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Mistérios da “Fragilidade Humana”: o Adultério Femi- nino no Brasil, RESUMO O artigo tem por objetivo ana- lisar 0 adultério feminino no Brasil nos séculos XVIII e XIX. No bojo dessa dis- cussdo, inserem-se também outras questées relativas ao papel dos sexos nas ratederdes patrlatedls. ¢ catamentt 6 9 wéreio, Atengao especial é dedicada a legislagao eclesidstica e civil do periado de modo a entender a problemdtica es- pecifica do adultério e também as possiveis mudancas de status e direitos das mulheres brasileiras ao longo do tempo. ulos XVIII e XIX Eni de Mesquita Samara* ABSTRACT The article intends to analyse the feminine adultery in Brasil during the XVIII and XIX centuries. Besides this dis- cussion also focuses in others questions related to sex roles in patriarchal sacie- ties, the marriage and divorce. Special attention is dedicated to the Church Codes and Civil Law to understand spe- cifically the question of adultery and also to infer possible changes in the status and rrigths of brazilian women over time. No Brasil, durante os séculos XVIII e XIX, varias mulheres envol- veram-se em casos de adultério, apesar da rigidez dos costumes que vigo- rava na época ¢ do aparente isolamento em que viviam. Que razées leva- riam essas mulheres a infringir a norma e romper os “santos lagos conju- gais”? Como a Igreja, o Estado Portugués ¢ a propria sociedade legisla- vam, puniam e tentavam evitar esses desvios ¢ atentados 4 ordem estabelecida? Mais do que instigantes, essas questdes so cruciais para um me- thor entendimento das relagdes familiares e do papel reservado aos sexos De acordo com a legislagdo portuguesa vigente na Colénia (1500- 1822), o adultério era considerado como falta grave para ambos os cénju- ges ¢ também motivo de divércio perpétuo pela norma eclesidstica. Assim, “se a mulher cometer esse adultério ao marido, ou 0 marido & mulher, *Professora da Universidade de Sao Paulo, Este artigo foi escrito enquanto Visiting- Scholar do Population Research Center, University of ‘Texas, Austin ¢ Bolsista de Pés-Doutoramento da FAPESP. Rev. Bras, de Hist. | S. Paulo | v.15,n°29 | pp. 57-71 1995 57 r esSa causa se poderdo apartar para sempre quanto ao toro e miitua ceabtagao' ™ Aparentemente simples-e igualitirie essa Tegra enUetanto; resguardava, na perspectiva da acusacao, desenrolar do proceso e grau de punigo, distingdes entre os sexos, colocando a esposa em uma situagio inferior do ponto de vista juridico. No século XIX, apés a Independéncia em 1822, 0 Cédigo Criminal do Império (1822-1889), absorvendo os principios da legislagao portu- guesa, manteve a mesma diferenga - enquanto que para a mulher bastava um desvio, para o marido era necessério provar que tinha concubina de “publica e notéria fama”. Com certeza, nao ¢ facil penetrar nos “mistérios da fragilidade hu- mana”, especialmente se considerarmos os limites impostos pelos docu- mentos histéricos coevos. Considerando essas dificuldades ¢ assumindo 0 riscos de tratar um tema tao polémico, este trabalho pretende recuperar as razGes confessas das esposas adiilteras e a prépria concepgio do adul- tério.na época. A idéia justamente comparar € contrapor testamentos manuscritos e processos de divércio com a legislagao eclesidstica e civil, utilizando também os manuais de orientag4o aos casais. Com base nessas evidéncias é que buscamos dar conta de parte das indagagSes ¢ pressupos- tos sobre a condicao feminina e a vida privada na Colénia ¢ Império do Brasil. ° OS CASTIGOS DO PECADO Falar da luxtiria e dos pecados reinantes nos tropicos pode parecer lugar comum se pensarmos que o assunto sempre suscitou intimeros co- mentérios. Aos comportamentos desviantes, concubinas ¢ ilegitimos, de- dicavam-se muitas paginas nos c6digos de leis e compéndios normativos especialmente a partir do século XVII. Preocupados com a moral ¢ os bons costumes de stiditos e fiéis, Igrcja e Estado, com pequenas diferengas quanto ao teor, sempre permaneceram unidos a esse respeito. Na salvaguarda do casamento cristo ndo faltdvam leis e aconselhamentos que, na época, eram sempre seguidos de punigdes, Nas est6rias contadas nos compéndios, esposas adiilteras eram ge- ralmente sujeitas a graves crises de consciéncia e mortes trigicas.? Soltei- ros amasiados e maridos permissivos também eram personagens constan- tes nesse cendrio. Mas afinal de quem era a culpa? Da vida nos trépicos? Das esposas adulteras ou dos maridos trafdos? 58 Bastante ilustrativo a respeito € 0 Compéndio Narrativo do Pere- grino da América, escrito no século XVII por Nuno Marques Pereira, onde relata os casos que viu suceder por causa do pecado do adultério. Conclusivos e trdgicos esses relatos acabam sendo arrematados com o se- guinte adagio: “Os filhos de Lisboa nascem na Corte, criam-se na India ¢ perdem-se no Brasil”. As mulheres reserva 0 papel de sedutoras ¢ aos homens o de preservar a prépria honra. No entanto, o intuito de Marques Pereira, ao que tudo indica, nao era a punicao do adultério, mas as formas de evit4-lo e, para isso, constréi um modelo de regras ¢ intimidag6es. Para Vainfas, que analisou a sua obra no contexto da legislagao portuguesa, essa era a sua maxima, muito proxi- ma da Igreja do perfodo colonial que buscava o equilibrio dos casamentos ¢ aintegridade fisica das esposas.* O mesmo nio ocorre, entretanto, ao examinarmos a questo no Cédigo Phitippino ou Ordenagées e Leis do Reino de Portugal que vigo- raram no Brasil até 0 infcio do século XIX, sendo, inclusive, ainda muito citadas nos cédigos posteriores vigentes durartte o Império. Neste corpo documental, as disposigdes so muito claras ¢ precisas, preservadas as diferengas quanto ao sexo e condigo social dos envolvidos. No titulo XXV, “Do que dorme com mulher casada”, reza o seguinte: “Mandamos que 0 homem, que dormir com mulher casada, € que em fama de casada stiver, morra por ello. Porém, se 0 adultero for de maigr condig&o, que o marido della, assi como, se o tal adultero fosse Fidalgo, e 0 marido Cavalleiro, ou Scudeiro, ou 0 adultero Cavalleiro ou Scudeiro, e 0 marido pedo, nao fardo as Justigas nelle exe- cugdo, ate nol-o fazerem saber, ¢ verem sobre isso nosso mandado, 4 E toda mulher, que fizer adulterio a seu marido morra por isso”.S 2 Além da punigao pela morte, os adiilteros estavam sujeitos a ini- meras outras penalidades. No caso de “adultério simples”, a esposa podia ser perdoada pelo marido ¢, portanto, ser poppada. Nas situagdes mais complexas que envolviam nao apenas a moral, mas diferengas étnicas, de classe e parentesco, a intervengao do Estado era precisa: “E isto havera lugar, quando somente for accusada de 59 adulterio simples, E sendo ella nao somente accusada de adulterio, mas que pecou com Mouro, Judeu, parente ou cunhado de afinidade em tal grau, que deva haver pena de Justiga, se the o marido perdoar, seja relevada da pena, que devera haver por adulterio, e que haja a pena, que deve haver por peccar com Judeu, Mouro ou parente” § Aparentemente simples, a legislagao Filipina é rica ao descrever as. normas reguladoras para os indivfduos envolvidos em circunstincias de adultério. O perdao do marido significava a reconciliacao do casal, mas cabia ao Estado evitar o escindalo piblico. Nesse caso, 0 adtiltero nao podia ser punido com a morte, mas, segundo a lei, devia pagar com o de- gredo perpétuo para o Brasil, caso o ofendido nfo retirasse a acusagio. Perdoado também o comparsa da mulher, ainda