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REPRESENTACAO E JUSTICA Como visto nos capitulos anteriores, a discussio sobre a repre- ica tende a oscilar entre dois polos. Um deles é ligado Aestabilidade dos governose privilegia formulas que garantem a fo ‘magiio de maiorias nitidas nos drgaos de tomada de decisio politica ~ Qoutro favorece o acesso dos di tes grupos e posigdes politicas -esentada como um imperativo de justia que, ‘epuja as injungoes de cardter mais pritico evocadas {ypreventagio, Mas raras vezes a justia da representagio é proble- istiga” entra na discussio em registro préximo ao do_ Esse entendimento, no entanto, équestio- -s no Ambito da teoria da justica, que mostram que ‘a formulagao até pode ser aceita por todos, mas resta uma profunda 270 ws Feure maven controvérsia sobre o significado de seus termos: quem se qualifica ardeste “cada um” €0 que éo “de direito” quethedeve ser concedido, Em suma, as teorias da representacao politica — como as teo- rias da democracia, de forma mais geral —dialogam pouco com as teorias da justica. E a reciproca também é verdadeira. Uma ordem politica democritica éem geral (mas nem sempre) incorporada como elemento necessitio na constituigdo de uma sociedade justa. Porém, ouco se avanga no detalhamento das caract cia, para além da vigéncia do Estado dedi formal ou do franqueamento dos cargos de poder potencialmente a todos. Um sobrevoo pelas teorias contemporaneas da jt essa afirmagio, Deixo de lado, por ora, dois nomes centrais, John Rawls e Ronald Dworkin, que encarnam duas vertentes do libe- ralismo igualitario e que serio discutidos em maior detalhe mais, -a confirma como em , o pensamento comunitaristae mesmo na teoria da is Marion Young, a democracia, em geral, ea represen: em particular, sio problematizadas, quancio muito, de forma insuficiente. Uma excegao & o pensamento de Naney Fraser, que, no entantp, dé uma sohugio pouco convincente a questio. A obra dé Nozick situa-se ainda no liberalismo, mas nos anti- podas de Rawls e Dworkin. Sua defesa da desigualdade, vista como consequéncia inevitavel do exercicio da liberdade, e das relagies de mercado, vistas como intrinsecamente nao coercitiva defender o menor Estado possivel. Com isso, fica restrito tanto 0 espaco da democracia— para ele, uma forma de escravidao diante da coletividade (Nozick, 1974, p.290-2) — quanto o da representagao politica, A liberdade dos individuos deve ser protegida ao maximo de qualquer interferéncia externa, e a tinica fungio do Estado é garantir as condigées para o exercicio dessa liberdade. Portanto, 0 contetido da agdo estatal ja esta definido a priori e néo esta uj a debate. Outras formas de representacao, isto é, de autorizacio DEMOCRACIAEREPRESENTAGAO 271 expressa ou implicita para que outras pessoas falem ou deliberem «em nosso nome, slo entenclidas como voluntétias, revogiveise, mais importante, operam em féruns que nao tém capacidade de impor compulsoriamente suas decisées. Em suma, 0 atomismo de fundo da teoria de Nozick gera desconfianca em relagao as instituigdes democraticas e, 20 mesmo tempo, torna desimportante a discussio sobre a representacao politica, Por caminhos opostos, Michael Sandel chega assemelhada, Tomo-0 aqui como repre: nitarista’; embora talvez Charles Taylor ou Alasdair MacIntyre tenham maior profundidade filos6fica, é Sandel quem se coloca ‘com mais clareza no debate tedrico-poitico e sustenta a oposico 20 liberalismo igualitério de Rawls, O ambito da discussio sobré representagio é esvaziado (mas nao anulado) pelo entendimento das identidades comunais como dados prévios a agéncia dos indivi- | duos e com limitado espaco de negociagao. Os problemas que ainda ‘mereceriam atengo, como os ligados ao acesso a esfera pi composigdo dos espagos decis6rios, slo deixados de lado pelo autor, «quer em sua obra de maior folego (Sandel, 1998 [1982]), quer em seus cursos dirigidos ao piblico amplo (San- del, 2012 (2009) Michael Walzer € outro representante da vertente “comunita- rista” da teoria associados a ela, aquele que apresenta uma posi¢do mais reflexiva € uma relagio mais complexa com o liberalismo. Sua ideia de que a sociedade se compie de “esferas” separadas, em que imperam ao de bens, vantagense posigées, con- ara.a produgio de um critério normativo de representacio imune as desigualdades de propriedade, renda ou status itica, embora seja, entre os nomes normalmente iquer forma de desigualdade a reprosentagio, desde es compartlhadas, conforme aponta a demlidera 272 wisreure micueL para o preenchimento de cargos piblicos; e, mais adiante, descartada como uma entre muitas questies técnicas que devem participar da esfera do poder e,nele, ser tratadas de forma independente do controle da riqueza material (Walzer, 1983, p.302) Jé Iris Marion Young, cuja obra foi referéncia importante a0 longo deste livro, produziu tanto uma teoria d and the Politics of Difference (Young, 1990), quanto uma teoria da representacao politica, em Inclusion and Democracy (Young, 2000), No entanto, so esforgos em paralelo que nao dialogam suficien- temente entre si. & possivel dizer que a teoria da justiga de Young, com suacritica ao ideal da imparcialidade eo foco no enfrentamento da opressio e da dominago, pode ser um suporte melhor para a construgdo de uma teoria critica da representagao do que sua propria teoria da representagio, Mas é um esforgo a ser produzido a partir de sua obra. A defesa enfitica da representagio de grupos nia se m uma teoria da representacio politica propriamente Em sua obra publicada postumamente, em que polemiza com teorias recentes da justiga discutindo a relagao entre responsa- bilidade in I, arepresentagio politica é um. tema ausente (Young, 201 J quando foca nos problemas da representagao politica, Young se furta a discutir o sentido da