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Corpos Homossexuais e Experiências Normatizadoras
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Corpos Homossexuais e Experiências Normatizadoras

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A homossexualidade foi encarada por inúmeras décadas como desviante em seus aspectos morais e biológicos. Por essa perspectiva, era identificada como doença e, como tal, buscavam-se tratamentos visando à sua cura. Priorizando as causas biologizantes da doença, discutia-se qual o tratamento mais eficaz para curar os homossexuais, indo do confinamento até a reeducação e moldagem de caráter, incluindo injeções de insulina, terapia de choques e outros.

Nesse sentido, o foco central de análise deste livro são os casos de homossexuais internados no sanatório Pinel (Pirituba, SP) sob o diagnóstico de inversão sexual nos anos 1920 a 1940. A pesquisa aqui apresentada busca compreender as representações e diferenciações forjadas pelos discursos médico e criminologista sobre a prática e o corpo do homossexual, classificando-os, indicando condutas de normatização e privando-os de uma vida sexual livre.
LanguagePortuguês
Release dateMar 5, 2020
ISBN9788547317836
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    Corpos Homossexuais e Experiências Normatizadoras - Redson dos Santos Silva

    autor

    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO

    CAPÍTULO I

    FORMAÇÃO DO CAMPO MÉDICO EM SÃO PAULO

    1.1 FACES DA SAÚDE PÚBLICA EM SÃO PAULO

    1.2 CORPO, GÊNERO E SEXUALIDADE 

    1.3 INSTITUCIONALIZAÇÃO: VISÕES DA PSIQUIATRIA E AS PERVERSÕES SEXUAIS 

    CAPÍTULO II

    UM OLHAR SOBRE O PINEL

    2.1 UM SABER: MÉDICOS E HOMOSSEXUAIS

    2.2 POLÍTICA DE CONFINAMENTO DA LOUCURA 

    2.3 REPRESENTAÇÕES DO COMPORTAMENTO HOMOSSEXUAL 

    CAPÍTULO III

    SEXUALIDADE E HOMOSSEXUALIDADE

    3.1 SEXUALIDADE: NORMAL E PATOLÓGICO 

    3.2 SOCIEDADE E HOMOSSEXUALIDADE

    3.3 HOMOSSEXUAL COMO SUJEITO HISTÓRICO NA MEDICINA LEGAL 

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    FONTES E BIBLIOGRAFIA

    INTRODUÇÃO

    O tema desenvolvido nestas páginas que se seguem revela um caminho de percepções e aprendizado sobre a vida e sujeitos históricos que guardaram consigo experiências ainda presentes na atualidade. A pesquisa histórica, ao investigar o passado, alimenta-se de interesses legítimos do pesquisador, encontrados não somente no âmbito acadêmico, mas sobretudo no cotidiano, buscando questionar o passado, as práticas, discursos e lutas de diferentes indivíduos.

    As questões abordadas nesta obra surgiram durante o curso de especialização em História, Sociedade e Cultura na PUC-SP. A evidência dos estudos de gênero e das chamadas minorias encantou-me, de modo a incentivar a busca por bibliografia a respeito. E, por força da curiosidade então provocada, cheguei ao tema da homossexualidade em diferentes temporalidades e designações. No entanto, haja vista as delimitações necessárias à construção do estudo, optei por investigar a experiência vivida por homossexuais internos do Sanatório Pinel, bem como as ações e discursos dos psiquiatras sobre seus destinos

    A documentação utilizada chegou às minhas mãos após a leitura da obra Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX, de James N. Green, cujos passos pude seguir, até encontrar os originais dos prontuários. A partir de então, as investidas no Arquivo Público de Estado de São Paulo e o contato direto com os prontuários trouxeram inquietações, confirmando a escolha do tema e o objeto a ser pesquisado.

    Após uma primeira leitura, o conteúdo daqueles prontuários foi me seduzindo, conforme conhecia as narrativas registradas pelos profissionais médicos ao interrogarem/ entrevistarem seus pacientes, contextualizando vestígios de suas histórias de vida, que, pela riqueza de detalhes e investidas humanas, mereciam ser questionadas e analisadas com atenção rigorosa, já que são experiências que clareiam um mundo de ideias e práticas do seu tempo.