restava o degredo tempo- rrio de 10 anos na Africa.” Ao Estado cabia no interromper os processos, mesmo por morte do marido. A esposa, por sua vez, perdia todos os bens, inclusive aqueles adquiridos por dote, que passavam ao acusador e seus legitimos herdeitos. Ao final do processo e nos casos da nao comprovagiio do adultério, garan- tia-se & mulher o recebimento dos bens do marido. Nada sabemos sobre a prdtica das execug@es da lei, pois desconhe- cemos o destino desses documentos ¢ a rigidez com que essas regras eram aplicadas. Sabemos, no entanto, que homens e mulheres, de diferentes seg- mentos sociais, foram acusados de viver em adultério em varios momentos da Histéria do Brasil. Para isso, basta verificar o volume de processos de Divércio e Nulidade de Casamentos que correram pela Justica Eclesidsti- ca desde 1700 e depois pelo Tribunal Civil apés o advento da Reptiblica em 1889, onde o adultério era o motivo da separagao.* Momentos confessados de “fragilidade humana” aparecem também nos testamentos. Para essas mulheres, havia que ter coragem de assumi- rem publicamente os filhos ilegitimos, nascidos na consténcia do matrimé- nio. Essa confissio piiblica reconhecia o flagrante da relagdo extraconjugal € perante a lei colocava o filho como “esptirio”, excluindo-o do direito & heranga. Por isso, so raros os testamentos em que se relatam essas situa- goes. Entre as razées confessas das esposas, auséncia ou abandono do marido eram as mais freqiientes para justificar “um mau passo”. Sentindo- se frégeis ¢ abandonadas diziam ter sido dificil resistir As tentagdes da came. As vitivas alegavam os mesmos motivos para o tempo em que vivia o marido e “fragilidade humana” apés a sua morte.” 60 Como se pode perceber, é complexa a problematica do adultério e envolve intimeras questées vinculadas ao comportamento dos casais ¢ & moral que era imposta a sociedade. Além disso, serve para explicar a exis- téncia de concubinas e filhos ilegitimos que eram mantidos a distancia de suas casas, em geral, pelo branco proprietério. ‘Sao imimeras as queixas das esposas nos séculos XIX so- bre as atitudes dos maridos que, tinham casos amor vezes, resultavam em concubinas “tetidas e mantetidas”. Das relagdes com as escravas, nasceram também muitos filhos bastardos, parte absorvidos no seid das prdprias familias. Como mesticos ¢ filhos do dono com a es- crava, tornava-se mais fécil 0 caminho da liberdade e o direito & heranga, especialmente quando havia falta de herdeiros legitimos."” Embora considerado praticamente usual para aépoca, nem sempre as esposas foram complacentes com os desvios do marido ou o abandono momentaneo do lar. Isso, sem davida, era motivo para iniciar um processo de divércio e muitas mulheres trafdas seguiram esse caminho, direito asse- gurado pela legislagao eclesidstica e civil. Para a Igreja, homens ¢ mulheres, quando adilteros, eram pecado- tes e, sendo impossivel a reconciliacio, o adultério era uma forte razio para a separago do casal. O texto da lei previa punigdes para esses casos, mas no prioriza a honra masculina e a morte da esposa, Nas Constit ¢Ges Primeiras do Arcebispado da Bahia aprovadas no Sinodo Diocesano de 12 de junho de 1707, 0 tratamento era mais igualitério para ambos os SexOS: “Outra causa de separagdo perpetua sea fornicagao culpd- vel de qualquer genero, em a qual alguns dos casados se deixa cair ainda por uma $6 vez, cometendo formalmente adulterio carnal ao outro. Pelo que se a mulher cometer este adulterio ao marido, ou 0 marido a mulher, por esta causa poderdo se apartar para sempre, quanto ao toro e mutua coabitagao...”