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RertexOts SOBRE 0 ENSINO DE LiNGuAfS) E OUTRAS QUESTOES DE LINGUAGEM O DIA EM QUE ARIADNE NOS DEIXOU NA MAO: NOTAS SOBRE O LEITO DE PROCUSTO, A VERDAD! DO SEXO E OS SUJEITOS DE CARNE, OSSO E MINISSAIA Ederson Luis Silveira- CAPES/UFSC ‘Agnaldo Almeida ~ CAPES/ UEMG ‘Nesse labirinto que €a sua obra, existe uma criatura que ronda, tal como no mito do Minotauro. Inquietacéo ou angiistia, um superego solto, uma entidade sem sexo, que acuada, ataca, Vive dentro do artista ou é parte dele. Exoesqueleto que 0 controla e 0 direciona, Pode ser o préprio Laerte, criatura entre ns, Ele, meu familiar pai, um monstro, (COUTINHO, 2014, s.p.) No ano de 2014, a Fundacdo Itai Cultural inaugurou na cidade de Sao Paulo uma exposic&io que contava com mais de duas mil obras do cartunista Laerte Coutinho com objetivo de realizar uma retrospectiva sobre a arte de Laerte. Na abertura da exposicao estava, na entrada, 0 texto destacado acima. Foi escrito pelo curador da exposi¢ao, Rafael Coutinho, o filho do cartunista. Nao é a toa que o filho do artista retome a figura do labirinto, j4 que a exposicao foi instaurada a partir da construgao de um labirinto em que estao obras de varias épocas de Laerte. 0 formato de exposiciio também faz referéncia a uma histéria criada por ele, intitulada “O minotauro” escrita entre 1987-1989 para a revista “Geraldao” do artista Glauco (1957-2010) em que © personagem-heréi da trama adentra 0 espaco de um labirinto e, ao derrotar 0 minotauro, acaba por se transformar no animal 177 RertexOts SOBRE 0 ENSINO DE LiNGuAfS) E OUTRAS QUESTOES DE LINGUAGEM mitolégico. Se levarmos em consideragao os personagens ¢ tematicas da obra de Laerte, o labirinto serve muito bem de metafora-m6r, j4 que entre suas obras esto os Piratas do Tieté, Hugo e a personagem mais recente, Muriel, além dos moradores do condominio, entre outros trabalhos. O que chamamos aten¢ao aqui nao é para a versatilidade da obra de Laerte Coutinho, mas para parte do texto de seu filho: “Inquietagado ou angtistia, um superego solto, uma entidade sem sexo, que acuada, ataca. Vive dentro do artista ou € parte dele. Exoesqueleto que 0 controla e © direciona. Pode ser o préprio Laerte, criatura entre nos”. Levando em consideragao a presenca de Laerte Coutinho e sua inscrigao discursiva e corporal nos terrenos do crossdressing’, ‘© que nos interessa no presente trabalho é analisar as relagdes entre sexo e verdade, tomando como pontos de escuta o texto de Foucault sobre a histéria de Herculine Barbin e uma entrevista com o cartunista acima citado. Desse modo, retomamos uma pergunta realizada por Foucault (1982a) no prefacio do diario de Barbin: Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo? Para o filésofo, essa compulsao em atribuir o verdadeiro sexo por muito tempo nao existiu. A partir da histéria da medicina e da justica em relagdo a questao dos hermafroditas, o pensador menciona que levou anos até que se lhes fosse estipulado como exigéncia o dever de estes terem designados para si um tinico e verdadeiro sexo jé que, durante muito tempo, admitia-se que o hermafrodita tivesse dois sexos. © que mais me surpreendeu no relato de Herculine Barbin foi que, no seu caso, nao existe verdadeiro sexo. © conceito de pertenca de todo individu a um sexo determinado foi formulado pelos médicos e pelos juristas somente no século XVIII, mais ou menos. [...] Na civili- zagio moderna, exige-se uma correspondéncia rigorosa 1 Sobre erassdresser ou CD, trata-se de uma “[..] pessoa que gosta de se vestir com roupas do sexo dito oposto ao seu sexo bioldgico, independentemente de sua exieatagdo sexual ¢ que, comumente, nfo realiza mudangas defintivas no corpo como o implante de prteses para ‘08 Seios ~ eventualmente fazendo uso de horménios —e se contentando com uma montagem restrita a algumas horas por dia/semana ou periodos mais significativos da vida” (LEITE