justiga, Falando, naquele momento, de dentro do campo do deliberacionismo, sua primeira preocupa- fo é mostrar como, nas trocas discursivas, a busca pelo interesse individual precisa se transformar em reclamos por justiga (Young, 2000, p.51, 82, 115). © que torna justo um modelo de representacao politica, porém, continua sendo tratado ao nivel do senso cornum. Uma excegio, nesse quadro, é 0 esforgo recente de Nancy Fraser. Sem ter construido uma teoria da justica que esteja desen- volvida de forma plena, Fraser elaborou um influente modelo analitico, observando que os grupos submetidos & injustica sofriam tanto pela impossibilidade de acesso a riqueza ou a deter- minadas posigBes sociais, quanto pela apreciagio negativa dada a jidual e estr 2 CE ocapitule "Perapectivas sisi edominagdo sible” DEMOCRACIAEREPRESENTACAO 273 seus valores, crengas, comportamentos e modo de vida. Assim, a ica envolveria um elemento econémico (a busca por ‘ios materiais existentes na sociedade) ral (a busca pelo reconhecimento). Tanto a tradigao marxista, que da primazia absoluta ao aspecto econémico, quanto 0 idealismo honnethiano, que constréi um conceito de reconheci- mento englobando tudo, pecariam por tentar reduzir a uma tinica dimensio algo ~ a luta por justiga ~ que necessariamente inclui esses dois aspectos distintos. Embora ela tenha feito questo de assinalar o caréter analitico da distingao, dado o entrecruzamento entre instituigdes materiais « préticas culturais (Praser, 1997, p.15), a separagio entre as duas dimensdes sempre foi cal ia. Naobasta culturais possuem igdes econémicas sio constituidas pela cultura. © modelo bidimensional tende a estabelecé-las como esferas distintas, exigindo permanentes alertas e corregdes ad hoc. Na obra posterior, Fraser percebe a existéncia de uma terceira grande esfera social, ao lado da cultura e da economia, que é a ica; e acrescenta uma dimensio da justica associada a ela, a ‘epresentagao”. A dimensdo politica da injustiga € a representa- sao inadequada (misrepresentation), seja na forma da auséncia ou da insuficiéncia de representagao, Sto id representacao inadequada. © primeiro, que ¢julga desprovido de maior interesse para.a discussao te6rica, conte quando determinados grupos dentro da comunidade politica estabe- lecida ndo possuem oacesso devido as instancias decis6rias. Segundo cla, é algo que pertence “ao terreno familiar dos debates da ciéncia politica sobre os méritos relativos de sistemas eleitorais alternati- vos” (Fraser, 2009, p.19). A redugio dos problemas “comuns” de representacZo & opgdo entre sistemas eleitorais ~meras “tecnalida- des”, em seus proprios termos (Fraser, 2009, p.145) -, ignorando questies como a formagaio das preferéncias, o controle da informa: Gao, o impacto das desigualdades sociais ou o distanciamento entre representantes e representados, & uma das lacunas mais sérias da 274 wis FeUPE mcueL Formulagio de Fraser e possui consequeéncias para o desdobramento de sua argumentacio. Jao segundo tipo de representagao inadequada se vincula 20 que ela denomina “enquadramento” e & crise da order nesiana-westphaliana”: 0 fato de que o Estado nacional “limita arbitrariamente (gerrymanders) 0 espago politico’ 21), Fraser angumenta entao que a definigdo- politica — das fron- tciras torna-se um impedimento a realizacao da justica, na medida em que retira direitos das populagdes no nacionais. Mas a dliscussao sobre representacdo € pouco convincente. Fra- ser nfo consegue justificar por que a questo do “enquadramento” constituiria uma ordem diferente de outras, para ser relegada 20 limbo dos problemas comuns, desinteressantes para a reflexao a. © debate sobre a fixagio da constituency nao énovo, nem se limita a vinculagdo com as fronteiras nacionais. Os impasses mais, graves na representagio democritica tém a ver com a formagio das, preferéncias— que se relacionam com os fluxos de informagiesecom as miltiplas assimetrias e desigualdades sociais -, coisa que a Fraser de “Rethinking the public sphere” (Fraser, 1992) sabia muito bem, ‘mas que a Fraser de Scales of Justice parece ter esquecido, Reduzir o debate da cigneia politica escotha entre sistemas eleitorais, como cla faz mais de uma vez a0 longo de seu livro,s6 se explica por uma ignorancia que a autora nao tem como invocar. Em especial, ha que se perguntar qual vantagem se extrai da fusio entre justiga e democracia promovida pela introdugao da terceira dimensio, No modelo de Fraser, a democracia passa a ser um aspecto da justiga. No entanto, provavelmente estare: mos melhor equipados se mantivermos os dois conceitos ~ que cultivam um estreito didlogo entre si, € verdade, mas nio se sobrepéem, nem se confundem. Arranjos politicos democraticos podem, sim, promover ou preservar injustigas, E instrumentos de em critétios de merecimento, podem privilegiar injungdes ut tarias, podem mesmo — como nos mecanismos de descritos por Elster (1992) —adotar férmulas igualit DEMOCRACIAEREPRESENTAGAO 275 democraticas, na medida em que nao contemplam a participagio dos interessados, ‘Eexatamente porisso —porque um lado naoencapsulao outro—que a relagio entre teotia da representacio c teoria da justica se configura como um problema interessante, Neste capitulo, vou buscar um duplo movimento de identificar o que duas das principais abor- dagens contempordneas da teoria da justia tém a nos dizer sobre a representacio politica e, ao mesmo tempo, podem nos ajudar a qualificar melhor uma representasio “ De forma pouco surpreendente, comeco com John Rawls, que, desde a publicagio de seu tratado, em 1971, tornou-se 0 ponto de partida inescapavel de qualquer discussio contemporiinea sobre Emboraademocracia politica certamente pertenca a “estru: da sociedade desenhada por Rawls e algumas de suas caracteristicas formais sejam justificaveis