."" O Estado Portugués, por sua vez, tratava de punir os homens casa- dos vivendo publicamente com “barregéias”. Os castigos previam 0 degre- do de 3 anos para a Africa e a devolugao dos bens que pertenciam a espo- sa. As concubinas, além do degredo de um ano para Castro-Marim, deve- tiam ser agoitadas pela vila com “barago e pregiio”.'? O cédigo, entretan- to, néo previa a punigao masculina com a morte, mantendo a disting3o 61 entre os sexos. Excegao era feita ao comparsa da mulher e aos alcovitei- ros: “Qualquer pessoa, assi homem, como mulher, que alcovitar mulher casada, ou consentir que em sua casa faga maldade de seu corpo, morra por ello, e perca todos os seus bens”. Pela lei do Reino, compactuar com 0 pecado era considerado falta grave e sujeita 4 punigao pablica. Na Coldnia brasileira, nada sabemos, entretanto, sobre a execugao dessas regras na pratica. Nos séculos XVIIIe XIX, so mais comuns nos documentos hist6ricos queixas dos maridos e/ ou esposas quanto ao mau comportamento do companheiro ¢ reclamos dos habitantes sobre atitudes escandalosas de homens e mulheres nas vilas ¢ cidades. Casos de concubinato piblico também aparecem nas Devassas Cle- ricais e nos Livros de Visitas que os parocos realizavam as suas freguesias por ocasiao da Pascoa. Preocupados com a moral ¢ 0s bons costumes dos fiéis, puniam os pecadores renitentes e que viviam publicamente em desor- dem com a “nfio-desobriga” ou excomunhio."* No entanto, apesar desses exemplos, que evidenciam as tentativas de controlar comportamentos considerados escandalosos para ambos 0s sexos, no Brasil, morte e honra sempre estiveram relacionados ao adulté- rio feminino, Recurso utilizado até os dias de hoje pelos maridos trafdos, “os crimes da paixdo” tramitaram pela Justiga com salvo conduto para os homens como gerentes dos bens ¢ da vida das mulheres. As esposas sem- pre foram ensinadas a agir com cautela, submissio e resignagao. Sendo assim, por que traftam, correndo todos os riscos? Por que trairam mesmo sabendo que o flagrante poderia significar a morte imediata? O titulo XXXVIII das Ordenagées Filipinas - “Do que matou sua mulher pela achar em adultério”, é bastante incisivo quanto a esse direito irrefutavel do marido: “Achando o homem casado sua mulher em adulterio, licita- mente podera matar assi a ella, como 0 adultero, salvo se 0 marido for pedo, eo adultero Fidalgo, ou nosso Desem- bargador, ou pessoa de maior qualidade. Porem, quando matasse algumas das sobreditas pessoas, achando-a com sua mulher em adulterio, no morrera por isso, mas sera degre- dado para Africa com pregdo e audiencia pelo tempo, que 62 aos julgadores bem parecer, segundo a pessoa, que matar ndo passando de tres annos. 1-E nao somente podera o marido matar sua mulher e 0 adultero, que achar com ella em adulterio, mas ainda os pode licitamente matar, sendo certo que lhe commetteram adulterio; ¢ entendendo-o assi provar, e provando depois 0 adulterio per prova licita e bastante conforme o Direito, sera livre sem pena alguma, salvo nos casos sobreditos, onde serao punidos segundo acima dito he”.'S Esse direito sobre a vida da mulher nao est presente na legislagao do perfodo independente, permanecendo, entretanto, como um principio arraigado, quase como uma heranga moral a ser preservada dos tempos da conquista. Nos tempos do Império, fica mais diffcil conhecer as verdadeiras regras do jogo que pautavam as relagdes marido-esposa. Os Cédigos de Leis so lacunares ¢ ainda se legisla muito com base nas Ordenagées Fili- pinas e as obras dos juristas da primeira metade do século passado mos- tram bem essa problematica. Questes morais cedem espago ao Direito das Sucessdes, que pare- ce ser uma das maiores preocupagées dos jurisconsultos até o final do século XIX. Com 0 advento da Republica em 1889, o divércio passa tam- bém a ser matéria do Estado e isso centraliza um amplo