em ser papa»; seu irmão D. Duarte, «quase monométrico a adivinhar as

horas», aprendeu a falar latim «em três dias e três noites com André de Resende».

Três anos tinha Sebastião quando D. João III morreu; é um «rei de 3 anos, que uns

pediram fervorosamente a Deus e outros não se importariam de ter pedido ao

Diabo». A 3 de Novembro (de 1571) é conhecida em Portugal a decisiva vitória de

Lepanto (na batalha travada a 7 de Outubro). É a 3 de Janeiro de 1576 a

(8) - René Allendy, Le symbolisme des nombres. Paris, 1948.


150

premonitória, ou ominosa, corrida de touros de Sebastião ao pé de Beja. São três

as galés que Sebastião solicita quando decide partir a primeira vez para Marrocos;

«na madeira das três galeras» fazem as ondas um rumor que o narrador evoca sem

mais. Três dias se recolhe Sebastião, em pranto de luto pela morte de seu mestre

Luís Gonçalves da Câmara. E a fatídica e assombrosa batalha de Alcácer-Quibir

ficou conhecida (entre os marroquinos) como a «batalha dos três reis»...

Por outro lado, não será caso isolado, ou pelo menos despiciendo, o lance

em que «Os quatro moços de caça levam com eles sete falcões, um gavião e um

tigre com olhos verdes» - onde, aliás, os dois números grados surgem associados

a símbolos animalistas que noutros passos caracterizam o próprio Sebastião. No

delírio sebastianista do Nordeste brasileiro esperava-se «que aparecesse um D.

Sebastião, com asas de gavião e olhos de gazela» (sendo esta símbolo da acuidade

visual e por extensão da grande rapidez de espírito na compreensão). Noutro

passo, Sebastião revela-se «tão ágil como um tigre»10, sendo este símbolo de poder

e ferocidade, mas também no Sudoeste asiático um antepassado mítico e um

iniciante de neófitos. O falcão simboliza o princípio celeste; símbolo ascensional,

indica superioridade ou vitória, esperança na luz pela gnose esotérica. Associado

ao sol, também pode representar o princípio macho, diurno, solar, em confronto

com o princípio fêmea, nocturno, lunar.

(9) - António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, pp. 40, 47, 47, 49, 51, 88, 97, 114, 115,
136, 155.
(10)- Idem, ibidem, p. 111.
151

Compreende-se, pois, a compresença com o número sete e com o número

quatro: cada período lunar dura sete dias e são quatro os períodos que integram o

ciclo lunar.

Somando o quatro (a terra, com os quatro pontos cardeais, o sólido, o

tangível, o sensível, mas também a plenitude da cruz, o frequente símbolo bíblico

da ideia de universalidade) e o três (o céu, a ordem espiritual em Deus, no

Cosmos, no Homem, a omniformativa estrutura trinitária, a Trindade divina, etc.),

o sete representa a totalidade da vida universal em movimento, ou, no culto de

Apolo onde era típico, a totalidade do espaço e do tempo. Símbolo da vida eterna,

da perfeição dinâmica, do ciclo completo, pode indicar mudança de renovação

positiva após o encerramento de um ciclo; mas, assim, também na narrativa de A.

Cândido Franco pode trazer consigo a ansiedade da passagem do conhecido -

ciclo cumprido - ao desconhecido: qual o ciclo que vem?

2. «Cão» e «Touro»

Diferentes fábulas mitológicas associam o cão à morte, aos infernos, ou aos

impérios invisíveis que regem as divindades.

A primeira função mítica do cão é a de guia do homem na noite da morte,

depois de ter sido companheiro no dia da vida. O cão, para quem o invisível é familiar,

não se contenta em guiar os mortos; serve também de intercessor entre este mundo e

outro. Do Ocidente ao universo inteiro, e em todas as épocas, ele reaparece com

variantes que apenas enriquecem este primeiro simbolismo.


O símbolo muito complexo do cão está, à primeira vista, ligado à trilogia dos

elementos terra, água, lua, de que se conhece a significação oculta, feminina, ao

mesmo tempo vegetativa, sexual, divinatória, fundamental, tanto para o conceito de

inconsciente como de subconsciente.

O dom de clarividência e a familiaridade com a morte e as forças invisíveis da

noite podem tornar o cão suspeito de bruxaria. Dons divinatórios, associação a um

mito pré-arcaico de aproximação à chegada de tempos novos do ciclo agrário,

virtudes medicinais ou sexuais são outros tantos atributos fabulosos deste animal.

Considerado um antepassado mítico, ele é ao mesmo tempo guerreiro, herói libidinoso

e civilizador. Primeiro filho de amores incestuosos de um homem e de sua irmã, o cão

é o portador da centelha de fogo e de vida, símbolo da vitalidade sexual e portanto de

perenidade - sedutor, incontinente, transbordante de vida como a natureza na

Primavera.11

A aproximação de João, isto é, do Príncipe pai de Sebastião, ao cão é notória

desde o início do romance de António Cândido Franco. D. João aparece-nos como

alguém que «Tem uma vista apuradíssima e desde muito cedo que se sente nele um

faro palpitante, mais instintivo que reflexivo...Os seus olhos eram vermelhos e quase

incandescentes. Fitava o escuro como um jovem galgo...» . É esta capacidade de fácil

percepção, por um lado, e a força que se desprende dos seus olhos, por outro, que nos

começam a traçar o perfil de uma personagem de raras potencialidades. A insistência

em que possuía «uma bela estampa canina...», de que «o focinho tinha qualquer coisa

(11) - Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, op. cit., pp. 239, 245.
(12) - António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, p. 20.
de matreiro e brincalhão» e de que os olhos «eram luminosos e avermelhados.

Pareciam rubis de vidro vermelho ou brasas vivas [...] como o fogo puro», é outro

indício que alarga simbolicamente as potencialidades desta personagem João,

intuitiva e nervosa («Tem esse ar nervoso e apertado dos cães de pêlo muito liso e

castanho»).13

O narrador diz claramente que João, numa caracterização estranhamente

indissociável, é «uma das melhores personificações de Eros. Faz-me lembrar aqueles

cães voadores com corpo de serpente todo anelado e esguio. É húmido e

comunicativo, subtil e penetrante. Está sempre vivo e atento. Ele é Eros a satisfazer

Psique [...] Eros é um cão de mercúrio, frio à vista mas quente no contacto. [...]

...tinha esse ar canino que os adolescentes têm no meio da paixão ou da

delinquência...»14

A própria Joana, isto é, a Princesa mãe de D. Sebastião, é considerada uma

«espécie de perdigueira fecunda»15, numa alusão directa quer ao mítico vector

sexual e fecundador do cão, quer à função da princesa espanhola.

Estas insinuações vêm a revelar-se pertinentes e importantes para quem, como

o narrador, pretende mostrar que Sebastião é gerado por pais que têm excepcionais

potencialidades fecundadoras. Aliás, se só em fase bastante mais adiantada desta ficção

a simbologia do cão retorna, é então para conotar práticas do já jovem rei - «Todos

(13) - Idem, ibidem, pp. 21, 22, 24.


(14) - Idem, ibidem, pp. 27 e 29.
(15) - Idem, ibidem, p. 33.
154

começam de repente a maravilhar-se com o desenvolvimento da sua força física e da

sua capacidade corporal [...] cada vez capaz de revelar mais e mais dotes

surpreendentes. Amestra cães»16 - ou para frisar a presença do companheiro ou

guia no retrato que Cristóvão de Morais dele fez - «Ve-se ao pé da armadura

negra a cabeça de um cão com coleira de cabedal, e que tanto pode ser uma das

cabeças de Cerebero como de qualquer outro cão mítico da Antiguidade», «Esse

guia é o cão [...] e que bem pode chamar-se Tejo, nome vulgar de cão no

Ribatejo...».17

Por outro lado, sobrelevando a importância simbológica do «cão», em Vida

de Sebastião Rei de Portugal a figura do touro está frequentemente presente,

como um leit-motiv e potencial conotador da figura do protagonista, marcado por

sinais corporais pouco normais («seis dedos no pé direito [...] de unhas fortes e

rijas [...] duras como cascos») desde o seu nascimento de criança tão desejada.18

Apresentado no capítulo III como «um menino que tem alguma coisa de

touro ou de pomba»19, ele aparece-nos, pelo mão do narrador, no retrato de

Cristóvão de Morais como um jovem toureiro («na cabeça um curto chapéu que

mais parece o toucado de dois bicos que os toureiros usam»)20, como alguém que

para se defender usa «Essa protecção no centro do corpo, que sobe e o envolve

(16) -Idem, ibidem, p. 66


(17) -Idem, ibidem, p. 89.
(18) -Idem, ibidem, pp. 31, 51.
(\9)-Idem, ibidem, p. 51.
(20) - Idem, ibidem, p. 67.
155

como um corno», como alguém que se ginastica «praticando exercícios violentos

que eram mais dignos de um campino da lezíria» e se torna «um exímio corredor

de touros».21

Ora, as ideias de poder e de ímpeto violento são parte integrante da

imagem histórico-cultural do touro. Ele evoca o macho impetuoso; lembra o

terrível Minotauro, guarda do labirinto, e assegura que a sua semente abundante

fertilizará a terra.

Símbolo da força criadora, trata-se de um animal que na antiga Hélade era

consagrado a Poseidon, deus dos oceanos e das tempestades, ou consagrado a

Dionisos, deus da virilidade fecunda. Na tradição islâmica, o touro pertencia ao

ciclo dos símbolos suportes da criação. Relacionado com o culto da Grande-Mãe,

a lua, muitas vezes figurava Osíris; e em mitos antigos o touro primordial

depositara a sua semente no astro da noite. As fases da lua e os chifres do touro

misturam-se com frequência.

O ritual do baptismo com sangue do touro, introduzido na Itália no séc. II,

vindo da Ásia Menor, mostra-nos o iniciado a receber a energia vital deste animal

(considerado com o leão o mais vigoroso): este sangue regenerar-lhe-à o corpo e

facilitar-lhe-á o acesso à vida espiritual e imortal.

De origem iraniana, o culto de Mitra, divindade solar que representa o deus

morto e ressuscitado, comportava também um sacrifício deste animal sagrado, na

luta das forças do bem contra as do mal que daria acesso à luz eterna. Neste

(21) - Idem, ibidem, pp. 69 e 70.


