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CONTOS DO AMOR E DA MORTE- Ricardo Rocha

O sonho

Pode-se dizer que Juliana é feliz, feliz


como não se costuma ser nessa idade.
Dezessete anos. Antes do amanhecer está
pronta para mais um dia a partir do jardim
de sua casa – um cotidiano, se sempre
igual, jamais monótono: fala com as flores,
sorrindo sempre; caminha entre as árvores
do quintal; sonha desperta, lembrando os
sonhos que a noite e o sono lhe trouxeram.
O sonho. Na verdade o mesmo,
pontualmente apresentado assim que
adormece e, quando acorda, mantendo-se
a força que a conduz durante o dia.
Na escola, próximo o crepúsculo,
esqueceu de todo a mesquinhez humana e
já não liga para a frivolidade social que
suportou no trabalho pela manhã. No
ônibus de volta para casa, passando pela
janela o brilho dos vidros nos prédios,
prepara o espírito em oração, grata por
estar às portas daquele outro mundo que
se abririam após o jantar.
Seus pais se preocupam com ela,
pobrezinha, seus pais se preocupam.
– Estou bem, queridos. Sou tão feliz...
Mas não a escutam, entranhados de
normalidade. Uma moça sadia precisa ter
amigos e sair à noite nos finais de semana
e se divertir e ter um namorado. Um
namorado. Um rapaz de boa família. Um
bom partido. Logo o casamento, os netos.
Nada disso faz sentido para ela mas sim o
vestir da camisola, deitar-se e adormecer.
Seus olhos se fecham e eis que se
abrem. Feições sobre o travesseiro
abrandadas. As gargantas levam ao túnel
de pedra no fim do qual dos passos se
aproxima a luz. A bem-aventurança de
uma outra era, silenciosa cúmplice do
encontro à beira do lago cristalino. Ele– o
rapaz do olhar perfeito – a espera todas as
noites (ali dia esplendoroso), longínquas
agora, estagnadas no quarto onde ela
adormeceu. A terra do sonho, a terra da
vida, onde anjos a deixavam e retornavam
às estrelas.
Silêncio. Os olhares se cumprimentam,
regozijantes de ternura. A luz refulge na
relva, as mãos se encontram, eloqüentes;
a brisa sussurra entre as flores.
A mulher grita.O que? Não foi
trabalhar? Larga o fone e corre ao quarto
da filha. O corpo quieto ainda ocupa a
cama, o dia alto entra pelas frestas da
cortina. Nos lábios de Juliana, um sorriso.
Ó meu Deus! Por quê? Por quê? Minha
filhinha, minha filhinha querida, tão cheia
de vida!... Por quê? Por que, meu Deus?
Chorai sim vós que tendes por santuário o
razoável e por afeto o sangue e sãs as
virtudes transitórias.
Ele aproxima-se e toca-lhe o rosto.
Você veio. Enfim. Como foi difícil suportar
a espera! Eram seus os traços de meu
reflexo nas nascentes. Perdoe-me: temi
que se integrasse e não viesse mais.
Talvez tudo (temi tantas vezes) – disse
ela – não passasse de um sonho que a
morte dissiparia.
Tudo não passou de um sonho que a
morte dissipou. A música do regato soa
qual oboé. s olhos carregam um brilho
transcendental de dimensões. Sentem o
calor um do outro e o peso desse abraço.
Tudo não passou de um sonho: agora
estão livres para sempre.
Durante a chuva

Uma interrupção, uma interrupção fria que paralisa


inelutavelmente o ânimo. Mas a mulher, com seu material de
trabalho transbordando de seus braços, ainda assim caminha
sobre os tacos estalantes e segue. O que é isso, uma
sapatilha de balé? Estranho. Seu olhar é lento e sereno. Os
óculos deslizam para a ponta do nariz a fim de que veja cima
o que não necessita grau. Aliás, o que o grau embaça.
Aconchego. É a primeira coisa que lhe ocorre ao ver o tapete
do escritório. Um aconchego morno. Uma vida morna. Terá
saudades talvez do atrevimento de mãos entre suas pernas
sob a saia, ah, que loucura, ali mesmo e com o pessoal da
limpeza a ponto de entrar... A tentação se afasta. Bom dia.
Bom dia. Quando ela passa, ainda provoca excitação e inveja.
Não está tão acabada quando pensa.

Prefere chegar quando não há ainda ninguém, dispersa-se


com facilidade quando o expediente começou. Vozes, passos,
basta. Como suportam? E sorriu novamente ao responder
outra saudação.
Prepara então seu melhor semblante. Assim. É preciso. Mas
noutros momentos, quase diria noutra dimensões, as deusas
jubilosas esperam ainda uma liberdade real. Não estão
algumas ali na chuva, agora mesmo, espreitando a felicidade
que constantemente lhes foge? Quanta vida além dessa
janela...

Por algum tempo, ao ouvir esse arfar molhado das folhas, ela
desejava que houvesse um correspondente real de tais
sentimentos, como se, quem sabe aquela sapatilha na
entrada, representasse o apelo de uma outra vida, ainda
misteriosa, assim como ao pensar nas coisas do trabalho ela
não veja o escritório, mas o homem a quem permitira que se
fizesse sonho e suas mãos. Um funcionário novo, imagine,
mal chegar e logo ir invadindo os segredos dela. É nessa
memória paralela que o guarda.