pelo principio da igual oportunidade, pouco hé, na teoria rawlsiana, que se enderece de as discussdes sobre representagao politica. E, como pre. tendo demonstrar, o principio da diferenca, coragio do igualitarisma de Uma teoria da -se muito mal a discussao sobre representagio politica, contribuindo para endossar noses paterna- listas que, sem se assumirem como tal, permanecem em voga. O segundo tebrico discutido, que se alinha a Rawls na posigio do liberalismo comprometido com o valor da igualdade, é Ronald Dworkin. O objetivo de sua empreitada teérica — ar um arranjo social sensivel as escolhas dos individuos, mas neutralizador das assimetrias devidas ao acaso — guarda pontos de contato com modelos como o Welfare State, Mas 0 espaco da disputa politica e em particular, da representacao fica contraido devido as limitagdes impostas por Dworkin no que se refere aos tipos de preferéncias que podem legitimamente ser levadas em conta nas decisdes coletivas A partir das contribuigdes de Rawls e Dworkin ~ e da com- preensio de seus limites - ¢ possivel sugerir alguns caminhos para juntar democracia, representacio e justia. No quadro de uma sociedade desigual, a representacio politica deve almejar a neutra~ lidade ou formas de compensagao das assimetrias? Bla deve refletir fender como elas sta’ 276 wis FeUPe MicuEL ‘ou reconstruir interesses e identidades coletivas? Sua unidade é 0 individuo ou o grupo? A obra de John Rawls se tornou, por bons motivos, o ponto de partida irrecusavel para qualquer discussio contemporinea sobre a justiga. Embora 0 préprio autor preferisse enfatizar as continuida- des, so profuundasas transformacdes que sua teoria sofre entre Uma teoria da justica (Rawls, 1971) e O liberalismo politico (Rawls, 2005 [1993]). No processo, Rawls acaba por ‘esmaecer a forte pretensio universalista de sua teoria da justica”, transformando-a num deci- framento e numa justficagao das bases normativas das sociedades ‘ocidentais, conforme apontou Habermas (1997 [1992], v1, p.86) ‘A formulagio de Rawls em A teoria da justiga & bem conhecida ‘Uma sociedade bem ordenada se guia pelos dois principios da justiga daigual oportunidade (cada um deve ter direitoao maisabrangente sistema de liberdades basicas que seja compativel com um sistema de liberdades iguais para todos) eadadiferenca (qualquer desigual- dade na sociedade sé € justificada se for vantajosa para todos ou, 20 ‘menos, para os mais desfavorecidose se estiver vinculada a posigées acessiveis a todos). Na narrativa de Raw duos representativos” das diferentes posigées sociais presentes na “posigdo original”, o momento zero do contrato «que estabelece a estrutura bisica da sociedade (Rawls, 1971, p.64) ‘Mas nao ha, ai, alguma forma de representacao politica. Tais individuos sio representantes apenas no sentido amostral; _do possuem representados que osautorizem, com quem mantenham. interlocusio ou por cujos interesses devam zelar. Na sua criticada afirmagao de que as partes na posigao original podem ser pensadas hefes de familia" (heads of families), portanto desejoses de “promovero bem-estarde seus descendentes mais proximos” (Rawls, 1971, p.128), ele se refere a clas também como “representantes de familia”. No entanto, o que esté em funcionamento é um mecanismo desubsungio de interesses, nio de representagio: Rawls presume que tais principios seriam 3 Cuvioarent, lg similar podesa ser dio da rajeteiado propria Habermas, das formlagesoriginasdateora do age contencativo xo Diratoedemocracia DEMOCRACIAE REPRESENTAGKO 27 cada chefe de familia incorpora os interesses dos outros integrantes — cénjuge, filhos, netos ~no seu préprio.* Para além dos lagos afetivos e dessa presumida subsungdo, a Protesio aos interesses dos outros derivaria apenas da similaridade da posigao social entre 0 eorestante do grupo. Mesmo iduos na posigo original estariam sob um “véu da ignorncia”, que impediria que ‘conhecessem sua prépria situagdo social e suas proprias preferéncias, Essas restrigées retiram quase toda diferenca entre os grupos sociais (que se fariam representados. A rigor, um tnico individuo racional, sob o véu da ignorncia, alcancaria, sozinho, os dois principios da justiga, sem necessidade de didlogo, conforme apontam iniimeros itura bisica desenhada por Rawls seguramente igdes da democracia representativa, elas ndo {uem um problema importante em Uma teoria da justiga. O Principio da diferenga sustenta, até certo ponto, aideia do governo Tepresentativo, Sua primeira parte ~ desigualdades sio justifica- ddas quando beneficiam todos ~ pode ser invocada para afirmar a necessidade de existéncia de governo. Embora seja estabelecido um diferencial de poder entre governantes e governados, os ganhos em ‘ordem e seguranca, bem como as vantagens advindas da especiali- zagio nas tarefas administrativas, mostrar-se-iam potencialmente benéficos para todos. Correntes importantes do pensamento poli- @ comesar pelos anarquistas, discordariam dessa afirmacio, ‘mas ndio ha comonegar que ela é tanto plausivel quanto amplamente difundida. Jia segunda parte — posigées acessiveis a todos ~retira do car- dapio de opgses aceitaveis as formas dinésticas ou oligarquicas de governo, Assim, ha necessidade de governo e esse governo deve ser escolhido por algum processo competitivo aberto a todos. Mas nds preenchemos esse espago com a ideia de uma disputa eleitoral A empreitada 278 wisreure micueL que promove uma relacao de representagao entre eleitos e eleitores apenas por nossa familiaridade com o ambiente em que a teoria foi produzida, A rigor, os requisitos seriam cumpridos também por provas de conhecimentos, por torneios de oratéria, por sorteios ou ‘mesmo por um combate de monster trucks, como no filme Idiacracy, de Mike Judge (2006), Rawls retira essa indeterminagao ao estabelecer 0 valor da