debate na época. No bojo dessas discussées e desenrolar dos processos civis, 0 adul- tério continuou sendo o principal motivo de separagdo dos casais. As puni- Ges persistem, mas no aparecem mais expressas com tanto vigor e rique- za de detalhes nas descrigdes das situagdes poss{veis de envolvimentos. De concreto, encontramos apenas 0 Cédigo Criminal do Império do Bra- sil de 1830, que considera 0 adultério um crime ao qual pagava a mulher com pena de prisdio com trabalho forgado pelo periodo de | a3 anos. Ao companheiro reservava-se idéntico castigo ¢ ao marido trafdo havia sem- pfe que provar que nunca compactuara com essa dada situagiio. 6 Mulheres proibidas sempre foram sedutoras aos olhos dos homens desavisados. Na tradi¢do oral, addgios e contos populares, essas est6rias tinham finais trégicos na tentativa de coibir os abusos da populagio. En- tretanto, apesar dos alertas e castigos, as “amizades ilfcitas” proliferaram, resultando em separagao de casais, alto indice de ilegitimidade e mesclagem de ragas e de grupos sociais. Como figuras do cotidiano, concubinas e 63 mestigos bastardos foram, de algum modo, absorvidos pela sociedade bra- sileira da época, apesar das pressOes da Igreja e do Estado. E, se pecado castigo andam sempre juntos, nos mistérios da “fragilidade humana” est bem presente a questo do adultério. Se for assim, no hé muito o que desvendar... Diante desse quadro como fica o historiador, tao distante ¢ ao mes- mo tempo tdo préximo dos segredos da alma ? Com base apenas nos cédi- gos de leis e nas evidéncias encontradas nas fontes manuscritas da época, como entender ou mesmo explicar o comportamento humano? Como tema delicado e polémico, as razdes confessas das esposas aparecem principalmente nos processos de divércio. Nos testamentos, j4 perto da morte, as descrigdes so mais fluidas. Ficava também mais facil falar do marido, queixar-se da vida monétona, do abandono e assumir os filhos naturais. Sendo assim, ¢ com tantas acusag6es e evidéncias a contabilizar, tudo indica que, por “mistérios da fragilidade humana”, ineficdcia dos re- ceitudrios escritos para garantir a fidelidade conjugal, ou talvez dificulda- des de aplicago pratica da legislagdo, as regras tiveram muitas excegdes. RAZOES CONFESSAS E SITUACGES DE FATO Um dos esterestipos mais comuns acerca da mulher brasileira no passado diz respeito ao seu confinamento e reclusfio. Assim, pouco restava as mulheres além de obedecer ao marido e cuidar da casa e dos filhos. Segundo reza a historiografia, também eram poucas as oportunidades de vida social e, nas raras ocasides em que safam & rua, era para ir a Igreja aos domingos ou assistir as festas religiosas, logicamente, sempre acom- panhada pelo pai ou marido. Viviam, portanto, nos chamados “espacos permitidos” e eram obedientes e submissas. Pesquisas recentes, no entanto, apontaram outros perfis das mulhe- res brasileiras do perfodo colonial. Evidéncias de que uma parcela signifi- cativa, especialmente das camadas abastadas, vivia reclusa ou entregan- do-se a indoléncia, geraram um contraponto & mulher trabalhadora que invade 0 setor ptiblico e, 4 testa da familia e dos negécios, contribui com tecursos préprios para o sustento da casa.!” Nao € facil separar e opor mitos construfdos ao longo do tempo de situagdes concretas do cotidiano. Significa entender os valores ideol6gi- cos presentes no processo de colonizagao ¢ a forga de penetragao dos mes- 64 mos entre es diversos grupos sociais. A representago da familia patriar- cal brasileira, assentada no casamento legitimo ¢ na divisdo harm6nica de Papéis para ambos os sexos é 0 exemplo mais claro de que, na pratica, isso podia nao ocorrer. Casais optavam por outro: s de unides de “uso cos- tumeiro” ou