Вы находитесь на странице: 1из 14
UMA PAISAGEM ESTRANHA Nao nos confiemos ao fracasso, seria ter a nostalgia do sucesso. Maurice Blanchot ) Tudo desde sempre. Nunca outra coisa. Nunca ter tentado. Nao \ | importa. Tentar outra vex; Falhar outra vex. Falbar melhor. * Samuel Beckett Se 4 pergunta “o que é que do mundo nio poderia ter sido programado por um computador?’’ respondéssemos “nada”, achariamos tal mundo estranho? Nao achamos estranho um mundo de onde a estranheza foi banida no mesmo sentido em que achamos estranho algo que nos atrai ou nos fascina por nao o podermos compreender 155 inteiramente ¢ haver por conseguinte um desejo de aproximagao do seu enigma. No sentido mais usual, “estranheza” sup6e sempre uma operagao comparativa e uma discrepancia entre os termos comparados. Acha-se estranho aquilo que nao esta de acordo com determinados padroes ou ptincipios, aquilo que foge ao habito. Fala-se de coisas que se acha estranhas para as compreender, assimilar, recusar, corrigir ou transformar. Por vezes adoptam-se estratégias de estranhamento, que decorrem de um principio de suspeita — nao achat natural o que se apresenta como tal—, para através delas se atingir uma outra percep¢io e conhecimento, ou pata fazer a critica de uma dada realidade. Para que o mais familiar apare¢a como estranho basta muitas vezes quebrar 0 encanto da repeti¢ao, abalar o automatismo da nossa percepcao: mudar o angulo de visio, alterar a escala do objecto ou fazer variar o enquadramento te6rico. Hoje, o desenvolvimento da inteligéncia artificial coloca- -nos perante o facto de este tipo de estratégias de desautomatizagao poder ser desenvolvido automaticamente, isto é, pela execugao em computador de programas que produzem variabilidade e diversidade. F hoje dbvio que neste sentido de algo limitado e apropriavel, algo de que o sujeito pode dispor, a necessidade do estranho ou diferente aumentou 156 tao vertiginosamente quanto a possibilidade de produzir coisas diferentes, novidades mais ou menos estranhas. Ha gostos para tudo ¢ tudo se vende, o que quer dizer que 0 vicio da novidade contribuiu para a homogeneizacao de tudo. Fé-lo pela anulagao do valor, daquilo que assinalava a inapropriabilidade. Aquilo que se passa ao nivel dos objectos de supermercado passa-se a outros niveis: informacao, teorias, critica social, critica cultural, etc.. A efervescéncia permanente de todas estas actividades é uma evidéncia. Caminhou-se até um conhecimento cientifico capaz de conduzir 4 homogeneiza¢ao genética dos humanos € nfo se espera que as novidades fiquem por aqui. No campo das ciéncias humanas nao ha uma eficacia ptagmatica imediata: do ponto de vista da eficacia simbolica, a pressao da exigéncia de novidade faz destacar os discursos de justificagio dos vanguardismos, mas, se nao houver talento para tanto, basta ir na onda, ter o titulo certo e imitar os outros (e que seja em inglés, condicao necessaria para se ser promovido a categoria de conferencista-abridor-de- congressos-a-nivel-mundial). No passado, num mundo assente na repeticao de formulas e habitos, toda a estranheza tinha que ser banida da convivéncia social (sacralizacao/expulsao, encarceramentos 157 varios) ou circunscrita como mistério, ao qual se impunha uma determinacao Ultima, a origem divina. Num mundo de novidades, é a experiéncia que ¢ banida. Nao a experiéncia como acumulacao de memérias do sujeito, mas uma outra, feita de marcas de auséncia, de interrupgdes dos fluxos de sentido, de encontros, de perdas. O que hoje é intolerado é a fuga a obrigacao de rentabilizar (consumir pode ser uma forma de “‘ctiaco” simbélica). Acabou a condenagfo da estranheza como um bloco, persistiu o reptidio daquela parcela de estranheza irrecuperavel, a que leva o pensamento e a arte a desprenderem-se dos sentidos plenos ¢ manipulaveis. Trata-se da estranheza que nao € 0 contrario da normalidade; irrompe sem ser requerida ou anunciada. A nossa fala tinge-se por vezes de uma estranheza incondicional, a do acontecimento que