com- peticdo eleitoral como uma das liberdades fundamentais. De fato, liberdade politica, definida como “o direito de votar e de ser eleito ara cargo piblico” ocupa o primeiro lugar nallsta que Rawls faz das liberdades basicas” (Rawls, 1971, p.61). A definigao ja denuncia tum entendimento limitado da politica, reduzida a competigio pela ‘ocupagio de posicées formais de poder. I! possivel conceder, no entanto, que as outras condigées necessérias para a livre atividade politica 0 contempladas no restante da relagio das liberdades basi casde Rawls, que inclui as liberdades de expressio ede assembleia, apresentadas expressamente como relacionadas liberdade politica, tal como ele a define, bem como a liberdade de pensamento, No entanto, ha dois problemas principais vinculados ao espaco que a democracia representativa é capaz de ocupar no arcabougo tedrico de Rawls: oespaco reducido concedido a politica em geral, ©0 potencial viés paternalista do principio da diferenca, primeizo deles é amplamente anotado pela literatura —na ver- dade, constitui uma critica dirigida com frequéncia também a obra de Ronald Dworkin —e eu retomo brevemente aqui os argumentos principais. Todas as questdes fundamentais estio resolvidas na posicdo original, que estabelece os principios da justica e delineia a estrutura bisica da sociedade, Mas na posicao original, vvimos, nao ha representagao politica. Na sua célebre expl “sequéncia de quatro est para a tomada de decisées politicas, Rawls (1971, p.195-2 mina que, & posiglo original segue-se uma convencio cons para a qual éretirada uma parte do véu da ignoréncia. Osin continuam sem conhecer suas concepcdes de bem ou posigSes na sociedade, mas ja tem acesso a fatos gerais sobre ela (seus recursos DEMOCRACIAEREPRESENTAGAD 279. naturais ou seu grau de desenvolvimento econdmico, por exemp! Fica claro que, pelos mesmos motivos presentes na posicio original, no estagio da convengao constituinte também nio hé espago para a representagaio politica, O terceiro estigio, 0 10, consiste na aplicagio da consti- tuigdoa sociedade por um legistador que, conforme Rawls explicita, “como sempre, nao conhece suas préprias particularidades” (Rawls, 1971, p.198). Hé um movimento de ida e volta entre o segundo e is, uma vez que a constituiggo deve ser adaptada as circunstincias reais. A divisio entre o estigio cor daigual oportunidade, eo segundo, da diferenca 1971, p.199). A aplicagao do principio da diferenga exige a imparcialidade do legislador que nao sabe sua prépria posicao social e, portanto, no é um representante. ( quarto estégio, finalmente, € a aplicagio das regras aos casos particulates; somente aqui hi a retirada completa do véu da igno- rincia, Mas a produgdo da norma nao est mais em jogo. Em todo © modelo, nio ha espaco para a representagao Ooobstaculo que a impede é a exigéncia de imparcialidade, seja na fixagio das regras, seja na sua aplicagZo aos casos. A representacao politica possui um caréter inequivocamente parcial, ea justiga que se pode buscar nela nao esta na transcendéncia dessas parcialidades, mas na capacidade de dar presenga e pesoadequados a cada uma das partes, Ha um elemento constante, no pensamento de Rawls, que é a desconfianca em relagdo ao conflito entre interesses parciais. Ele é ndamento legitimo do voto - 0 ue, no contexto, significa toda forma de agzo politica publica é a busca do bem comum, apoiando-se expressamente na nogio de “vontade geral” de Rousseau (Rawls, 2005 [1993], p.219-20) Assim, Rawls é um exemplo daquilo que Nadia Urbin. tando de outros autores, chamou de “demoeracia apol explicito ao afirmar que a tinico 280 wis FEUPE MiGuEL dissolve o julgamento politico num tipo de julgamento judicial, marcado exatamente pela exigéncia de imparcialidade (Urbinati, 2010). Esse ponto é frequentemente indicado por criticos de Rawls: para ele, “uma sociedade bem-ordenada € uma sociedade ica foi eliminada” (Mouffe, 2005 [2000)), p.29) iga se situa literalmente além da (Jackson, 1983 [1980], p.264). ‘Quando Rawls traz sua teoria a terra, em O Kberalismo politico, © banimento da politica assume uma nova forma. Como € sabido, na fase final de Rawls as ideias de posicdo original e de véu da ignordncia perdem centralidade; em seu lugar, surge a nocio de tum “consenso sobreposto de doutrinas razodveis”. Ele aceita que estamos condenados a conviver com uma plu todas plausfveis embora incompativeis entre si. Esse “pluralismo de doutrinas razoaveis”, que Rawls distingue criteriosamente do “pluralismo propriamente dito”, fruto da busca de interesses con- flitantes, € uma consequéncia dos “limites da raz”. Como nossa razio € limitada, nao temos como ter certeza da verdade e somos obrigados a aceitar doutrinas opostas como legitimas. A questio é como lidar com isso, garantindo a estabilidade social e a aplicacio de principios universais de justia. Nao cabe aqui discutir a solugdo encontrada pelo autor e sinteti- zada na férmula do “consenso sobreposto”. O ponto éobservar que, na teoria da justiga de Rawls, 0 pluralismo nto é um valor como na tradigao liberal), mas um problema ser enfrentado, conforme apon- tou Galston (apud Dryzek, 2010, p.88). Ele nao deriva de alguma je humana que se valorize positivamente, mas de uma ia da nossa razio, Sob esse ponto de vista, Rawls nlo est te de Auguste Comte, para quem s6 existia liberdade de ‘consciéncia na politica porque, nela, oconhecimento cientifico ainda ndo avangara o suficiente. Quando avangasse, a politica se reuniria, 4fisica ea quimica, éreas em que nao ha liberdade de pensamento, pois “qualquer um acharia absurdo no depositar sua confianga nos lade de doutrinas, DEMOCRACIAERERESENTAGAO 281 rincipios estabelecidos, nessas ciéncias, pelos homens competen- ‘ico, assim, tem para Rawls um importante componente epistémico. Ele deve levar as respostas certas para as questées levantadas pela sociedade. A justeza da resposta no uma derivagio do procedimento—como pensar, por exemplo, queo resultado “correto” de uma eleigdo é aquele produzido pela melhor aplicagao das regras democraticas, independentemente de qual sei © vencedor. Para 0 fildsofo estadunidense, hé respostas certas de antemio e € necessério encontrar procedimentos que maximizem as chances de alcanga-las.