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INSTITUTO DE LETRAS
PORTO ALEGRE
2015
MARINA BONATTO MALKA
PORTO ALEGRE
2015
AGRADECIMENTOS
1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 8
2 VINÍCIUS ................................................................................................................. 13
2.1 VINICIUS E SEU ORFEU ......................................................................................... 17
2.2 ANÁLISE FORMAL DA PEÇA ORFEU DA CONCEIÇÃO ..................................... 19
2.3 IDENTIDADE BRASILEIRA MODERNA EM ORFEU DA CONCEIÇÃO .............. 28
3 CAMUS ................................................................................................................... 34
3.1 CAMUS E SEU ORPHÉE ......................................................................................... 35
3.2 ANÁLISE FORMAL DO FILME ORFEU NEGRO ................................................... 40
3.3 IDENTIDADE BRASILEIRA MODERNA EM ORFEU NEGRO ............................. 44
4 CONCLUSÃO .......................................................................................................... 51
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 54
8
1 INTRODUÇÃO
1
Na obra de Brandão (1987, p. 145) é explicita a simbologia das direções na cultura grega: “É assim que
olhar para a frente é desvendar o futuro e possibilitar a revelação; para a direita é descobrir o bem, o
progresso; para a esquerda é o encontro do mal, do caos, das trevas; para trás é o regresso ao
passado, às hamartiai [erros cometidos pelo personagem de uma tragédia], às faltas, aos erros, é a
renúncia ao espírito e à verdade.”
9
Vinicius traduziu sua peça Orfeu da Conceição para que Marcel Camus
se baseasse nela para escrever o roteiro de Orphée Noir. O filme ganhou
vários prêmios, como a Palma de Ouro, no mesmo ano, o Globo de Ouro de
melhor filme estrangeiro e o Oscar de melhor filme estrangeiro, no ano
seguinte. Entretanto, quando Vinicius assistiu ao filme em primeira mão, ao
lado do atual presidente Juscelino Kubitschek, ficou tão desgostoso que não
suportou terminar de assisti-lo (COHEN & CAMPOS, 2007, p. 150). Essa
rejeição ao filme estaria relacionada às grandes mudanças que Marcel Camus
fez ao filmar a peça de Vinicius, pecando ao exagerar na definição de certa
identidade brasileira para o resto do mundo, pautada na alegria, no samba, na
lubricidade, e limitando o Brasil ao carnaval.
uma cultura própria. Entretanto, sob um olhar mundial, o Brasil possui uma
cultura muito forte: a do carnaval, da mulata e do samba.
Vinícius de Moraes teve seus estudos nos anos 30, quando nasce o
ensaísmo brasileiro moderno, que tem como foco dar novas formas e matizes à
identidade brasileira. Ou seja, a formação do poeta é feita no seio do
modernismo. Na esteira do Estado Novo, pensava-se numa identidade
brasileira mestiça, a partir da ligação do branco e do negro, eventualmente do
índio. Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre (1933) e Raízes do Brasil, de
Sérgio Buarque de Hollanda (1936) foram obras que fortemente influenciaram
Vinícius nessa busca da representação da identidade brasileira em Orfeu da
Conceição.
pelo brasileiro a difícil tarefa de ter sua própria cultura e é a partir das
demonstrações culturais como a literatura e a música que se criam o perfil do
“cidadão brasileiro”. Cabe à definição de quem criou o perfil e para quem ele foi
criado, que é central para a resolução do que caracteriza o povo brasileiro nos
meados dos anos 50, década de várias mudanças e progressos. Figuras como
Carmen Miranda e Zé Carioca – a cantora com frutas equilibradas na cabeça e
o papagaio malandro e carioca – exteriorizaram um Brasil exótico “para gringo
ver” nos anos 40, um país que há não muito tempo era colônia de Portugal. E é
exatamente isso que a onda desenvolvimentista de Juscelino desejava
combater.
2 VINÍCIUS
2
http://www.viniciusdemoraes.com.br/, visitado em: 09/11/2014.