desfixa as formulas € nos deixa por instantes suspensos de uma eminéncia de que recuperamos retomando o curso normal do discurso. Nos momentos de exaltacao da vida, somos lancados para fora de nés prdprios, pata o campo magnético das relagGes indefiniveis. Quando estamos presentes como consciéncia sintetizadora € ja para contar, rememorar, o que para um sujeito € sempre j4 passado. Esse contar nao é historiografico, nem linear, nem nada de universal, ha apenas nele uma presenga 158 — os vestigios na sua materialidade, a restancia que perturba a voragem temporal, logica — que se eterniza através da destinacao, do ser lan¢ada nas infinitas redes da universalizagio, proposta as decifragées. Naquilo em que a estranheza envolve a alusio inconfirmavel, unico rosto do devir, ela nao pode resultar directamente da aplicacao de qualquer técnica, embora também nao decorra imediata e necessariamente da sua negacao. Desde 0 século XVII que o pensamento, ao distinguir a arte da técnica, afirma a existéncia de um fazer especifico que decorre de um modo de relagao do homem ao mundo que nao € propriamente um agir pois nao se submete a uma finalidade. Ao por em causa a ideia de um sujeito soberano, que se impunha na ciéncia e€ na ética, a referida distingio permitiu-nos conceber para além da vida pratica uma diferente rela¢ao ao real, que Blanchot designou como “relacao de infinita estranheza” (embora as tentativas para identificar 0 excesso que se apresentava para além da consciéncia — Natureza, Deus, Linguagem — tenham apresentado a estranheza como um destino, o que era um modo de a reduzir). Hoje, porém, ha sinais de mudanga, entre os quais a revalotizacio das nogGes de autor e de projecto, que vém situar 0 homem no prolongamento da técnica. A figura de autor 159 que se pretende hoje impor nao é uma copia do génio romantico, glorioso e atormentado pelo excesso da Natureza que o arrebata (0 que nao deixou de ser capitalizado simbolicamente na construcao de figuras lendarias e no culto do herofsmo da extravagincia que se sobrepunha as obras), € sim a figura daquele que pretende produzir ¢ gerir uma obra que, no sendo um dom da natureza, também nao pode escapat ao controlo, ou a dependéncia, de uma inten¢ao que presidiu ao processo de criagao, ou producao. “Criagao” tornou-se em muitos casos sindnimo de “mediatizagao”, “mediagao”’, mediania. Acabar com a estranheza em nome do reforgo da comunidade é 0 lema que faz com que o autor se torne omnipresente em entrevistas, convivios e, sobretudo, opinides. A sua presenca (e em alguns casos a filmagem de arredores varios dos objectos propostos) torna-se impositiva para uma apreciagio que de outro modo seria impossivel. Esta nova ordem artistica centrada na figura do autor corresponde inevitavelmente 4 afirmacao do egocentrismo, a forga mais reactiva do humano, que se manifesta exclusivamente como subordinagio do desejo ao dominio. No seu enquadramento encontramos uma cumplicidade quase perfeita entre um discurso de proveniéncia universitaria e as técnicas de divulgacao ou venda. O primeiro € responsavel 160 por uma mudanga de paradigma, nomeadamente nos estudos literatios, que corresponde, em tragos getais, ao abandono de grandes questées que vieram perturbar o funcionamento das instituicdes legitimadoras, que impunham o critério do gosto enquanto subordinagao a doxa de uma élite conservadora (entenda-se: conservadora dos tragos antiquissimos de uma dominagao simbélica eficaz na estratégia de dominagao do homem pelo homem). Ao ler-se, por exemplo, Critique ef vérité, de Roland Barthes, fica-se esclarecido acerca do poder académico que na Europa até aos anos 60 se colocava como barreira de esmagamento de tudo 0 que fosse estranho a um dado universo de gosto, o qual se impunha a toda a sociedade como 0 gosto. culto que era preciso imitar: as imitagdes auténticas cram as que se integravam perfeitamente na logica desse gosto e por conseguinte o aperfeigoavam, enquanto as imitagoes inauténticas constituiam o Kissch, olhado