* Nas palavras de um seguidor brasileiro de Rawls, 1 questio central [é a] de como € possivel aprimorar aquilo que pode ser denominado “valor epistémico” da democracia~ a proba- lidade de que o proceso democratico se presta aalcancar decisdes politicas que sejam nfo somente majoritérias como também corre- tas, (Vita, 2008, p.122) Se Comte nao se qualifica como um bom padrinho para a con- cepgio epistémica, ha outros nomes, da tradigdo do pensamento dlemocratico, que podem assumir tal posigao. Rousseau é0 exemplo inais evidente: a vontade geral precede a deciséo do processo deliberativo nao é geré-la, mas identifi acertada. O problema é que a visio episté as respostas certas, um grupo de especialistas certamente se saira melhor do que a turba ignorante. 5 Raulbtanbin dabonee pntocome uma pescioenze "denocniape 282 Lis FELIPE MIGUEL Aessa visio epistémica se une a preocupasao de reduzir o nivel de conflito na sociedade, central sobretudo para o Rawls de O liberalismo politico, consenso sobreposto de doutrinas razoaveis visa garantir que os elementos centrais do ordenamento social nao serio desafiados por nenhum grupo. O objetivo, afin gerar “um regime democratico duradouro e seguro, que nao esteja dividido por correntes doutrindrias em conflito ou classes sociais hostis” (Rawls, 2005 [1993], p.38). De 1as que se oponham aa consenso sobre os ito devem ser contidas como se fossern (Rawls, 2005 [1993], p.64). E particularmente importante, no contexto da presente discus so, a recomendacio de Rawls de que “uma visio liberal remove da agenda politica as questies que geram mais divergéncia, [pois] (Rawls, 2005 [1993], p.157). O modelo de Rawls, como © conflito religioso que irrompeu na Europa a partir da lo XVI, e que se resolveu com a separago entre 1oje nds consideramos, com bons motivos, que tal separacio € um ganho—e, na verdade, uma condigao necesséria da possibilidace de dem todas as questdes mais ia, seguramente é um erro supor que jcas da agenda politica sio da mesma natureza, Muitas delas dizem respeito ao acesso a0 poder e a distri- buigio dos frutos da cooperagio social, para ficar com aterm do proprio Rawls. Uma vez que, conforme ele mesmo, nagdo na aplicagio dos prin ‘exemplo, a igualdade entre os sexos, a protecio do meioambiente ou ao controle dos meios de produgio) significa simplesmente eternizar 0, como diz Carole Pateman, para 03 “‘rawlsianos meto- dolégicos” — uma expresso que ela aproveita de Wayne Norman (1998) para indicar o¢ filésofos morais analiticos que seguiram a trilha aberta por Ua teoria da justica — “uma concepsio pol icafica enn un (Pateman, isolada de ideias, crencase valores capazes de gerar confi castelo neutro por trés de um fosso com ponte levadi DEMOCRACIRE REPRESENTACHO 283 2009 [2002], p.198). No mundo de Rawls, a politica se torna itrele~ ‘vante: as questies ou estio resolvidas de uma vez por todas ou ndo devem entrar na pauta. Os direitos politicos dos cidados, como “fontes autoautenticadoras de reivindicagées vilidas”, incluem sobretudo a possibilidade de apresentar reclamos as instituigaes, a partir de suas préprias concep;des do bem, desde que, é claro, “tais de justiga” (Rawls, 2005 [2000], p.32). Com uma agenda piblica desidratada e com essa énfase na reivindicaczo individual 0 poder ido, 0 espago da representagao politica fica inteiramente nado. Passo agora 20 segundo problema, vinculado ao principio da diferenga. E desnecessario destacar a centralidade desse principiona economia geral do pensamento rawisiano: ele esta no coragio do seu io e € 0 principal elemento de diferenciacio .com os utilitaris- compromisso igual em relagio.o utilitarismo. Mas Rawls com tas a despreocupagio com o processo de formagao das preferéncias, © principio da diferenca rege a distribuicao de “beneficios" {que devem favorecer prioritariamente aqueles em piores condigdes. E 0 que justfica eventuais desigualdades sociais, Para tomar um exemplo do proprio Rawls, se as pessoas menos inteligentes obtém ‘mais vantagens com a educago das mais inteligentes (que se tornam cientistas, médicas, engenheiras, inventoras ete.) do que com a sua propria, entio sera correto um sistema educacional que ampli a desigualdade cognitiva (Rawls, 1971, p.101). Desta forma, o principio dadiferenganio busca a equalizacio dos. 108 (que exigiria, ao maior investimentona educagao quanto menos capaz fosse ‘a pessoa), mas a melhoria dos padries de vida dos menos favoreci- dos, ainda que a custa da ampliagao da distancia entre os extremos. préprio Rawls estava atento aos eventuais efeitos negativos desta disposicao e anota, lateralmente, que deve haver “um ganho maximo ppermitido ao mais favorecido, presumindo-se que, embora 0 prin- cipio da diferenga permitisse [mais do que isso], ocorreriam efeitos injustos sobre o sistema politico e similares, que sio vetados pela prioridade da liberdade” (Rawls, 1971, p.81). 