A chuva pergunta como é possível que os mortos


incomodarem a serenidade dos vivos, como o que passou não
passa, antes desenvolve-se para todas as direções: um toque
são todos os toques, todas as carícias que jamais foram feitas.
Ela sim parece morta e seus sonhos são fantasmas. Não há
coisa alguma simples nessa dimensão. Não pode
compreender seus colegas decerto por isso, porque estão
vivos.

Achegou-se à luz direta da luminária, receosa das sombras do


dia escuro. Todavia, eis o sol, com força tal que atravessa as
nuvens e a chuva, estará sempre ali. Imagina que o tempo irá
firmar logo, talvez já à noite; mas prefere não pensar na noite.
Não é fácil. Um dia nublado, uma manhã assim se parece
demais com a hora temida da volta para casa. Não pode se
dar ao luxo de uma crise noturna, há esse trabalho urgente.
Sim, precisa ser entregue no dia seguinte. Mas é inevitável
que lance ao infinito a pergunta. Por que?

Se pudesse responder, a sapatilha de balé não guardaria o


silêncio daquela paixão furiosa, e o riso, o dever, a vida enfim,
tudo estaria naqueles pingos que escorriam na janela.

A morte
Ana saiu do hospital faz sete dias. Eu
ainda não passo de uma criança assustada sem
saber no que acreditar além do sentimento
sobrenatural que nutro por ela. Que alívio ter
ela sobrevivido. Dizem que foi um milagre.
Pouco ouço a respeito das razões que a teriam
levado àquele ato. Levantei. É quase de manhã
mas não há indício exceto talvez pelo eco do
copo na pia e dos indecisos passos no corredor.
Terá ela voltado às aulas, imagino.
Provavelmente já tenha algum trabalho de
tradução. Ouvi o meu nome. Saio e a escuridão
torna-se mais vívida e suportável embora não
menos densa, porque é aí que estamos, quando
a realidade se destaca do pavor. As flores
lentamente tornam-se visíveis, o aroma delas a
atmosfera respirada. São as flores que
ladeavam o caminho pelo qual passáramos
naquele primeiro dia. Ela pergunta e eu
respondo com um sorriso indulgente. Demorei?
A mão toca meu ombro, suave, fria e branca, a
não ser pelas veiazinhas azuis.

Imerso no mesmo silêncio com que com ela


sonhara, agora porém continua ali, filha de meu
sonho e a mais pulsante parte da vigília. Uma
fronteira sem o menor sentido. O saber de Ana
era o meu. O que adquirira ao longo da vida, me
passava. A divisão entre nossos apartamentos
perdera igualmente a razão de ser quando
voltamos da caminhada, quase ao meio-dia. Um
brilho inexorável dos corpos sob as camisas
finas.

Sua biografia está em seus lábios, a


suscetibilidade na ponta de sua língua e o
universo recluso no corpo de seus dedos, entre
palavras cuidadosamente inauditas. Como
esperar que a luz seja estável em seu
movimento, se você num momento vai ao
encontro dela e noutro retira-se no sentido
contrário? E todavia é o mesmo movimento e a
mesma luz. Porque a luz não depende dessa
sucção ou desse polimento.

Posso por isso decifrar o mistério


desse muro erguido do nada, sei o segredo, está
aqui, na magia de nosso contato, mas
justamente por isso estou inquieto com a forma
como o contorno de Ana se torna fosco e a aura
das flores imerge num denso nevoeiro. Ela se
evade e eu não consigo pensar o que devo nem
dizer a palavra. Ana, flor de luz pela qual reduzi
minha vida a uma escravidão, não pode partir
assim e me deixar órfão outra vez.

Mas caso o faça, pergunta-me em meio à


sua energia que me acelera, ainda assim
insistirei nesse pensamento que foi nosso? Ana,
Ana, ouvi minha alma lacerada na despedida. O
universo do espaço e tempo deformáveis se
expandia em busca ou talvez em fuga da noite,
que se transformaria em realidade no
apartamento vizinho.

De joelhos deveria estar eu, Ana, santa,


pura, inocente. Esses dedos deveriam ser os
meus, a retirar santidade do ícone. Essa boca
deveria ser a minha, a buscar as gotas entre os
bancos do templo espargida. E engolir o poder
eterno desse desvio para o azul.

Um olho mágico cruel. Seus pais chegaram


agora da rua. Continuam naturalmente
arrasados. Quem dera eu lhe pudesse dar algum
consolo desse que ela própria me deu. Soube
que havia muitos amigos na igreja mas nunca
onde foram jogadas as cinzas. Também, não
faria a menor diferença.
A outra

