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Bacharelando em Direito (UFPB)
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“Todos têm direito à vida. #enhuma legislação jamais poderá tornar lícito um ato que
é intrinsecamente ilícito. Portanto, diante da ética que proíbe a eliminação de um ser
humano inocente, não se pode aceitar exceções. Os fetos anencefálicos não são
descartáveis. O aborto de feto com anencefalia é uma pena de morte decretada contra
um ser humano frágil e indefeso”2
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Trecho da nota da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) sobre a propositura da Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, que pede a liberação da antecipação terapêutica do
parto de fetos anencéfalos.
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de legitimidade das decisões nessa esfera não-legislativa. Conectando essas
considerações com a questão do aborto, a que se propõe este trabalho, é
interessantíssima a observação feita por DEBORA DINIZ e ANA CRISTINA
GONZÁLEZ VELÉZ:
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Aborto e Razón Pública: El Desafio da La Anencefalia en Brasil. In SérieAnis 40, Brasília,
LetrasLivres, 1-9, julho, 2005.
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A medida cautelar foi concedida4 pelo ministro relator da ação, Marco Aurélio, o
que culminou na explosão de um instigante debate público que, inevitavelmente,
deveria adentrar ao Tribunal. Em 30 de setembro, o mesmo ministro determinou a
realização de audiências públicas para a discussão do tema, permissão dada pelo art. 6º,
§1º, da lei nº 9.882/99; realizadas quase quatro anos depois, foram estruturadas,
basicamente, pelo embate ciência-religião5, com representantes da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil, Organização Não-Governamental Católicas pelo Direito
de Decidir, Associação Médico-Espírita do Brasil, Conselho Federal de Medicina, Rede
Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, Ministério da
Saúde, entre outros, todos na qualidade de amicus curae, como simbolismo da abertura
metodológica da interpretação constitucional (a sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição).
Como pontos centrais da discussão, (i) a ausência de potencialidade da vida de
um feto anencéfalo, (ii) o valor intrínseco a cada ser humano como fator de tutela geral
da vida a partir da concepção, (iii) a impossibilidade de “forçar”, por atuação legislativa
positiva, a criação de um novo excludente de tipicidade do aborto e (iv) a prevalência da
dignidade da pessoa humana da gestante frente a uma situação equiparada à tortura. A
citação feita logo no início deste trabalho resplandece um argumento valorativo que,
apesar de rechaçado do ponto de vista científico, ainda encontra significativa adesão na
construção da doutrina penal-constitucional contemporânea. A questão, por óbvio,
engloba um apurado debate jurídico, científico e filosófico que buscará ser
desenvolvido, ainda que de forma bastante elementar, ao longo deste trabalho.
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Em sessão realizada em 20 de outubro de 2004, o Plenário do STF resolveu referendar a primeira parte
da liminar e cassar sua segunda parte - justamente a que autorizava o aborto de fetos anencéfalos. Na
ocasião, o Ministro Cezar Peluso, hoje presidente do Tribunal, em voto intrigante, disse: “...A integridade
física e biológica da vida intra-uterina também está em jogo. No fim, o sofrimento em si não é nenhuma
coisa que degrade a dignidade humana; é um elemento inerente à vida humana” (grifamos).
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Interessante observação de Deborah Duprat, então Procuradora-geral da República, em 6 de julho de
2009, no parecer que entendia pela total viabilidade da ADPF 54: “(...) Cumpre advertir que o debate
posto nestes autos só pode ser discutido a partir de argumentos jurídicos, éticos e científicos, devendo-se
evitar, porque incabível neste sede, qualquer argumentação de cunho religioso. Num Estado laico e
pluralista, que, por imperativo constitucional (art. 19, I, CF), deve manter equidistância em relação às
diversas confissões religiosas, as questões jurídicas submetidas ao crivo do Poder Judiciário não podem
ser equacionadas, de forma explícita ou inconfessada, com base em dogmas de fé, mas apenas a partir de
razões públicas cuja aceitação não dependa da adesão a pré-compreensões teológicas ou metafísicas
determinadas”.
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A tensão no debate sobre o aborto (antecipação terapêutica do parto) de fetos
anencéfalos diz respeito à relação anencefalia-vida. A anencefalia representaria a
ausência de vida, a inviabilidade absoluta dela ou uma sobrevida que deve ser
considerada? É possível estabelecer um parâmetro objetivo capaz de atestar a partir de
que momento um feto estaria morto? Que consequências esse tipo de análise tem para a
dogmática penal?
A anencefalia é conceituada como a ausência total ou parcial do encéfalo e da
calota craniana, decorrente de um erro no fechamento do tubo neural (EFTN); é uma
patologia letal completamente incompatível com a vida6. Sua ocorrência se dá,
geralmente, pela carência de ácido fólico na dieta alimentar da gestante, não obstante
haja, no Brasil, instrumentos normativos que regulamentam a adição de tal substância
em determinados alimentos7. Nosso país é o 4º no mundo em frequência de anencefalia.