284 wis FeuPE MIGUEL “Beneficios”, “vantagens” e“ganhos” aparecem, no discurso de elementos autoexplicativos, no muito diferentes da ide" dos utilitaristas. Ha um quadro implicito em que tais sganhos sio vistos como unidimensionais, mensuréveis, compariveis eredutiveis a uma substincia comum —em suma, seguem um padrao de tipo monetério. Mas € claro que essa € uma simplificagao perni- ciosa. A determinasio da maior ou menor vantagem ou beneficio de ‘uma situagdo em relagio a outra nao é sempre clara para o proprio agente, nem para um observador externo, Em particular, a vantage, ‘ou beneficio precisa ser entendido como fungdo de um conjunto de ias que sao, elas préprias, produzidas socialmente. Nao é Icangar um entendimento das assimetrias sociais relevantes sem levar em conta a capacidade desigual de produzir preferéncias auténomas, influenciada seja pela privagao material, seja pela dependéncia cultural ‘Um modelo de preferéncias dadas também obscurece o sentido da representagio politica, que se reduz a um canal de agregacio e civo.’ E exatamente esse cardter tica que faz.com que seja preciso cencarar com cautela qualquer visio que nao estabeleca como crucial anecessidade de redugiio dos diferenciais de informacioe influéncia entre representantes e representados, em advocacy, criticados no capitul Mesmo que para outros tipos de desigualdade o pri renga possa ser adequado, discussio na qual nao entrarei aqui, a representagio politica possui caracteristicas distintivas que obrigam (O principio da diferenca poderia autorizar modelos que ampliam. a dificuldade de supervisio de representados sobre representantes. ‘Aagiode um grupo bem intencionado, dotado de recursos materiais e culturais, bem como de conexées com os tomadores de decisao, ode ser bem mais efetiva na promosiio de politicas que contribuam para suprit as necessidades de uma determinada populagio do que © Cf capitule “As imensies presentag DEMOCRACIAEREPRESENTAGAO 285 se ela propria se auto-orgenizasse. Os beneficios aos menos favore- cidos, assim, justficariam @ manutengGo ou mesmo o ineremento dos diferenciais de influéncia entre esses representantes eseus repre- sentados putativos. Na medida em que os direitos politicos formais estivessem garantidos a todos, tal arranjo nem mesmo violaria 0 primeio principio da justica. ‘A leitura paternalista da representacdo, permitida por essa interpretagio do principio da diferenca, elimina do desenho a neces- sidade de ampliaso das possiblidades de produsio auténoma das ria a redistribuigdo do capital ‘io possivel - de uma forma que as simples injungoes de eficécia nao es de incorporar. Ao nao problematizar 0 que é 0 “beneficio” o% desfavorecidos, o principio rawlsiano da diferenca se torna incapaz de lidar adequadamente com a questio. Boa parte das criticas que se dirigem & obra de Rawls pode também ser endezegada a Ronald Dworkin — também jqualitério" empenhado tanto na protegao da autonomiai cena garantia de um Estado neutro.em relagdo.s diversas concepgoes do bem, quanto na promogo da maior igualdade possivel entre as pessoas, Dworkin, no entanto, é colocado entre os “igualitarios da sorte” ou “da fortuna”, isto 6, seu objetivo € que o destino de cada ‘um nfo seja afetado por circunstancias aleatérias, mas sim pelas cescolhas que o proprio individuo realiza, Trata-se de uma visio ‘que, a despeito da ostensiva radicalidade igualitaria de Dworkin, :ma-o da insisténcia conservadora na “‘responsabilidade jual”,” e leva-o a uma tentativa fadada ao insucesso de tra “yantagem” dos mais ‘um ambiente intelectual marcado pela hegemonia do diseurso neoliberal 286 wis reEUPE wicueL Da mesma forma como ocorre com 0 de Rawls, 0 modelo de Dworkin exige uma sociedade com uma estrutura muito pouco maleével. Os cidadéos parecem simplesmente estar submetidos a lum esquema tecnoburocratico que os controla de cima e aplica, da forma mais exata pos el, sua maétrica de 6nus e compensagies. 0, “o ideal de igualdade de Dworkin, tal como aplicado a questdes de distribuiggo, nio é em absoluto um modelo de igualdade social ou politica. [...] Representa o que pode ser chamado de uma concepedo administrative da igualdade" (Schef- fler, 2003, p.36-7). O modelo de Dworkin prevé um véu da ignorancia “ ual as pessoas conheceriam suas preferéncias, mas no suas cunstancias (incluidos, nas circunstancias, seus eventuaistalentos ou. deficiéncias). A ideia é que cada um seja capaz de usar uma parte de seus recursos iniciais equitativos para contratar um “seguro”, para © caso de se frustrar na conquista de seus objetivos. Assim, se meu somho é ser jogador da selecio brasileira mas, ao se levantar 0 véu, descubro que sou paralitico, o seguro me compensaria com vanta- gens em outros campos, O valor aser pago pelo seguro—que implica reduzir a parcela dos recursos iniciais de que disponho para outras, coisas — depende tanto da natureza das minhas ambigdes (quanto ‘mais elevadas, maior a chance de que eu nao as atinja) quanto do rau da minha aversio ao risco. O artificio do seguro faz com que as circunstincias aleatorias sejam internalizadas como escolhas dos agentes, Posso nao ser responsavel por um acidente que softi, mas, sou responsivel pela qualidade do seguro que optei por comprar. Mas nao sio fixas, nem inequivocas, as fronteiras entre aquilo ‘que pode ser creditado a sorte ou ao azar e aquilo que é responsabi- lidade de alguém, seja um individuo ou uma comunidade — um dos problemas mais espinhosos para a teoria de Dworkin. Conforme expandimos nosso conhecimento e nosso dominio sobre a nature 2a, expandimos também érea da responsabilidade humana. Muitas das catastrofes naturais sio hoje atribuidas i aggo humana, seja lizada e em prazo relativamente curto (enchentes causadas pela de- sradacio das bacias hidrogrificas, com o desmatamento, o yarimpo Como observa um eri DEMOCRACIAEREPRESENTAGAO 287 ‘ou a urbanizagao), seja planetaria e em longo prazo (mudanca cli- mitica global), Se os eventos em si nao so control hhumanos, como € 0 caso de terremotos, ainda assim incidem res- ponsabilidades sobre os planos de deteccao precoce, evacuagio de populagies e assisténcia as vitimas. Doengas que antes eram tidas por fatalidades hoje s2o associadas a habitos danosos, & auséncia de prevengio ou a falta de exames adequados, o que aponta