Um balneário. Num verão de minha juventude, ali conheci


Milena. Espraiada ao sol. Me detive toda a manhã na sua
contemplação, agora estou confiante para a abordagem que procuro
equilibrar entre a malicia e a delicadeza, julgando que as mulheres
são fascinadas por extremos opostos convivendo num mesmo
homem. Era um anjo, Milena. Encantadora à primeira vista, sedutora,
digna de amor ao falar – e assim me senti feliz de ter aceito o
convite de meu primo, que normalmente deveria recusar, para passar
o verão naquela praia. Milena me enfeitiçara. A principio queria estar
a seu lado à noite; logo, pelo resto de meus dias.
Em redor dela muitos rapazes, alguns esperando uma chance, a
maioria simplesmente, através do olhar, gozando de seu corpo.
Mantenho uma distância calculada. Porque seus amigos estavam
distanciados dela pela própria proximidade, afastados de seu amor
pela amizade. Em vantagem, olho-a de longe. Quando em vez, seu
olhar se cruza com o meu. As primeiras noites. Pensando nela. O
contorno de luz a delineia num talhe de mar. Para sempre hei de
lembrar, no melhor recôndito de mim, nosso primeiro contato. Sua
meiguice irá se render à luxúria, a sinceridade da resistência contra
os humores primaveris sob o sol. Há reflexos de crepúsculo no
oceano quando lhe declaro o meu amor.
Era tudo o que desejei embora nem o soubesse.
Eu decidira passar o resto de minhas férias na praia, caótica
exceto presença de Milena, quando ela foi acometida de uma doença
rara. Mal o soube, soube também que a família a levara para os
Estados Unidos a fim de que se tratasse. Nas sombras que se
fizeram, minha vida perdeu a razão de ser.
Seis meses no Exterior e, apesar da debilidade física, sua
lucidez não foi alterada. Nos correspondemos com cartas diárias. Ela
escrevia de um modo objetivo, lógico, duro, terno. Parecia muitas
vezes estar me preparando para o pior, talvez a si mesma. Mas era
sempre elegante e engraçada. Pensei que aquelas cartas eram como
a festa da preparação de um túmulo.
Milagrosamente porém, começa a se recuperar. Suas cartas
seguintes ao diagnóstico que a colocava fora de perigo são a brisa
alegre que sopra a poeira da morbidez, embora eu até já estivesse
acostumado e deva dizer que aquele raio de otimismo tinha um quê
constrangedor. Tudo está enfim em seus devidos lugares, a não ser
por alguns trechos grosseiros nas últimas mensagens que recebi,
aqui pornográficos, ali blasfemos. Algumas vezes pensei que mal a
conhecia e não fazia sentido cotejar esses textos com as lembranças,
pois essas eram minhas e aqueles sim eram ela.
Voltou.
A alegria de vê-la saudável será transtornada quando nos
amarmos após o retorno. Está estranhamente agressiva, provoca
sangue e gritos de dor. Não gosto disso, amor.
– E do que você gosta?
À pergunta, sucede-se uma série inimaginável de jeitos. Em
seus olhos não mais reconheço os olhos de Milena. Não cheguei a
pensar que jamais olhara tão atentamente assim para seus olhos
para chegar a reconhece-los ou não.
A noite passou. A luz que incidia pela janela do quarto
iluminava minha Milena.
Um pesadelo, pensei. Minha imaginação. Talvez algum tipo de
síndrome. Um especialista dirá. Isso pensei na aurora. Mas ao quando
fizemos amor como sempre outrora, esqueci tal desígnio.

Dias depois. Os pais dela em minha porta. Não está aqui?


Procuramos por todos os lugares em que costumava ir. Encontrei-a
num barzinho saindo pela porta dos fundos com dois rapazinhos, uns
dez anos mais novos que ela. Mas perdi-a e só tornei a saber dela
na portaria de um hotel. Havia subido para o quarto com os
meninos. Que quarto? 15, senhor.
– E você permitiu?
Pensei que eram irmãos, disse-me o porteiro, e ela é maior de
idade.
Ela não estava com eles quando em seguida desceram. A cara
deles...
Antes de subir, liguei para os pais. A porta estava entreaberta.
Ela sorria e não acordou quando a tomei nos braços.
Em casa, depositei-a em minha cama. Ela continuava sorrindo,
um sono solto e suava. Nada parecia errada, exceto talvez pelo ar
demasiado cansado, como alguém que lutou ao longo de horas
contra um adversário mais forte. Sentei-me na poltrona a seu lado e
acabei adormecendo também.
Acordei assustado. Ela me sacudia. Seu rosto exaurido possuía
a pureza dos anjos. Ela não se lembrava do que aconteceu, pelo
menos nada falou a respeito, e não me atrevi a contar. Ela não
acreditaria.
Durante segundos eternos agonizei a seu lado. Anoiteceu e a
cidade parece distante lá embaixo. Pedi que os pais dela passassem
aqui, devem estar chegando.
Silêncio.
A mariposa bate na lâmpada. Milena, liberta, está despertando
do novo sono.
Tem um sorriso nos lábios.

Gerações

Cresci em meio a livros, contemplando a natureza e contestando o modo


que a hipocrisia social impõe às pessoas. Saí de casa aos quatorze para viver
em uma comunidade agrícola. Era a época da contracultura, mas hoje sei que
esse é o fim de toda revolução, o ser absorvida e igualmente se estabelecer
como padrão comportamental. Por isso, dentre outras coisas, o sonho acabou.
Meus amigos hippies se transformaram em bem-sucedido empresários de
caráter duvidoso, e me perguntei se as pessoas mudam assim ou mudam
apenas no sentido do que sempre foram.

Não cheguei a tanto. Faço parte da casta de escritores medíocres não-


publicados que precisam ganhar a vida e trabalham em alguma outra coisa
para sobreviver. Sou professor. Enfim, os marginais daquela época fomos todos
assimilados pela nova ordem das coisas.

Casei-me com uma jornalista, namorada dos velhos tempos.


Naturalmente, ela escrevia suas matérias em computadores na redação e
resolveu comprar um notebook para fazer trabalhos em casa. Mas paramos
pouco em casa e um dia surpreendemos nosso filho de nove anos mexendo
com desenvoltura na máquina obediente. Na escola, temos aulas de
informática, disse-nos. Nós não pensávamos que fossem tão eficientes. E nosso
fino, leve e elegante amigo tornou-se membro da família. Preocupados com
pornografia e pedofilia, não nos passou pela cabeça que o perigo poderia estar
também noutra parte.