156

sacrifício ver-se-ia também a penetração do princípio macho no princípio fêmea,

do fogo no húmido, do sol na lua - e assim explicar-se-ia o simbolismo da

fecundidade. Porém, o sentido da simbologia mais expandida do culto de Mitra é o

de alternância cíclica da morte e da ressureição e o de unidade permanente do

princípio da vida.22

No romance de António Cândido Franco, a aproximação de Sebastião à

figura de Mitra surge no capítulo IV, encimado pelo impressionante título «Teoria

da Tragédia». Este deus da Antiguidade, que tem como data de nascimento 25 de

Dezembro, tal como Cristo, depois de ter encontrado o touro espetou-lhe a faca «e

deixou-o moribundo. Ele desfez-se em sangue, ferido de morte. Deste sangue que

se espalhou por todos os lados, nasceram depois, num instante, todas as pedras,

todas as plantas, todos os animais e até todas as estrelas. O touro era o ser que

continha o sangue e por isso, ao dar vida, ele empresta o princípio vital a tudo

aquilo que ainda o não tinha».23

Só com dez anos, Sebastião começa a dominar cavalos em «arenas

improvisadas e a correr touros»24, numa região do país apresentada como propícia

a sonhos de grandeza. Ora, para o narrador, «O touro é que nos dá o significado

dessa cultura e até desse homem [...] campino ou toureiro. Nada como o touro

pode dar-nos o sentido do Ribatejo e da sua cultura humana, que foi largamente a

cultura que o português exportou para o mundo quando por ele andou. Eu acho

(22) - Jean Chevalier/Alain Gheerbrant, Dictionnaire des Symboles, pp. 929-934; Alexandre H. Krappe,
La genèse des Mythes, Paris, 1952, p. 87; Mircea Eliade, Traité d'histoire des religions, Paris, 1968, pp.
82 e 157.
(23) - António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, p. 81.
(24) - Idem, ibidem, p. 73.
157

que o português no mundo sempre se portou como o campino se porta na lezíria: a

mesma audácia [...] o mesmo risco aventureiro [...] a mesma coragem de

sonhar».25

Para o mesmo narrador, o touro, animal primordial, «Criador do mundo»,

«mestre materno capaz de criar a matéria», confunde-se com a terra; e «na arena

do Ribatejo é o touro que dá vida à lezíria, esse enorme areal que à força de

estrume, de sangue e de sonho se tem feito terra fofa e quente».26

Consequentemente, a narrativa de António Cândido Franco sugere que, tal como

na fábula mítica de Mitra, a terra assim fecundada dará origem a mundos novos. É

por isso que «uma praça de touros é mais religiosa e mais bela que uma igreja [...].

Nada há mais parecido a esse anfiteatro grego, esse recinto onde os deuses se

mascararam de homens e os homens de deuses, que uma praça de touros [...] em

cada touro eu encontro os tempos de criação original, que são tempos não só

genesíacos e poderosos como profundamente livres».27

Se (sem deixar de aludir ao poder poiético da arte, réplica dos ritos

litúrgicos), a referência e a comparação da igreja e do anfiteatro grego a praça de

touros sacraliza este último espaço de modo claro e insistente (até chegar o

momento em que o narrador proclama que «A missa do português é a tourada

porque é na tourada que ele aprende que o sangue da morte redime a Natureza

(25) - Idem, ibidem, p. 81.


(26) - Idem, ibidem, p. 82.
(27) - Idem, ibidem, p. 82 e 83.
158

transformando-se em Amon>), além disso a narrativa de António Cândido Franco

valoriza o touro como animal cosmogónico e ligado ao renascer cíclico da

Primavera: «Todos os anos na Primavera, não é só a terra que sai vencedora, é

também o touro que se ergue real e vitorioso, no horizonte, com os seus cornos

em forma de crescente como uma estampa azul ou um planeta acabado de

nascer».28

Tal como no antigo Egipto o touro que traz entre os chifres um disco solar

é ao mesmo tempo um símbolo da fecundidade e uma divindade funerária ligada a

Osíris e ao seu renascimento, assim na parte final do capítulo IV («Teoria da

Tragédia») o narrador afirma que «O toureiro é a última profissão viril que liga o

homem da era industrial às eras genesíacas e gloriosas do Paraíso». Como o touro

tem «a mesma força caótica e primordial» de um sismo, se «Sebastião governou o

mundo [...] que lhe era dado governar com a mesma temeridade, o mesmo sentido

de aventura e de igualdade com que um toureiro lida na arena com um touro» ,

este jovem rei é capaz de ter força e capacidade de originar novo ciclo de

governação de Portugal e de orientação do mundo.

As referências que aproximam Sebastião do touro são múltiplas e até

repetitivas. As frases «correu touros» e «lidou o touro» repetem-se no V capítulo,

denominado «Primeira Torre», enquanto a existência da «rua do Touril»

documenta a importância da actividade das touradas.30

(28) -Idem, ibidem, p. 83.


(29) -Idem, ibidem, p. 84.
(30) - Idem, ibidem, pp. 95 e 96.
159

No mesmo capítulo esse animal possante é denominado «estrela caótica» e

referenciado como tendo «um dos flancos traseiros marcados com uma lua» e «os

seus cornos redondos em forma de crescente».31

A própria morte do touro é descrita espectacularmente, com «um punhal

enterrado no cachaço e o sangue a sair aos borbotões», enquanto se considera que

é o «sangue da morte que redime a Natureza».32

O narrador chega a ultrapassar, no sentido da identificação, as simbologias

vulgarmente conhecidas para a relação do toureiro (do Homem?) com o touro. De

facto, vai até afirmar que «tourear a pé é estar tão perto do touro que se acaba por

pôr a sua máscara. Sempre achei que os minúsculos chapéus de duas abas pretas

que os matadores de capa e espada usam na testa e no pino da cabeça se parecem

muito com a meia-lua que os touros têm nos cornos. Os toureiros que lidam a pé

estão tão próximos do alcance do touro que acabam por se transformar em alguma

coisa de parecido com ele». Claro está que Sebastião «correu de novo touros e

voltou a espantar as pessoas [...] com os seus hábitos estranhos de tourear a pé»,

deduzindo-se assim que o jovem monarca também se assemelharia àquele animal

sagrado; e, logo, «Sebastião, à força de se aproximar dos touros, pôs-se ele

próprio a soprar fumo pelas narinas e a arranhar com o casco na arena» (ou, o que

para o narrador não está longe da equivalência, assim o imaginou, antes de todos,

o S. Paulo do bandarrismo, D. João de Castro, que por isso «faz de Alcácer-Quibir

(31)- Idem, ibidem, p. 97.


(32) - Idem, ibidem, p. 97.
(33) - Idem, ibidem, p. 98.
160

o recinto sagrado onde Sebastião deu a sua última tourada»).

Mas o mais significativo (até pelo pós-baudelairiano enlace de mors-amor)

é o ritual tauromáquico e eroto-sacral comparticipado por Sebastião e pelo touro:

«É o momento em que a fusão do homem e do touro parece mais uma cópula entre

dois seres que se desejam ardentemente que numa luta de morte. De repente, o

touro vacilou nas pernas e o sol desapareceu no horizonte. (...) A morte do touro

ou do homem é numa praça o momento mesmo em que a morte se transforma em

amor».35

Já no capítulo seguinte, intitulado «Os Jardins de Tânger», Sebastião é

referenciado como um meninotauro extremamente rebelde. E no capítulo VIII,

«Apologia da Derrota», a planície de Alcácer-Quibir «é mais uma campina ao

modo do Ribatejo», mostrando-se assim paradoxalmente com potencialidades

daquela terra fecunda. Aí surge Sebastião «como um jovem touro, todo vestido de

negro», cujo sangue se torna em «alimento» que ainda hoje «está a fecundar os

campos e a história».36 No capítulo IX, intitulado «As loucuras finais», Sebastião

é apelidado de «nobre touro»37; e no capítulo X, em Notas sobre o Encoberto,

afirma-se que Sebastião «queria era andar pelo Ribatejo»38, em terra fértil e

propícia ao renascimento. E a escrita pode, nas subjacentes correlações

tauromáquico-míticas e agónico-genesíacas, forjar ambiente apropriado a esse

(34) - Idem, ibidem, p. 99.


(35) - Idem, ibidem, p. 99.
(36) - Idem, ibidem, pp. 159, 162 e 165.
(37) -Idem, ibidem, p. 189.
(38) - Idem, ibidem, p. 206.
161

renascimento: «Cita-se assim a escrita com o mesmo à-vontade com que num

redondel se cita [...] um touro».39

Os bovinos, tal como os caninos, podem pois aparecer ligados a epifanias

terrestres. Se o cão é intuitivo e propicia uma fácil comunicação, o touro é

«poderosa criatura horizontal e ventral».40 O peso, a espessura, a lentidão, a

estabilidade ganham, nessa esfera arquetípica, um valor terrestre de canto báquico.

Nesta obra literária compreende-se a presença constante de animais como o

touro e o cão e a especulação simbológica em torno deles, pois o narrador parece

querer fundar contextos adequados à gestação de uma nova epifania política para

Portugal.

«Nas antigas línguas [...] terra e touro diziam-se da mesma maneira e com

a mesma palavra»41, o que de alguma maneira põe em evidência a confusa

ambiguidade entre criador e criado. Mas, por outro lado, como é próprio da

literatura pós-moderna, desliza-se da mitografia para o mito gráfico, onde pela

linguagem/escrita tudo virtualmente se pode criar.

3. Eros, Numen/Mythos, Polis

Podemos desde já interrogarmo-nos por que razão escrever um pequeno

sub-capítulo sobre o amor, quando se quer analisar este livro ambiguamente ficcional

(39) - Idem, ibidem, p. 206.


(40) - Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, op. cit., p. 934.
(41 ) - António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, p. 82.
162

de António Cândido Franco que é ao mesmo tempo memória e recriação prospectiva

de uma figura política tão carismática como Sebastião e que não se afirmou

pacificamente naquela vivência amorosa.

Ora, vamos procurar convocar os momentos em que a vivência do sentimento

amoroso se evidenciou dentro da narrativa e rearticular hermeneuticamente esses

passos a partir da hipótese interpretativa de íntimas conexões entre o amoroso, o

sagrado e o político (obrigando a prospecção de tais nexos entre Eros, Numen ou

Mythos e Polis, a certos passeios inferenciais, como ensinou U.Eco).

O modo como o autor textual de Vida de Sebastião Rei de Portugal se refere à

profundidade iluminada e luminosa do encontro vital acontecido entre os progenitores

do Príncipe, logo no capítulo I que se intitula «Amon>, deixa-nos entrever que uma

importante significação simbólica lhe é atribuída. Há, antes de mais, uma insinuação de

bem-estar indizível que se torna magicamente envolvente para o leitor. Sentimos que

aqueles momentos são autênticos momentos de satisfação superior e raros assomos de

paradisíaca completude. Aliás, a propósito do encontro de João e Joana o narrador

* refere-se ao «encontro do Douro e do Tejo, ou seja o de Apolo e o de Dionisos» ,

assim explorando sugestões de genius loci e as conotações nietzscheanas de projecção

mítica do desejo vital e da supressão de interditos, da fecundidade animal e humana, da

aliança de paixão e razão numa sabedoria que é fruto de conquista mais do que de

herança.

A alusão à raiz latina dos nomes dos pais de Sebastião (João e Joana) e à sua

(42) - Idem, ibidem, p. 84.


163

significação vem reforçar a ideia de que são um só ser com as suas componentes

obviamente diferenciadas no masculino e no feminino. As metáforas que acompanham

a expressão do que foi a curta vivência em comum, as suas conversas, os seus passeios

- numa natureza soberba, fecunda e acolhedora - com risos e correrias entusiasmadas,

as expressões fisionómicas que ecoam de modo exemplar, não só trazendo até nós

palavras lapidares de Octávio Paz - «o aqui e o lá, o mortal e o imortal por momentos

fimdem-se»43 -, como também podendo reavivar no leitor experiências pessoais de um

encantamento inesquecível e sempre novo.

