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dialogismo intertextual
Renata Corrêa Coutinho∗
da escrita não era atividade capaz de oferecer corresponde as obras: Memórias Póstumas
remuneração suficiente. de Brás Cubas – obra de transição –, Quin-
Suas primeiras manifestações estilísticas cas Borba e Dom Casmurro; fase esta em
puderam se fazer percebidas através dos jor- que os críticos apontam para as chamadas
nais onde escrevia sobre as atividades habi- “obras de maturidade”, àquelas compostas
tuais do meio a que pertencia, dentre elas a por uma prosa caracteristicamente realista e
peculiaridade com que refletia sobre elas. por complexos retratos psicológicos dos per-
sonagens.
“Machado de Assis escrevia sobre a vida Machado foi poeta, contista, autor teatral
fluminense, as óperas, corridas, patina- e crítico literário. Considerado um dos mai-
ção, pleito eleitoral e muitas outras coi- ores autores brasileiros, responsável por uma
sas, surpreendendo por um estilo su- produção autêntica e altamente representa-
tilmente irônico, que logo ia tornar-se tiva da realidade – a brasileira – do século
marca registrada de sua obra. Suas crô- XIX entrelaçada a conflitos humanos univer-
nicas ainda hoje têm atualidade, pois ele sais presentes na alma psicológica de seus
conseguiu extrair reflexões profundas de personagens.
fatos corriqueiros, tocando a essência da-
quilo que observava com um meio riso de “Machado de Assis centrou seu interesse
contemplação. E quase sempre esse riso na sondagem psicológica, isto é, bus-
trazia, implícita ou explicitamente, uma cou compreender os mecanismos que co-
advertência. Em Machado de Assis, o mandam as ações humanas, sejam elas
fato em si tinha menor importância, o que de natureza espiritual ou decorrentes da
interessava era a reflexão que esse fato ação que o meio social exerce sobre cada
provocava” (CULTURA BRASILEIRA, indivíduo. Tudo temperado com pro-
s/d). funda reflexão. O escritor busca inspira-
ção nas ações rotineiras do homem. Pe-
Parte da obra machadiana é considerada netrando na consciência das personagens
como pertencente ao Romantismo1 (1a fase), para sondar-lhes o funcionamento, Ma-
dentre as quais: A Mão e a Luva, Helena chado mostra, de maneira impiedosa e
e Iaiá Garcia. À fase Realista2 (2a fase), aguda, a vaidade, a futilidade, a hipocri-
1
1. Romantismo: [De romântico + -ismo, seg. o sia, a ambição, a inveja, a inclinação ao
padrão erudito; fr. romantisme.]; importante movi- adultério. (...) Escolhendo suas persona-
mento de escritores que, no princípio do séc. XIX, gens entre a burguesia que vive de acordo
abandonaram as regras de composição e estilo dos com o convencionalismo da época, Ma-
autores clássicos, pelo individualismo, pelo lirismo e
pelo predomínio da sensibilidade e da imaginação so- chado desmascara o jogo das relações so-
bre a razão. ciais, enfatizando o contraste entre essên-
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2. Realismo: movimento literário que, em mea- cia (o que as personagens são) e aparên-
dos do séc. XIX, surgiu como uma reação ao roman- cia (o que as personagens demonstram
tismo, isto é, aos excessos do lirismo e da imaginação,
ser)” (Ibidem, s/d).
tendo sofrido também influência do desenvolvimento
das ciências biológicas, do positivismo e do determi-
nismo.
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comportamental de Vilela em relação a Ca- das, podendo-se encontrar formatos que vão
milo e, a incredulidade de Camilo convertida do curta ao longa metragens.
em credulidade no momento mais conveni- Um dos longas, realizado em meados da
ente – a retomada dos valores místicos sobre década de 707 , apresenta a história – divi-
a mentalidade estritamente racional. dida em dois episódios – contada sob duas
O título “A Cartomante” e a presença ini- perspectivas distintas: na primeira leitura, a
cial da frase proferida por Hamlet à Horácio trama se desenrola em 1871 e apesar do re-
"Há mais cousas no céu e na terra do que sultado final ser consideravelmente tosco –
sonha a nossa filosofia" são indicativos per- possivelmente devido ao pequeno orçamento
tinentes do desenrolar da trama e atribuem o disponível para a elaboração de um filme de
tom místico e misterioso necessário ao des- época –, mantém com alguma fidelidade o
fecho final. conteúdo descrito no conto original.
Sabendo-se que a cartomancia – a adivi- Já a segunda leitura – embora também
nhação por meio de cartas de jogar – é quem deixe muito a desejar quanto à qualidade de
vai direcionar o centro narrativo da trama, produção e principalmente interpretativa dos
atribui-se a personagem cartomante o sta- atores envolvidos –, revela uma visão mais
tus daquela que pode restituir a confiança, arrojada e criativa na medida em que pro-
àquela que interfere diretamente sobre a tra- põe uma versão satírica e inovadora sobre o
jetória das demais personagens, uma vez que conto, transparecendo sobremaneira os ide-
a alteração de suas previsões teria resultados ais liberais difundidos em 1970 – período
diferentes. este em que a história descrita está situada.