JR, 2011, p. 142), 178 RertexOts SOBRE 0 ENSINO DE LiNGuAfS) E OUTRAS QUESTOES DE LINGUAGEM entre 0 sexo anatémico, o sexo juridico, o sexo social: esses sexos devem coincidir e nos colocam em uma das duas colunas da sociedade. Antes do século XVIII, havia, no entanto, uma margem de mobilidade bastante grande. (FOUCAULT, 2014b, p. 86) Entre os anos de 1970 e 1971, Foucault inaugura uma série de anilises que intitula “morfologia da vontade de saber”. Neste instante, ele situa o olhar para o pensamento Ocidental percor- rendo pesquisas de cunho histérico especificas noutras vezes partindo de reflexdes sobre as implicagdes tedricas da vontade de saber. A partir disso, ele situa o lugar da vontade de saber numa histéria dos sistemas de pensamento, analisando estes sistemas a partir das praticas discursivas (FOUCAULT, 2014d). Situando as praticas discursivas no modo de fabricagao dos discursos, Foucault alerta que, a depender das escolhas e de onde se parta para este movimento que propée, haverd inevitavelmente exclusdes, devido ao recorte efetuado. Dessa forma, ao analisar as sexualidades, trata-se de tomé-las como “experiéncias historicamen- te singulares”. Essa atitude se volta para um gesto interpretativo que associa a sexualidade com um dominio de saber, normatividade e modos de relacaio consigo e (re)interpretar como a sexualidade se institui como experiéncia complexa ligada ao conhecimento (teorias, conceitos, disciplinas) com regras (permito e proibido, normal ¢ patoldgico, natural e monstruoso) e a partir da relacao do individuo consigo mesmo (pelo meio da qual ele se reconhece como sujeito de determinada sexualidade) (FOUCAULT, 2014c). Para prosseguir- mos com as reflexdes nas quais estamos adentrando, seguem dois fragmentos de matérias veiculadas em diferentes épocas que possi- bilitarao, articuladas com o referencial te6rico de Butler e Foucault, para pensar sobre a verdade do sexo no Ocidente: L Echo Rochelais, 18 de julho de 1860. Como nao se fala em outra coisa nessa cidade, a nao ser numa estranha metamorfose, extraordinaria na fisiologia médica, diremos algumas palavras a esse respeito, aps informagées recebidas de boas fontes: 179 180 RertexOts SOBRE 0 ENSINO DE LiNGuAfS) E OUTRAS QUESTOES DE LINGUAGEM Uma jovem de vinte e um anos de idade, professora considerada tanto pelos elevados sentimentos de co- ragdo quanto por sua sélida instruco, viveu inocente € modestamente até hoje na ignorancia de si mesma, isto 6, acreditando ser o que parecia na opiniao de todos, apesar de ter, para as pessoas experientes, particularida- des organicas que primeito causaram o espanto, depois a diivida, e finalmente a luz; mas a educagao crista da Jovem moga era a inocente venda que tapava a verdade. Enfim, recentemente, uma circunstancia casual veio lan- ar uma certa dtivida em seu espirito; fez-se um apelo a cigncia e um erro no sexo foi reconhecido... A moga era simplesmente um rapaz (FOUCAULT, 1982b, p. 133). Folha de Sao Paulo, 04 de novembro de 2010 Cartunista Laerte diz que sempre teve vontade de se vestir de mulher De salto médio, meias coloridas, maquiagem leve namorada a tiracolo, Laerte chega para dar entrevista 4 Folha sobre seu novo estilo de vida. Confira. Folha - Diversas possibilidades para a mudanga do seu estilo de vida passam pela cabeca. A primeira delas & que vocé pirou, um processo que teria comesado em 2005, com a morte de seu filho num acidente de carro, passou pelas tiras da Ilustrada, cada vez mais estranhas, € agora isso. Vocé esta louco, Laerte? Laerte Coutinho - Eu nao me sinto fora do eixo, fora do tom, fora de nada, Comecei a me aproximar do traves- timento, ou “cross-dressing”, em 2004. Interrompi -e a morte de meu filho tem um peso nisso~ e retomei em. 2009. Fiz. a minha primeira montagem em 2009. Mas as coisas que se evidenciaram [em meu trabalho] a partir de 2005 jé estavam ali, latentes, germinando em 2004. Folha - A segunda possibilidade é que vocé se veste porque isso di tesio. Laerte Coutinho - Nao, nao é um fetiche sexual. Nao é, nem é um tema que me interessa agora, 0 travestimento € uma questo de género, nao de sexo. Sao coisas inde- pendentes, autdnomas, que nem o executivo eo legis- RertexOts SOBRE 0 ENSINO DE LiNGuAfS) E OUTRAS QUESTOES DE LINGUAGEM lativo. E um erro fazer essa mistura. “Ah, esta vestido de mulher, entao é viado.” “Jogou bola, é macho.” E eu que gostava de costurar e de jogar bola? O que tenho feito € investigar essa parte de género. 