com sobranceria ou ternura paternalista. O resto, as manifestages que rompiam com a imitaco servil e deixavam irromper a estranheza, s6 podia ser arte degenerada. Sem pretender discutit aqui a complexidade e diversidade dos movimentos modernistas, acho importante sublinhar que, na medida em que foram movimentos (¢ nio 161 vanguardas), insistiram na desfixagio de linguagens, ou seja, no sentir e pensar, que sao gestos de relacio 4 estranheza e nao a novidade. Esses movimentos (que enquanto tais sé podiam coincidir com as obras singulares que lhes constituiam. o devir) retomaram a questao da autonomia da arte, emergente na ultima metade do século passado, para lhe dar uma resposta que a salvaguardasse da armadilha que a envolvia — a de instituir a arte como luxo manipulavel. Quando a sociedade estava pronta para atribuir a arte um lugar de gasto inutil, estava também pronta para anular essa “concessao” através da exploracdo de um novo proveito, o que resultava da conversao da sua existéncia numa nova forma de religiao da arte. Uma religiao sem Deus, isto €, sem valores que funcionassem como. tabuas da Lei, no sentido de conjunto de injunges verbais referidas 4 existéncia, mas fazendo permanecer a Lei como lugar vazio e inacessivel que colocava ao seu servico uma multiddo de sacerdotes incumbidos tanto de fazer respeitar as leis formais, que so cles podiam fazer derivar do vazio da Lei, como de decifrar a linguagem das obras, que apareciam como uma espécie de linguagem privada a que os sacerdotes- -comentadores tinham acesso. Qual foi a resposta a este designio de um novo modo de reconhecimento-anulacaéo da estranheza? Foi mostrar de que sacerdécio se tratava, como 162 cra imenso esse poder imobilista ¢ imobilizante, ¢ como ele ia contra a vida, ao ira favor da homogeneizacio cujo horizonte ultimo éa motte. Foi, por exemplo na literatura, o desencadear de um pensamento que pds em causa a reducio da existéncia aos limites do mundo determinados pelas categorias de sujeito e objecto. O dois, a estranheza: o humano e a técnica Desde que com Hélderlin se tornou evidente que em tudo aquilo a que faz sentido chamar poesia ha um momento de diviséo, ou de afirmacao do dois, a matriz de toda a diferenga, incompativel com quaisquer designios teolégicos, nunca mais a poesia ignorou a condi¢io da sua nao-pertenga (ao autor, 4 comunidade, ou a qualquer outra categoria identitaria), que é a sua condi¢ao de emissaria da estranheza, guardia do enigma como garantia de um mundo em devir. Assim, até certa altura, a literatura do presente século fez da sua relacio ao desconhecido, no sentido do desconhecivel porque nao objectivavel, uma questo que se tornou obsessiva, até ao ponto em que a poesia da poesia (ou a literatura da literatura, tal como a arte da arte) correu o risco da repeticao. 163 Significa isto que a estranheza se converteu em imagem, em tema a tratar, separando-se da experiéncia poética para a qual a questo “‘o que € 0 poema?” (tal como a questao “quem sou euP”) deixou de ser importante. E deixou de o ser porque passou a fazer parte dessa experiéncia sem a urgéncia que teve numa época em que a poesia perdeu (ou abandonou) as figuras inspiradoras tutelares, entre as quais a de um “eu” genial pleno, enfrentou 0 vazio da origem (veja-se “Tabacaria’’). E impossivel escrever hoje como se nao tivesse existido interrogagao do poema no poema (ou a questio “quem sou eu?”), o que quer dizer que nao se pode regressar a um antes dela; o seu abandono corresponde 4 emergéncia de novas formas, outras apresentagGes do real na sua cintilacao significante, na sua estranheza. E impossivel escrever como Fernando Pessoa, mas também é impossivel escrever hoje como antes dele. Com ele ganhou relevo na literatura portuguesa uma escrita em que 0 pensamento tomou como ponto de partida a experiéncia da estranheza do mundo e do fazer poético —a qual aparece quer como a alegria de tocar 0 real incerto, nao-codificado (Alberto Caeiro), quer como a possibilidade de dar, até ao