Certa vez, cheguei à noitinha da editora onde trabalho revisando textos


de outros – os meus permaneciam na gaveta –, na expectativa de ser mais dia
menos dia despedido pela automação da empresa. Minha mulher me mostrou
no site do jornal a reportagem de uma amiga, sobre superioridade da nova
geração, que nasceu e cresce com as rotinas da internet, mensagens
instantâneas, sites de relacionamentos, e até as leituras via aparelhos
eletrônicos. Sua adaptação ao mundo e a facilidade de encará-lo sem
questionamentos, a força de suas mentes perante obstáculos, atuando num
único sentido: vencer.

Eu tinha uma esposa orgulhosa.

Na tarde seguinte, fui procurar meu filho. Quem sabe seus


conhecimentos pudessem salvar meu emprego. Dizem que quem se recicla
profissionalmente terá sempre seu lugar no mercado. E se ele pode derrotar
exércitos inimigos e salvar a vida de planetas ameaçados por criaturas hostis,
não deve ser difícil dar essa ajuda ao pai que o ama.

Bato à porta. Como está entreaberta, entro. Ele não está. Sento-me na
beira de sua cama. Refletindo sobre a questão das gerações, meu espírito vai
longe. Talvez eu esteja com inveja. Ele está realmente pronto para o novo
mundo. O meu mundo desapareceu. Sou isso, resto, lixo. Não há um terceiro
caminho. Integrado, meu filho terá dinheiro e poder para melhor servir seu
semelhante, realizado. Nada de que se envergonhar, pelo contrário. Eu sim,
marginalizado dos benefícios da revolução tecnológica, do esplendor de uma
época que sabiamente uniformizara o pensamento com o fito do bem-estar
geral. Meu filho logo será agente dessas transformações extraordinárias que
constantemente se renovam.

Para tudo permanecer igual? De novo, minha inveja falando. Escutando-


a, não dei pelo passar da hora.
Está demorando. Não costuma se atrasar. Ouvi um barulho na suíte.
Chamei-o. Sem resposta. O único som além de minha própria voz monologando
era o irritante sinal das mensagens. Ele deveria estar aqui? Pensavam talvez
que estivesse? Terá acontecido alguma coisa? Meu espírito está cheio de medo
e de uma melancolia tenebrosa, ligada às paredes, à atmosfera da casa.
Calafrios. Calafrios em minha espinha.

As rachaduras da tinta adquirem contornos espectrais. Às marcas das


infiltrações são emprestados quês de morte. Uma insistente lufada de vento
levanta as cortinas, embandeirando a janela. A noite desceu e me dei conta da
ausência também de minha esposa – chamá-la-ei Layla, pois ainda vive, pelo
menos é o que os médicos dirão.

Justamente hoje deveria ela ter voltado para casa mais cedo. Iria ao
dentista e não mais retornaria à redação. Minha mulher era muito sedutora.
Havíamos inclusive planejado uma pequena celebração para o fato raro de
estarmos a sós na casa, sem a presença de meu filho e, para mim, confesso,
dos barulhinhos do computador. Ele dormiria na casa de um amigo. Portanto
mais estranha a sua demora.

Foi quando novamente ouvido o estranho rumor. Um outro. A indicação


do término de um jogo?

O som vem do meu quarto. Há no tom o falsete que sucede os graves na


voz de minha Layla. Estou imerso em dúvidas desesperadas, loucas. Um
gemido? Corro.

Paro perante a porta da suíte.

Lá está. Gemendo. Com as roupas rasgadas, caída. Esqueci de meu filho


por completo. Preocupa-me apenas prestar auxílio àquela a quem devotava
meu amor maior. Contemplo-a, horrorizado. Não sei por onde começar. Entre
os gementes suspiros, arfam morbidamente os seios, o ar quer fugir. Estava
banhada em suor. Enxugo-a agora e sinto o quanto arde. Em meus braços
trejeita-se em espasmos, violenta comoção a exaure. Reconhece-me enfim e
quer falar mas saem de seus lábios frases desconexas e descabidas.

Dado momento, seus braços caíram sem vida, as palmas das mãos para
cima. Estremeci ante a cruel possibilidade. Contrações em sua face me
mantém a esperança. Todos os meus parcos conhecimentos de primeiros-
socorros são gastos nessa eternidade.

Houve um prenúncio de que iria se restabelecer, mas não foi o que


aconteceu. Por um momento tive a ilusão de estar num hospital e de que os
ruídos eram dos aparelhos que a mantinham. O sinal linear que indica óbito.
Não há chão. Tudo o que vive está morrendo. Oh meu Deus.

Sua palidez é de súbito inequívoca; sua rigidez inexorável, seu pulso


implacável. Mesmo para um leigo como eu, não há mais dúvida.

Um corredor estreito feito de dor entre nós.

O que se passou naqueles momentos agônicos não me é dado de todo


descrever.

Entremeando no sofrimento evocações românticas, lembrei-me do dia


em que a conheci.

Não era bonita, quero dizer, não possuía essa beleza óbvia que chama a
atenção. Carregava no semblante coisas que só exploradas podiam ser
admiradas, como uma ilha misteriosa perdida no azul. Ei-la. Está vestida como
o costume, roupas multicoloridas, sandálias feitas à mão. Quinquilharias de
feira dominical em seus braços, pernas e pescoço. Nariz aquilino. Sob as
sobrancelhas que em arabesco se juntam na glabela, crispam-se de mar os
olhos por onde gira o mundo. Esse úmido brilho róseo dá vida às suas palavras.
É ela, a mesma, a morta, diante de mim. Chorei.