14
Famoso pela vida boêmia e pelas paixões arrebatadoras (ao todo, ele
teve nove esposas e cinco filhos), Vinicius encantou (e ainda encanta) várias
gerações com suas composições: “Se todos fossem iguais a você” (1956), “Eu
sei que vou te amar” (1958) e “Chega de Saudade” (1958) 3 . Esta última,
composição de Vinícius de Moraes e Tom Jobim, foi o primeiro samba gravado
reconhecido como Bossa Nova, tornando Vinicius de Moraes um dos pais
desse movimento deflagrado no país. Segundo o testemunho de Chico
Buarque no documentário Meu Caro Amigo (2005), dirigido por Roberto de
Oliveira:
3
http://www.discosdobrasil.com.br/discosdobrasil/indice.htm visitado em 23/11/2014. Levei em
consideração a primeira aparição em um álbum para a data da composição da canção.
15
Janeiro já com composições musicais prontas para seu futuro álbum com
Vinicius.
4
Vinicius não especifica no livro onde se localiza o Clube Maiorais do Inferno, se é no morro ou na
cidade. Entretanto, se nos basearmos no filme de Camus, o Clube localiza-se no morro.
18
5
É interessante pensar que a obra não possui dimensões, pois primeiramente a Dama Negra é só um
sonho, e depois ela aparece para alguns personagens.
19
matarem Orfeu. A Dama Negra cobre Orfeu com seu manto e desaparece. Fim
da peça.
Orfeu da Conceição está longe de ser uma das obras mais famosas de
Vinicius, levando em consideração sua parte musical e poética. Difícil dizer se
pelos problemas formais, pela dificuldade de acesso a obras literárias na época
ou problemas ainda hoje vividos pelo consumo da literatura dramática no
Brasil. O prestígio da obra é mais ligado ao filme Orphée Noir, que foi muito
difundido nos anos 50 e fortemente premiado no exterior, e pela exibição da
obra no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
6
http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/teatro/pecas. Acesso em: 10/06/2015
20
7
http://www.nelsonrodrigues.com.br/site/sobre.php. Acesso em: 15/06/2015
8
https://teatropolitico60.wordpress.com/category/entrevistas/ acesso em: 15/06/2015
21
9
Após Tom ser apresentado a obra e convidado a participar do repertório, ele fala sua célebre frase:
“Tem dinheirinho nisso aí?”. Ou seja, nesse momento da vida de Tom Jobim, o lado financeiro falava
mais alto que o sucesso.
10
A adaptação de Viot da obra de Vinicius de Moraes para o filme Orphée Noir será discutida no capítulo
3.
22
11
É imprescindível ressaltar o seguinte questionamento na fala de Vinicius: foi só pelo prestígio de seu
nome ou pelo reconhecimento da necessidade da causa?
23
se comoverem com a loucura de Clio do que a triste busca de Orfeu pela sua
amada. Essa mudança está de acordo com a fase que Vinicius passava em
sua vida: cancionista, boêmio e fortemente influenciado pela cultura negra. O
movimento de transação de protagonismo causa estranhamento no leitor, pois
no último ato, em seu desfecho, a figura de Orfeu é ofuscada pela loucura de
sua mãe, motivada, possivelmente, por relações edipianas entre os dois. Na
peça é pouco traçado o psicológico das personagens, menos o da mãe de
Orfeu, que dialoga bastante com seu filho no primeiro ato e ganha
protagonismo no último ato, ao enlouquecer.
12
http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/teatro/orfeu-da-conceicao visitado em: 26/11/2014
25
Difícil imaginar que não haja qualquer ligação entre Nelson Rodrigues e
Vinícius, observando-se que, a partir de O Teatro Moderno Brasileiro (PRADO,
2007), Nelson Rodrigues apresenta afinidades com a tragédia grega, tanto pela
forma quanto pelo conteúdo, principalmente no que tange
ao incesto. Nas obras de Nelson Rodrigues, o incesto é mais evidente.
13
A partir daqui, todas as citações serão retiradas da mesma edição da peça, MORAES, 2013.