0 que tenho descoberto € que isso é muito arraigado, essa cultura binari: divisio do mundo entre mulheres e homens é um dogma muito forte. Nao se rompe isso facilmente, desafiar esses cédigos perturba todo o ambiente ao redor de voce. essa Folha — Vocé esta fazendo isso para espantar o tédio? Laerte Coutinho — Nao faco isso porque a vida estd sem graca. O problema é a vida submetida a essa ditadura dos géneros, a esses tabus que ndo podem ser quebrados. E vocé sentir que sua liberdade esta sendo tolhida, que as possibilidades infinitas que vocé tem de expresso na vida, ao sair, ao se vestir, a0 se manifestar, ao tratar as pessoas, seu modo, seu gestual, sua fala, tudo isso é cerceado e limitado por cédigos muito fortes e muito restritos, Isso € uma coisa que me incomoda. (FINOTTI, 2010, s.p.). Os dois excertos acima ora se aproximam, ora se distanciam. Poderiamos dizer, em relacdo a ambos, que se trata daquilo que Foucault nomeou, no prefacio ao livro que traz as memérias de Herculine Barbin, de uma espécie de “narrativas que escapam a todas as capturas possiveis de identificacéio” (FOUCAULT, 1982a, p. 05) relacionando-se nao s6 a um modo de viver, mas a uma maneira de escrever (no caso do diario de Barbin) ou dizer (no caso de Laerte Coutinho). Para as reflexdes que aqui nos propomos tecer acerca do tema da verdade do sexo no Ocidente, vale pontuar alguns elementos que tornam possivel o didlogo entre ambos, ainda que estejam situados em tempos diferentes no espaco e na historia a fim de produzir e buscar modos de langar luzes as interpretagoes acerca de sexualidades que tanto Foucault quanto Herculine e Laerte consideram estar fora de qualquer convencao. Sobre Herculine Barbin, deixemos que as palavras de Foucault falem por nés, no prefacio que introduz o livro com o dirio deste hermafrodita, que instigou o pensador a falar sobre a verdade do sexo no Ocidente: 181 RertexOts SOBRE 0 ENSINO DE LiNGuAfS) E OUTRAS QUESTOES DE LINGUAGEM Criada como uma moga pobre e digna de mérito, num meio quase que exclusivamente feminino e profunda- mente religioso, Herculine Barbin, cognominada Alexina pelos que lhe eram préximos, foi finalmente reconhecida como sendo um ‘verdadeiro’ rapaz; obrigado a trocar legalmente de sexo, apés um processo judicidrio e uma modificagao de seu estado civil, foi incapaz de adaptar- se a uma nova identidade e terminou por se suicidar (FOUCAULT, 1982a, p. 05). Sobre Laerte Coutinho podemos dizer que este estudou Co- municagao e Miisica na ECA-USP, porém nao se formou nestes cur- sos. Laerte participou de varias publicacées como a “Balao” e “O Pasquim”. Colaborou também com as revistas “Veja” e “Istoé” ¢ os jornais “Folha de Sao Paulo” e “O Estado de Sao Paulo”. Criou diversos personagens, como os “Piratas do Tieté” e “Overman”. Aescolha da entrevista da qual se extraiu o excerto analisado se deve ao fato de que foi no ano de 2010 que Laerte revelou a Folha de Sao Paulo porque aderiu: publicamente ao Crossdressing (ou travestismo, no Portugués Europeu, e frequentemente abreviado para “CD") e porque, a partir dai, participou de varios programas televisivos e de midia impressa e porque em 2012, tornou-se co- fundador de uma instituigdo voltada a pessoas com essa nuance de género, a ABRAT — Associaciio Brasileira de Transgéneros. Herculine, pobre, marginalizada, cujo sexo é decidido nos tribunais, hermafrodita, que