na dire- 20 do doente ou do sistema de satide, isto é, das autoridades res- ponsiveis por ele ; Em cada um desses casos, 0 que conta como circunstancia, fora de nosso controle pessoal e, portanto, creditavel ao acaso, 6 em grande medida, a resultante complexa das ages deliberadas witas outras pessoas." A atribuigdo de responsabilidade nao & les: o cancer de pulmao é culpa do fumante, de pais que deram ‘mau exemplo, das empresas de tabaco que incentivaram o vicio ou do Estado que nao coibiu a publicidade do cigarra? Isso evidencia um dos mais importantes pontos problematicos da narrativa de Dworkin, sua opgio por focar 0 problema em ter- mos de diferengas entre preferéncias individuais, o que obscurece, de forma ainda mais completa do que ocorre com Rawls, o papel ‘Young, 2011, p.30) e das relagdes sociais de 1999, p.57-8). E-insustentavel, em particular, aideia de que preferéncias (a serem respeitadas) e circunstancias (a serem anuladas) sio perfeitamente independentes entre si. Mesmo ospaladinosda teoriada escolha racional reconhecem arelasao entre mas e outras: nossas preferéncias reagem as nossas circunsténcias, também agem sobre elas.” A relagio entre preferéncias e ias € importante do ponto de vista de uma teoria normativa da representagio politica, pois a forma como a entendemos determina 4 possibilidade (ou nao) de fazermos a critica aos mecanismos de 8 O que jd esté em Maguiavel, para quem a vit, ntroduzindo inovag®es no na, urna vex que tonna 288 Luis FeUPE wicuEL manipulagdo ou de redugdo das alternativas politicas colocadas & disposigao do pablico. Entender as preferéncias como produzidas socialmente significa colocar em questao assimetrias sociais importantes. Dworkin reco- nhece esse carter das preferéncias, mas sempre de forma lateral, sem que se incorpore a construgio de seu raciocinio. Em especial 20 insistir que os gostos dispendiosos nao devem ser incentivados, cle admite que as preferéncias refletem o contexto e sto sensiveis a pressées (Dworkin, 2005 [1985], p.288). Porém, é necessatio mais Enecessério conectar a formagao social das preferéncias a dinémica dos conflitos dentro dessa mesma sociedade. Nem todos tém a mesma capacidade de influenciar na produ- ‘¢40 das preferéncias. Alguns ganham com a dissetninacdo de um determinado tipo de preferéncia, Fomentar a geracio de certas, preferéncias (lembrando que ha interesses que sdo satisfeitos nesse processo) sem que sejam dadas as condigdes de satisfazé-las no €, em si mesmo, injusto? A dinémica das sociedades capitalistas, contempordneas esta bascada na incessante promogio de novas necessidades, a serem supridas por meio do consumo conspicuo, gerando enormes quantidades de frustragdo naqueles que ficam & margem. Nese process, alguns poucos posstem os recursos para influenciar na produgao das preferéncias, o que fazem em seu pr6: prio favor. As respostas de Dworkin & questio sto bastante insatistatdrias, Dizer que numa sociedade ordenada de forma justa (isto €, ordenada deacordo com seu proprio esquema) as atitudes "bizarras” relativas a riqueza, proprias da nossa sociedade, ndo terdo mais curso (Dworkin, 2000, p.107) éelidir o problema por meio de um mergulho na utopia. ‘Também é espinhoso o problema das desigualdades de mérito, ‘Teorias igualitarias julgam que 0 mérito ou talento nao deve ser premiado ou, entio, que seu prémio deve ser matizado por injun- Bes como o principio da diferenca, Podem por vezes pensar que a auséncia de talento deve ser compensada, Mas nunca julgam que 0 talento deve ser punido ou proibido de ser exercido, em nome da igualdade. Era essa a posigao de Babeuf, mas nao ha, hoje, quem DEMOCRACIAEREPRESENTAGAO 289 levea sério. Assim, a velha objecao elitista~a desigualdade deriva das diferengas naturais ~ continua ecoando mesmo em vertentes «que se apresentam como igualitarias. Dworkin tenta enfrentar 0 problema, mas de forma in Mérito ou talento nao podem ser vistos como “dons”, mas como frutos de disposicées sociais especificas distribuidas de forma desi- gual. Mesmo que haja uma base genética para determinados tipos de talento, tal como em geral se imagina, essa base precisa ser ativada pelo ambiente social para que se manifeste e se desenvolva. Mais ainda, o talento nao é algo que se reconhece como tal sem qualquer ipo de mediacdo. Um determinado potencial ou capacidade 6 existe como “talento” sobre o pano de fundo de necessidades sociais especificas e da valorizagiio social de uma pritica. Para dizer de forma provocativa (ed la Engels): no existe pianista talentoso antes de existir 0 piano, E, de forma mais geral, aquilo que se reconhece com odom para a miisica (ou para ofutebol, para culindria etc.) nfo ica, o futebol ou a gastronomia, e que concedem a cada ‘uma dessas atividades uma posicdo superior ou inferior numa escala de valorizagio, Em suma, nao hé talento fora da sociedade, tema Ja desenvolvido de forma definitiva por Rousseau (1964b [1755], Na verdade, Dworkin abre uma interessante via de aproximagdo 4 questdo em sua defesa das agdes afirmativas para o ingresso de integrantes de minorias raciais em instituigdes de ensino superior. Ele argumenta que, mesmo que os processos seletivos atuais Fossem cexitosos em sua tentativa de medir a inteligéncia dos candidatos universidade, a inteligéncia ndo garantea ninguém o direito de fazer ‘um curso universitario. A selec por testes de aptidio indica apenas a crenga de que a comunidade estara melhor servida por profi nais mais inteligentes. E possivel, no entanto, julgar que outros valores ~ como a diversidade de origem desses profissionais — tam- bem devem ser levados em conta no eadlculo do bem da comunidade (Dworkin, 1977, p.225) E possivel, a partir dai, progredir na direcdo de uma c abrangente a ideia de talentos naturais. Mas nio é 0 que Dworl 290 Wis FELIPE