27
Orfeu, por sua vez, não se mostra tão fiel a essa tradição, muitas vezes
afirmando à amada suas intenções. Eurídice ainda demonstra a angústia de
corromper a tradição do casamento: “Mas depois, não vai cansar de mim?” e
ele responde “Depois, vai ser um só – nunca mais dois: Eurídice e Orfeu.” (p.
47). Ou seja, a preocupação de Eurídice é mais saliente no nível sentimental
do que social. O medo de perder o encanto da noite de núpcias a incomoda.
Ela decide seguir os seus anseios e se entrega a Orfeu. É possível ver a
sombra da Dama Negra observando o casal em sua noite de amor, prestes a
contar a Aristeu que Eurídice estava morta, fazendo com que ele tenha vontade
de matá-la com as próprias mãos e ir a sua procura. É difícil não concluir que a
morte de Eurídice tenha a ver com o fato de ter consumado o ato antes do
casamento. A morte serve como punição para mulheres que se deixaram levar
pelo desejo carnal antes do casamento e ao mesmo tempo uma libertação
desse pecado. Esse desfecho se aproxima do primeiro período da literatura de
Vinicius conservador e reacionário, mais próximo do Vinicius de Forma e
Exegese do que do Vinicius do Os Afro Sambas.
14
É possível afirmar que, para a maioria das pessoas, Vinicius é considerado um poeta
machista. Pelas minhas leituras do poeta e pelo conhecimento que adquiri de sua biografia,
concordo parcialmente dessa afirmação. Sim, em alguns momentos, como os citados acima,
Vinicius se mostra idealizador da mulher perfeita e que vive para se relacionar amorosamente.
Em Orfeu da Conceição, a violência de Orfeu contra Mira é agonizante, e na peça é tratada
com naturalidade. E não, pois Vinicius é, sobretudo, um amante e admirador das mulheres,
relacionou-se com inúmeras e, a partir de sua arte, demonstrava seu amor a elas.
29
dos trambiques, o que causou certa orfandade social, de acordo com o autor. O
malandro
15
Sua adaptação ao cinema, dirigida por Anselmo Duarte em 1962, ganhará a Palma de Ouro do Festival
de Cannes de 1962.
16
Padre: “A igreja é a casa de Deus. Candomblé é o culto ao diabo!” (GOMES, 1962, p. 52)
33
17
O filme é analisado no segundo capítulo e a comparação entre as duas obras é feita na conclusão
desse trabalho.
34
3 CAMUS
18
É irônica a situação de Camus: ao contrário de Orfeu, ele troca Eurídice por Mira. Ele troca o “anjo”
pelo “demônio”, se levarmos em consideração o filme.
19
Não achei o nome correspondente do filme em português, ou seja, essa é uma tradução minha de
“Vivre La Nuit”.
20
Não achei o nome correspondente do filme em português, ou seja, essa é uma tradução minha de
“Molière pour rire et por pleurer”
35
Amado. Esse é um dos últimos trabalhos da carreira de Camus. Ele morre aos
69 anos (1982) e está enterrado no famoso cemitério parisiense Père-Lachaise.
21
As informações foram extraídas do site:
http://cinema.encyclopedie.personnalites.bifi.fr/index.php?pk=13743 acesso: 12/06/2015
22
O nome de Hermes, personagem que aparece apenas no filme de Camus, segue um padrão do filme
de nomear personagens fazendo referência a divindades gregas. Segundo BRANDÃO (1986, p.72):
”Hermes, deus dos pastores, protetor dos rebanhos, é a divindade por excelência da sociedade
campônia aqueia. Pois bem, enriquecido pelo mito cretense, Hermes tornou-se mais que nunca o
"companheiro do homem". Deus da pedra sepulcral, do umbral, do hérmaion e das "hermas", guardião
dos caminhos, protetor dos viajantes, cada transeunte lançava uma pedra, formando um hérmaion,
literalmente, lucro inesperado, descoberta feliz, proporcionados por Hermes e, assim, para se obterem
"bons lucros" ou agradecer o recebido, se formavam verdadeiros montes de pedra à beira dos
caminhos.”