nao suporta a mudanca de “etiqueta” sexual que lhe conferem. Laerte, colaborador de revistas conheci- das, cartunista consagrado pela critica especializada, adepto do Crossdressing. Por tras das diferencas abissais que os distanciam temos um argumento unificador: as sexualidades extrapolam qualquer categorizacao suméria e podem se manifestar de diver- sas formas. A verdade do sexo, portanto, nao passa de uma ilusio. Tratemos destes excertos, entao, nao como documentos apenas, mas como monumentos que se apresentam com resqui- cios através do dito que podem langar luzes para o que “esté ali”. rambém nao cabe, neste contexto a concepcao de um sujeito uno, soberano, fundador. A partir de Foucault a andlise de discursos 182 RertexOts SOBRE 0 ENSINO DE LiNGuAfS) E OUTRAS QUESTOES DE LINGUAGEM nao se volta para a intencionalidade dos enunciadores, mas ao discurso como campo de regularidades em que podem atuar diversas posices de sujeito, na qual o enunciado nao existe deslocado da relacdo com outros enunciados. Sendo assim, 0 que pode ser isolado nao € o enunciado, apenas a frase como estrutura gramatical. Desse modo, temo: [0 sujeito] E um lugar determinado e vazio que pode ser efetivamente ocupado por individuos diferentes, mas esse lugar, em vez de ser definido de uma vez por todas ¢ se manter uniforme [...] é variavel o bastante para poder continuar idéntico a si mesmo. ...| Descrever uma formulagdo enquanto enunciado nao consiste em analisar as relagdes entre o que ele disse (ou quis dizer, ou disse sem querer), mas em determinar qual &a posigao que pode e deve ocupar todo individuo para ser sujeito. (FOUCAULT, 2012, p. 107) Sendo o sujeito um lugar vazio, ele pode ser ocupado por diversos individuos, desde que se mantenha para além da de- limitagao de um espaco pré-demarcado. Isso quer dizer, como diz Foucault, que este lugar também pode variar. Como aqui nao esta em jogo 0 sujeito cartesiano, soberano e consciente, 0 des- centramento do sujeito faz com que o enunciado seja permeado por regularidades que apontam para a formagao de diferentes posicées de sujeito. O descentramento do sujeito nos leva a nao buscar intencionalidades, nem biografismos, sequer exames da consciéncia do enunciador a partir daquilo que ele “quis dizer”. Desse modo, 0 sujeito passa a ser tomado como uma fungao vazia, um lugar a ser preenchido. Outro ponto a ser assinalado é que © sujeito passa a ser lugar em que emergem representagdes de subjetividades varias, pois aponta para a histéria e a coletividade (FERNANDES, 2008). Retomando, Herculine Barbin é um hermaftodita. O artigo indefinido masculino “um” jd nos introduz a pensar em questdes de género, ja que o hermafroditismo € apresentado sobre a in- trodugao deste elemento vocabular masculino, embora se refira 183 RertexOts SOBRE 0 ENSINO DE LiNGuAfS) E OUTRAS QUESTOES DE LINGUAGEM a um individuo de dois sexos. Nao se trata de mero detalhe, se levarmos em consideracgado que Laerte Coutinho, atualmente, € designado em algumas das matérias e reportagens das quais participa e quando se apresente em ptiblico através do pronome feminino “ela”, seguido de palavras flexionadas no feminino com terminagao em —a quando estas vierem a designar qualidades, por exemplo, relacionadas a si. Estes dois movimentos e 0 estranha- mento que se pode advir desse inicio de discussao parte de uma das reflexdes de Michel Foucault (1982a, p. 01): as sociedades do Ocidente responderam afirmativamente “com uma constancia que chega as raias da teimosia” a pergunta: precisamos verdadei- ramente de um verdadeiro sexo? Herculine Barbin ou Alexina nao escreve as notas de seu didrio a partir da constataco de um sexo verdadeiro que ela teria encontrado. Tampouco Laerte Coutinho diz a partir de uma coeréncia entre corpo e sexualidade social e culturalmen- te aceitas. Em relacao a primeira personagem, podemos dizer que nao € como homem que “descobriu” a verdade do