A história de amor dos pais de Sebastião é igualada à de Inês de Castro e Pedro

em tragicidade e beleza. O seu interesse dilata-se e torna-se tipificador de Portugal,

país de perigos e ciladas: «Portugal é um país de histórias de amor, mas o Amor é um

sítio perigoso».44 Esta espacialização e etnicização do sentimento, que introduz uma

dimensão de estranhamento, adquire novas conotações quando vemos o entusiasta

monarca, imaginativo e incandescente, a misturar-se com o mar, aflorestae a terra de

aluvião.

As diferenças de João e Joana aproximam-nos pelo desejo de

complementaridade - «João e Joana são como dois irmãos que se reconhecem

inteiramente um no outro, não tanto pelo que lhes é comum, mas muito mais pelo que

lhes é diferente [...] João é o masculino de Joana como Joana é literalmente o feminino

de João, o que» - acrescenta o narrador nm dos seus desinibidos rasgos de glosa

sapiencial à maneira de Agustina - «pode levar-nos a pensar que a melancolia e a

(43) - Octávio Paz, A chama dupla - Amor e erotismo. Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, p. 80.
(44) - António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, p. 19.
164

tristeza são muitas vezes a descristalização do rigor da severidade». Mas, no fundo, a

sua proximidade de parentesco não podia ser maior, nem menos vertiginosa: «o

parentesco entre ambos quase não podia ser mais cerrado e o seu amor é quase um

incesto» e «não há amor nenhum tão belo e cativante como o incestuoso».

Aquela proximidade impõe-se-nos e o incesto surge-nos como um dos ecos

mais sublimes do estado de unidade original. O narrador insiste na afirmação de que o

incesto é uma união excepcional, eco da ligação original, embora tida por transgressão

grave do ponto de vista civilizacional («o amor entre irmãos, ou melhor até entre

gémeos, é não só um dos mitos poéticos mais cativantes como a forma de Amor

que mais longe está, como transgressão moral e cultural, da civilização»). Sendo

ambos do signo astral de Gémeos (que arrasta consigo a simbologia da dualidade,

a imagem de todas as oposições interiores e exteriores, contrárias ou

complementares, relativas ou absolutas, que se resolvem numa tensão criadora e

num jogo de desdobramento do ser que sente e conhece ao mesmo tempo como

actor e espectador de si mesmo), marcados pela inquietude e instabilidade de

Castor e Polux, afinal João e Joana, seres distintos, diferentes entre si, poderiam

tornar-se numa privilegiada imagem de totalidade - tal qual o narrador pretende

indiciar, desde o modo como nos mostra quanto a comunicação entre os dois foi

fácil, simples e profunda.48

(45) - Idem, ibidem, p. 22.


(46) - Idem, ibidem, p. 23.
(47) - Idem, ibidem, p. 23.
(48) - Idem, ibidem, p. 25.
165

O narrador de Vida de Sebastião Rei de Portugal identifica João como uma

personificação de Eros (que é o Corpo) e Joana como Psique. Situa assim a

relação amorosa dos pais de Sebastião num plano mítico, explicando que a doença

precoce, rápida e mortal do Príncipe D. João mais não é que a doença do amor,

pois «Eros adoece com facilidade, que Eros é o corpo, lugar de todas as

corrupções, e Psique a alma, lugar de todas as conservações possíveis.».49

A ligação amorosa entre os dois torna-se cada vez mais profunda, não

convencional e perigosa, no dizer do narrador. Até em Novembro os crepúsculos

são vistos pelas duas personagens amorosas como tendo alguma coisa de «aurorai»

e um manto espesso de verde é por eles percepcionado como «o verde da

Primavera». Prenuncia-se a morte de João e o nascimento de seu filho; e, quando

ocorrem, o narrador refere que o dia «que se segue à festa de S. Silvestre» é um

bom dia para morrer, porque «deve estar bem presente nesse dia que tanto

pertence ao passado como já ao futuro»51 a dualidade de Janus, deus indo-europeu

e romano de duas faces (deus das transições e das passagens, da evolução do

passado para o futuro, guarda das portas entre um universo e outro, observador do

interior e do exterior) a quem é consagrado o primeiro mês do ano e o primeiro dia

do mês. Consentaneamente, para o narrador, «Os túmulos têm», nesse primeiro dia

de Janeiro em que o pai de Sebastião morre, «alguma coisa de berços».52 E assim

(49) - Idem, ibidem, p. 27.


(50) - Idem, ibidem, p. 29.
(51) -Idem, ibidem, p. 31.
(52) -Idem, ibidem, p. 31.
166

Sebastião, filho de um Príncipe cuja «biografia é, no seu tempo, pelo menos tão

interessante como hoje a de Jim Morrisson» (visto o vocalista dos Doors como
53

«grande poeta rimbaldiano»), vem ao mundo sob o signo do advento de nova era.

Por um lado, a vida de João é mergulho vital na natureza, feito a dois, pois

Joana, sua componente imprescindível, acompanha-o em atitude de feliz revelação. Por

outro lado, sendo João um hebético conduzido à morte como «última ilusão do

amon>54, morrerá de sedes pavorosas, mas a sede que o matará jovem é duplicemente

insaciável e, talvez por isso, o filho a que irá dar origem herdará um grande apelo do

Absoluto, como marca profunda de um destino a que não poderá escapar.

Este apelo de plenitude tem em Sebastião uma dimensão sensual; mas a

dimensão erótica, tal como aparece em seus pais, não existe nele. Dado que o erotismo

é representação, e por isso é exclusivamente humano, a imaginação e a vontade são

determinantes no seu exercício, exigindo reinvenção e variação constante; é instinto e

explosão vital; é repressão e libertinagem, sublimação e preversão; vive dividido entre

abstinência e permissão, fascinação e medo, prazer e morte; enfim, é criação e

destruição - por onde João passa e, de outro modo, também Sebastião.

O filho engendrado por pais que se amaram excepcionalmente cumprirá um

itinerário de atracção sensual pela natureza, tão profundo como o do pai, mas de

maneira solitária. Nessa natureza Sebastião busca a beleza fecunda do desejo que

outros buscam na mulher, como se para a endossar depois à morte que o espera (não

nos terrenos férteis das suas juvenis errâncias, mas num deserto que ele irá fecundar

(53) -Idem, ibidem, p. 31.


(54) - Idem, ibidem, p. 28.
167

como nos mistérios sacrificiais de um ritual emento). Aliás, as mulheres deixavam-no

em desavontade, em confusas reacções, de sentido indeterminado (e, note-se,

valorizado anomalamente pelo narrador em função do Amor): «O Rei não mostrava

interesse pelo sexo oposto», «estava encarnadíssimo, o coração sem nexo e os olhos

cheios de névoas», «A impressão que a carne feminina lhe fazia era quase uma agonia e

é possível que esse pudor que ele sentia e mostrava fosse muitas vezes um dos sinais

mais belos do amoo>.55

Estas reacções misóginas podem remeter, no caso desta figura, para um

misterioso sentimento de suficiência fundada numa espécie de androginia anímica,

envolta em aura religiosa e votada à missão providencial. E insolitamente o narrador de

Vida de Sebastião Rei de Portugal enreda afigurado sonhado «Capitão de Cristo» em

equívocas sugestões que a deslocariam da luz única do ocidentalismo católico para as

reverberações múltiplas de concepções erótico-sacrais e gnóstico-políticas - tal como

a propósito da componente sebástica da revolta de Canudos diz que António

Conselheiro «pode perfeitamente ser imaginado como um desses cafusos ou

mamelucos, de espírito animista e panteísta» e aproxima os acontecimentos de

Pernambuco dos que «tiveram lugar na Antiguidade em torno de figuras como Átis,

Osíris, Adónis, Dionísios ou Cristo».56

A fecundadora união de Sebastião não é com uma mulher mas com uma morte

que miticamente o fará reviver vezes sem fim, até aos nossos dias, num projecto

(55) - Idem, ibidem, pp. 70, 71 e 106.


(56) - Idem, ibidem, p. 175
168

político de manter viva a chama de uma nação e de um império. Seria «um V Império

exequível também cristão, mas filho da Terra» e de um mundo com as características

dos nossos finais do séc. XX. Neste sentido, Sebastião vai aparecendo vestido com

roupagens, e ligado a profissões, próprias do nosso tempo - sem que os ocasionais

efeitos de humor faceto excluam ou rasurem no horizonte de leitura as sugestionações

de que a grande revelação surgirá, por força, de modo imprevisto, a qualquer

momento.

Sebastião, que está no fim de uma era e no início de outra, e que parece ter

poderes de excepção, manifesta funda densidade espiritual. A sua força interior,

alicerçada no contacto com natureza fecunda, tem fortes raízes num outro mundo de

plenitude, com que parece ter contactado.

Por isso, na leitura de Vida de Sebastião Rei de Portugal ganha pertinência que

a aproximação entre o erotismo e o religioso pode fazer-se ao pensarmos que o

erotismo é a sede de ser outro e o sobrenatural é o supremo ser-se outro.57 Assim se

convocam, para a função de horizontes de sentido na concretização literária desta

narrativa de António Cândido Franco, pressuposições de antigas e policêntricas

tradições eroto-religiosas, segundo as quais o impulso sexual é caminho para o

numinoso: ou porque permite a reintegração no Grande Todo, como nos gnósticos, ou

porque obriga a fortalecer a vontade, pois pratica a retenção do sémen, como nos

taoistas, ou porque se constitui em dádiva como no tantrismo hindu, ou ainda porque,

se o culto da castidade no Ocidente esteve ligado à ideia de que a alma imortal era

(57) - Octávio Paz, A chama dupla - Amor e erotismo, pp. 16 e 17.


169

prisioneira do corpo mortal, já pelas remanescências do judaísmo e por pontos capitais

da Tradição cristã o desprezo pelo corpo não impera, visto que há a exaltação

veterotestamentária dos seus poderes genésicos com o «crescei e multiplicai-vos»

bíblico, e, após a encarnação do Filho de Deus, vigora o dogma dos «corpos

gloriosos» no Cristianismo.

Perante o retrato (sempre mutante, aliás) do protagonista e as injunções que

nele têm as especulações do narrador (sempre propenso à apologia de hibridização de

tradições sacrais e de paradigmas histórico-culturais, se não de formações étnicas, em

ordem a nova síntese ecuménica), o leitor pode ser levado a evocar como no Oriente o

culto da castidade começou por ser método para alcançar a longevidade ou

posteriormente a possibilidade de adquirir, mediante o domínio dos sentidos, poderes

sobrenaturais e até imortalidade. Mas, sobretudo, actua como vector

semântico-pragmático de Vida de Sebastião Rei de Portugal a convicção de que a

castidade, quer no Oriente quer no Ocidente, pôde ser vivida como exercício ou prova

que produz uma fortificação espiritual e permite dar o salto do humano para o

sobrenatural.

Não menos ocorrerá ao leitor que, embora na tradição ocidental a fusão entre

sexual e espiritual seja menos frequente, há exemplos de que a comunhão com a

divindade ou com o «incondicionado», o êxtase e a libertação tanto podem ser

atingidos pela ascese como pelas práticas eróticas. O prazer sexual é assim aproximado

ao deleite do êxtase místico e da união com a divindade.