O feto, em 75% dos casos, “morre” dentro do próprio útero materno e a sua vida
extra-uterina pode variar de alguns poucos minutos a algumas semanas após o
nascimento. O fato é que a morte é um evento certo e o estado biológico é irreversível
do ponto de vista científico, sendo equiparado à morte cerebral, havendo ali o
chamado “natimorto cerebral”. De fato, segundo a Resolução nº 1752/2004 do Conselho
Federal de Medicina (CFM), “a morte encefálica é conseqüência de processo
6
Apresentação do Prof. Dr. Thomaz Rafael Gollop, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC), feita em audiência pública no Supremo Tribunal Federal, em 28 de agosto de 2008. Disponível
em <http://www.ccr.org.br/uploads/noticias/Thomaz_Gollop_anencefalia.pps>, acesso em 3/7/2010.
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Resolução RDC nº 344, de 13 de dezembro de 2002, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA).
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irreversível e de causa conhecida, sendo o anencéfalo o resultado desse processo, sem
qualquer possibilidade de sobrevida, por não possuir a parte vital do cérebro”.8
Os resíduos do tronco encefálico de um feto nessa condição só são capazes de
regular algumas funções orgânicas, não havendo perspectiva de se verificarem traços
sensitivos, de atividade de raciocínio ou de comunicação, aspectos fundamentais
(isoladamente considerados ou não) de conotação da palavra “vida” em relação a um ser
humano. Como explicitou o ministro Carlos Ayres Britto, do STF, em brilhante
metáfora, na sessão que cassou parte da liminar concedida no processo da ADPF 54, “o
que se tem no ventre materno é algo, mas que jamais será alguém. O útero é um casulo,
o feto é crisálida, mas que jamais chegará ao estágio de borboleta. Estamos discutindo
sobre o direito de viver ou direito de nascer para morrer? Existe o direito de nascer para
morrer?”.
Existe, no âmbito do nosso ordenamento jurídico, o chamado “marco legal da
morte” que é, justamente, o do momento de constatação da morte encefálica por dois
profissionais da área médica, conforme dispõe o art. 3º da lei nº 9.434/979, evento que
autoriza a doação de órgãos, tecidos e partes do corpo humano; é, portanto, onde
termina a personalidade de alguém: ausência de função cerebral. A condição biológica
de um feto anencéfalo é a mesma, conforme já asseverado, o que, numa análise
sistemática, leva a concluir que o evento “morte” já está legalmente configurado.
Assim, explorando a dogmática penal, haveria atipicidade da conduta de quem
antecipa e/ou autoriza a antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo. O bem
jurídico tutelado pelo tipo penal descrito entre os arts. 124 e 128 do Código é a vida
potencial do feto: é a proteção que o ordenamento jurídico oferece para viabilizar e
garantir o desenvolvimento da vida, censurando gesto arbitrário de outrem, ainda que
da própria gestante. No caso do feto com anencefalia, repetimos, não existe vida viável;
há morte cerebral, “morte legal”. Se o aborto é “a interrupção intencional do processo
de gravidez, com a morte do feto”10, não há elementos típicos na conduta de quem
aborta ou permite aborto de feto com anencefalia, nem é possível estabelecer nexo de
causalidade para o resultado “morte”; não há, portanto, crime algum. Bem assevera
CEZAR ROBERTO BITENCOURT:
8
Prof. Dr. Thomaz Rafael Gollop, idem.
9
Art. 3º: A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante
ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois
médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios
clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.
10
DELMANTO, Celso. Código Penal comentado. p. 467.
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O entendimento do legislador brasileiro, não há dúvida alguma, seguindo a
evolução médico-científica, reconhece que “a morte cerebral” põe termo à vida
humana. Ora, se a “morte cerebral” significa, a morte, ou se preferirem, ausência
de vida humana, a ponto de autorizar o “esquartejamento médico” para fins
científico-humanitários, o que se poderá dizer de um feto que, comprovado pelos
médicos, nem cérebro tem? Portanto, a interrupção de gravidez em decorrência de
anencefalia não satisfaz aqueles elementos que destacamos anteriormente de que
“o crime de aborto pressupõe gravidez em curso e é indispensável que o feto esteja
vivo”, e ainda que “a morte do feto seja resultado direto das manobras abortivas”.
Com efeito, na hipótese da anencefalia, embora a gravidez esteja em curso, o feto
não está vivo, e sua morte não decorre de manobras abortivas. Diante dessa
constatação, na nossa ótica, essa interrupção de gravidez, revela-se absolutamente
atípica e, portanto, sequer pode ser taxada de aborto, criminoso ou não.11
11
Atipicidade do aborto anencefálico: respeito à dignidade humana da gestante. Disponível em
<http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/viewFile/15279/14843>, acessado
em 4/7/2010.