sexo em si, mas de alguém que esta muito préxima do suicidio, por ter consigo sempre a causa de um sexo incerto. Sendo assim, a nao-identidade, a identidade que nao se deixa regular pelo centro heteronormativo visto enquanto regulador e cerceador de outras identidades — como as formas de subjetividades sub- versivas na qual sexo e género nao “se encaixam” nas concepcées hegemGnicas de “homem masculino” e “mulher feminina”, por exemplo — faz com que os individuos se percebam sob a égide da monossexualidade. Neste contexto, Foucault (1980) refletiu sobre o dispositivo da sexualidade, no sentido de haver praticas que tergiversam, cerceiam, constroem modos de olhar para a sexualidade que pode ser sempre percebida de outra maneira, mas so modos de olhar que aparece como “evidentes”, como se sempre tivessem existido, enquanto comportamentos “natu- ralizados” em oposicao a outros. Podemos perceber Herculine também como metéfora da acao do dispositivo da sexualidade que impera sobre os corpos 184 RertexOts SOBRE 0 ENSINO DE LiNGuAfS) E OUTRAS QUESTOES DE LINGUAGEM errantes que sao colocados sob o leito de Procusto em contextos em que sao vigiadas continuamente as agdes dos desviantes. A norma insere-se na sociedade através das redes de poder que permeiam as relacdes humanas e isso implica, no terreno da se- xualidade, cada vez mais, na amputacao (in)direta da livre escolha dos individuos. O verdadeiro sexo é aquele a ser “decifrado” que “se esconde sob aparéncias confusas” (FOUCAULT, 1982a, p. 02). Nao é a toa que a pergunta do reporter da Folha de Sao Paulo, diante das mudangas que o cartunista Laerte Coutinho operou sobre seu “modo de vida” circula em torno dos terrenos da lou- cura, da satisfagao sexual (tesao) e do tédio. Sobre a reportagem que noticia a situaco de Barbin vale destacar que a ambiguidade de género, com o passar do tempo comecou a ser combatida juridicamente e partia do argumento de que a “natureza” dos corpos deveria ser respeitada e apenas um sexo deveria ser escolhido como “verdadeiro”. Herculine Barbin foi “um destes individuos a quem a medicina e a justiga do século XIX perguntavam obstinadamente qual era a verdadeira identidade sexual” (FOUCAUT, 1982a, p. 5). Foi assim que “durante muito tempo os hermafroditas foram considerados criminosos, ou filhos do crime, j4 que sua disposicao anatémica, seu proprio ser, embaracava a lei que distinguia os sexos ¢ prescrevia sua conjungao” (FOUCAULT, 1980, p. 39). A relagao entre os hermafroditas e os monstros nao é por acaso. Com o Renascimento, os monstros sao aqueles que “se mostram”. A origem latina aponta para a derivacao do vocabulo monstra que significa “mostrar, apresentar”, mas também poderia ter raiz de parentesco lexical com o termo monstrum, também latino, que significa “aquele que revela, aquele que adverte” (COHEN, 2000; KAPLER, 1994; THOMPSON, 1996). Outro dos sig- nificados mais interessantes aparece em Tucherman (1999, p. 103) para quem mostro pode ter raiz a partir do vocabulo monstrare que significa “ensinar um comportamento, prescrever uma via a seguir”. Longe de apresentar Laerte ou Herculine como sujeitos que mostram uma via a seguir, buscamos aqui apresenta-los nos 185 RertexOts SOBRE 0 ENSINO DE LiNGuAfS) E OUTRAS QUESTOES DE LINGUAGEM terrenos do indecidivel ¢ da nao-identidade e, portant, como formas de subjetivacao que nao se apresentam como o caminho a ser mostrado, indicado, mas como objetos de andlise que se situam nas intermiténcias de um tema a ser problematizado: a Ansia do Ocidente em classificar, catalogar, “encontrar”, reafirmar coletivamente a existéncia de um verdadeiro sexo. Se durante a Inquisigao os hermafroditas foram perseguidos pela Igreja e queimados em fogueiras por causa de sua ambigui- dade sexual, reiteramos a aproximagao com a atualidade, em que as fogueiras da inquisicéo permeiam discursos e praticas sobre a sexualidade. Assim como, para o especialista