Na vertente greco-latina das fundações da cultura ocidental, Eros é uma

divindade que faz ponte entre a escuridão e a luz, a matéria e o espírito, o sexo e a
170

ideia, o aqui e o além. Eros foi presença invisível para a sua enamorada Psique. Tal

como o sol durante o dia, o excesso da luz torna-o invisível. Psique, a mulher mortal,

personificação da alma, eleva-se à imortalidade divina pelo amor de Eros que sente

atracção pela alma da pessoa amada, pela primeira vez na história de deuses

enamorados de mortais. O conto de Eros e Psique surge inserido em O asno de Ouro

de Apuleio que nos mostra a transgressão, o castigo e a redenção de Lúcio.58 São estes

três elementos que mais se irão converter em elementos constitutivos da concepção

ocidental do amor. No erótico há aceitação de uma atracção, no amor há escolha por

uma única pessoa - corpo e alma. O amor procura a pessoa inteira, embora não haja

amor sem erotismo.


Sendo a concepção de destino e de liberdade na civilização ocidental diferente

da oriental, no Ocidente o amor é um destino livremente escolhido, ou para que o

destino se cumpra é necessário a cumplicidade dos amantes: o amor é um nó no qual

se atam indissoluvelmente o destino e a liberdade. Mas também é certo que na

trajectória da cultura ocidental o amor surge muitas vezes como fruto dafilosofiae do

sentimento poético - via através da qual o amor se teria tornado, para nós,

portugueses como Sebastião, um culto. E a relação esquiva de Sebastião com o

erotismo pode não explicar-se redutoramente pela misoginia, nem pela falta de

sentimento poético do amor, mas pela predestinação andrógina.

(58) - Octávio Paz, op. cit., p. 23.


171

No plano do mito o andrógino pode valer porfiguraçãoantropomórfica do ovo

cósmico. Encontra-se tanto no início de qualquer cosmogonia como nofinalde toda a

escatologia, como alfa e ómega do mundo e do Ser. Mircea Eliade apresenta múltiplos

exemplos tirados de religiões várias (nórdicas, grega, egípcia, iraniana, chinesa e

indiana).59 No Homem, esta imagem duma unidade primeira tem expressão sexual,

apresentada frequentemente como a inocência, idade de ouro a reconquistar. A

primeira divisão cósmica, que diferencia noite e dia, céu e terra, também distingue yin

e yang, macho e fêmea. O Adão primordial, não macho mas andrógino, torna-se em

Adão e Eva. O andrógino é um ser duplo que possui os atributos dos dois sexos, ainda

unidos. Adónis, Dionisos, Castor e Polux têm ainda estes traços. No limite, toda a

divindade é bissexual e o regresso ao estado primordial faz-se pela fusão das

coincidentia oppositorum. Tornar-se um é o fim da vida humana e o próprio Adão,

que perdeu esta unicidade, vai procurar restabelecê-la através da purificação. Então a

androginia é também um dos caminhos, se não uma das características, da perfeição

espiritual, tal como surge em São Paulo e São João. Mircea Eliade60 refere a este

propósito a necessidade da metanóia, que Sebastião simboliza na narrativa de António

Cândido Franco.

Sensualidade, prazer na fusão com a natureza (campo, montanha ou mar,

sobretudo de horizontes largos e virados a sul), fervor na aproximação ao divino e ao

carisma de engendrar mundos novos, através de itinerâncias de distanciação, de

caminhos propícios à reflexão e ao aprofundamento da espiritualidade para se atingir

(59) - Mircea Eliade, O mito do eterno retorno. Lisboa, Edições 70, 1981, p. 126 e segs.
(60) - Mircea Eliade, Méphistophèles et I 'androgyne. Paris, Gallimard, 1962.
172

uma (re)conversão da História - eis os aspectos que parecem relevantes na trajectória

de Sebastião.

Por outro lado, à sua maneira, extraordinária e misteriosa, o protagonista da

narrativa de António Cândido Franco parece confirmar que a relação amorosa e a

actividade política são os extremos das relações humanas. À relação privada opõe-se a

relação pública, ao casal o grupo, à alcova a praça. Mas a concepção de pessoa

reflecte-se tanto na relação amorosa como na vida pública. Se a ideia de alma está

desvalorizada, a ambiência afectiva diminui e a noção de pessoa empobrece-se. É então

que a sensibilidade, valor indiscutível para o Homem cuja alma não é só intelecto,

desaparece nos corações vazios, ou fúteis, ou áridos - como o das personagens que

pontificam na Corte de que o jovem Sebastião se evade, incompatibilizado com o seu

regime de anulação do sonho, da imaginação, etc. Por isso, se infere que para narrador

e protagonista visionários (em anacrónica sintonia com o Octávio Paz de A Chama

Dupla) a regeneração política do Mundo passa pela ressureição do que é o estado

amoroso, misto de liberdade e submissão, de prazer e morte, de aqui e além, de

efémero e eterno.61

Em nosso entender, o alcance semântico-pragmático da narrativa de António

Cândido Franco sustenta-se em convicção idêntica à da ensaística de Octávio Paz,

segundo a qual qualquer destes ressurgimentos pressupõe a revitalização da ideia de

pessoa e da atitude de pasmo que o mistério da pessoa deve exercer sobre nós. A

imaginação criadora dos artistas, filósofos e cientistas tem de redescobrir o Homem

(61) - Octávio Paz, A chama dupla - Amor e erotismo, pp. 111 e segs.
173

nesse espanto ôntico, reinventar a pessoa, e assim reinventar o amor e a sociedade.

4. A indução do maravilhoso pela excepcionalidade de

personagens e do protagonista

Tanto as predisposições extraordinárias do rei e do núcleo sebástico,

quanto a incompreensão envolvente, manifestam ao leitor que medo e fascinação,

sofrimento e êxtase aventuroso, são transes (e atributos) inalienáveis para se

assumir uma vivência plena de criatura e de representante salvífíco de um Povo.

Estas experiências, revelações sincopadas e lacunares de aspectos do poder

divino, por um lado encontram limitações de linguagem e por outro, e exactamente

por isso, motivam modos de dizer novos (não só, nem sobretudo, pelo ineditismo

vocabular, mas pela translação semântico-pragmática viabilizada por inusuais

associações sintagmáticas e diegéticas, por transgressões narrativas). Como a

linguagem apenas pode sugerir, por termos tirados da experiência natural, o que

ultrapassa essa mesma experiência, quer as hierofanias, quer a terminologia

alegórica, quer a pulverização dos elementos estruturantes da narrativa, quer ainda

a subjectivação da História sobrevêm, num intento de fuga à prisão de palavras, de

nexos discursivos e de situações, numa tentativa de conquista de liberdade que

torne possível a criação de mundos desejados.

Sebastião surge-nos desde a Introdução da narrativa com traços complexos

e desconcertantes, que por vezes parecem querer-se envoltos em poética

indeterminação. Trata-se, aliás, de uma aura de sugestão em torno do protagonista


174

perfeitamente congruente com a decisiva asserção que, logo nos preliminares da

obra, o narrador profere sobre a índole e o sentido histórico-nacional da figura de

D. Sebastião: «Agora neste livro vou falar de Sebastião. Eu acho que a história de

Portugal está toda compreendida entre Inês de Castro e Sebastião, duzentos anos

de vida a criar mundos desde as Canárias até às Molucas. Se as feridas de Inês

foram a fonte onde Portugal bebeu ao peito o leite genesíaco do seu nascimento,

as feridas de Sebastião foram fonte onde Portugal bebeu, moribundo, o leite da

velhice e da ressureição. (...) Sebastião é, além de Inês de Castro, a única figura

verdadeiramente poética da história de Portugal.»

Por outro lado, de modo discontínuo mas reincidente, o narrador atribui a

Sebastião (e enfatiza como traços identificadores da sua personalidade e até do seu

valor arquetípico) os traços mais díspares e mais ou menos inesperados, à

contraluz do horizonte de expectativas do leitor informado pelas lições tradicionais

sobre a respectiva personagem histórica. Assim, ele será herói ou anti-herói, e será

também o «amante», o «louco», o «mistificador», o «bufão». Por isso, num

regime discursivo que, com frequentes lances de extrapolação e de redução, passa

do anedótico ao mitográfico e ao historiosófico, Sebastião tanto aparece capaz de

apontar uma espada, mas uma espada de papelão, numa atitude grotesca de lutador

vencido, quanto se vê exaltado como digno representante da dinastia de Avis, que,

criado nas planícies do Sul, vai, de costas para um Norte activo e produtivo (mas

(62) - António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, p. 11.


(63) - Idem, ibidem, pp. 11-14, 25, 31, 73-80, 99, 114, 117, 129, 143, 155, 163 e 173 sobretudo.
175

circunscrito no seu bom-senso) entregar-se, «do alto das ameias de melancólicos e

esboroados castelos», «a um delírio de expansão e de além».64

Como sempre acontece, a acesa loucura traz grandiosas e trágicas

consequências. Não se trata de um homem apenas desadaptado ao seu tempo, e

incompreendido, e acossado por uma patologia pessoal, mas sim de alguém que é

resultado de um longo processo familiar e histórico. Por isso, sendo «Santo ou

criminoso», «cómico», «espirituoso» ou «fanfarrão» e «palhaço», este rei peculiar

escapa-se da História com as suas dez mil guitarras, porque está interessado em

«inventar as coisas impossíveis». Amando «o sentido do estranho» que os mouros

possuíam, o jovem monarca era de um individualismo e de um aventureirismo que

assustavam os que tinham preocupações de governação. Viajar, peregrinar,

penetrar no desconhecido, eram aspirações que o arrebatavam completamente. Por

isso, o narrador faz questão de inferir que Sebastião era «um ser sujeito à

depressão da rotina e da urbanidade ou seja um ser destinado às origens e às

rupturas mais violentas».

Sebastião não suportava a mediocridade em que queriam fazê-lo mergulhar,

quer como rei, quer como homem. Fugiu espavorido da «estúpida» corte de D.

João III, «farto do tio que tinha ar de caprídeo, farto da avó que era maníaca e

farto das primas que passavam os dias a enfiar colares». Recusava o espaço da

corte e recusava as gentes, familiares ou não, que o cercavam.

A esterilidade vigente queria ele opor a estimulação do sonho. Para que

(64) - Idem, ibidem, p. 12 e ainda pp. 60, 68, 72, 93.


176

esta atitude criativa produzisse obra era necessário que ele se afastasse

corajosamente daquele ambiente.

Um jovem com estas características, descendente e depositário da tradição

de Avis, só poderia afirmar-se e realizar-se no tragicamente diferente - num

trajecto de vida como que preparado pelo amor excepcional entre os seus

invulgares pais, João e Joana.