vivian’ concubfnados, nem sempre legitimando situagbes de fato,"* ~~ Por outro lado, muitas vezes, ndo era possfvel manter ilesos os sa- grados vinculos do casamento como mandava a Igrejae desejava o Estado. Ao contrario do que se esperava, esposas se rebelaram contra os maridos, revelaram-se insatisfeitas com a unido e chegaram a assumir publicamente relagdes de adultério. Ocasides nao faltaram nas auséncias dos maridos e até nas visitas & Igreja. Nos manuais de orientagao aos casais, tudo estava Previsto € todo 0 cuidado era pouco em se tratando de escolher a noiva e afastar os futuros perigos. Havia que vigiar sempre a mulher, os héspedes € as visitas na casa. Também os eclesidsticos entravam na lista para se evitar 0 “mal maior”, os escandalos e a separago do casal.” Quando re- mediar nao era mais possfvel, o caminho era o divércio perpétuo € muitos casamentos foram desfeitos por comum acordo ou litigio. No Brasil, o processo de divércio mais antigo de que se tem noticia data de 1700 e faz parte do acervo da Ctiria Metropolitana de Sio Paulo (os julgamentos desses casos era da competéncia da Igreja até a proclama- ao da Reptiblica em 1889). Isso significa que, mesmo durante o Império (1822-88), quem decidia esse assunto era o Tribunal Eclesidstico. A regulamentagio civil veio com 0 Decreto 181, de 24 de janeiro de Ke 1890 ¢ os processos podiam ser litigiosos ou amigaveis, No entanto, ape- sar da incorporagio da lei na Constituigo de 1891, os lagos do matrim6- jo continuaram indis: is por pressdes da Igreja, de jurisconsultos e de parte da populagao, significando apenas a separagdo de corpos e de bens, nao abrindo possibilidades para segundas ntipcias, como jé aconte- cia anteriormente, Os processos de anulagdo e de separagdo que utilizamos nesse tra- balho referem-se espesificamante' étea pauliste Capitania ¢ depois Pro- vincia de Sao Paulo. Para essa regido, no perfodo de 1700 a 1800, a Justi- ga Eclesidstica registrou 75 pedidos e 583 entre os anos de 1801 e 1899. Apés 0 advento da Republica, ou seja, de 1889 ao final do século XIX, tramitaram, além disso, pelo Tribunal Civil, mais 123 processos, sendo esse agora o frum legitimo para a separagao de casais. O divorcio pela Igreja continuou somente para aqueles que desejassem ¢ sem nenhuma obrigacdo, como ocorre até hoje em dia. 65 Desse conjunto de documentos compilados e analisados, grande parte das ages foram movidas por mulheres. Veja-se, por exemplo, que, na ul- tima década do século XIX, 46,4% das acusadoras eram mulheres, 19,5% homens ¢ 34,1% eram solicitagdes por mituo consentimento.” Esse recorte estatfstico, sem dtivida, no contemplao total de pedi- dos que tramitaram no Brasil mas trata-se de uma amostra significativa do cémputo geral. Além disso, € preciso considerar que mesmo 0 volume to- tal de processos nao é uma real expressiio dos casais que viviam separados e que nunca chegaram as barras dos tribunais. Permitem, entretanto, per- ceber que pediram separagio ¢ anulagao individuos pertencentes a diver- sas camadas sociais, sendo dissolvidos matrim6nios de escravos e forros assim como de pessoas abastadas provenientes de familias tradicionais. Os motivos alegados eram varios e pareciam independer da época ou da categoria social dos queixosos. Além de raz6es de natureza religio- sa, alegavam incompatibilidade de génio, abandono do lar, sevicias, inj rias graves e doengas infecciosas, Dentre eles, logicamente, 0 adultério Assim, mulheres e filhos de padre, ao que tudo indica, eram perfeitamente identificaveis e aceitos pela populagao. O que realmente causava cons- trangimento era o adultério da mulher casada com o cura da Igreja local e isso no parece ter mudado com o tempo. Aos que “dormem com suas parentas ¢ afins” o titulo XVII das Ordenagées Filipinas reservava a fo- gueira para os casos mais graves. Na legislacdo posterior, previa-se a pri- sao do acusado. A morte, figura constante nos Cédigos do Reino, praticamente de- saparece na leis do periodo subseqiiente. Isso nao significa, entretanto, que houvesse se distanciado das praticas da violéncia comuns nas socieda- des coloniais.e escravistas como a brasileira. E se 0 dominio era o da “desordem”, como diziam os prdprios contempordneos, o que esperar da aplicagdo dessas leis? Ao pesquisador e leitor desavisado, tudo isso deve parecer contra- dit6rio e complexo, Hé também que sc ter a sensibilidade de entender que valores ideolégicos e modelares nem sempre atingem ao total da popula- go. Na vida monétona das pequenas vilas e cidades brasileiras, aparente- mente trangiiilas, vigiavam-se os comportamentos pelas frestas das jane- las. O interior dessas casas escondeu também muitos mistérios que, causa- dos pela “fragilidade humana”, nem os confessores ¢ as devassas clericais conseguiram desvendar. E sendo assim, o que diria eu “pobre historia dor”? NOTAS. " Ordenagées do Reino de Portugal, Livro 1, TITLXXI, p. 312, * Vera respeito VAINFAS, Ronaldo, A condenagio do adultério, In: GAMA LIMA, Lana Lage, org. Mulheres, adiilteros e padres. Rio de Janeiro, Dois Pontos, pp. 33-55, 1986. * PEREIRA, Nuno Marques. Compéndio narrativo do peregrino da América. 6ed, Rio de Janci- ro, Academia Brasileira de Letras, p.181. “ VAINFAS. op.cit. 70 * Cédigo Philippino ou Ordenacdes e Leis do Reino de Portugal, recopiladas por mandado d’el Rei D. Philippe I, Typ. do Instituto Philomético, p.1176, 1869. * Idem. Quinto Livro das Ordenagées. TIT.25, p. 267. ” Ibidem. * Arquivo da Ctria Metropolitana de Sao Paulo, Processos de Divorcio e Nulidade de Casamentos. (MSS) 1700-1899; Arquivo do Tribunal de Justica do Estado de Sao Paulo, Contencioso de Casa- ‘mentos (MSS) 1889-1899. * Ver SAMARA, Eni de Mesquita. As mutheres, o poder e a familia, Sao Paulo, Marco Zero, 1989. ""Ibidem. " Constituigdes Primeiras do Arcebispado da Bahia, Coimbra, Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1720. Ordenagdes. Livro Quinto, pp.273-74, Tbidem. p.279. “Ver SAMARA, Eni de Mesquita. A Familia Brasileira, 4ed. Sto Paulo, Brasiliense, 1993, Ordenagdes. Livro Quinto, p. 287. '" Cédigo Criminal do Império do Brasil. art. 250, p. 76, 1830. "" Acesse respeito ver KUSNESOF, Elizabeth. Household Economy and Urban Development. S80 Paulo, 1765-1836, Boulder, Westview Press, 1985; SILVA DIAS, Maria Odila. Quatidiano e Po- der, Su Paulo, século XIX. Sio Paulo, Brasiliense, 1984 ¢SAMARA, Eni de Mesquita, As muthe- res. op.cit "SAMARA, Eni de Mesquita. A Familia. op cit. "Ver MENDES, Angela de Almeida. Os manuais portuguéses de casamento dos séculos XVIe XVIL In: SAMARA, Eni de Mesquita, org. Familia e Grupos de Convivio. Sao Paulo, ANPUH, Marco Zero, pp.191-208, 1989; SAMARA, Eni de Mesquita. A Familia. op.cit. eGAMA LIMA; LAGE, Lana, org. Mulheres, adiilteras e padres. op.cit. »'SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres. op.cit.,p.116e seguintes, * Arquivo do Tribunal de Justiga do Estado de $0 Paulo, Contencioso de Casamentos, (MSS) Capital, s/n, caixa 64, 1891. * Arquivo da Ciiria Metropolitana de Stio Paulo, Processos de Divéreio © Nulidade de Matriménios (MSS) Capital, n. 362, 1836. arquivo do Tribunal de Justica do Estado de Sao Paulo, Testamentos (MSS) Capital, p. 184, 1850. * Arquivo da Ciria Metropolitana de So Paulo, Processos de Divércioe Nulidade de Matriménios (MSS) Capital, n. 301, 1828. * Ver LEWKOWICZ, Ida. A fragilidade do celibato. In: Mulheres, adilteros e padres. op.cit.,pp. 53-68, 71

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