em monstros da €poca, o médico — voz de autoridade cientifica - Ambroise Paré (2000), a partir do Renascimento, os hermafroditas passam a ter © dever de escolher um sexo social e viver de acordo com ele. Assim, roupas, sentimentos, atitudes, papéis sociais, hierarquias, tudo deve estar em conformidade (sic) com 0 sexo escolhido, 0 que joga “para baixo do tapete” a existéncia da ambiguidade de género. A pena para quem nao o cumprisse seria de perseguicao, prisdo e, “nos casos em que a definicio como um homem ou mulher nao se mostrava clara e satisfatéria, a pena de morte” (PARE, 2000, p. 38). Laerte Coutinho assusta porque mostra uma realidade que 0 Ocidente nao suporta admitir, j4 que “De salto médio, meias coloridas, maquiagem leve e namorada a tiracolo, Laerte chega para dar entrevista a Folha sobre seu novo estilo de vida.” Avoz do jornalista quando apés esta frase acrescenta o imperativo indicial de que haverd certa “confissao” do cartunista em relacdo a essa “desordem” resumido no termo “Confira” faz com que sua voz seja uma voz entre tantas outras que estranham o género em de- sacordo com a heteronormatividade. Estranhamentos deste tipo, segundo Foucault, levam a refletir sobre os modos de perceber o diferente, a alteridade monstrual, que se mostra, tal qual frente a realidade de um homem que, ao tentar matar um minotauro em um labirinto, acaba por se confundir com a criatura. A aura dos monstros ainda permanece entre nés na atualidade. 186 RertexOts SOBRE 0 ENSINO DE LiNGuAfS) E OUTRAS QUESTOES DE LINGUAGEM O “estilo de vida” de Laerte aponta para a existéncia de uma série infindavel de discursos regulatérios, de estranheidade, de existéncia de outros sujeitos que alimentam o mesmo “estilo”. A sexualidade que nao se deixa catalogar, que esvai pelas beiradas das classificagdes, que nao aceita ser incluida por uma norma regu- latéria que circula em torno de uma heterossexualidade tida como tinica, inata e origem das outras sexualidades é a monstruosidade contemporanea, assim como foram os hermafroditas no século XIX e os travestis no século XVIII. Desse modo, é para o “limbo da nao-identidade” que nos voltamos, seja porque as formas de sexualidade nao podem ser percebidas como inseridas no escopo do binarismo hetero-homossexualidade, por isso privilegia as rela- des entre pessoas do sexo oposto “subalternizando, silenciando e tornando invisiveis no espaco ptiblico as relagdes homoersticas” por exemplo, conforme assinalou Miskolci (2009b, p. 331). Vejamos 0 exemplo dos crossdressers, ou CD, que se aproxi mam por causa de um hébito comum: o de usar roupas cultu- ralmente associadas ao “sexo oposto”. No processo histérico de categorizacao dos sexos, usar roupas do “sexo oposto” faz com que venham 4 tona rela¢ées entre as roupas e a “natureza” dos sexos, a partir da adequagao de tipos de vestimentas associadas culturalmente a um ou outro sexo (de novo o binarismo de géne- ro). Por isso que um homem (no sentido biolégico) cuja descrigao se resume na utilizagao “de salto médio, meias coloridas, ma- quiagem leve e namorada a tiracolo” faz pensar no mal-estar da cultura que insiste em afirmar a verdade do sexo, embaralhando categorias “estanques” e regulatérias, j4 que roupas associadas ao corpo feminino (no caso de levarmos em conta a naturalizacao de que o feminino estaria associado ao corpo da mulher) nao de- veriam estar sendo vestidas por um homem, ainda mais quando este esté acompanhado de uma “namorada a tiracolo”. A mons- truosidade, a realidade que se mostra é tamanha que o repérter nao consegue ficar sem questionar a sanidade do cartunista. Vale reiterar 0 desmantelamento da hipétese repressiva empreendida por Foucault no primeiro Volume da Histéria da 187 RertexOts SOBRE 0 ENSINO DE LiNGuAfS) E OUTRAS QUESTOES DE LINGUAGEM Sexualidade. Ao analisar textos médicos referentes ao periodo dos séculos XVII e XVIII, Foucault encontrou tradugdes de textos médicos gregos, onde ja havia uma descrigao “{...