Hoje, aquela a quem chamei Layla dorme um sono profundo no quarto


de um hospital. Todas as tarde passo lá, como quem passa num cemitério,
levando flores para a jarra na cabeceira. Os médicos dizem que não tem
consciência de nada e que seu sono é desprovidos de sonhos. Garantem que
não sente dor. Mas, se ela sobrevive, seu cérebro não. De resto, seus sinais
vitais são os de uma criança saudável. O lençol arfava sobre seu peito. Sua
respiração arrepia a minha face. Está viva, mas sem a consciência de que está
viva.

Desde aquele dia. Ela viu a cena antes de mim.


Enquanto eu soluçava à beira do leito de Layla julgando-a morta, em
meu pranto confundiu-se mais alto o ruído. Com a fonte da emoções esgotada,
caminhei na direção do som. Pude discernir. Era o computador. Meu filho havia
chegado e ainda ignorara a morte da mãe. Arrastando os sapatos, cabisbaixo,
carregando o mundo numa corrente presa ao tornozelo, entrei no aposento
amarelo. Os únicos sons além de minha voz eram os sinais do game no
computador. Um som macabro, sádico, hediondo, triste, desesperado. E
continuava, mais e mais alto, mais e mais insistente. Quanto mais eu chamava
meu filho, mais o sinal se agitava, como se me chamasse.

Olhei para a tela. Ali estava. Com os olhos azuis de última geração. Meu
filho. Meu filho... Meu filho! Meu filho?

Havia sido conectado à unidade central. Fora absorvido pelo sistema.

CONTOS DO AMOR E DA MORTE- Ricardo Rocha

Um número em cada ponto do espaço

O ar pesado da temporada ecoa como um marulho


paralelo, sepultando os pensamentos benignos,
levando ao lucro e ao prazer. A gaivotas porém
planam e pairam, só elas próprias conhecem o teor de
sua melodia. O turista acredita estar preparado. Férias
é um conceito amplo e deformável.
Dionísio, o dono do único supermercados do balneário,
tenta entender, pasmo.

Nariz e maxilar rígidos. Os músculos se cristalizaram.


Os feixes transportavam intenso mal-estar para toda a
alma. A pele que recobre o ninho de desconfortos é
salpicada de calores e pontos frios; e a alternância
mórbida produz um repuxamento muscular com
plenos poderes sobre o pensamento. Era a síndrome
de abstinência. Estava acostumado. Mas não o
suficiente para que a nova crise fosse menos
apavorante. Decidiu que preferia não viver mais, não
à mercê desse hediondo fantasma. Lembra-se de ter
passado no bar.

Entretanto, isso aqui é um hospital.

Conquanto exista esse esforço dedicado e crente, o


mesmo do pioneiro que determina eqüidistâncias,
esse anelo cósmico, havia a contemplação apenas,
como um anjo da escada de Jacó não se deslumbrará
com os degraus abaixo. Dionísio reflete e transpõe.
Toda essa glória não pode virar medo. Olha. Médicos e
enfermeiras em frenesi. Mas por que não consegue se
comunicar? Que modo tristonho de estar morto.
Porque do alto também via a si mesmo, ali deitado,
como se seus olhos fossem câmeras de circuito
interno da sala de cirurgia.

Morto mesmo? Desejou regressar. Alguém me veja e


haja retorno ao que tento expressar. Nada.
Aparentemente perdera todo contato com o mundo e
o mundo sem traumas lhe sobrevive. Deus. A volta de
uma onda, daquelas lá, não teria tamanha força e tão
irracional. É assim essa memória. Três tiros à queima-
roupa antecedidos por uma maldição – Desgraçado!
Leva isso para o inferno! – quando encontrava a jovem
a quem dera carona na avenida Beira-Mar. Ai, o
prazer da sedução em dor tornado, sem tempo sequer
para arrependimento. E deveria se arrepender?
Malditazinhas... Colocam esses shortinhos,
enlouquecem a gente, e depois chega um marido
ciumento e acaba com tudo. Não é justo.

Não sentiu dor ou medo, apenas disse consigo


mesmo que, oh meu Deus, ia morrer. O dono da
mercearia o amparou. Quando alguém estendeu um
lençol sobre seu rosto, pensou ter gritado para que
não fizessem aquilo, ele estava ali, iam acabar
enterrando um vivo. Bem que alguns de seus
conhecidos diziam que algo assim ia acabar
acontecendo. Mas não tão cedo. E afinal nem fizera
algo assim tão adúltero. Então viu sua pequena Demi,
a meiga sofredora das doenças dele. Batia nela, traía,
ignorava. O que mudou desde que se casaram? Ele
também sempre foi um bom rapaz, íntegro,
trabalhador. Mas começaram a escarnecer dele,
chamaram-no de crente, e isso era a pior ofensa. Aí
mudou. Afastou-se da esposa, passou a andar com as
vagabundas, tornou-se alcoólatra, uma companhia
desagradável e fedorenta, deixou de lado a velha
honestidade nos negócios. Quando o efeito passava e
caía em si, sentia-se sim o pior dos adúlteros.

Os médicos a estavam pondo a par da morte dele.


