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O sonho
Por algum tempo, ao ouvir esse arfar molhado das folhas, ela
desejava que houvesse um correspondente real de tais
sentimentos, como se, quem sabe aquela sapatilha na
entrada, representasse o apelo de uma outra vida, ainda
misteriosa, assim como ao pensar nas coisas do trabalho ela
não veja o escritório, mas o homem a quem permitira que se
fizesse sonho e suas mãos. Um funcionário novo, imagine,
mal chegar e logo ir invadindo os segredos dela. É nessa
memória paralela que o guarda.
A morte
Ana saiu do hospital faz sete dias. Eu
ainda não passo de uma criança assustada sem
saber no que acreditar além do sentimento
sobrenatural que nutro por ela. Que alívio ter
ela sobrevivido. Dizem que foi um milagre.
Pouco ouço a respeito das razões que a teriam
levado àquele ato. Levantei. É quase de manhã
mas não há indício exceto talvez pelo eco do
copo na pia e dos indecisos passos no corredor.
Terá ela voltado às aulas, imagino.
Provavelmente já tenha algum trabalho de
tradução. Ouvi o meu nome. Saio e a escuridão
torna-se mais vívida e suportável embora não
menos densa, porque é aí que estamos, quando
a realidade se destaca do pavor. As flores
lentamente tornam-se visíveis, o aroma delas a
atmosfera respirada. São as flores que
ladeavam o caminho pelo qual passáramos
naquele primeiro dia. Ela pergunta e eu
respondo com um sorriso indulgente. Demorei?
A mão toca meu ombro, suave, fria e branca, a
não ser pelas veiazinhas azuis.
Gerações
Bato à porta. Como está entreaberta, entro. Ele não está. Sento-me na
beira de sua cama. Refletindo sobre a questão das gerações, meu espírito vai
longe. Talvez eu esteja com inveja. Ele está realmente pronto para o novo
mundo. O meu mundo desapareceu. Sou isso, resto, lixo. Não há um terceiro
caminho. Integrado, meu filho terá dinheiro e poder para melhor servir seu
semelhante, realizado. Nada de que se envergonhar, pelo contrário. Eu sim,
marginalizado dos benefícios da revolução tecnológica, do esplendor de uma
época que sabiamente uniformizara o pensamento com o fito do bem-estar
geral. Meu filho logo será agente dessas transformações extraordinárias que
constantemente se renovam.
Justamente hoje deveria ela ter voltado para casa mais cedo. Iria ao
dentista e não mais retornaria à redação. Minha mulher era muito sedutora.
Havíamos inclusive planejado uma pequena celebração para o fato raro de
estarmos a sós na casa, sem a presença de meu filho e, para mim, confesso,
dos barulhinhos do computador. Ele dormiria na casa de um amigo. Portanto
mais estranha a sua demora.
Dado momento, seus braços caíram sem vida, as palmas das mãos para
cima. Estremeci ante a cruel possibilidade. Contrações em sua face me
mantém a esperança. Todos os meus parcos conhecimentos de primeiros-
socorros são gastos nessa eternidade.
Não era bonita, quero dizer, não possuía essa beleza óbvia que chama a
atenção. Carregava no semblante coisas que só exploradas podiam ser
admiradas, como uma ilha misteriosa perdida no azul. Ei-la. Está vestida como
o costume, roupas multicoloridas, sandálias feitas à mão. Quinquilharias de
feira dominical em seus braços, pernas e pescoço. Nariz aquilino. Sob as
sobrancelhas que em arabesco se juntam na glabela, crispam-se de mar os
olhos por onde gira o mundo. Esse úmido brilho róseo dá vida às suas palavras.
É ela, a mesma, a morta, diante de mim. Chorei.
Olhei para a tela. Ali estava. Com os olhos azuis de última geração. Meu
filho. Meu filho... Meu filho! Meu filho?