wiGUEL faz, Ele encara a presensa ou auséncia de talentos como uma das citcunstancias alheias & opcao dos individuos, que devem ser com- pensadas para a producio da igualdade (Dworkin, 2000, p.140) ‘Acompanha Rawls, assim, na critica a nogio de méri vidual como justificativa para as desigualdades sociais, o que é uma {importante ruptura com o liberalismo vulgar, eivado de percepcées -as, Mas Dworkin nio avanga na discusséo sobre como se cons- tituie se valoriza algo que é aceito como “talento”, permanecendo na sua aritmética de ganhos e perdas devidos i sorte e de reparagdes individuais. Mais uma vez, ua teoria falha em conectar individuo e coletividade, privilegiando compensagées localizadas ¢ abrindo mio de fazer a critica da produgao social dos valores, por um lado, ¢ das ambigdes, por outro. ‘Ao mesmo tempo, parece razodvel compensar as deficiéncias, Mas isso implica uma determinagio do padrio da “normalidade” que é, ela mesma, politica sujeita a pressies. Por exemplo: para a industria farmacéutica, desejosa de ampliar 0 mercado para 0 horménio do crescimento iam fora da normalidade 108 3% mais baixos de qualquer populacio (Wilkie, 1993, p137). B claro que, por esse critério, o nanismo nunca seria superado, jé que, por definigdo, sempre existirao os 3% mais baixos, ndoimporta qual seja a altura média ou o intervalo entre 0 individuo mais baixo ¢ 0 ‘ais alto, Mas qual 60 ponto em que a baixa estatura compromete a vida cotidiana ou implica desvantagens no trato social? E caminho é compensar as pessoas menores dando-lhes vantagens f investir macigamente na que contrabalancem seus prejuiz pesquisa de remédios que aumentem sta estatura? Ou € adaptar 1s e desconstruir a valorizagio simbélica equipamentos pal concedida aos mais ‘A compensagio das deficiéncias tem também o problema de ser indiferente as preferéncias daqueles que a recebem, constituindo- se numa forma de normalizacio compuls6ria. proprio Dworkin. sta atengio 0 problema, ao analisar 0 caso hipotético 1 paraplégico. Se seria correto usar recursos comuns para propiciar a ele uma maquina que petmitiria que voltasse a DEMOCRACIAEREPRESENTACAO 291 optar por um Stradivarius que custaria que o proprio individuo preferiria (Dworkin, 2000, Je usa a discussio para sustentar sua posigdo contraria a0 tarismo de bem-estar, observando que 0 que deve estar em a satisfagao do vi mas a equalizagdo dos recursos disponiveis para cada pessoa. No entanto, permanece oproblema de {quais recursos sio importantes para serem considerados nessa conta, Um {rages num campo so compensadas por vantagens em outro: mo ponto discutivel em Dworkin € a nogio de que fr ‘que, se combinamos “sorte no jogo e azar no amor”, acabamos: itvel. Essa ideia ¢ fruto de uma psicologia a, para dizer 0 minimo, e serve com¢ ‘demasiado simpl completa dos problemas do, paradigma distributivo, criticado por Young (1990, p.15-9): foca na distribuigao, tendendo a ignorar a cstrutura social que contribui para gerar os paddes de distribuicio, ¢, ao ser estendido metaforicamente aos bens no materiais, tende a fazé-los “coisas”, em vez de relagées ou processos. No que toca diretamente ao que nos interessa aqui, a concepcio de Dworkin pode levar a visio de que um déficit de influéncia politica ~ como ‘auséncia de uma representagéo adequada ~ seria sandvel com 2 Dworkin se aproxima da questo, mas pela negativa, em sua inuciosa discussio sobre o sentido que devemos atribuir a igual- dade. Seu esforco é defender a superioridade da ideia de igualdade de recursos sobre a igualdade de satisfagio ou bem-estar ~ e, no 1s ambigdes (na medida em que trazem. para os outros), mas nao aos atributos pessoais." Na sua estratégia de desconstruir passo a passo a igualdade de bem-estar, 0 primeiro 292 ws FeuPe micueL esforgo é demonstrar que as preferéncias politicas no poderiam ser is num célculo de satisfacio pessoal ‘preferéncias pol nos termos de Dworkin, aquelas ue dizem respeito & distribuigdo dos recursos e oportunidade da sociedade. Se elas entrassem no célculo, a sociedade igualitaria teria que compensar racistas ou aristocratas p insatisfagdo de viver sob uma ordem que nao é de seu agrado (Dworkin, 2000, p.21-5), ‘Trata-se de um contrassenso evidente, O conceito de “preferéncia politica” de Dworkin é bastante restritvo e nfo abrange todo o campo das preferéncias que temos em relacio as questdes politicas. Basta observar que a preocupacio ‘com apreservagio do meio ambiente é um dos exemplos centrais da categoria seguinte, as "preferénciasimpessoais" ~aquelas quedizem respeito a coisas que ndo me pertencem ou a vida de outras pes- s0as.\! Dworkin também as retira, em parte devido a demonstragao de que esperangas pouco razodveis ou muito custosas (encontrar vida em Marte, por exemplo) gerariam enormes frustragdes e, portanto, demandariam enormes compensagées. Mas a discussio se conclui com uma nota em tom algo dogmitico: E claro que as pessoas se preocupam, muitas vezes profunda- ‘mente, com suas preferéneias politicas eimpessoais. Mas no parece insensivel dizer que, na medida em que o governo tem o direito ou ‘0 dever de tornar as pessoas iguais, ele tem a direito ou o dever de ‘tomné-lasiguais em sua situasioou circunstancias pessoais,incluindo o Assim, hd uma cautelosa diferenciagio entre igualdade de poder politico — entendida como capacidade potencial de influenciar nas DEMOCRACIAEREPRESENTACKO 293 decisdes ~ igualdade de realizacao do ideal politico, Numa eleigo democritica, todos tém, formalmente, 0 mesmo poder (cada wm Possut um voto com peso igual ao dos outros). Mas a maioria ven cedora vai estar em condigdes de implantar seu projeto de sociedade, 40 contrério da minoria ou das minorias derrotadas,"" Restam apenas as preferéncias pessoais. Dworkin procura

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