    O trato com uma documentação como os prontuários médicos era inicialmente um desafio a ser vencido, pois interpretar esses registros produzidos por profissionais de outra área de atuação, com seus códigos internos e conhecimento científico sobre as doenças e outros fenômenos das condições de saúde do ser humano, poderia nos levar à incompreensão de termos em uso. No entanto, a partir de uma perspectiva interpretativa baseada nas representações do discurso médico sobre o paciente, e não necessariamente sua medicação enquanto nomenclatura, os discursos e ações do profissional e os relatos sobre as patologias tornavam-se bem acessíveis no decorrer do documento. Foi feita a opção de manter a escrita original quando utilizados trechos documentais, assim como os nomes reais dos médicos e pacientes internados. Esse procedimento que confere identidade aos sujeitos sociais envolvidos foi possível e já previsto legalmente por meio de autorização de pesquisa e divulgação acadêmica cedida pelo Arquivo do Estado no ato de registro das fontes.

    A questão primordial da escolha do documento é sua significação relacionada aos procedimentos e diagnósticos de ordem sexual ou da sexualidade, pois

    [...] a sexualidade afirma-se cada vez mais como um objeto fundamental na busca da compreensão dos possíveis significados das relações humanas, consideradas nos seus mais variados e complexos sentidos.¹

    Assim, no trato com as mais íntimas experiências do ser humano esta história se constrói. Na lida com os prontuários foram se revelando indícios preciosos sobre as experiências de vida para o entendimento das relações sociais dos sujeitos históricos representados na documentação de época, o que possibilita ir além da mera descrição dos fatos, mas compreendê-los em sintonia com a intencionalidade de sua produção.

    A perspectiva/categoria de gênero, realçando experiências e especificidades históricas, possibilita rever questões referentes aos homossexuais masculinos em São Paulo do despertar até a metade do século XX: os discursos normatizantes, os equívocos ou não de representação, a construção de estereótipos acerca da masculinidade e feminilidade, a valorização, classificação e tratamento médico ao corpo tanto humano como social.

    Portanto, debruçar-se sobre as fontes documentais e bibliográficas foi um trabalho intenso de observação e perspicácia para seguir as trilhas dos registros produzidos e buscar neles o que há de essencial, por meio do paradigma indiciário, em que o historiador age como detetive, procurando decifrar os enigmas, revelar segredos do passado.² Antes de tudo, busca-se resgatar e interpretar discursos e testemunhos de uma época e elucidar, mediante análises, as características desses discursos sobre um grupo historicamente marginalizado, mas que nunca deixou de ser alvo de interesse e cuja inserção em um mundo sexista não poderia permanecer no esquecimento.

    O impulso cientificista dos finais do século XIX fez emergir a figura do médico como o responsável pela cura dos males sociais. Esse profissional adquiriu, com seu discurso, o poder de diagnosticar e curar o que era considerado anormal. A medicina encontrava nos criminologistas um aparato legal e poderoso e suas teorias, combinadas ou não, esquadrinhavam os alvos, os grupos considerados nocivos ao desenvolvimento da sociedade. Esse cientificismo implícito na tradição positivista levou o Estado brasileiro a assumir um papel de destaque no controle da sociedade, com objetivos bem definidos, como a preservação da família. O núcleo familiar deveria ser a essência da sociedade, para esse núcleo se voltavam as atenções, normatizavam-se comportamentos, reprimiam-se desejos, extirpavam-se anomalias.

    Nas primeiras décadas do século, período de adolescência do governo republicano no Brasil, ideologicamente influenciado pela tradição positivista de seus primeiros líderes pós-1889, a sociedade brasileira caminhava, quase que como uma obsessão, em busca do ideal de progresso, como estava a sugerir o lema crucial estampado no centro da bandeira nacional, Ordem e Progresso. O País necessitava cuidar da saúde de seu povo para manter a ordem, quer social, quer moral, e alcançar o tão afamado progresso econômico, ético e de civilidade. Nesse contexto, no entanto, o futuro não parecia garantido a todos, algo precisava ser erradicado. Atenta às teorias europeias do direito criminal, a partir dos anos 1920, a academia se aproximou mais da medicina legal, mudando o foco, com vistas a alcançar a noção de higienização da pátria, privilegiando um comportamento pedagógico em relação ao ser humano.