| dos fendmenos de esgotamento provocados por uma pratica excessiva de sexua- lidade e um alerta contra os perigos sociais deste esgotamento, para toda a espécie humana”. (FOUCAULT, 2010a, p. 335). Neste contexto, para Foucault (1980; 1999), do fim do século XVIII ao inicio do século XIX, desenvolveu-se a sociedade disciplinar. Essa configuragao social, baseada na concepgao de biopolitica? que ti- nha por caracteristica investir na produgao de “corpos déceis” que beneficiassem o poder estatal e os modos de producao capitalista vigentes. Aos individuos que nao se adaptavam as normas, punicao e isolamento. Através destes estudos, Foucault quer mostrar como. as relaces de poder perpassam o interior dos corpos: O que procuro é tentar mostrar como as relacées de poder podem passar materialmente a espessura dos corpos sem ter de ser substituidas pela representacao dos sujeitos. Se o poder atinge o corpo, nao ¢ porque ele foi inicialmente interiorizado na consciéncia das pessoas. Hé uma rede de biopoder, de somatopoder que é, ela mesma, uma rede a partir da qual nasce a sexualidade como fendmeno histdrico e cultural no interior do qual, a0 mesmo tempo, nés nos reconhecemos e nos perde- mos. (FOUCAULT, 2014a, p. 38) Tem inicio assim um projeto extensivo de “normalizacao” de sujeitos, que buscava uma “esséncia universal”, baseada nas leis “da natureza” que possibilitasse evitar 0 surgimento dos anormais. Assim como os “anormais” do século XIX, o crossdresser também é “|... monstro banalizado e palido |[...] € também um descendente desses incorrigiveis que aparecem nas margens das técnicas modernas de “adestramento” (FOUCAULT, 2010b)”. 2 Otermo “biopolitica” designa a maneira pela qual o poder tende ase transformar, entre o fim do século XVIII e 0 comego do século XIX, a fim de governar ndo somente os individuos por meio de um certo nfimero de procedimentos dseiplinares, mas o conjunto dos viventes ‘constituides em populaglo: a biopolitica — por meio dos poderes locas se acupard, por tanto, da gestio da saide, da higiene, da alimentagao, de sexualidade, da natalidade, etc. nna medida em que elas se tomnaram preocupagées politcas, (REVEL, 2005, p. 26) 188 RertexOts SOBRE 0 ENSINO DE LiNGuAfS) E OUTRAS QUESTOES DE LINGUAGEM Historicamente, 0 reforgo das categorias homem e mulher enquanto naturalizadas e com caracteristicas que se opunham_ como se um fosse apenas o contrario do outro, o processo de naturalizagao das diferencas ou igualdades cultural e concei: tualmente criadas encobre relagdes de poder que organizam estas nogées, pois “classificar pessoas de acordo com o genital ou suas representagdes psiquicas pode revelar-se tao arbitrario quanto classificar seres humanos por tipo de cabelo, tamanho dos pés cor da pele ou dos olhos” (LEITE JR, 2011, p. 199). Dessa forma, a busca pela verdade do sexo é¢ infundada, pois revela a obsessao em catalogar e cercear sujeitos. As misturas de sexo nao sao “apenas disfarces da natureza”, como lembra-nos Fou- cault (1988) e as discusses que se baseiem em uma identidade considerando-a unica, primeira, “original”, verdadeira, s6 faz urgir a problematizacao frequente de uma discussao com im- plicagdes politicas. Portanto, a busca pela verdade do sexo traz a tona os esforsos “necessdrios” para a manutengao de um padrao heteronormativo regulador das sexualidades, que objetiva “normalizar” sujeitos. Nao é que exista de fato uma verdade do sexo. 0 que se busca problematizar sao as diferentes formas com que argumentos naturalizados sobre o sexo e as sexualidades foram instaurando lugares de verdade, sendo alcados no lugar do verdadeiro. Tem-se assim uma espécie de ficcdo reguladora de géneros que organiza critérios acerca de quem sao os humanos “verdadeiramente” e atualiza-se no julgamento dos sujeitos que nao sao tio “verda- deiros” quanto os “legitimos” corpos que importam (BUTLER, 2002). Se