36
a casa de sua prima. Mira vai até o encontro de Orfeu no final da linha,
chamando sua atenção aos berros. Mira é namorada de Orfeu, uma mulata de
corpo esbelto e de forte personalidade. Após o recebimento da remuneração
de Orfeu, eles se dirigem ao cartório23 para registrar sua união. Ao registrar os
nomes, o tabelião pergunta se o nome de Mira é Eurídice, pois, segundo a
lenda, Orfeu ama Eurídice. Mira não gosta do comentário do tabelião. Eles
saem do cartório e Orfeu dirige-se a uma loja de penhores para recuperar seu
violão enquanto Mira compra as alianças.
cantava [...] Mas que era da melodia delas que eu gostava”, confirmando sua
lembrança e a saudade da história que Orfeu contou. Ele pede perdão e ficam
juntos, até que Zeca e Benedito chamam Orfeu para ir para o ensaio da escola
de samba Unidos da Babilônia. Ele a convida para o ensaio e ela aceita o
convite.
26
Uma leitura possível é a de que haja uma referência à célebre tópica de jogar com a morte, que está,
por exemplo, no xadrez em O Sétimo Selo (1956) de Ingmar Bergman. Aqui, ao invés de se jogar xadrez,
se joga capoeira com a morte.
27
Comentário sobre essa cena na página 48 desse capítulo.
38
desaparecidos só existem papéis, como indica o faxineiro de lá. Ele diz para
Orfeu acompanhá-lo para achar Eurídice.
vários aspectos problemáticos, é importante lembrar que ele foi um filme muito
premiado e aplaudido pelo público. Na próxima seção, vamos apresentar
alguns aspectos que depõem sobre a excelência do filme, bem como apontar
algumas cenas que parecem apresentar fraturas à forma fílmica.
parte musical foi uma das mais bem sucedidas do filme, pois é diversificada e
legítima, internacionalizando a música popular brasileira.28
Um aspecto do filme que para a maioria das pessoas é desagradável –
principalmente para brasileiros – é responsável por outro dos reconhecidos
méritos do filme: a montagem e a direção, que escolhem sempre mostrar a
paisagem e uma exuberância meio exótica do mundo representado. O filme se
passa no Rio de Janeiro, a cidade do carnaval e durante o período de carnaval.
Cenas de pessoas dançando durante vários minutos são interessantes para um
filme que deseja mostrar uma cultura brasileira a partir dele, o problema é que
são exageradas e dão a impressão de que o Brasil resume-se ao carnaval,
com uma população de riso fácil e vida – economicamente – difícil. Os três
momentos que possuem maior gravação de pessoas pulando carnaval são
quando Eurídice chega à cidade, durante o ensaio da escola de samba e
durante a apresentação da escola Unidos da Babilônia. Antonio Moniz Vianna,
diretor da cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, afirma que
“a câmera de Marcel Camus sempre desvia do seu objeto para mostrar uma
curiosidade turística ao público francês.” (1997, p. 179 apud FLÉCHET, 2009)
Ou seja, algumas vezes ele foge da história de amor de Orfeu e Eurídice para
focar em cenas de puro estereótipo brasileiro, cenas intermináveis de foliões
aproveitando o carnaval.
Outra perspectiva interessante na gravação é o enfoque da câmera no
corpo de Mira, uma “verdadeira” mulher brasileira, de corpo farto e com
adoração por sambar. Diferente de Eurídice, mulher angelical, bela e casta, a
câmera foca seu rosto e seu corpo por inteiro, na sua leveza ao dançar. É a
partir dessas imagens da mulher brasileira que se constroem estereótipos. A
mulher brasileira é aquela que vai à praia todo o dia, ou seja, ela deve ter um
corpo esbelto (e ao mesmo tempo com curvas sinuosas) e bronzeado do sol,
como a personagem de “Garota de Ipanema” ou como uma passista de samba.
Mira é a verdadeira mulher brasileira e Eurídice é uma mulher brasileira mais
europeizada, cândida, cordata, tímida, de modos. A objetificação da mulher
brasileira contribui para a definição de uma mulher proveniente de um país
subdesenvolvido, de beleza estonteante, que passa o dia a sambar e a desfilar
28
As informações desse parágrafo foram extraídas de FLÉCHET, 2009.