Que morte? Esses doutores compram os diplomas!
Seu espírito errante turbava-se, agitado. Tudo ficou
negro de repente. A seguir viu o túnel e lá no finzinho
uma luz. Seria possível que estivesse mesmo morto?
Não. Tinha certeza de que não estava morto – tanta
quanto estava fora de seu corpo. E o que isso prova?
Projeção astral não é um fenômeno recém-descoberto.
O tal professor Tard escreveu a respeito, narrando as
experiências de pessoas quando submetidas a
demasiada proximidade da morte ou mesmo quando
por instantes dados como clinicamente mortos – seria
o caso?

Demi não termina de ouvir, rebenta em lágrimas.


Pobrezinha... Não sabia exatamente quando deixara
de adora-la. Porque, se a adorasse, não haveria
escárnio que o fizesse mudar – não para procurar fora
de casa o que ali ela dava com tamanho gosto; menos
ainda para bater nela, bem, ele chegou a achar que
punha tão pouca força que nem doía, quase acreditou
que ela gostava, louco. E como era apaixonado! Foi a
bebida, sem dúvida. Esse vício maldito, só pode.

Agora percebe uma corrente prateada ligando seus


corpos. Como Deus é sábio... Um mecanismo para que
não se perdesse no infinito. A consciência de que
plana, uma sombra sobre seu rosto etéreo. Os
poderes o iluminam de súbito, inesperadas luzes da
morte, anelo de atravessar paredes e percorrer
grandes distâncias num átimo, latejando no desejo de
rever a filhinha. Encontra-a agradecendo a uma
coleguinha pelas condolências. Papai bebia muito, foi
melhor assim, se continuasse vivo iria sofrer mais e
mais. Erro primário da idéia condescendente de que
os vícios não o impediam de ser um bom pai, que
amava mais que tudo sua garotinha. E onde está o
menino, meu Deus, o que será dele com semelhante
exemplo em casa? O futuro goteja das folhas,
impregna o sereno. Que jovem seria uma menina
amada assim tão sem compromisso? Passam pela
noite jovens e jovens daquele tipo com as quais traíra
Demi. A luz das estrelas distantes ainda não o
iluminou.

Uma decisão. Esteja ou não morto. Se está fora do


corpo e tem poderes, tirará partido enquanto durar.
Não mais questionará. Irá oferecer algum socorro a
eventuais almas na mesma situação. Pois não haveria
de ser um caso único. Quantos como ele, baleados,
afogados, queimados, não estariam vagueando em
temor? O cirurgião chefe e as residentes modelo
apertam o passo pelos corredores , parentes choram
na sala de espera. Todos terão amado assim as
vítimas? O dragão e sua chama, quis dizer câmera,
essa coisa deve afetar também a expressão das
palavras. Ali ela, o pivô de tudo. Faz frio assim para
roupas tão escuras? Dionísio sente o calor
impregnando a blusa e a pulsação apertando o jeans.

O que é novo tem atributos do céu e do inferno.

Deseja em seu íntimo – e esta mos falando do que é


definitivamente íntimo – servir ao semelhante.
Todavia não desprende a consciência dos bloqueios
individualistas. Permanece assim girando em torno de
si mesmo. Um momento. Um plano de seu bairro.A
visão libertadora. Demi. Desce até o apartamento.
Pela primeira vez desde que deu por si, não passa
pela cabeça a possibilidade de ser enterrado vivo. A
mulher deveria agora estar no quarto, chorando,
sozinha para não impressionar ainda mais as crianças,
depois de um dia estressante de trabalho, do qual não
podia prescindir, costurando para fora. Desde há
muito ele não é um provedor, sob a desculpa de que a
renda dos aluguéis incorpora esse papel; não, é ao
contrário o dissipador (E agora, terá chorado com a
notícia, chorado por ele, infeliz). E sempre havia roupa
limpa em cima da cama para depois do banho dele, e
janta quente sobre o fogão, que ele nunca comia,
preferindo os salgados suspeitos do bordel, quando
não pagava para dois um bom restaurante quando se
tratava de uma turista. E, depois de tudo, ouvir a
notícia da morte. Viúva. Pobrezinha.

Um cumprimento de vestido ligeiramente mais curto.


Coxas incomparáveis. Logo eu possa voltar! Consolar
a esposa, um lampejo contido. Ela não está chorando.
Enfim, é um alívio saber que está suportando bem. Os
filhos suportarão melhor. Estou me comportando,
pensa apavorado, como se não fosse mesmo voltar. E
ia. Um residente descobriu por acaso o engano.
Recolocam o paciente na Uti. O diretor enxuga uma
grossa baga de suor e seu coração só aos poucos
retorna ao batimento normal. Entretanto, a
descoberta ainda não o trouxe de volta ao corpo físico
e continua vagando. Porque o centro de onde provém
toda energia está distante do ego que apenas
imagina comandar o espetáculo.

Pairou sobre a delegacia e desceu. Quer ver seu


assassino. Pelo que entende, é aquele na cela à
direta. Não se lembrava. Era o rosto de um estranho.
Não havia um companheiro de cela com quem a sua
conversa ajudasse a entender. O delegado. Engordou.
Parece ter um sorriso irônico nos lábios. Hei, você tem
visita! Como assim? Não estava agora mesmo no
quarto de casa, chorando? O que há de querer aqui?
Bem, ele próprio quis ver o assassino... Quis avisa-la
para que se cuidasse, mas definitivamente não era
bom nisso de derrubar coisas e criar sons estranhos.
Se cuide. Talvez seja um homem desequilibrado, não
apenas um marido ou namorado ciumento, quem sabe
um matador de aluguel a mando de alguém a quem
Dionísio devia dinheiro.