as vestes de um sujeito designam seu género ou seu sexo ou as partes bioldgicas de seu corpo definem caracteristicas intrinsecas de seu comportamento e “estilo de vida", estao ai os exemplos de dois que destoam dessa insisténcia em (re)nomear a verdade do sexo: Barbin e Laerte. Entao, situamos o papel do intelectual, a partir de Foucault, cujas palavras nao foram corro- idas, mas proliferaram através dos tempos e se fazem cada vez mais presentes na atualidade: 189 RertexOts SOBRE 0 ENSINO DE LiNGuAfS) E OUTRAS QUESTOES DE LINGUAGEM Meu papel - mas este é um termo muito pomposo - é mostrar As pessoas que elas so muito mais livres do que pensam, que elas tomam por verdadeiros, por evidentes certos temas fabricados em um momento particular da historia, e que esta pretensa evidéncia pode ser criticada e destruida. O papel do intelectual é mudar alguma coisa no pensamento das pessoas. (FOUCAULT, 2004, p. 295) Retomemos, a esta altura, portanto, as figuras miticas do minotauro e de Procusto que remetem ao berco da civilizacao grega. Procusto, uma figura sarcdstica que espera os transeuntes cansados da jornada passarem em frente a sua casa para lhes oferecer descanso e uma cama confortavel. O minotauro como uma besta-fera que devora os corpos oferendados em sacrificio para aplacar sua fiiria. Ambos sao vencidos por um heréi que vai cortar a cabeca deles. A deixa nos permite para o presente artigo articular ambos os mitos as notas reflexivas que aqui propomos: assim como Procusto ao colocar o viajante engenhosamente sobre uma cama na qual 0 corpo nao vai caber, também as sexu- alidades so continuamente colocadas em leitos de Procusto. A figura mitolégica mencionada dispée os viajantes altos em uma cama menor e corta-Ihes as partes que ficam de fora depois de ter amarrado estes nela. Aos que sao baixos, ele deita-os em uma cama extensa de tal modo que possa, a fim de “encaixé-los” na superficie do leito, puxar os membros e esticd-los até que arrebentem. Parece que, como havia alertado Foucault no desmantela- mento da hipotese repressiva, depois que 0 sexo foi colocado em discurso nao se faz outra coisa senao falar de nossas sexualidades. ‘Aos que nao se adequam as formas “legitimas” de sexualidades possiveis, resta o lugar do impossivel: 0 monstro indecifravel Passa a ser trancado em meio a um labirinto (tao dificil chegar até ele, metdfora da incompreensao no duplo sentido que esta palavra pode incorporar). Ariadne é uma mulher que ajuda Teseu a chegar até o Minotauro e a maté-lo e para isso entrega-Ihe um fio que ele deve usar para se guiar. Estamos sem fio. Ariadne nos deixou na mao. Entao talvez, se ajustarmos nossas lentes de outra 190 RertexOts SOBRE 0 ENSINO DE LiNGuAfS) E OUTRAS QUESTOES DE LINGUAGEM forma talvez o minotauro nao precise ser o inominavel. Ele pode ser 0 monstro que ronda nossas condutas e vidas e bem conheci- do. No interior de imaginarios que engendram comportamentos “aceitaveis” social e culturalmente, apregoa-se que dois sao os modos de perceber a sexualidade e duas moedas sao as aceitaveis neste campo: ou se é homem ou se é mulher, ou se é feminino ‘ou masculino, e por af vai. E os que nao se “adequam” a estas categorias? Bom, o minotauro da “moral e dos bons costumes” trata de buscar devorar.. REFERENCIAS BUTLER, Judith. Cuerpos que importam: Sobre los limites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires: Paidés, 2002. COHEN, Jeffrey Jerome. “A cultura dos monstros; sete teses”. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.) Pedagogia dos monstros. Belo Horizont auténtica, 2000. COUTINHO, Rafael. O labirinto. [Exposigio Ocupagdo Laerte] Sao Paulo: Itaui Cultural, 2014. FERNANDES, Cleudemar Alves. Andlise do discurso: reflexdes introdutérias. 2. ed. S4o Carlos: Claraluz, 2008. FINOTTI, Ivan. Cartunista Laerte diz que sempre teve vontade de se vestir como mulher. 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