    A política de Estado sobre uma sexualidade vigiada, controlada socialmente, pautava-se por filosofias de exclusão que, institucionalizadas, pareciam se justificar por si mesmas, conferindo ao profissional da Medicina um poder inquestionável. Em São Paulo, um saber médico se fez prática em diversas instituições e seus especialistas não demoraram a encarar a homossexualidade como problema, dedicando-se a estudos, medicando e internando pacientes em sanatórios e manicômios, buscando normatizar corpos e vidas. Um desses espaços foi o Sanatório Pinel, em Pirituba, onde dezenas de pacientes foram tratados, privados de sua liberdade e enquadrados no estigma de homossexual, classificados de diversas formas, com palavras que hoje remeteriam a estereótipos.

    Os homossexuais, entre diversas outras nomenclaturas que esse grupo social marginalizado recebeu ao longo dos anos, em específico no período em foco, os anos de 1920 e 1930, eram classificados, nos poucos prontuários disponíveis, em categorias de acordo com o papel de gênero que lhes era atribuído, seus trejeitos, aparência, ações e modos. É a partir desses indícios e de outros mais que este estudo busca rastrear esses sujeitos históricos, preocupando-se com questões da história da sexualidade de indivíduos que se relacionavam com outros do mesmo sexo, investigando desejos, atitudes e práticas.

    A homossexualidade logo seria tomada como uma condição desviante em seus aspectos morais e biológicos. Havia ainda o discurso religioso sobre a sodomia, controlando e influenciando a moral e a subjetividade dos sujeitos históricos, constituindo a prática como um pecado. Essa visão, embora não mais como protagonista no novo contexto histórico, ainda subsistia como uma sombra entre os profissionais da medicina legal. Os médicos passavam a buscar novas explicações para a homossexualidade, um comportamento considerado desviante, anormal e degradante no sentido social. Então, foi fácil relacioná-la a doença e, como tal, partiram em busca de sua cura e tratamento mais adequado para aplicar aos homossexuais.

    O comportamento homossexual deixaria de ser punido com o encarceramento – a prisão – e passaria a ser observado como doença, assim, o indivíduo deveria ser retirado de circulação, segregado da sociedade e posto em sanatório para ser corrigido, tratado e curado do seu mal. Ademais, [...] no Brasil, juntam-se contra a prática homossexual vários sistemas de controle e repressão, tornando tênue a fronteira entre a intervenção jurídico-psiquiátrica e a ação da polícia [...]³. Persistiam, portanto, considerações que se complementavam e se refaziam, ao mesmo tempo que se revestiam de novos discursos que se pretendiam inovadores.

    Os discursos e as representações contidas nos prontuários do Sanatório Pinel, entendendo-se sua produção num contexto específico da sua época, contemplam informações detalhadas, levando a supor que os profissionais da medicina, no exercício de seu ofício, ampliavam também a produção de conhecimento sobre o grupo homossexual. Ao se apoderar do corpo desse sujeito, esquadrinhando-o, classificando-o, o profissional da área médica, conscientemente ou não, deixou registros valiosos que revelam a visão construída na época sobre seus aspectos mais femininos ou masculinos, enchendo de significado o comportamento e a aparência do ser analisado, especificando e ratificando possíveis preconceitos existentes e produzindo uma diferenciação no meio social.

    O livro encontra-se estruturado em três capítulos. No primeiro – "Formação do campo médico em São Paulo" – pretendem-se analisar as transformações dos quadros de saúde pública na cidade de São Paulo e as conceituações em torno do cidadão e da família, quer pela ótica da medicina legal ou da psiquiatria, compreendendo suas institucionalizações e interlocuções com o contexto social.

    O segundo capítulo – "Um olhar sobre o Pinel" – tem como objetivo central discutir as representações do homossexual a partir dos relatos produzidos pelos médicos psiquiatras, considerando suas intervenções e análises. Busca-se compreender como era percebido o corpo e o comportamento do paciente do Sanatório Pinel, assim como as possíveis causas de sua internação. Pretende-se examinar as representações criadas pelo poder de fala e atuação dos médicos, identificando, classificando e controlando essas pessoas retiradas do convívio social.

    No terceiro capítulo – "Sexualidade e Homossexualidade" – a intenção é problematizar as normas e condutas sociais de acordo com as vivências e pensamentos das décadas de 1920 e 1930, elucidar como eram percebidas as questões relativas à sexualidade e suas formas de contenção. Nesse sentido, cabe acrescentar as perspectivas criminais sobre essas práticas sexuais, bem como o entendimento que pairava na sociedade. Procura-se explicitar o debate teórico sobre as visões constituídas a respeito da sexualidade/homossexualidade, norteadas pelos significados forjados entre normalidade e patologias, evidenciando as diferenças e permanências dessas visões.