apagamento, a instabilidade da ptoximidade de tudo no dizer (Alvaro de Campos, Bernardo Soares), ou apenas como os vestigios do retirar-se ao caos 164 (Ricardo Reis). A dramatizagio heteronimica corresponde assim a experiéncia de um pensamento que supunha a experiéncia (exaustora, diferente de exaustiva) de fuga a subjectividade ¢ 4 objectividade, bem como a oposi¢io sinceridade/mentira, seu correlato, que constitui a base quer do sentimentalismo, quer do anti-sentimentalismo positivista. Depois de Fernando Pessoa (€ varios outros) tornou- se possivel nao ignorar que o homem é para além da sua sujei¢gao de sujeito, ¢-se impossivelmente na divisio que o outra € que permite que se diga, com S6focles, na Aniigona: “Ha muitas coisas estranhas (espantosas), mas nada ha mais estranho (espantoso) do que o homem”’. Tornou-se possivel nao ignorar a liberdade livre de que fala Rimbaud, a de, tendo abandonado a previsibilidade de um mundo teologicamente comandado, nao se esgotat no pragmatismo e na adaptacao calculadora. Porqué entio hoje ignorar aquilo que é possivel nao ignorar, e que é a base de toda a grandeza do humano? Como € que o pensamento poderia auto-mutilar-se até regressar de novo a uma oposi¢ao entre_o homem e a técnica, agora traduzida pela simetria especular? Admitir que 0 homem domina completamente a técnica é abdicar da estranheza em nome de um ideal de dominio pelo calculo sem falha que é 165 cdpia do poder que atribui a técnica. Abre-se assim a hipotese de uma competi¢éo em que o homem visa superar 0 poder da técnica assimilando-o. A figura do artista passa a ser mais uma figura — como a do tecno-cientista enquanto ideal do senso comum — capaz de usar a técnica impondo um sentido aos seus processos, bastando-lhe para isso a Ideia como programa que sera executado pelos dispositivos tecnoldgicos, de modo preciso, sem falha. Essa instrumentalizacao traz outra vez a reivindicacao de uma fungio social da arte, agora identificada com a sua institucionalizagio. Eo triunfo da légica binaria, em que a certeza exclui o erro, num processo que visa o Um puro. Enquanto poeticamente se mantém a diferenciacio, o conflito, entre 0 humano e a técnica — recusando promover das analogias a semelhanga e, pelo contrario, aprofundando as dissemelhangas — ja na perspectiva técnica, pelo contratio, éa oposi¢ao, enquanto luta, que deve conduzir a supremacia de um dos termos no seu processo de superacio do outro (identificagio do homem 4 técnica), O pensamento nao se identifica com a logica nem, 4 maneira retérica, se desenvolve por analogia com ela. 166 Um excesso de intuigao nao recuperavel Em literatura, como em qualquer arte, a ideia nao pode vir parar o conflito da forma, o seu inacabamento, pois a relagio com os seus objectos nao se subordina a uma “pretensao 4 totalidade absoluta’, sob pena de se ignorar sasurando a liberdade livre. “Uma ideia, / $6 como sangue de problema; / No mais, nao, / Nao me interessa. / Uma ideia / Vale como promessa, / E prometer é arquear / A grande flecha. / O flanco das coisas sé sangrando me comove” (Vitorino Nemésio). No sentido em que a ideia vem como resposta do animo a um excesso da intuicao que perturba a unidade do sujeito, a sua capacidade de representacao, essa resposta é ja identificacéo da liberdade a teologia que salva. Em arte, a falha da representacao nao é 0 sublime mas a estranheza. Trata-se da nao-totalidade. Os objectos artisticos, diferentemente da natureza, tem uma grandeza fisica determindvel e nao tém um poder que nos coloque perante eles como algo temivel. Isso nao significa porém que tenham uma forma limitada, isto é, susceptivel de ser totalmente circunscrita, medida, para 14 da descric¢&o dos seus 167 componentes reconheciveis, uma vez que nos seus limites fisicos se encerra um potencial de significacio permanentemente explosivo. Uma forma ¢ inacabada nfo pela sua grandeza absoluta, nem porque lhe falte alguma coisa para a completar, mas porque nao é estavel, existe em metamorfose nao programada — nao