De Joana destacam-se «o acarinhar entre as mãos o amor dos outros», o ser

«inocente» mas «capaz de praticar certas crueldades». Tinha hábitos de alguma

austeridade, «com horas muito rígidas para levantar e deitar». Tinha de fazer

orações «onde ardiam velas e cheirava a incenso e outros perfumes».65 Aparece

aproximada à infanta D. Maria devido à sua «independência de modos»; e refere-se

«A futura misoginia de Sebastião [que] poderá ter herdado da mãe alguma desta

independência do modo de ser».66 Ao deixar Espanha chorava e mostrava uma

certa severidade na sua tristeza; porém o Tejo surpreende-a e vem alterar-lhe a sua

melancolia. Era comedida, de «compostura rigorosa e rígida» embora fizesse

«pequenas pantominas», sabia «piano, latim e história».67 Enfim, inculca-se-nos

que a Princesa D. Joana se deixava captar pelo extraordinário e pelo fantástico.

João surge-nos como um ser com «outro ânimo, outra lucidez e uma outra

bondade», «suficientemente forte para ter inspirado um poema a Fernando Pessoa,

(65) - Idem, ibidem, pp. 19, 20, 21.


(66) - Idem, ibidem, p. 21.
(67) - Idem, ibidem, p. 22.
177

que foi sensível ao seu destino»68, bondoso, gostando de olhar as movimentações

das nuvens e de apreciar, como que vocacionado para o enigma, os «nós» da

madeira e os «entrançados» de mantas. É observador, dotado de «uma vista

apuradíssima», e tem «um faro palpitante [...] mais instintivo do que reflexivo».69

O narrador sublinha que conseguira sobreviver entre nove irmãos; e, tendo uma

«raridade absoluta», não só, como já vimos, é aproximado simbolicamente ao cão,

como também fita o escuro «como um jovem galgo [...] tem o nervoso intenso que

lhe activa mais a imaginação que a vida» e, complexo, frágil e enigmático,

possuindo uma «imaginação riquíssima e uma liberdade de modos surpreendente»,

apreciava andar sozinho à procura de «pistas e desígnios».

Generoso e risonho, de «ar sonhador e imaginativo», o filho herdou-lhe o

desejo de liberdade e a sabedoria. Sente-se bem em ambientes de «acampamento

de ciganos e da feira da ladra». «Podia usar um chapéu negro de cigano ou dançar

um ágil sapateado bem batido». É também aproximado aos toureiros («Tem um

lenço preso à cintura, como esses rabichos que os toureiros usam às vezes no

pescoço»). O seu «ar lúcido» era «o ar de estratosfera por onde andam aqueles

que, como Cyrano de Bergerac, de Rostand, olham a Terra do alto. O olho

esquerdo é diferente do direito e é possível que este príncipe, com alguma coisa de

diamante, tivesse miopia. A astúcia domina a sua figura».71

Para o desconcertante senso interpretativo (e para o desenvolto vezo

(68) -Idem, ibidem, p. 19.


(69) - Idem, ibidem, p. 20.
(70) - Idem, ibidem, p. 21.
(71) - Idem, ibidem, p. 33.
178

assertivo) do narrador, João «Equipara-se com toda a facilidade a figuras

mitológicas como Átis, Adónis ou até Osiris» («cujo corpo dava, depois de morto,

espigas de trigo», acrescenta o narrador cioso de explorar o simbolismo desse deus

agrário do velho Egipto, representativo do drama da existência humana enquanto

votada à morte mas dela triunfando periodicamente), tal como se vê comparado

também a Frank Sinatra («esse adolescente que morreu à janela, a cantar debaixo

da chuva como o Frank Sinatra debaixo das luzes»).

As aproximações deste ser tímido e sonhador ao pastor alentejano (donde

se pode retirar a caracterização da simplicidade originária), ao fogo puro, rápido e

regenerador, ao carácter nómada da população cigana e a um ambiente,

desordenado e aberto, de feira da ladra, mostra-nos alguém que permanece em

busca de outro mundo, indefinido mas apelativo.

«Os olhos tinham um pouco a ver com os do pai, que eram baços e

amarelados. Os dele eram luminosos e avermelhados [...] O filho herdou-lhe não só

a liberdade e as palavras sábias de pequeno príncipe, como o fogo puro que tão

depressa consumiu um como levedou o outro.», realça o narrador. Mas também,

tal como fará mais tarde com o filho do Príncipe D. João, o mesmo narrador tanto

o aproxima da figura de «bobo da corte e bufão de serviço», quanto põe em

(72) - Idem, ibidem, p. 33.


179

evidência o fascínio que João sente pelo «azul do mar», símbolo, como o azul

celeste, do Infinito.73

Do amor dos pais de Sebastião teríamos de reter a força avassaladora, uma

energia última, profunda e sobre-humana. Era do convívio com a natureza -

floresta, mar ou campos - que os seus progenitores retiravam forças, numa

ansiedade doentia de viver pleno, que só se entende quando João morre, ao

satisfazer uma sede física enorme que se agudiza quando «os campos estavam

todos carbonizados e amarelos». Esta patológica sede insaciável mais não é do que

sinal de uma outra sede de absoluto, para a qual João não encontra solução. É por

isso que surge a morte como via para uma última e imprescindível abertura; é por

isso que, para o narrador, «a história de ambos é tão trágica, e tão bela como a de

Inês de Castro e a de Pedro».74

Filho deste raro e trágico amor, Sebastião, criado sem pai e sem mãe, é

alimentado por uma misteriosa mulher que vozes sem nome e António Caetano de

Sousa julgam chamar-se, elucidativamente, Inês, com todas as conotações que,

neste autor ficcional, este nome acorda e reactiva.75

A seu lado, há que destacar o aio Aleixo de Meneses cujo perfil evidencia a

sua rara capacidade de intuição, junto a outros traços dissonantes e intrigantes. De

«ar seco e fantasmagórico e cabelo raro» faz lembrar Quixote; mas, ao mesmo

(73) - Idem, ibidem, pp. 21, 24, 24.


(74) -Idem, ibidem, p. 19.
(75) -Idem, ibidem, p. 32.
tempo, esta personagem, «espécie de aparição de neve e de nevoeiro», acrescenta

à «pontualidade» e «meticulosidade» um «ar engraçado de fantasma de circo» ou

de «momo de feira», ou ainda de «poeta popular».76 Pode concluir-se que as

características deste aio antecipam já potencialidades que se converterão em

aspectos da maneira de ser do jovem príncipe.

Do ponto de vista familiar há ainda que pôr em evidência relações positivas

entre Sebastião e seus tios Luís e Duarte. De D. Duarte herdaria a facilidade de

pensamento. Quanto ao relevante poeta maneirista, Infante D. Luís, não se deixou

manipular e acabou por se afastar da corte, indo para Beja «onde caça e estuda»;

e, tendo-o por liberal, generoso e ágil de espírito, considera o narrador que ele

deixou marcas indeléveis no sobrinho, o qual «herdou o melhor do espírito deste

seu tio».7

A própria educação posterior de Sebastião ora é levada a cabo por jesuítas,

como era prática selecta da época, ora se processa em experiência directa de

contacto com o povo ou com filhos de aristocratas que se deixam cobrir de

caracterizações de marginalidade (segundo o narrador, mais parecem «grupos de

salteadores», ou «bandidos», ou «anarquistas»).

Curiosamente a escolha de mestres para este adolescente tão especial

recairá sobre os jesuítas Luís Gonçalves da Câmara, professor de Humanidades

descendente dos descobridores da Madeira, e Amador Rebelo, ligado a Africa e ao

{16)-Idem, ibidem, pp. 54, 55, 55.


(77) - Idem, ibidem, pp. 11,41.
(78) -Idem, ibidem, pp. 114, 115, 115.
181

imaginário popular e conhecido por ser «meticuloso sem ser exigente».79 Também

estes mestres sentiam seduções e interesses que podiam vir a desenvolver certas

apetências latentes no discípulo.

Num núcleo contrastivo de personagens temos seu avô, D. João III, que no

capítulo II, «Incursões sobre a muralha», nos surge como indolente, como incapaz

de adquirir rudimentos de língua latina e como um desinteressado pela poesia

portuguesa. Altivo e supersticioso tem, no dizer do narrador, «qualquer coisa de

sinistro» e «Em adolescente já tinha a pele amarela e húmida, gorda e cerosa».80

Chamado de bobo, fora uma criança infeliz.

Neste grupo surge também seu tio Henrique, frio de carácter, ambicioso,

sem escrúpulos, intransigente, severo e até violento, embora aplicado e

trabalhador.

Sua avó, Catarina de Áustria, é recorrentemente focada como alguém que

não entende o neto, nem os seus interesses, nem as sua pretensas empresas.

Enleada pela corte lisboeta, não intui nem consegue 1er as entrelinhas mais

latentes. As ansiedades e as inquietudes dos futuros sonhados passam-lhe

completamente despercebidas.

Por isso, prevalecendo-se dos recursos metacronológicos (ou anacrónicos)

típicos desta narrativa pós-moderna, o narrador associa estas personagens adversas

ao destino misteriosamente extraordinário de Sebastião e a paradigmática

(79) -Idem, ibidem, p. 58.


(80) - Idem, ibidem, p. 38.
182

incompreensão que perante esse destino manifestou António Sérgio - numa

linhagem de racionalistas que não se elevam, segundo o narrador, para além do

pensado ou do verificado.

Escola importante é a vida na natureza (planície e serra, campina e bosque,

mar e rio, ou ria), no meio de animais (ovelhas, cavalos e touros), de dia, de noite

e nos crepúsculos aurorais.

Mas se o narrador tem toda a preocupação em traçar os perfis de Sebastião

e dos que lhe estão perto por afinidades electivas como «poetas», convirá

explicitar ainda algumas das características inerentes a esse epíteto. Assim, para

além de uma certa agilidade de espírito, rara intuição, capacidade de criação de

projectos, há ainda os aspectos de incompreensão e consequente solidão social, de

papel subversivo, ou de resistência selvagem aos defeitos da civilização, de

transformação de uma excepcionalidade em génio, em herói e em mito.

Este aspectos ressurgem complementarmente e em simultâneo da afirmação

de cada um deles.

No capítulo III, «O menino», vemos os astros a assinalar a vinda de

Sebastião ao mundo, quando «os trovões do céu podiam parecer foguetes».

Sebastião começa a ter um recorte verdadeiramente original logo no

(81) - «António Sérgio chamou-lhe asno e eu acho que sim, que o burro de Balaão viu no caminho o que o
profeta não foi capaz de ver (...). Um burro vê mais depressa os anjos e os arcanjos dos outros mundos que
um homem, por mais letrado e filósofo que seja.» (idem, ibidem, p. 14), «a sua história, como a de um
pobre tolo, está cheia daqueles disparates que acabam mais por fazer rir que chorar e cujo interesse o
nosso António Sérgio não foi capaz de medir. O elogio do disparate que fez rir e a apologia dos tolos à D.
Quixote, num mundo cada vez mais esburacado pelo juízo dos homens sérios e razoáveis, bem pode, ó
António Sérgio, começar.» (p. 205).
(82) - Idem, ibidem, pp. 12, 24, 28 e 29.
(83) - Idem, ibidem, p. 49.
183

primeiro capítulo, desde que se refere o secretismo do seu nascimento («correram

sempre as histórias mais desencontradas e misteriosas sobre este nascimento [...]

todas elas com qualquer coisa de enigmático e de verdadeiro [...] a história do

nascimento de Sebastião nunca foi inteiramente clara») e se evoca a ideia corrente

da «troca de crianças no berço, um pouco ao modo de Moisés».84

Do mesmo modo a excepcionalidade do príncipe é marcada pelos

invulgares sinais corporais da criança recém-nascida. É um príncipe com «cara

adorável», mas com «seis dedos no pé direito», «bébé ambíguo, de unhas fortes e

rijas e de cor tão mimosa e tenra como uma flor», «orelhas peludas de burro e

dedos de quadrilheiro» (que ao narrador fazem lembrar «o príncipe com orelhas de

burro de José Régio talvez porque [...] António Sérgio chamou pedaço de asno a

Sebastião»).85

São estas marcas que se constituirão progressivamente em «sinal misterioso

de uma eternidade», embora, com a «sua ambiguidade e a sua voz de falsete»,

tenham acusado Sebastião «de misoginia, de homossexualidade e de outras

perversões mentais».86

Entretanto sobrevêm a aproximação ao Menino Jesus, que se vai tornando

cada vez mais notória quer pelas situações que Sebastião vive e que se assemelham

(84) -Idem, ibidem, p. 31.


(85) - Idem, ibidem, pp. 31 e 32.
(86) -Idem, ibidem, pp. 14 e 51.
184

à História Bíblica, quer pelas referências directas e repetitivas do narrador

(«Sebastião tinha alguma coisa de Menino Jesus», «O Sebastião pequenino pode ir

para um altar de igreja de província entre talha dourada e mármore de Vila

Viçosa», etc.)- E se «Sebastião é mesmo nesta idade de menino, o Menino Jesus da

cartolinha», ele é também «o Menino Jesus entre os doutores».87

Numa primeira fase, apenas com meia dúzia de anos faz pasmar os seus

mestres e a própria corte: emite opiniões pertinentes que ultrapassam a sua idade,

mostra rara e alargada cultura, desenvolve raciocínios inesperados. É então que o

próprio Sebastião parece dizer que «será capitão de Deus» e que afirma «Em

sendo grande hei-de ir conquistar a África»88 - predição (e auto-predestinação)

que a edição da narrativa de António Cândido Franco destaca como lema ao

inseri-la na capa, sotoposta ao título.

A esta maturidade pouco própria da idade vem aliar-se uma sageza intuitiva

que revela capacidade de percepção sensorial e afectiva, à maneira do Petit Prince

de Saint-Exupéry. Decisão de caminhos e intuição para captar o que apenas se

adivinha são dois aspectos que raramente coexistem, mas que Sebastião parecia

precocemente desenvolver.

Mas tal siso de criança é considerado pelo narrador como um excesso, «o

primeiro sinal da anormalidade ou da loucura do rei Sebastião».89

Este desenvolvimento intelectual e moral é acompanhado também de um

(87) -Idem, ibidem, pp. 58, 59 e 60.


(88) - Idem, ibidem, pp. 60 e 66.
(89) - Idem, ibidem, p. 65.
185

desenvolvimento físico pouco comum. O bastar-se a si próprio, sem ajudas do

camareiro, o modo como veste («veste-se com a rede de acrobatas»), ou os

comportamentos que assume com seu «ar de artista de circo», impressionam os

que o rodeiam (e note-se, o narrador), passando a ser voz corrente os seus feitos

«inquietantes», ou as suas reacções tão pouco habituais e para-taomatúrgicas,

como o facto de os seus ferimentos sararem «de um dia para o outro» e o seu

sangue secar dificilmente onde cai. Assim ganhava aura e gerava maravilhoso: «As

monjas da Anunciada e as de Xabregas tinham visões com ele.».90

Mais tarde, é em convívio solitário com a natureza que Sebastião se vai

desenvolvendo fisicamente: «Onde se opera esse desenvolvimento físico é no

Ribatejo, nos arredores de Almeirim e de Salvaterra de Magos, onde passa agora

grandes temporadas».91

E quando, na contrafacetada página derradeira, o narrador destaca que «Ele

queria era andar pelo Ribatejo que é o Tejo feito terra»92, intuímos que, sem

embargo do contexto burlesco, aí culmina um vector textual de valorização da

importância do habitat propiciatório ao destino mitogenésico de Sebastião, pois

terra fértil é a de aluvião, a terra ciclicamente submersa, e é neste ambiente de

massa moldável que é possível a regeneração do Homem, dos povos, do mundo.

(90) - Idem, ibidem, pp. 66 e 67.


(91) - Idem, ibidem, p. 66.
(92) - Idem, ibidem, p. 206.
186

A prática contínua de exercícios diários e violentos com sacos de areia,

pedras e troncos de árvores pesados, confere-lhe uma força tal que começam a

surgir «histórias inquietantes» em Lisboa.93

O espanto é geral ao saber-se que, com 11 anos, cortara com a espada uma

tocha de quatro pavios e matara um porco selvagem. Esta excepcionalidade

alarga-se, não incidindo apenas no aspecto físico. Outros acontecimentos são

referidos como as «histórias misteriosas nos matagais», os «passeios» estranhos,

«os dias perdidos entre os sobreiros» e ainda o convívio com animais, em

estábulos, onde acaba por dormir, paralelamente ao ter-se tornado «num domador

infalível de cavalos selvagens e em exímio corredor de touros».

Desta faceta de D. Sebastião, ou desta vertente do insólito Bildungsroman

que também é Vida de Sebastião Rei de Portugal, retira o desenvolto e

peremptório narrador, no seu registo sapiencial e doutrinador, associações de

ludismo libertador de constrições convencionais, estímulos de desmesura temerária

e qualificações ético-políticas: «Sebastião governou touros e domou potros da

Golegã e de Abrantes. Aprendeu acrobacias com saltimbancos e viu engolidores de

fogo nas encruzilhadas que há ao pé de Almeirim. Foi lá, no Ribatejo, em contacto

com uma pré-história cosmogónica ainda, que formou o seu espírito de louco e de

aventureiro. Sebastião governou o mundo que lhe era dado governar com a mesma

temeridade, o mesmo sentido de aventura e de igualdade com que um toureiro lida

(93) - Idem, ibidem, p. 67.


(94) - Idem, ibidem, p. 69.
187

na arena com um touro. (...) Em vez do açougue ou das prisões preferiu as arenas

e os campos. Nunca lhe perdoaram, na corte de João III, corte que vivia de

seguros e de empréstimos numa mistificação ímpar, a limpidez da alma que uma tal

atitude exigia.».95

O povo sente-se arrastado pelo jovem adolescente. A admiração e a

atracção populares crescem à medida que o contacto com as populações aumenta

nesse Portugal do sul, nomeadamente quando faz toureio a pé. Os ambientes

rústicos e primitivos agradavam ao jovem rei; e talvez por isso o contacto com o

povo fosse fácil e natural quer nas conversas que alimentava, quer nos jogos que

organizava.

Este menino «bondoso», «cumpridor», «atencioso e bem-educado», com

«demasias de virtude e cortesia», dá lugar a um adolescente fora do comum

também e que «começa a causar alguma apreensão». São as pessoas com quem

convive (ovelheiro, eremita ou saltimbancos), as histórias misteriosas a que está

ligado, os interesses esquisitos que mostra. Na infância admiram-no pelos

princípios, na adolescência faz pasmar pela «constância com que vive os princípios

que por serem princípios muitas vezes originais acabam por ser marginais às

próprias regras de convivência social».96

A sua temeridade assustava, mas o mais grave era o desinteresse pelo sexo

oposto, que afinal vinha acentuar a anormalidade do monarca. Mas, na

sintagmática desta narrativa de António Cândido Franco, a ambiguidade sexual de

(95) -Idem, ibidem, pp. 84-85.


(96) - Idem, ibidem, pp. 68 e 69.
188

D. Sebastião aproxima-o da completude (e da fusão de saberes másculos e feminis)

dos hermafroditas da Antiguidade.

Todavia, como os que foram crianças sábias acabam sempre por ser loucos,

também Sebastião dá indícios prematuros de anomalia demencial. Como rei, a

primeira atitude de louco surge com a ida a Alcobaça para exumar alguns dos seus

antepassados mortos. Chega a pôr em pé o cadáver de D. João II, a quem quer

fazer beijar a mão.97

O feitio aventureiro e o ar de quem «está prestes a tornar-se um mito ou

um herói»98 dá-lhe um ar ambíguo, ao mesmo tempo interrogativo e exaltado ou

transtornado e sonhador.

De noite, afasta-se e «costumam vê-lo, a correr, nas areias do litoral e a

tomar banho nas águas do Oceano» com grande temeridade. As areias de Almeirim

não têm segredos para este jovem príncipe para quem, sedento de energias

primigénias, o Ribatejo surge como «a grande praia cultivada», «a tensão

constante entre a terra e a água»99, e como húmus duma significativa cultura

pré-histórica do campino ou toureiro, donde virá até nós a rica e fecunda

simbologia do touro, mas também a definição etnológica (o português é campino

com toda a sua audácia, risco aventureiro, individualismo presunçoso e coragem

indomável de sonhar).

(97) - Idem, ibidem, pp. 76-77.


(98) - Idem, ibidem, p. 88.
(99) -Idem, ibidem, p. 81.
189

O seu «sentido do estranho», que talvez lhe tenha sido comunicado pela

influência islâmica do sul, mostra inequivocamente a sua fuga à rotina e ao urbano

(preferentemente representados, por metonímia ou por sinédoque narrativas, no

espaço humano da Corte) e um desejo seu de ligação às origens. A movimentação

através do país mostra bem o carácter de nómada, de peregrino, cuja inquietude e

ansiedade não permitem a pacificação interior; e de alguma maneira «esta

mobilidade funciona em Sebastião como uma espécie da sua essência futura».100

Frequentemente a agilidade de pensamento do rei é aproximada à

capacidade de poeta no «Fazer (e desfazer) silogismos» (e por isso o narrador

supõe que Sebastião terá herdado essa faculdade «decerto do tio Luís», o poeta

maneirista).101

Depois, a aproximação do rei a poetas como Rimbaud ou Camões evidencia

as potencialidades criadoras daquele. A aproximação a um poeta sempre inquieto

como Rimbaud e a aproximação de ambos ao Menino Jesus são feitas equivaler a

«motivo de espanto, como de medo ou como até de riso».102 O carácter enigmático

de frases que escreve ou diz, o parecer inspirado, o comportar-se como

«estouvado» e até pouco conveniente, só evidenciam que este fabuloso Sebastião

não se adapta à situação do que a corte desejava para o jovem príncipe.

A sua sacralização e mitificação são crescentes - «na altura em que

completa 20 anos, Sebastião recebe, (...) do papa Gregório XIII, um seta do

(100) - Idem, ibidem, p. 110.


