PR-00098813 /e01'7
MINISTERIO PUBLICO FEDERAL
PROCURADORIA FEDERAL DOS DIREITOS DO CIDADAO
Excelentissimo Senhor Procurador-Geral da Republica
A Procuradora Federal dos Direitos do Cidadao vem,
respeitosamente, encaminhar a Vossa Exceléncia representagiio firmada por um
conjunto de parlamentares contra o deputado federal Jair Messias Bolsonaro, em
razAo de afirmagoes feitas por ocasitio de palestra realizada no Clube Hebraica no
Rio de Janeiro, em 3 de abril do ano em curso,
A despeito de a representago conter argumentos suficientes
para 0 propésito ali declinado, gostaria de reforgar dois pontos. O primeiro deles
€ quanto & tipificagao do delito previsto no art. 20 da Lei 7.716/89', no momento
em que o deputado Jair Bolsonaro diz: “Eu fui num quilombo. O afrodescendente
mais leve 14 pesava sete arrobas. Nao fazem nada! Eu acho que nem para
procriador ele serve mais. Mais de RS 1 bilho por ano € gastado com eles”
Nao ha, nessa fala, divida ou ambiguidade alguma; ao
contraério, ha intengdo clara de discriminar a populagao negra, em especial os
remanescentes de quilombos. Basta ver que o discurso é estruturado com recurso
a logica da escravidio, quando qualifica o afrodescendente como se mercadoria
fosse (“o afrodescendente mais leve ld pesava sete arrobas”), destituido, portanto,
aS
‘“praticar, induzir ou incitar a discriminagao ou preconceito de raga, cor, etnia, religiao ou
procedéncia nacional”.MINISTERIO PUBLICO FEDERAL
dos atributos da pessoa humana. E mais, reproduz a justificativa recorrente
daquele regime: o escravo é declarado impermedvel 4 ética e aos valores (“Nao
fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais”).
E possivel afirmar, sem medo de errar, que o discurso de
Bolsonaro constitui a forma clissica, tipica, emblematica, do preconceito racial e
Gtnico, que se expressa sem amarras ¢ sem dissimulagdes,
segundo ponto diz respeito & imunidade parlamentar, que
jamais pode ser considerada absoluta.
Isso porque nio ha norma que esteja a salvo da necesséria
* ensina
acomodago com outros valores inscritos no texto constitucional. Hess
que “a conexao e a interdependéncia dos elementos individuais da Constituigdo
fundamentam a necessidade de olhar nunca somente a norma individual, senio
sempre também a conexo total na qual ela deve ser colocada”. E seria um
absurdo supor que a cléusula da imunidade parlamentar autorize manifestagdo
que atente contra a democracia, 0 pluralismo social, a seguranga publica, o
E:
‘ado de direito, enfim os valores mais caros da sociedade nacional.
O preambulo da Constituigao, cuja forga ao menos
hermenéutica é por todos admitida, diz que o propésito da reuniio. dos
representantes do povo brasileira na Assembleia Nacional Constituinte € “instituir
um Estado democratico, destinado a assegurar 0 exercicio dos direitos sociais ¢
individuais, a liberdade, a seguranga, o bem-estar, 0 desenvolvimento, a
igualdade e a justiga como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista
@ sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem
interna e internacional, com a solu
pacifica das controvérsias”. Esse idedrio é
reproduzido ao longo de toda a Constituigdo e de forma textual especialmente em
seus arts, 1° € 3°, ® .
'HESSE, Konrad. Elementos de direlto constitucional de Republica Federal da Alemanha, Porto Alegr
Fabris, 1998, p. 65,MINISTERIO PUBLICO FEDERAL
Discursos desse tipo, que se propdem a incitar ao menos 0
desprezo contra determinados segmentos sociais, nao podem estar protegidos por
uma ordem constitucional que os condena tio veementemente. De resto, é a
propria nogao de democracia que fica comprometida. Segundo Daniel Sarmento’,
¢ adotarmos uma concepeao deliberativa de democracia,
que a concebe ndo como mera forma de governo da
maioria, ou de agregagio e cémputo dos interesses
individuais de cidadaos egoistas e autocentrados, mas
como um complexo processo politico voltado ao
entendimento, pelo qual pessoas livres ¢ iguais procuram
tomar decisdes coletivas que favoregam ao bem comum,
buscando 0 equacionamento de diferengas e desacordos
através do didlogo, veremos que 0 hate speech sé
prejudica o funcionamento do processo democratico.
Prejudica, porque tende a produzir dentre as suas vitimas
ou o revide violento ou o siléncio humilhado. No primeiro
caso, hé riscos evidentes para a paz, social e para a ordem
pblica. Ao invés de uma discusso voltada para o bem
comum, corre-se 0 risco de deflagracao de uma verdadeira
guerra no espago piblico, em que a politica ver-se-ia
reduzida ao modelo de Carl Schmitt, de batalha entre
inimigos, que é tudo menos democratico.
No segundo
0, as vitimas do édio, oprimidas,
humilhadas e sentido-se deserdadas por um Estado que se
Tecusa a protegé-las, retraem-se e abandonam a esfera
Piiblica. O resultado é prejudicial no s6 a elas, que sao
privadas do exercicio efetivo da sua cidadania, como a
toda a sociedade, que perde o acesso a vozes e pontos de
“Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp.238-239
PsMINISTERIO PUBLICO FEDERAL
vista relevantes, cuja expresso na arena _piiblica
enriqueceria ¢ pluralizaria o debate publico”,
Nao ha exereicio de mandato que possa ser concebido como
um atentado a democracia.
De todo modo, a jurisprudéncia pacifica do STF ¢ no sentido
de que a imunidade material parlamentar, “especialmente com relagio a
éncia de nexo de
declaragdes proferidas fora da Casa Legislativa, requer a ¢
implicagao entre as declaragdes ¢ 0 exercicio do mandato™.
E, no caso, as declaragdes foram feitas fora do Parlamento, ¢
certamente 0 exercicio do mandato parlamentar nao se presta a fomentar édio,
discriminagao e preconceito contra segmentos da populagao brasileira.
Com esas consideragdes adicionais, encaminho a
representagdo anexa, instruida com a documentacio pertinente, somando-me ao
pleito de oferecimento de deniincia contra Jair Mes
as Bolsonaro, pela pratica do
crime previsto no art. 20 da Lei 7.716/89.
Informo, por fim, a Vossa Exceléncia que estou
encaminhando cépia da representagao e dos documentos juntados & Procuradoria
da Republica no Rio de Janeiro, para eventual agao civel.
Brasilia, 7 de abril de 2017.
AAI)
Debordh Duprat
Procuradora Federal dos Direitos do Cidadao
‘vg. Ing, 3948, Relatora Ministra Rosa Weber, Primeira Turma, publ. Dje-023, 7/2/2017)