tem uma finalidade exterior nem uma finalidade sem fim, organica; é uma unidade relacional, aberta, nio um Todo. E por isso que também nao lhe convém nem a designagio de “bela” nem a de “monstruosa”, embora lhes seja tangencial (ce belo supée o jogo harmonico entre intuicao e conceito, concretizado na harmonia de uma finalidade sem fim; 0 monstruoso supde um conceito como fim, face ao qual o objecto se revela desadequado). Quanto 4 estranheza, ela corresponde 4 radicalidade do incerto, um excesso de intuicéo que vem perturbar a harmonia de uma forma revelando a sua inadequabilidade — traduzida na quebra da harmonia, ou interrupgio — nao tanto aum conceito nela sugetido como finalidade, mas a qualquer conceito. O pensamento em arte da-se no acolhimento desse inadequavel, motivo pelo qual quer a imposi¢ao da autoridade do autor como origem absoluta do que nao pode nascer senio da multiplicidade intotalizavel da experiéacia, quer a de uma 168 ideia ou conceito ao qual a obra é considerada ajustar-se, ou que se lhe sobreponha, constituem maneiras de abdicar do pensamento poético ou artistico. Na sua pretensa ingenuidade, essa abdicac’o restaura um tipo de domina¢io simbdlica contra © qual frequentemente a arte do passado nos pés de sobreaviso e que, pelo menos desde Baudelaire, se considerou como algo a que aquela, por condi¢ao, se opunha radicalmente. Nao abdicar de pensar Nao abdicar de pensar implica que se recuse 0 automatismo pré-comandado. Implica que se abandone a actual voga de instrumentalizacao da literatura e da arte que consiste em reduzi-las a simples capital simbélico: moeda de troca na cena internacional; restaura¢ao nacional. F isso que faz com que de grande parte das manifestagGes artisticas baste que se saiba que elas se realizaram (também de Deus basta que se saiba que existe). Com efeito, que outro objectivo podera justificar que se gastem milhares de contos em espectaculos artisticos de que ha apenas uma ou duas sessGes? A questao nao éa de haver um orcamento para a cultura que permita o apoio 4 criacio artistica quando tal se justifique — 169 isso parece incontestavel — é sim a da incompatibilidade entre o acolhimento da estranheza, que é um mistétio sem autoridade, divina ou outra, que o sustente, e a total funcionalizacao das suas hipotéticas manifestacdes. Da literatura, diz Blanchot (¢ podemos estender a sua afirmacao as outras artes) que ela “é talvez essencialmente (nao digo unicamente nem manifestamente) poder de contesta¢ao: contestacao do poder estabelecido, contestagao do que é (e do facto de ser), contestagao da linguagem e das formas da linguagem literdria, enfim, contestagao de si propria como poder” (L’Amitié, p.80). Como é que sem pdr em causa uma afirmacio deste tipo, o que ninguém até hoje mostrou que fosse possivel sem anular a literatura como lugar de devir, se pode falar desta como se ela fosse obviamente um capital cultural, ou uma guarda avancada (uma vanguarda) da identificaco cultural? Que os poderes publicos tentem repor a equacio atte=verdade suprema=poder com fins manipuladores compreende-se. Mas nao se pode compreender que quem ame a literatura colabore no seu desaparecimento em nome desta funcao social. Hoje ha quem assinale, por exemplo, que a sombra de Fernando Pessoa a literatura portuguesa é finalmente vendida e clogiada no estrangeiro e considere que isso € um bem. Ora, 170 a nao ser para uma industria absolutamente dominada pelo lucto ou por uma politica cultural que se identifique com a divulgacao, isso em si nao é bom nem mau — é comércio ¢ telagdes publicas, que nao teriam grandes repercussdes se nao fosse o seu prolongamento na constru¢ao de uma imagem da literatura que a equipara a um qualquer produto de consumo, como um bibelot ou um croissant. ‘Temos motivos para nos regozijarmos quando verificamos que se escrevem hoje no mundo, pelo menos na Europa, textos em que o pensamento se enriquece na leitura de Fernando Pessoa, mas nio ha motivo nenhum de regozijo numas simples listas de vendas (e tradugGes associadas), que também nfo entristeceriam ninguém se nao fosse o efeito homogeneizador que a auséncia de pensamento e a retorica lhes confere. Qual pode ser o significado de haver editores de varios paises interessados em autores novos, cada vez mais novos, incluindo portugueses? Numa hipotese “mitica” falar-se-ia do retorno do Minotauro e do consequente retorno da obrigagio de pagar um tributo, como sucedia aos atenienses. Na hipotese mais plausivel, dit-se~4 que o mercado conquistou mais um sector € que a par do turismo cultural ha também uma industria cultural que se apropria do nome “literatura”. Com efeito, o facto de haver um mercado para certos livros portugueses, por exemplo na Europa Central, onde ha grandes tradicdes literarias, nao significa nada, como € Sbvio, em relagao ao valor literario dos livros vendidos. Sera o gosto deles mais importante que o nosso (as discussdes de gostos sio sempre caricatas)? Porqué, se ainda ha pouco acabei de ler no jornal Priblico (24.10.99) que as agressOes anti-semitas aumentaram na Austria depois da “subida da extrema-direita para segunda forca do pais’”? A literatura portuguesa do nosso século nao é sé Fernando Pessoa. Para além dos escritores que actualmente fazem obras de grande imporvincia, lembremos apenas alguns outros, como Vitorino Nemésio, Ruy Belo, Carlos de Oliveira ou Vergilio Ferreira. Nao é de modo nenhum uma literatura fraca, e isso alegra-nos. Nao precisamos de a impingir embrulhando-a em papel colorido que tem a propriedade de a fazer desaparecer. Temos evidentemente que a defender, tanto do esquecimento como da voragem consumista, mas isso s6 se consegue através da escrita e nao da propaganda. A propaganda da literatura entristece porque é um modo de a apagar ¢ de esconder isso sob 0 alarido retérico da repeti¢io de alguns slogans e de algum lirismo por encomenda. O que é que pode ligar a obra de Pessoa — em que o anonimato ou 172 apagamento de identidades sao efeito de um pensamento e de um ritmo de escrita de tal modo fortes no exceder de si ptdprios que este se despedagou sem reconstitui¢ao possivel —a.um romance que convence os editores interessados em convencer os clientes de que € aquilo que eles querem (e provavelmente é)? Nada. As feiras existem, nao ha nada a acrescentar ao seu estatuto de lugares onde se compra e vende e se obtém lucro. E evidente que o mercado recorre a muitos truques e tem mecanismos especificos para vender. Precisa da novidade e da extravagancia, modos da diferenga que nao faz diferenca (pode parecer até que precisa da estranheza, como se vé na moda, por exemplo, mas apenas no sentido de que promete um certo prazer no diferimento do reconhecimento). Como nao tem problemas éticos, 0 mercado aproveita tudo o que possa fazer vendet, o que no caso dos livros vai desde os factos mais ou menos escabrosos da vida dos autores, a sua fotografia, a sua personalidade exemplarmente digna e as prestacdes da sua encenagio do estatuto de autoridade ou irreveréncia, até a caucao de elementos do meio artistico, intelectual, politico, desportivo, etc.. Convém entao esclarecer que um editor que precisa de manter a sua editora a partir das vendas nao é 173 necessariamente alguém que apenas ambicione o lucto. A histéria da edicfo mostra isso, assim como mostra a importancia da estratégia das pequenas edi¢des na salvaguarda da literatura e na resisténcia 4 sua trituracdo consumista (a este propésito, ver Bourdieu, Les régles de Vari. A questo que fica é esta: até que ponto os escritores podem deixar-se aliciar para se colocar 4 frente das respectivas obras, com 0 objectivo de vender, de explicar, ou até mesmo na posicao humilde de quem recebe um tributo de reconhecimento pela obra feita, sem estarem a atentar contra a estranheza para acederem ao Olimpo da dominacao simbdlica? Em 1851, Baudelaire escrevia: “Os prémios académicos, os prémios 4 virtude, as condecoragGes, todos .). Num prémio ha algo que fere o homem ¢ a humanidade ¢ ofusca o pudor da