(101)- Idem, ibidem, p. 111.
(102) . Idem, ibidem, p. 104.
190

martírio de Sebastião santo. Camões, a propósito da seta, incita-o em versos a

passar à Africa, e vaticina-lhe grandes vitórias.»103 - e impõem-se-nos de tal

maneira que passamos a aceitar que tudo seja possível com esta figura - até as

reencarnações em gente comum da sociedade urbano-industrial do século XX,

como um mecânico de automóveis ou um vendedor de móveis. Porém, ao lado da

aparente catástrofe ou catábase desses avatares, com o aparecimento da criança

loira na Nazaré, ou com os fenómenos sebastianistas do Nordeste brasileiro,

voltamos a sentir uma luz, sinal, evocatio de um português e de um país por

enquanto perdidos - como se a «mesquinha e vil tristeza» camoniana ou o «Falta

cumprir-se Portugal» pessoano tivessem gerado nova esperança na exequibilidade

(próxima? remota?) do prognóstico anteposto à narrativa através da epígrafe

buscada no Húmus de Raul Brandão: «Através da paciência e da mentira, todo o

esforço do homem tende para outro homem, para o homem ideal, para a figura de

sonho, que há-de ser um dia a criação dos vivos e dos mortos - o sonho realizado

- o universo realizado.»104

(103) -Idem, ibidem, p. 112.


(104) -Apud A. Cândido Franco, op. cit., p.9.
191

CONCLUSÃO

Ao longo do estudo que aqui encerramos, tentámos discernir e acompanhar

o trajecto de uma dramatis persona que é «menino» e «touro», e «meninotauro»

em seu agónico e pregnante labirinto.

Vida de Sebastião Rei de Portugal não procura incorporar-se na já

abundante bibliografia documental e crítica sobre o Sebastianismo histórico e

sobre o Sebastianismo mítico-cultural, mas não prescinde de manipular os dados

colhidos nessa bibliografia para o exercício de uma insólita aventura especulativa e

literária em torno da caricatura da figura e da fábula sebásticas.

Nessa experiência, Vida de Sebastião Rei de Portugal afasta-se quer de

visões redutoramente imanentistas e materialistas da História, quer duma

historiosofia escatológica e providencialista, mas não se exime a uma

desconcertante atitude de profetismo; e procede a uma "hagiografia" paradoxal da

insânia de Sebastião, recusando os termos dilemáticos da opção tradicional entre a

apologia do herói nacional padronizada na «Questão Sebástica» por um Carlos


192

Malheiro Dias e a sua exautoração pelo racionalismo crítico de um António

Sérgio.

Assim, Vida de Sebastião Rei de Portugal envereda pela recriação paródica

do mito e do seu protagonista para insinuar uma actualizada concepção da Nação

portuguesa como unidade de destino no universal e da sua vocação histórica para

descobrir caminhos por onde a Humanidade poderá consumar um desígnio

ecuménico e libertário de vida harmoniosa segundo a ética do Amor.

Por isso, a obra de António Cândido Franco assume consequentes

contornos estético-literários: torna-se narrativa ficcional e metaficcional, histórica

e meta-histórica, com a hibridização de programas estruturais (que relevam de

códigos de diferentes géneros e subgéneros) e com as características

semântico-pragmáticas e técnico-compositivas que têm sido consideradas típicas

da narrativa pós-moderna.

Destacam-se nessa configuração textual as intrusões culturalistas de um

autor textual e narrador cujo contexto vertical se distingue por insólito e fecundo

cruzamento de dois vectores histórico-literários - um, de saudosismo

neo-romântico, outro de surrealismo anarquizante.

Nesse quadro assim dominado por pendores culturais ou atitudes

existenciais de palingenesia e acracia, Vida de Sebastião Rei de Portugal promove,

segundo uma estética do grotesco, a bondade e a prevalência de formas

desqualificadas ou anómalas, marginais ou malditas, de agir e de conhecer -

sobretudo a "loucura" - , porque visa uma sabedoria de vida regida pelo «sonho»

brandoniano e justificada teleologicamente pelo «ideal» brandoniano.


193

A linha de integração superadora, mas também linha de fuga, dessas

postulações passa pela primazia da energia amante e da axiologia amorosa. Daí, o

vínculo essencial que António Cândido Franco estabelece entre D. Sebastião e Inês

de Castro; daí, o valor ímpar que atribui a essas duas figuras míticas.
194

BIBLIOGRAFIA

A.A.V.V., Le Singe à la porte: Vers une théorie de la parodie. New York, Lang,
1984.

ARNAUT, Ana Paula - Memorial do Convento - História, ficção e ideologia.


Coimbra, Fora do texto, 1996.

AZEVEDO, João Lúcio de - A Evolução do Sebastianismo, 2a ed., Lisboa,


Clássica Editora, 1947.

BAKTINE, Mikhail - Esthétique et théorie du roman. Paris, Gallimard, 1978.

BARBÉRIS, Pierre -Prélude à l'Utopie. Paris, P.U.F., 1991.

BARTHES, Roland -«L'effet du réel», in Communications, 1968, N° 11.

BORGES, Paulo A. E. Borges - «António Cândido Franco», in Biblos - Enciclopédia


Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, Lisboa, Ed. Verbo, Vol. II, 681-683.

BOTELHO, Afonso - Da Saudade ao Saudosismo. Lisboa, ICLP, 1990.

BOTELHO, Afonso - «Mito da supervivência do Amor», in Independência - Revista


de Cultura Lusíada, Lisboa, N° 7, 1994.

BRÉCHON, Robert - «Prefácio à tradução francesa», in Virgílio Ferreira, Alegria


Breve, 5a ed.. Lisboa, Bertrand, 1981.

BRITO, Ferreira de - Requiem pelas vanguardas do século XX (A propósito de


Les Samourais, de Kristeva), Separata de Intercâmbio- Revista do Instituto de
Estudos Franceses da Universidade do Porto, 1992.

BUESCU, Helena C. - «Travelling Through Spacetime in the 20th Century


European Novel», in Yearbook of Comparative and General Literature, 41, 1993.

CALABRE SE, Omar - // linguagio dell 'artel. Milano Bompiani, 1985.


195

CALABRESE, Omar - Mille di questi anni. Roma, Laterza, 1991.

CAILLOIS, Roger- Le Mythe et l'Homme. Paris, Gallimard, 1972.

CARDOSO, Miguel Esteves - «As minhas desculpas pelo romance que escrevi», in A
Phala, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, pp. 4-5.

CARDOSO, Miguel Esteves - O amor éfodido, Lisboa, Assírio & Alvim, 1994.

CHAVES, Castelo Branco - O romance histórico no romantismo português.


Lisboa, I.C.L.P., 1979.

COELHO, Nelly Novaes - «Linguagem e ambiguidade na ficção portuguesa


contemporânea», in Colóquio/Letras, N° 12, Março 1973.

CORTI, Maria - «I generi letterari in prospettiva semiológica», in Strumenti


Critici, VI, 1, 1971.

CROS, Edmond - Literatura, Ideologia y Sociedad. Madrid, Gredos, 1986.

DAMÁSIO, António R. - O erro de Descartes.Emoção, razão e cérebro humano.


Lisboa, Europa América, 1995.

DOLEZEL, L. - «Possible worlds and literary fictions» in S. Alien (ed.), Possible


worlds in Humanities, Arts and sciences. Berlin/New York, W. de Gruyter, pp.
221-242.

DUCROT, Oswald, e Todorov, Tzvetan - Dicionário das ciências da linguagem.


Lisboa, Dom Quixote, 1973.

DURAND, Gilbert - Mito e Sociedade. A Mitaanálise e a sociologia das


profundezas. Lisboa, A regra do jogo, 1983.

DURAND, Gilbert - As Estruturas Antropológicas do Imaginário. Lisboa, Editorial


Presença, 1989.

ECO, Umberto - O Nome da Rosa. Lisboa, Difel, 1980.

ECO, Umberto - Leitura de Texto Literário. Lector in fabula. Lisboa, Editorial


Presença, 1983.

ELIADE, Mircea - Méphistophélès et I 'androgyne. Paris, Gallimard, 1981.

ELIADE, Mircea - Initiation, rites, sociétés secrètes. Paris, Gallimard, 1959.

ELIADE, Mircea - Traité d'histoire des religions. Paris, Payot, 1975.


196

ELIADE, Mircea - O sagrado e o profano - A essência das religiões, Lisboa,


Livros do Brasil, s./d.

ELIAS, Amy Jeanne - Spatializing History: Representing History in the


Postmodernist Novel. UMI, Pensylvania State University, 1991.

ELIOT, T. S. - Ensaios de Doutrina Crítica. Lisboa, Guimarães Editores, 1962.

FORSTER, E. M - Aspects of the novel. London, Edward Arnold, 1937.

FOWLER, Lastair - Kinds of literature: an introduction to the theory of genres


and modes. Cambridge, Mass., Harvard Univ. Press, 1982.

FRANCO, Antonio Cândido - Memória de Inês de Castro. Lisboa, Publicações


Europa América, 1990.

FRANCO, António Cândido - Vida de Sebastião Rei de Portugal. Lisboa,


Publicações Europa-América, 1991.

FRANCO, António Cândido Franco - Teoria e Palavra. Lisboa, Átrio, 1991.

GALOPENTIA-ERETESCU, Sanda - «Grammaire de la parodie», in Cahiers de


linguistique théorique et appliquée, 1969, VI.

GENETTE, Gérard -Palimpsestes. Paris, Seuil, 1982.

GENETTE, G. - «Récit fictionnel, récit factuel», in Fiction et diction. Paris,


Seuil, 1991.

GIANETO, Nella - «Rassegna sulla parodia nella letteratura», in Lettere Italiane,


1977, XXIX, 4.

GUEDES, Maria Estela - «António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro», in


Colóquio/Letras, n° 120, Abril-Junho 1991.

HALS ALL, W. Albert - «Le roman historique», Poétique n° 57, Février, 1984, Seuil,
pp. 81-105.

HAMON, Philippe - Expositions. Paris, J. Corti, 1989.

HUTCHEON, Linda - Narcissistic Narrative: The Metafictional Paradox. New


York/London, Methuen, 1984.

HUTCHEON, Linda - A Poetics of posmodernism - History, Theory, Fiction.


New York/London, Routledge, 1988.
197

HUTCHEON, Linda -A theory of parody., New York, Methuen, 1985 (ed. port:
Uma Teoria da Paródia. Lisboa, Edições 70, 1989).

ISER, W. - The act of reading. A Theory of aesthetic response.


Baltimore/London, The Johns Hopkins, Univ. Press, 1980.

ISER, Wolfgang - Prospecting. Baltimore, The Johns Hopkins Univ. Press, 1989.

JEAN CHEVALIER/ALAIN GHEERBRANT, Dictionnaire des Symboles. Paris,


Editions Robert Laffont, 1985.

JIMENEZ, Jesus Garcia - La imagen narrativa. Madrid, Editorial Paraminfo,


1995.

KRAPPE, Alexandre H. - La genèse des Mythes, Paris, 1952.

KRYSSINSSKY, W. - «L'énonciation et la question du récit», in M. Arrivé e J.


C. Cognet (eds.), Semiotique enjeu. Paris/Philadelphia, Hades-Benjamins, 1987.

KUESTER, Martin - Framing Truths -Parodie Structures in Contemporary


English-Canadian Historical Novels. Toronto, University of Toronto Press, 1992.