    CAPÍTULO I

    FORMAÇÃO DO CAMPO MÉDICO EM SÃO PAULO

    A proposta deste capítulo é colocar em cena a questão da constituição do campo médico, logo, um espaço constitutivo de saber, prática e poder de uma ciência e que requer um entendimento amplo do exercício da medicina enquanto objeto simbólico de representação de poder e de intervenção social. Os discursos desse campo médico se firmaram e, consequentemente, transformaram o período denominado como Primeira República, fortalecendo um sentido que vai além da perspectiva meramente política, se instaurando como um novo costume, ampliando sua atuação.

    1.1 FACES DA SAÚDE PÚBLICA EM SÃO PAULO

    No dia 1º de agosto de 1933 chegava ao Sanatório Pinel de Pirituba, em São Paulo, o adolescente Sydney da Silva Freire. Seu prontuário continha questionário com uma longa relação de incidências doentias ou fragilidades de saúde enfrentadas durante os seus 15 anos de vida – o diretor clínico Dr. Pacheco e Silva se cercou de informações detalhadas sobre a saúde do paciente à sua frente.

    O questionário respondido pelo senhor José da Silva Freire, possivelmente o pai, traçava certo perfil da personalidade do garoto. Afirmava que era violento e grosseiro com as pessoas da família e ria por qualquer motivo, principalmente ao ouvir conversas apimentadas. Notadamente tratava-se de um jovem fora dos padrões, quando criança apresentara uma série de doenças – sarampo, coqueluche, catapora, pneumonia, gastroenterite, prisão de ventre –, mas era, enfim, um rapaz de inteligência viva. Constatava ainda que ele sofria dos intestinos, facilmente pegava resfriado e sentia febre, além da ocorrência de infecções, inflamações, ataques, convulsões, feridas e uma série de outras informações do físico e comportamento do jovem. O garoto foi internado após diversos exames e observação de especialistas.

    O olhar médico, com suas especializações, operou um rastreamento das doenças do jovem. Era um momento histórico no qual o campo médico trazia a preocupação de cuidar da saúde do povo, um investimento que fazia parte de um amplo projeto institucionalizante enquanto manifestação do poder científico e de intensificação política sobre os rumos dos sujeitos históricos e suas normas de convivência.

    Tem quinze anos apenas e já tantos foram os atos anormais praticados, que a necessidade de internação se impoz de modo categórico. Sempre se revelou pouco propenso ao estudo, nunca tendo se importado com as admoestações dos seus pais e professores.

    Ultimamente em casa deu para subtrair somas em dinheiro e mesmo objetos de pequeno volume que pudesse vender. Gastava o que tinha no bolso, com a maior facilidade e sem noção absolutamente do valor do dinheiro. Repreendido por esses fatos, simulava suicídio, aramando scenas teatraes, principalmente quando estavam só em casa sua mãe e sua irmã.

    Entrou no Sanatório muito pálido e abatido, asseverando a sua progenitora que ele entrega-se excessivamente a prática do onanismo. Não deu a menor mostra de constrangimento por se ver internado, perguntando logo si havia jogo de ping pong no Sanatório. Ao ter uma resposta afirmativa ficou muito contente asseverando que sentia-se perfeitamente a vontade no novo ambiente em que ia viver. Fez logo camaradagem com os demais pensionistas, mostrando-se até excessivamente expansivo, procurando abraçar efusivamente a estes e aos enfermeiros.

    Dias depois de internado, procurou submeter-se a um ato de pederastia passiva, só não se consumando o fato, pela intervenção oportuna de um empregado da casa. Surpreendido em flagrante, não se mostrou tão acabrunhado, como era de se supor, encarando o incidente com uma certa naturalidade.

    Mostra-se apreciavelmente orientado, respondendo as perguntas que lhe são feitas de modo aceitavel, embora a idade mental pareça uns três anos menos que a que tem. A afetividade e a iniciativa estão bastante comprometidas, deixando tudo ocorrer a sua revelia.

    Não parece ser portador de alucinações ou ilusões. Em suma, trata-se de um menino em um estado atipico

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