Tadinha. Mal a reconhecia fazendo tamanho


escândalo. Quanto o odeia! Quanto me ama! O
delegado tratou de consola-la. Acalme-se, senhora.
Está ali apenas para, como ela mesma disse, olhar nos
olhos do canalha que destruiu sua família. Mas e esse
papel que deixa nas mãos do assassino antes de sair?
Aproximou-se. Um calafrio se apossa do homem na
cela, tamanho suas mãos tremem. Não é impedimento
para o espírito do outro, de cujo corpo acaba de ser
extraída com sucesso, na mesa de cirurgia, a bala
fatal. Leram.

Marcel fazia parte de uma classe singular de homens


generosos e educados mas de gênio muito difícil, o
que poderia torna-lo grosseiro ou tolo, geralmente as
duas coisas simultâneas.
Um número em cada ponto do espaço

O ar pesado da temporada ecoa como um marulho


paralelo, sepultando os pensamentos benignos,
levando ao lucro e ao prazer. A gaivotas porém
planam e pairam, só elas próprias conhecem o teor de
sua melodia. O turista acredita estar preparado. Férias
é um conceito amplo e deformável.

Dionísio, o dono do único supermercados do balneário,


tenta entender, pasmo.

Nariz e maxilar rígidos. Os músculos se cristalizaram.


Os feixes transportavam intenso mal-estar para toda a
alma. A pele que recobre o ninho de desconfortos é
salpicada de calores e pontos frios; e a alternância
mórbida produz um repuxamento muscular com
plenos poderes sobre o pensamento. Era a síndrome
de abstinência. Estava acostumado. Mas não o
suficiente para que a nova crise fosse menos
apavorante. Decidiu que preferia não viver mais, não
à mercê desse hediondo fantasma. Lembra-se de ter
passado no bar.
Entretanto, isso aqui é um hospital.

Conquanto exista esse esforço dedicado e crente, o


mesmo do pioneiro que determina eqüidistâncias,
esse anelo cósmico, havia a contemplação apenas,
como um anjo da escada de Jacó não se deslumbrará
com os degraus abaixo. Dionísio reflete e transpõe.
Toda essa glória não pode virar medo. Olha. Médicos e
enfermeiras em frenesi. Mas por que não consegue se
comunicar? Que modo tristonho de estar morto.
Porque do alto também via a si mesmo, ali deitado,
como se seus olhos fossem câmeras de circuito
interno da sala de cirurgia.

Morto mesmo? Desejou regressar. Alguém me veja e


haja retorno ao que tento expressar. Nada.
Aparentemente perdera todo contato com o mundo e
o mundo sem traumas lhe sobrevive. Deus. A volta de
uma onda, daquelas lá, não teria tamanha força e tão
irracional. É assim essa memória. Três tiros à queima-
roupa antecedidos por uma maldição – Desgraçado!
Leva isso para o inferno! – quando encontrava a jovem
a quem dera carona na avenida Beira-Mar. Ai, o
prazer da sedução em dor tornado, sem tempo sequer
para arrependimento. E deveria se arrepender?
Malditazinhas... Colocam esses shortinhos,
enlouquecem a gente, e depois chega um marido
ciumento e acaba com tudo. Não é justo.

Não sentiu dor ou medo, apenas disse consigo


mesmo que, oh meu Deus, ia morrer. O dono da
mercearia o amparou. Quando alguém estendeu um
lençol sobre seu rosto, pensou ter gritado para que
não fizessem aquilo, ele estava ali, iam acabar
enterrando um vivo. Bem que alguns de seus
conhecidos diziam que algo assim ia acabar
acontecendo. Mas não tão cedo. E afinal nem fizera
algo assim tão adúltero. Então viu sua pequena Demi,
a meiga sofredora das doenças dele. Batia nela, traía,
ignorava. O que mudou desde que se casaram? Ele
também sempre foi um bom rapaz, íntegro,
trabalhador. Mas começaram a escarnecer dele,
chamaram-no de crente, e isso era a pior ofensa. Aí
mudou. Afastou-se da esposa, passou a andar com as
vagabundas, tornou-se alcoólatra, uma companhia
desagradável e fedorenta, deixou de lado a velha
honestidade nos negócios. Quando o efeito passava e
caía em si, sentia-se sim o pior dos adúlteros.

Os médicos a estavam pondo a par da morte dele.


Que morte? Esses doutores compram os diplomas!
Seu espírito errante turbava-se, agitado. Tudo ficou
negro de repente. A seguir viu o túnel e lá no finzinho
uma luz. Seria possível que estivesse mesmo morto?
Não. Tinha certeza de que não estava morto – tanta
quanto estava fora de seu corpo. E o que isso prova?
Projeção astral não é um fenômeno recém-descoberto.
O tal professor Tard escreveu a respeito, narrando as
experiências de pessoas quando submetidas a
demasiada proximidade da morte ou mesmo quando
por instantes dados como clinicamente mortos – seria
o caso?

Demi não termina de ouvir, rebenta em lágrimas.


Pobrezinha... Não sabia exatamente quando deixara
de adora-la. Porque, se a adorasse, não haveria
escárnio que o fizesse mudar – não para procurar fora
de casa o que ali ela dava com tamanho gosto; menos
ainda para bater nela, bem, ele chegou a achar que
punha tão pouca força que nem doía, quase acreditou
que ela gostava, louco. E como era apaixonado! Foi a
bebida, sem dúvida. Esse vício maldito, só pode.