LEENHARDT, Jacques -«A construção da identidade pessoal e social através da


história e da literatura», in J. Leenhardt e Sandra J. Pesavento (orgs.), Discurso
Histórico e Narrativa Literária. Campinas, Editora da UNICAMP, 1998.

LIMA, Isabel Pires de - «Tempos sebásticos: os fins de século», in Marie-Hélène


Piwnik (ed.), Regaras sur deux fins siècles (XDC-XJC). Bordeaux, Maison des Pays
Ibériques, 1996.

LIPOVETSKY, Gilles - O Crepúsculo do Dever - A ética indolor dos novos tempos


democráticos. Lisboa, Dom Quixote, 1994.

LOBO, A. Costa - Origens do Sebastianismo, 2a ed., Lisboa, Ed. Rolim, 1982.

LOBO, Luzia - Teorias poéticas do Romantismo, Porto Alegre, 1987.

LOURENÇO, Eduardo - Labirinto da Saudade, Lisboa, Dom Quixote, 1978.

LOURENÇO, Eduardo - Nós e a Europa ou as duas razões, 3 a ed., Lisboa,


INCM, 1990

LOURENÇO, Eduardo - Portugal como Destino. Lisboa, Gradiva, 1999.

LUKÁCS, G. - Le Roman Historique. Paris, Payot, 1977.


198

MACHADO, Álvaro Manuel -A novelística portuguesa contemporânea. Lisboa,


ICLP, 1977.

MACHADO, Álvaro Manuel - Agustina Bessa-Luís - O Imaginário Total. Lisboa,


Publ. Dom Quixote, 1983.

MACHADO, Álvaro Manuel - Agustina Bessa-Luís - O Imaginário Total. Lisboa,


Publ. Dom Quixote, 1983.

MAGLIOLA, Robert R. - Phenomenology and Literature - An Introduction.


West Lafayette-Indiana, Purdue Univ. Press, 1977.

MAGNY, Claude-Edmonde - L'Age du roman américain. Paris, Seuil, 1948.

MARINHO, Maria de Fátima - Inês de Castro - Outra era a vez... Separata de


Línguas Literaturas - Revista da Faculdade de Letras, Porto, 1990.

MARINHO, Maria de Fátima - O romance histórico de Alexandre Herculano,


Porto, 1992 (sep. da Revista da Faculdade de Letras, II série, Vol. IX).

MARINHO, Maria de Fátima - «O sentido da História em Mário de Carvalho»,


Porto, Separata de Línguas e Literaturas - Revista da Faculdade de Letras, Vol.
XIII, 1992.

MARINHO, Maria de Fátima - «Isabel de Aragão, Rainha Santa: entre o


romance e a biografia», in Vitorino Nemésio, Vinte anos depois. Lisboa/Ponta
Delgada, Ed. Cosmos & S.I.E.N., 1998.

MARINHO, Maria de Fátima -«O romance histórico pós-moderno em Portugal»,


in Actas do Quinto da Associação Internacional de Lusitanistas. Oxford/Coimbra,
1998.

MARTIN, D. - Literature and possible worlds. London, Middlesex Polytechnic


Press, 1983.

MARTIN, Wallace - Recent theories of narrative. Ithaca and London, Cornell


University Press, 1986.

MARTIN, Wallace -Recent theories of narrative, 3 o ed., London/Ithaca, Cornell


Univ. Press, 1994.

MARTINEZ, Lídia - Cartas de Pedro e Inez - O mel do meu consolo. Lisboa,


Ulmeiro, 1994.
199

MARTINS, Adriana Alves de Paula - História e Ficção - Um diálogo. Lisboa,


Fim de Século Ed., 1994.

MENTON, Seymour - La nueva novela histórica de la América Latina, 1979-1992.


México, Fondo de Cultura Económica, 1993.

MINER, Earl - «That Literature Is a Kind of Knowledge», in Critical Inquiry,


Vol. 2, N° 3, Spring 1976.

NAVA, Luis Miguel - «Carta inédita de L. M. N. a Antonio Cândido Franco», in


Colóquio/Letras, N° 135-136, Lisboa, Janeiro-Junho de 1995.

OMMUNDSEN, Wenche - Metafictions? Reflexivity in contemporary texts,


Melbourne University Press, 1993.

PARRET, H. - «Les stratégies pragmatiques», in Communications, 32, 1980.

PAZ, Octávio - O arco e a lira, Rio de Janeiro, Edições Nova Fronteira, 1982.

PAZ, Octávio - A chama dupla - Amor e erotismo. Lisboa, Assírio & Alvim,
1995.

PERLOFF, Marjorie - Postmodern Genres, Nou and England, University of


Oklahoma Press, 1989.

PIMENTEL, F. J. Vieira - «Em torno do ensino das literaturas nacionais: algumas


considerações», Arquipélago-Línguas e Literatura. XV, 1998.

PIRES, António Machado - D. Sebastião e o Encoberto. Lisboa, Fundação C.


Gulbenkian, 1969.

PRETO, Célia Fernandez - Historia y Novela Poética de la Novela Histórica.


Pamplona, Ed. Universidad de Navarra, 1998.

QUADROS, António - Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, 2 Vols.,


Lisboa, Guimarães Ed., 1982-83.

QUADROS, António - Portugal, Razão e Mistério, 2 Vols., Lisboa, Guimarães


Ed., 1986 e 1987.

QUADROS, António, A ideia de Portugal na literatura portuguesa nos últimos


cem anos. Lisboa, Fundação Lusíada, 1989.

QUADROS, António - A Teoria da História em Portugal, Vol. II, A dinâmica da


História. Lisboa, Espiral, s./d.
200

RAIMOND, Michel - La crise du roman. Des lendemains du Naturalisme aux


années vingt. Paris, Libraire José Corti, 1965.

RAMA, Carlos M. - La Historia y la novela, 2a ed., Madrid, Ed. Tecnos, 1975.

REIS, Carlos - «Fait historique et référence fictionelle; le roman historique», in


Dedadus (Revista Portuguesa de Literatura Comparada), N° 2, Dezembro de 1992;

REIS, Carlos - «Estatuto ideológico y semionarrativo de la novela histórica», in Maria


Gracia Profeti et al, Refundación de la Semiótica. Sevilla, Editorial Don Quijote,
1993.

REIS, Carlos, e Lopes, Ana Cristina M. - Dicionário de Narratologia. Coimbra,


Almedina, 1990.

RICOEUR, Paul - «Pour une théorie du discours narratif», in D. Tiffeneau (ed.),


Lanarrativité. Paris, C.N.R.S., 1980.

RICOEUR, Paul - Temps et récit. Paris, Seuil, Vol. I, 1983, Vol. II, 1984, Vol.
III, 1985.

ROIG, Adrian - Inesiana. Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra,


1986.

ROMÁN, Isabel - «La organización enunciativa de la novela histórica», in


Discurso, N° 2, 1988.

ROSE, Margaret A. - Parody - Meta-Fiction. London, Croom Helm, 1979.

SARAIVA, Arnaldo - (org.), O que é o erotismo! Lisboa, Editorial Presença, s./d.

SARRAUTE, Nathalie -L'ère du soupçon. Paris, Gallimard, 1956.

SCHMIDT, Siegfried - La communicazione letteraria. Milano, il Saggiatore,


1983.

SCHMIDT, Siegfried - Foundations for the empirical study of literature.


Hamburg, Helmut Buste Verlage, 1982.

SCHNEIDER, Marcel - Histoire de la littérature fantastique en France. Paris,


Fayard, 1985.

SERRÃO, Joel - Do Sebastianismo ao Socialismo em Portugal. Lisboa, Livros


Horizonte, 1969.
201

SHAW, Harry -The Forms of Historical Fiction, 2a ed., Ithaca & London, Cornell
Univ. Press, 1985.

SILVA, Agostinho da - Considerações e outros textos. Lisboa, Assírio & Alvim,


1988.

SILVA, Vitor Manuel de Aguiar e - Teoria da Literatura, 4a ed., Coimbra,


Almedina, 1982.

SOUSA, Maria Leonor Machado de - Inês de Castro - Um Tema Português na


Europa. Lisboa, Edições 70, s./d.

SOUSA, Maria Leonor Machado de - Inês de Castro na literatura portuguesa.


Lisboa, ICLP, 1984.

SOUSA, Maria Leonor Machado de - Mito e Criação Literária. Lisboa, Livros


Horizonte, 1985.

TADIÉ, Jean-Yves - O romance no século XX. Lisboa, Publicações Dom Quixote,


1992.

TELMO, António - História Secreta de Portugal. Lisboa, Vega, s./d.

TELMO, António - Gramática Secreta da Língua Portuguesa. Lisboa, Guimarães


Editores, 1981.

TELMO, António - Horóscopo de Portugal. Lisboa, Guimarães Editores, 1997.

THOMSON, Philipe - The Grotesque. London, Methuen, 1972.

TURNER, Joseph - «The Kinds of Historical Fiction: An Essay in Definition and


Methodology», in Genre, Oklahoma, t.XII, 1979.

USPENSKY, B. -A poetics of composition. Berkeley, California, 1973.

VALENSI, Lucette - Fables de la Mémoire - La glorieuse bataille des trois rois.


Paris, Seuil, 1992.

VANOOSTHUYSE, Michel - Le Roman Historique (Mann, Brecht, Doblin). Paris,


P.U.F., 1996.

VEIGA, José Alberto - Fonction et Signification Sociologique du Messianisme


Sébastianiste dans la Société Portugaise. Paris, Sorbonne (éd. polie), 1979.
202

WESSELING, Elisabeth - Writing History as a Prophet - Post-modernist Innovations


of the Historical Novel. Amsterdam & Philadelphia, John Benjamins Publishing
Company, 1991.

WHITE, Hayden - Metahistory: The historical imagination in nineteenth-century


Europe. Baltimore and London, The Johns Hopkins Univ. Press, 1973.

White, Hayden - Tropics of discourse. Baltimore and London, The Johns


Hopkins Univ. Press, 1978.

WHITE, Hayden - The Content of Form - Narrative Dircourse and Historical


Represention. Baltimore/London, The Johns Hopkins Univ. Press., 1987.

WITTGENSTEIN, Ludwig - Tratado Lógico-Filosófíco Investigações Filosóficas.


Lisboa, Fundação C. Gulbenkian.
203

ÍNDICE

PREFACIO

INTRODUÇÃO

CAPITULO I
MEMÓRIA DE INÊS DE CASTRO E OS
CAMINHOS DA IDENTIDADE 8

CAPÍTULO II
UMA NARRATIVA PLURICODIFICADA
(VECTORES DE MODOS, GÉNEROS E SUBGÉNEROS
EM VIDA DE SEBASTIÃO REI DE PORTUGA!) 38

CAPÍTULO III
CONTAR DE NOVO E/OU CONHECER 60

CAPÍTULO IV
SUBVERSÃO HISTÓRICA E FUGA FICCIONAL
EM VIDA DE SEBASTIÃO REI DE PORTUGAL 109

CAPÍTULO V
FIGURAÇÃO SIMBÓLICA E MARAVILHOSO
EM VIDA DE SEBASTIÃO REI DE PORTUGAL 144

COCNCLUSÃO 191

BIBLIOGRAFIA 194

Вам также может понравиться