A descrição de Rita – “uma dama formosa A presença da cartomante é agora subs-
e tonta” – como uma figura ingênua e por tituída pela figura do psicanalista, enquanto
isso, suscetível a acreditar nas previsões fei- a leitura de cartas e horóscopos é relegada
tas por uma cartomante, fornece indícios do a outra personagem. A desconfiança de Vi-
papel desempenhado pelas mulheres daquele lela em relação a traição de Rita é tratada de
tempo: a incumbência das preocupações to- forma inusitada quando este apresenta a Ca-
las e desprovidas da lógica real desse mundo. milo sua nova namorada e dessa nova relação
Portanto, o conto revela também a vi- emerge a proposta deliberada da troca de pa-
são predominante do período; defendendo a res afetivos.
idéia de que o “destino”, se conferido às pre- Assim, o filme confronta duas realidades
visões inatas e/ou espirituais de uma pessoa em que os preceitos morais e éticos divergem
falível – como é em síntese todo o ser hu- entre si, exibindo uma alteração profunda ao
mano –, em detrimento das constatações ci- tratamento concedido ao amor, a traição e a
entíficas e/ou racionais, estará sujeito a fa- decência; uma nova realidade, onde os re-
lhas e enganos. lacionamentos sujeitam-se a outras manifes-
tações tais como: a normalidade da traição,
4 A Cartomante no Cinema 7
7. A Cartomante (Elite vídeo produções). Filme
de Marcos Farias. Estrelado por Maurício do Valle,
Algumas adaptações baseadas em A Carto- Ítala Nandi e Ivã Cândido com a participação especial
mante de Machado de Assis foram produzi- de Paulo Cesar Peréio.
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o envolvimento com fontes de renda ilícitas, Conquanto carregue o nome do conto ma-
enquanto a versão original presa pela tradi- chadiano, o filme apresenta uma trama onde
cionalidade do casamento – que se revelado as semelhanças estão presentes no título, no
infiel permite ao homem a vingança – e do nome das personagens, na constituição de
trabalho, que mesmo enfadonho e burocrá- um triângulo amoroso e na existência de uma
tico, rende uma remuneração honesta. quarta personagem – neste caso, a psiquiatra
– em meio ao conflito instaurado.
O fator surpresa manifesta-se na media-
5 Uma nova adaptação
ção constante da psiquiatra em relação às
“(...) Entre 1997 e 2002, o público to- três personagens (Rita, Camilo e Vilela) e
tal de cinema no Brasil passou de 52 mi- na manipulação proposital exercida por ela
lhões para cerca de 90 milhões, o que re- através das análises ou das previsões feitas
presenta um crescimento de 70%. Nesse quando ocultamente está travestida de carto-
mesmo período, o público do cinema bra- mante para “jogar” com as emoções da per-
sileiro, especificamente, saiu da casa de sonagem Rita.
2,5 milhões de espectadores para 7 mi- Observa-se nas duas situações vividas pela
lhões, conquistando em torno de 10% do personagem interpretada pela atriz Silvia
mercado” (ALMEIDA, 2003, p.12). Pfeifer – ora como psiquiatra, ora como car-
tomante –, uma intervenção premeditada a
Mais recentemente, após a retomada do fim de concentrar em torno de si as respos-
cinema brasileiro, uma nova adaptação do tas e interpretações necessárias ao direciona-
conto de Machado – dirigida pelo jornalista mento da vida das figuras dramáticas; fato
Wagner de Assis e pelo ator Pablo Uranga – que, relegando-se a ficção a segundo plano,
surgiu nas telas do cinema. obtém-se uma crítica a onipotência em rela-
A Cartomante (2004)8 , devido a questões ção a vida de outrem.
orçamentárias, teve seu roteiro totalmente re- A versão apresentada é indubitavelmente
escrito e acabou se transformando num mo- um desdobramento possível da temática ma-
derno romance carioca com gastos estimados chadiana nos dias de hoje, ou seja, da pos-
de R$ 650 mil, numa espécie de cooperativa sibilidade atual de se buscar soluções para
entre produtores e grande parte do elenco – as angústias da vida por meio do divino –
a produção de época, incluindo figurinos e no entrecho, a representação da cartomante
demais características do século XIX, foi or- – e/ou através de um recurso do mundo mo-
çada em aproximadamente R$ 3 milhões e derno como a psicanálise, por exemplo.
posteriormente abortada diante da verba in- A manipulação exercida durante todo o
suficiente dos produtores (VITA, 2004). enredo revela-se ao final; a morte física não
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8. A Cartomante (Cinética Filmes). Filme de
acontece como no conto original, mas sim
Wagner de Assis e Pablo Uranga. Estrelado por De- a “morte” das personagens através da mu-
borah Secco (Rita), Luigi Baricelli (Camilo), Ilya São dança de perspectiva – o renascimento no
Paulo (Dr. Augusto Vilela) e Sívia Pfeifer (Dra. An- plano sentimental e o conseqüente afasta-
tonia Maria dos Anjos – psicanalista/cartomante). mento entre elas.
Ao final tem-se um questionamento sobre
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experiência que deve ter sua forma, e “A insistência na ‘fidelidade’ – que de-
os sentidos nela implicados, julgados em riva das expectativas que o espectador
seu próprio direito. Afinal, o livro e filme traz ao filme, baseadas na sua própria lei-
estão distanciados no tempo; escritor e tura do original – é um falso problema
cineasta não têm exatamente a mesma porque ignora diferenças essenciais entre
sensibilidade e perspectiva, sendo, por- os dois meios, e porque geralmente ig-
tanto, de esperar que a adaptação dia- nora a dinâmica dos campos de produção
logue não só com o texto de origem, cultural nos quais os dois meios estão in-
mas com o seu próprio contexto, inclu- seridos. (...) Se o cinema tem dificuldade
sive atualizando a pauta do livro, mesmo em fazer determinadas coisas que a lite-
quando o objetivo é a identificação com ratura faz, a literatura também não con-
os valores nele expressos” (XAVIER, segue fazer o que um filme faz” (JOHN-
2003, p. 62). SON, 2003, p.42).
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