Agora percebe uma corrente prateada ligando seus


corpos. Como Deus é sábio... Um mecanismo para que
não se perdesse no infinito. A consciência de que
plana, uma sombra sobre seu rosto etéreo. Os
poderes o iluminam de súbito, inesperadas luzes da
morte, anelo de atravessar paredes e percorrer
grandes distâncias num átimo, latejando no desejo de
rever a filhinha. Encontra-a agradecendo a uma
coleguinha pelas condolências. Papai bebia muito, foi
melhor assim, se continuasse vivo iria sofrer mais e
mais. Erro primário da idéia condescendente de que
os vícios não o impediam de ser um bom pai, que
amava mais que tudo sua garotinha. E onde está o
menino, meu Deus, o que será dele com semelhante
exemplo em casa? O futuro goteja das folhas,
impregna o sereno. Que jovem seria uma menina
amada assim tão sem compromisso? Passam pela
noite jovens e jovens daquele tipo com as quais traíra
Demi. A luz das estrelas distantes ainda não o
iluminou.

Uma decisão. Esteja ou não morto. Se está fora do


corpo e tem poderes, tirará partido enquanto durar.
Não mais questionará. Irá oferecer algum socorro a
eventuais almas na mesma situação. Pois não haveria
de ser um caso único. Quantos como ele, baleados,
afogados, queimados, não estariam vagueando em
temor? O cirurgião chefe e as residentes modelo
apertam o passo pelos corredores , parentes choram
na sala de espera. Todos terão amado assim as
vítimas? O dragão e sua chama, quis dizer câmera,
essa coisa deve afetar também a expressão das
palavras. Ali ela, o pivô de tudo. Faz frio assim para
roupas tão escuras? Dionísio sente o calor
impregnando a blusa e a pulsação apertando o jeans.

O que é novo tem atributos do céu e do inferno.

Deseja em seu íntimo – e esta mos falando do que é


definitivamente íntimo – servir ao semelhante.
Todavia não desprende a consciência dos bloqueios
individualistas. Permanece assim girando em torno de
si mesmo. Um momento. Um plano de seu bairro.A
visão libertadora. Demi. Desce até o apartamento.
Pela primeira vez desde que deu por si, não passa
pela cabeça a possibilidade de ser enterrado vivo. A
mulher deveria agora estar no quarto, chorando,
sozinha para não impressionar ainda mais as crianças,
depois de um dia estressante de trabalho, do qual não
podia prescindir, costurando para fora. Desde há
muito ele não é um provedor, sob a desculpa de que a
renda dos aluguéis incorpora esse papel; não, é ao
contrário o dissipador (E agora, terá chorado com a
notícia, chorado por ele, infeliz). E sempre havia roupa
limpa em cima da cama para depois do banho dele, e
janta quente sobre o fogão, que ele nunca comia,
preferindo os salgados suspeitos do bordel, quando
não pagava para dois um bom restaurante quando se
tratava de uma turista. E, depois de tudo, ouvir a
notícia da morte. Viúva. Pobrezinha.
Um cumprimento de vestido ligeiramente mais curto.
Coxas incomparáveis. Logo eu possa voltar! Consolar
a esposa, um lampejo contido. Ela não está chorando.
Enfim, é um alívio saber que está suportando bem. Os
filhos suportarão melhor. Estou me comportando,
pensa apavorado, como se não fosse mesmo voltar. E
ia. Um residente descobriu por acaso o engano.
Recolocam o paciente na Uti. O diretor enxuga uma
grossa baga de suor e seu coração só aos poucos
retorna ao batimento normal. Entretanto, a
descoberta ainda não o trouxe de volta ao corpo físico
e continua vagando. Porque o centro de onde provém
toda energia está distante do ego que apenas
imagina comandar o espetáculo.

Pairou sobre a delegacia e desceu. Quer ver seu


assassino. Pelo que entende, é aquele na cela à
direta. Não se lembrava. Era o rosto de um estranho.
Não havia um companheiro de cela com quem a sua
conversa ajudasse a entender. O delegado. Engordou.
Parece ter um sorriso irônico nos lábios. Hei, você tem
visita! Como assim? Não estava agora mesmo no
quarto de casa, chorando? O que há de querer aqui?
Bem, ele próprio quis ver o assassino... Quis avisa-la
para que se cuidasse, mas definitivamente não era
bom nisso de derrubar coisas e criar sons estranhos.
Se cuide. Talvez seja um homem desequilibrado, não
apenas um marido ou namorado ciumento, quem sabe
um matador de aluguel a mando de alguém a quem
Dionísio devia dinheiro.

Tadinha. Mal a reconhecia fazendo tamanho


escândalo. Quanto o odeia! Quanto me ama! O
delegado tratou de consola-la. Acalme-se, senhora.
Está ali apenas para, como ela mesma disse, olhar nos
olhos do canalha que destruiu sua família. Mas e esse
papel que deixa nas mãos do assassino antes de sair?
Aproximou-se. Um calafrio se apossa do homem na
cela, tamanho suas mãos tremem. Não é impedimento
para o espírito do outro, de cujo corpo acaba de ser
extraída com sucesso, na mesa de cirurgia, a bala
fatal. Leram.

Marcel fazia parte de uma classe singular de homens


generosos e educados mas de gênio muito difícil, o
que poderia torna-lo grosseiro ou tolo, geralmente as
duas coisas simultâneas.

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