virtude”. Blanchot, num livro publicado em 1971, comenta a puni¢io que representa a atribuicao do prémio estes inventos do diabo, fomentam a hipocrisia Nobel a Sartre por ele (finalmente) ser autor de um livro bem escrito e brilhante: “Como Sartre teve razo ao recusa-lo. Como essa recusa era simples ¢ verdadeira. Um escritor nao pode aceitar distingao, ele nio poderia ser distinguido; e acolher uma tal escolha teria sido aceitar nao somente uma certa forma de cultura e de instituicgdes sociais, mas mais: uma certa 174 concepgio da liberdade, portanto fazer uma escolha politica” (L’amitié, p.77). Hoje, a quem disser que é um atentado 4 dignidade do nome de escritor prestar-se 4 exaltagio enquanto tal pelos poderes instituidos, colaborar no turismo cultural em curso ou exibit-se nas feiras como atraccio na propaganda a literatura nacional, havera quem chame “ressentido”. Digo-o por uma questao de estranheza. Anexo O PROJECTO Ali esta o Professor Pasmolive. Desloca-se para regressar sempre ao mesmo ponto. Tem a sua drbita tragada. “Fui eu que a tracei, escrupulosamente”. E no entanto, ha quanto tempo? Antes das implantac6es nos pulsos? Da voz substituida? Do implante cerebral anti-delirio? “Mas ... antes 175 eu nio existia, pura ¢ simplesmente. Como poderia ser eu, sabendo que a imensa massa de informagio me escapava, que em vez do centro de decisao que agora sou era um ponto perdido por onde passava a energia cadtica do universo? Mas... este dialogo ¢ absurdo. Alguma coisa se desligou. Nao reconheco a preciso das minhas formulas. Num duplo verbal perfeito, que fala varias linguas sem nenhum sotaque, qualquer vislumbre de hesitagao é inadmissivel. S6 as intempéries me fazem falar 4 toa, Ent&o corro 0 risco de retomar a minha voz antiga, uma voz petigosa, cheia de equivocos. Espere ai, nao se v4 embora, ou antes, desapareca: DESAPAREGA! Além do mais, tenho aqui a indicacao de que vocé nao corresponde ao tipo MN, aquele com que sou compativel. Finalmente, parou © vento, consegui recuperar em perfeito bom estado o operador de indiferenga. E certo que nao se tinha desligado pot completo. Se isso tivesse acontecido, eu teria corrido um gtande perigo, pois a intromissaéo da voz arcaica pode ter consequéncias imprevisiveis. Agora, esta tudo controlado. Pode continuar af. Sou um duplo verbal absolutamente perfeito. Parafraseando alguém, poderia dizer que a delicadeza éo meu forte. Ah! a poesia! Da Biblioteca Universal que trago sempre comigo em memoria clectrénica, aquilo que mais aprecio é a poesia, ou 176 melhor, a literatura, Conviver com seres de papel, como em tempos se dizia, enternece-me e exalta-me. Sem cheiros, sem prtoximidade, sem poderem mover-se ou fazer qualquer outra coisa. E podendo no entanto ser tudo como se tivessem olhos e pés e se movessem. B verdadeiramente extraordinirio. Julgo que a perfeigéo comecou quando alguém descobriu que era possivel desfazer-se de quase tudo no mundo e enclausurar- se numa biblioteca. Ficavam s6 os problemas da alimentagao e da higiene, que entretanto para uma parte dos humanos deixaram de ser problemas. Hoje nao precisamos de nos fechar, nem de ler, pensar ou algo parecido; ha programas para tudo, cenarios para todos os gostos, onde se tracam drbitas isentas de qualquer sujidade, pois o sujo s6 existe nas 6rbitas dos nao-computatorizados, os chamados “mais desfavorecidos”. Ignorando essa imensa excrecéncia, toda a gente hoje se limita acalcular exactamente 0 que deve ser ea ter emogées refinadas, ética e esteticamente. E que a tecnologia nao destrdi a emogio. Pelo contrario, permite-me nao s6 chorar e rir nos momentos proprios mas também calcular exactamente como exercer a minha compaixao sem me deixar impressionar pelo que esta proximo. Nao softo com o espectaculo da refugiada que traz as criancas a tiracolo e resmunga talvez injurias e maldicdes porque nao distingue as crengas ¢ os mitos da fome que os 177 exacerba. Ah, mas softo por um povo em guerra ¢ sci manifestar 0 meu sofrimento de modo criativo! Alias, s6 