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noção de dignidade da pessoa humana, de apelo axiológico, numa análise primeira,
revela uma categoria moral pretensamente universalista (resguardando, portanto, o seu
caráter de alteridade12). Assim, quando se acolhe a dignidade da pessoa humana como
princípio da ordem jurídica, não há que se negar sua pretensão de coerência com os
direitos fundamentais; estes como desdobramento daquela. Entendimento em contrário
significaria ignorar seu caráter ontológico e, portanto, de fundamentalidade. A
dignidade humana serve, portanto, como fator de afirmação do valor intrínseco de cada
ser humano e em razão do qual o Estado deve estabelecer sua prerrogativas. A decisão
mais recente de um tribunal brasileiro em matéria de autorização de aborto de
anencéfalo centraliza a discussão:
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Lembra SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
Constituição de 1988, p. 56-57: “Em verdade (...)a dignidade da pessoa humana (...), sem prejuízo de sua
dimensão ontológica e, de certa forma, justamente em razão de se tratar do valor próprio de cada uma e de
todas as pessoas, apenas faz sentido no âmbito da intersubjetividade e da pluralidade. Aliás, também por
esta razão é que se impõe o seu reconhecimento e proteção pela ordem jurídica, que deve zelar para que
todos recebam igual (já que todos são iguais em dignidade) consideração e respeito por parte do Estado e
da comunidade, o que, de resto, aponta para a dimensão política da dignidade, igualmente subjacente ao
pensamento de Hannah Arendt, no sentido de que a pluralidade pode ser considerada como a condição (e
não apenas como umas das condições da ação humana e da política)”.
8
individualidade. No caso da gestação de um anencéfalo, a conduta, por não ser típica,
não fere o sistema legal, o que legitima a mulher a optar entre o aborto e a preservação
da gravidez, sintoma do exercício, também, de um direito sexual seu.
O direito à saúde, por fim, é corolário da expressão de um Estado que deve
proporcionar o bem estar físico e psíquico de cada indivíduo: é inegável a possibilidade
de perturbação psicológica sofrida pela mulher na gestação de um feto anencéfalo; é
cientificamente comprovado, também, o risco superior que uma gravidez desse tipo
representa para a saúde da gestante13. O poder Estatal deve concorrer, portanto, para
minimização desses fatores de risco, o que só pode se dar, em sua plenitude, a partir do
reconhecimento e promoção da liberdade de escolha da mulher. Defender a perspectiva
do aborto anencefálico não é postular pela sua obrigatoriedade: isso representaria um
contrassenso a tudo o que foi exposto até aqui.
A tutela dos bens jurídico-penais pelo ordenamento tem um pano de fundo
inegavelmente valorativo e principiológico: a prestação jurisdicional do Estado, sob a
ótica constitucional, deve promover um garantismo eficaz em relação aos seus
objetivos, mas com um “modus operandi” objetivamente limitado que não faça do
discurso (ainda que duvidoso) da proteção do bem jurídico de um a razão do prejuízo
desnecessário à dignidade do outro. Esse é o ponto de equilíbrio da hermenêutica penal-
constitucional e fator de legitimação do Direito Penal frente ao alto nível de
complexidade das relações sociais e da necessidade de interdisciplinaridade decisional
dentro das estruturas democráticas.
4. Conclusão
Passaram-se mais de seis anos desde que a ADPF 54 foi proposta no STF: há
uma grande expectativa de que o mérito seja julgado ainda neste ano. Sem dúvida, caso
tenhamos um resultado positivo na decisão, estará firmado um “divisor de águas” na
história da tutela dos direitos subjetivos das mulheres e da ascendência da ciência como
campo referencial do uso público da razão, em detrimento de discursos moralistas e
religiosos.
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Dentre outros, podemos citar o (1) maior risco de gravidez prolongada, o (2) descolamento prematuro
da placenta, a (3) ruptura prematura das membranas e a (4) atonia uterina (diminuição ou perda da
capacidade de contração uterina).
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Isso, porém, representaria apenas uma etapa de um complexo e árduo processo
de revisitação e revisão de categorias jurídico-sociais. Ulterior à questão do aborto
anencefálico é a discussão acerca do aborto em si, seja na confirmação de sua
criminalização (ainda que se admitam escusas à tutela da vida), seja na sua viabilização
como meio de promoção do planejamento populacional, familiar ou como escolha
pertinente à autonomia da mulher sobre seu próprio corpo. O aborto representa a 4ª
principal causa de morte materna no Brasil e tem se disseminado de forma aterradora;
talvez esteja na hora de encará-lo sob a perspectiva da saúde pública.
Este trabalho teve, tão só, a intenção de defender, de forma muito mais sutil,
apenas uma vertente da prática do abortamento: a de fetos com vida absolutamente
inviável e cujo estado biológico, do ponto de vista científico, se equipara à da morte
cerebral. Quando se fala, porém, em eugenia (aborto com fins estéticos, raciais, éticos)
ou do abortamento pelo simples exercício da “vontade de não querer” gerar outra vida,
adentra-se em uma zona demasiado nebulosa e que está longe de estabelecer algum
critério seguro para chegar a conclusões também mais seguras.
5. Referências
· DELMANTO, Celso. Código Penal comentado. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
· DINIZ, Debora; VELÉZ, Ana Cristina González. Aborto e Razón Pública: El Desafio
da La Anencefalia en Brasil. In SérieAnis 40, Brasília, LetrasLivres, julho, 2005.
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· SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 54-8. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/
peticaoInicial/fazerDownload.asp?classe=ADPF&processo=54>, acesso em 1/7/2010.
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