44
29
O título e os trechos desse artigo são traduções minhas.
30
Esse parágrafo foi escrito a partir das reflexões de FLÉCHET, 2008.
46
é a cultura brasileira. Orfeu Negro foi denunciado por vários brasileiros e até
mesmo pelos franceses que vieram ao Brasil para comprovar a única cultura do
carnaval e decepcionaram-se ao ver um país em desenvolvimento e pouco
diferente da realidade europeia no que tange às qualidades apresentadas no
filme. Esse exotismo encontrado no filme é o que o Cinema Novo tenta evitar
tanto na estética quanto na ideologia, de acordo com o ensaio de Walter da
Silveira em “Orfeu do Carnaval: um filme estrangeiro” (1966, p. 107 apud
FLÉCHET, 2009), Tom Jobim e Vinicius de Moraes rejeitam o filme, alegando
ser muito comercial e com pouco valor artístico. Caetano Veloso argumentou
para o jornal The New York Times em 2000 da mesma maneira que Vinicius e
Tom, alegando que Orfeu Negro é “macumba para turista”.
Ao cabo, o filme teve recepção ambígua: a internacionalização da
cultura brasileira e a caricaturização da cultura brasileira. A obra foi importante
para a visualização do Brasil em um contexto mundial, incentivando produções
literárias de escritores como Lévi Strauss (Tristes Tropiques, 1955) e Roger
Bastide (Brésil, Terre de Contrastes, 1957) e traduções de importantes
escritores da literatura brasileira, como Gilberto Freyre (Casa-grande &
Senzala, 1933) e diversos livros de Jorge Amado31, que a partir das suas obras
expõe o nordeste brasileiro. O interesse da França pelo Brasil foi fortalecido no
período pós-guerra e também após o filme Orfeu Negro, a procura de uma
distração exótica e tropical, levando a expansão das relações franco-
brasileiras. Até hoje permanece o vínculo literário entre os dois países, levando
em consideração que o Brasil foi o único país homenageado duas vezes no
Salão do Livro de Paris (em 1998 e 2015).
Abrindo parênteses, no final dos anos 1990, Cacá Diegues fez uma
versão moderna de Orfeu da Conceição, sendo mais fiel à obra de Vinicius que
Camus, mesmo que adaptada para o Brasil do final do século XX. A decisão de
filmar outra versão de Orfeu da Conceição foi, segundo o autor, por causa de
sua indignação com a adaptação de Camus aos cinemas. Depois de 40 anos
da obra de Camus, Cacá filmou Orfeu (1999), tendo como Orfeu o cantor Toni
Garrido e como Eurídice a atriz Patrícia França. O filme não fez tanto sucesso
como Orfeu Negro, provavelmente porque o Brasil já era um país mais
31
Em FLÉCHET, 2008.
47
32
Já Vinicius, em Orfeu da Conceição, localiza o inferno na escola de Samba Unidos da
Babilônia. No capítulo anterior é discutida a relação de Vinicius com a religião afro-brasileira.
48
33
É difícil alegar que a figura do malandro é exclusiva ao povo brasileiro: “Marcel Camus foi acusado de
roubar para si o sucesso do filme, de não reconhecer os direitos autorais dos artistas brasileiros e de
confiscar todo o dinheiro e a glória da Palma de Ouro.” (FLÉCHET, 2009, p. 49)
34
Sobrenome curioso de Chico, pois no Brasil existe a Lenda do Boto Cor de Rosa, que sai das águas para
seduzir as mulheres em noite de festa. Ele se transforma em um homem bonito e de vestimenta branca.
Bom, Chico Boto é marinheiro, ou seja, vive no mar e usa vestimenta branca. Além de seduzir de ter
noites de “brincadeira” esporádicas com Serafina.
49
explica que não é seu marido, mas que eles se gostam. Depois do ensaio da
escola de samba, Serafina retorna a sua casa e Chico está a sua espera. Eles
passam a noite inteira brincando de se esconder até começarem o ato sexual.