me emociono criativamente. E repare nas intervengoes artisticas de que actualmente somos capazes. Acabo de ouvir 0 projecto de imobilizacao total das aguas do Tejo. Afinal, tio simples, mas nao poderia ter ocorrido antes. $6 depois de muito embrulhar ¢ desembrulhar se poderia chegar com tanto rigor ao calculo exacto que permitiria a monumentalizacio das aguas ¢ com cla a captacao do espirito da comunidade. Um rio que nao corre... forgosamente sublime. E mais, nds prescindimos completamente do rio e de tudo o resto. Basta 0 projecto. O PROJECTO E TUDO, o resto nao é nada. F esta a minha filosofia da vida: para qué rios e montanhas e animais, que serao sempre obstaculos ao principio da deslocacio mais econémica? Nao digo que seja preciso destrui-los. E preciso € adapta-los ao conceito de preservacio. Claro, depois de adaptar 0 conceito adoptado ao fim em vista. Hum... quem € vocé? Ja lhe disse, DESAPARECA! Nada de equivocos: a pureza da lingua nado permite que se diga “adaptar 0 adoptado”; nao é econdmico, nem estético. Voltemos entio ao PROJECT! da cidade de que no dia X, na hora Y, no minuto Z e no : informar-se-4 a populacao segundo K as aguas do Tejo serao imobilizadas. Basta olhar 0 178 ecra de televisio no referido segundo, para que qualquer cidadao — tanto aqueles que sao supostos viver nas condutas de esgotos com agua até aos joelhos, como os que se passeiam pela cidade carregados de malas com roupa velha l4 dentro e com varios caes perdidos por companhia — munido de uns 6culos especiais, possa aceder ao momento emocionante em que o Tejo se identifica com o ecra. A 4gua estar l4, como se nao estivesse, parada. FE uma nova versio da irrepresentabilidade sublime: basta sabermos que ha célculo por isso nada nos molha, nada nos toca. “Nés”, os “‘intelectuais ¢ criadores”, j4 sabemos como tudo se vai passar, nao precisamos de olhar o ecra. Mas o importante é a ligacio da arte 4 comunidade, a dimensado democratica do evento — a distribuigao de 6culos aos sem-abrigo, aos idosos, aos doentes, aos jovens, aos homossexuais, as mulheres e até aos cegos. O Tejo sera igual para todos pois todos tém direito a igualdade: a ficar pasmado e aplaudir. S6 os muito ignorantes, os membros das classes muito baixas, é que ousarao dizer “nao se vé nada”. Mas tenciona-se distribuir uns alimentos, uns chocolates, digamos assim, que lhes inibam © riso, para que nao perturbem a verdadeira fruicao. Ja estamos definitivamente imunizados contra a presenga, mas 0 sabermos que alguém pode estar fora dos 179 beneficios da cultura déi-nos como haver chuva, parafraseando Fernando Pessoa”. O Professor Pasmolive desviou-se da rota. Atras dele vejo uma algazarra de fantasmas: criancas e cies que correm. O tiso mistura-se ao ladrar. A terra abre uma brecha. Ha fogo no interior. Nao ha nenhuma camara para filmar. A unica testemunha é uma louca que ira contar como o sol se fez azul e havia pissaros que atravessavam o fogo. “Softo de alergias varias, diz ela, o meu corpo rejeitou sempre os implantes, obrigou-me a viver afastada. Nao me surpreende o haver surpresa, apenas 0 surpreendente, nao o haver fogo, mas a maneira de arder’’. Aqui estamos, sem céu nem inferno, entre guarda-chuvas. Olhou a volta. Lembrou-se. Entao desatou a corter e viu os pinheiros curvarem- se na sua frente. Afastou a custo os ramos e limpou o sangue que lhe escorria do rosto. Alguém dizia alguma coisa 14 muito 180. ao longe. As pedras rolavam debaixo dos seus pés aumentando a sensacio de desequilibrio e a velocidade. Continuou a correr até chegar ao vale onde espetou o anoitecer e a proximidade das vozes. Deitada sobre 0 escuro e os vestigios de outros tempos sentia crescer do seu sono um turbilhao de ervas, passaros nocturnos ¢ palavras: uma paisagem estranha em que tudo significava sem que houvesse qualquer significado certo pois crescer, voar, sugetir, eram transformacdes de memérias onde havia sinais de extingGes varias; de estrelas, de florestas, de animais, de sopros. 181

Вам также может понравиться