A representação de brincadeira erótica e violenta já tinha aparecido em
obra de referência da moderna identidade brasileira: Macunaíma (1928), de
Mario de Andrade. Quando criança, Macunaíma era conhecido por colocar a
mão nas “graças” das mulheres. Após uma volta da floresta com a cunhada
Sofará, ele transformou-se em um homem bonito e ”brincaram” muito. “Quando
voltaram pra maloca a moça parecia muito fatigada de tanto carregar piá nas
costas. Era que o herói tinha brincado muito com ela.”(p.3) Sem esquecer da
adaptação ao cinema de Macunaíma (1969), do diretor Joaquim Pedro de
Andrade, obra mais próxima temporalmente do filme analisado. A partir da
encenação de Grande Otelo, a malícia de Macunaíma é mais evidente quando
criança. Na mesma cena anteriormente referida no livro, ao retornar do mato na
cacunda de Sofará, ela alega seu cansaço ao marido porque “Esse menino
brincou tanto comigo!”. A utilização do verbo “brincar” de Macunaíma e Sofará
foi mesma para a relação entre Serafina e Chico Boto.
A partir dessas cenas de Orfeu Negro é visível o pouco apego ao
relacionamento sério da mulher brasileira, ela não exige compromisso,
somente prazer quando o homem que vem de longe faz uma visita a ela. Ela é
disponível sexualmente aos homens, deixando-se levar pelos instintos e não se
importando com os padrões da sociedade. Diferentemente de Eurídice, moça
proveniente do interior e não habituada com a vida na metrópole, ela acredita
que um relacionamento se baseia em firmar compromisso entre os dois e
diante à sociedade. O caso de Mira é diferente, pois ao mesmo tempo em que
é – assim como Serafina – um estereótipo de mulher brasileira, mulata e de
corpo “violão”, deseja noivar com Orfeu porque ele possui fama de
“mulherengo” e esse fato gera insegurança a Mira. Ela precisa controlar os
passos de Orfeu, ela sabe que com qualquer deslize Orfeu pode escapar de
suas mãos e ir correndo aos braços de outra mulher. Mesmo noivando no
cartório, o compromisso não impede Orfeu de ter um caso com Eurídice,
desvalorizando todo o esforço de Mira de ter Orfeu só para si. O filme não
mostra a imagem típica do malandro brasileiro, apenas é possível o construir a
partir de atitudes dos personagens, como o fato de Orfeu ser conquistador e ter
50
4 CONCLUSÃO
35
Em Orfeu da Conceição, Mira é ex-namorada de Orfeu. Já em Orfeu Negro, Mira é atual namorada de
Orfeu, eles até mesmo noivam no carnaval, o que torna Eurídice um caso extraconjugal.
52
36
O ator que representou Orfeu nos cinemas, Breno Mello, era jogador de futebol.
37
É interessante pensar que Orfeu Negro foi a segundo registro (gravando em imagem) das escolas de
samba, ou seja, foi necessário um diretor de cinema francês interessado no Brasil para filmar a nossa
cultura do carnaval e exportá-la.
53
atual, por exemplo, o estouro que foi o filme Tropa de Elite em escala nacional
e mundial.
Sendo ou não sendo descontínua e estereotipada, Orfeu da Conceição e
Orphée Noir, respectivamente, são obras que colocam em pauta a brasilidade
em uma época importante na história do Brasil e da França, no
desenvolvimentismo e no pós-guerra, cada uma de uma maneira diferente e
interessante de analisar. Vinicius de Moraes e Marcel Camus anteciparam para
o mundo (um em menor e outro em maior escala em suas obras) a evolução e
a importância que o Brasil teria em esfera mundial, localizando-se entre as dez
maiores economias do mundo atualmente, mas ainda considerado um país de
“outros” em relação ao centro do sistema.
54
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FARIA JR., M. Vinicius. Globo Filmes, 1001 Filmes. 142 min. Brasil.
FREYRE, G. Casa Grande & Senzala. São Paulo, SP: Global, 2003.
MENARD, R. Mitologia Greco Romana. São Paulo, SP: Opus Editora, 1991.
Sites: