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JOSE MANUEL HELENO AGUSTINA BESSA-LUIS: A PAIXAO DA INCERTEZA x DEAMBULAGAO, FIGURAS, REPETIGAO. O Manto (1961) inicia-se com uma referéncia a Job, a personagem biblica. Depois, (p. 10) 0 narrador muda abruptamente de tema e comega por nos dizer: «A cidade em que vivemos é a cidade que ‘mais se ignorae. Aquilo que inicialmente parecia constituir a historia do romance é abandonado para, muitas paginas depois, reaparecer (p. 76), mesmo que seja agora a figura do capitio Josué, filho de Job, a ser objecto de narragio. Dir-se-4 uma vez mais que a prosa de Agustina Bessa-Luis tem um efeito ramificador;efeito rizoma na medida em que basta pegar num objecto, num acontecimento ou personagem, para que iniimeros veios se ramifiquem indefinidamente. Assim, depois de Job, fala-se num erapaz que estuda» (Filipe), na sua irma, Puri- nha, em Lourenga, no pai desta, Alvaro Teles, e na mae, Manuela, para de novo se referir a Lourenga ¢ a Angelo, o seu pretendente, antes de se regressar ao tema inicial, isto é, a Job. [As descrigdes tém entao por pélo uma personagem, alguém de quem se diz alguma coisa ¢ com quem se relacionam outras, descrigdes. Porém, Agustina jamais abandona esse efeito ramificador aque torna os seus livros tio peculiares, designadamente pelo modo como caracteriza as personagens. Na verdade, Agustina Bessa~ “Luis pega nas personagens por dentro no sc limitando a fazer uma descrigao casual, antes agarrando 0 mais intimo de um ser, aquilo que, amidide, ele mesmo desconhece. A estranheza reside nessa maneita de falar por dentro das personagens, como se entrasse dentro delas e nos descrevesse © que poderiamos designar como 103 a sua intimidade, uma espécie de emetafisicay. Em face disto, pode haver muitos leitores que nao consigam resistir. E que em vez de nos descrever as personagens pelo lado de fora, a autora prefere dizer outras coisas, evitando as complacéncias com qualquer tipo de futilidade, E também isso, aliés, que pode tornar a inttiga fragil ¢ desnecessiria, como se a emetafisicar dos seres tivesse literatura quanto baste. O mundo possivel que Agustina nos oferece nos seus romances nunca deixa de se relacionar com este interior dos seres, Trata-se de uma outra maneira de falar nos individuos e de mostrar aquilo que possuem de irredutivel. A sucessio de mundos corresponde entio a vivéncia de sinterioridades», ao modo como estas se ofe- recem aos leitores, obrigando-os a prestar aten¢io 4 dobra dos setes, quer dizer, ao verso ¢ reverso de cada um de nés. Se Agus tina insiste tanto na relagio inteligéncia/beleza a0 longo dos seus romances, é porque tal corresponde a uma necessidade de ver mais, de espreitar para dentro dos individuos. Por exemplo: Gra- cia, a irma de Lourenca, é sestipida e muito bonita» (p. 50). Se bem que as personagens inteligentes nio tenham que ser feias, € frequente existir nos romances de Agustina uma relagio entre estupidez e beleza. Mas sera por mero acaso que O Manto nio esta dividido em capitulos? Como outros textos de Agustina, 0 efeito deambu- latério mostra o paradoxo maior da literatura: o facto de, a0 ser ficgdo, poder conter qualquer caracter, qualquer personalidade, Agustina atém-se as pessoas, entra pelo mundo delas ¢ perde-se nele nio sem alguma crueldade. O efeito deambulatério significa entio esta maneira de vaguear que nio & de maneira nenhuma sinénimo de cumplicidade com o frivolo ¢ o fiitil. Em vez disso, entra dentro dos seres, demora-se neles e afasta-se apenas quando outro «interior» a solicita. Indimeros dos seus romances poderiam muito bem nio estar subdivididos em capitulos.Em O Manto nio hi de temporais ou expaciais; tudo flui e nem damos pela passagem do tempo. Hi Filipe e a sua paralisia progressiva, alguém que «perso- nificava a criatura humana no mais dramitico da sua consciéncia» continuidades 104 (p. 104). Ha Lourenga, uma jovem rapariga que se prepara para casar, mas sem os sobressaltos amorosos ou a paixdo que é habi- tual sentir-se. Em vez disso, 0 amor de Lourenga & para Filipe, pois ele foi o ‘nico «capaz de The pesar na almar. Manuela, por seu lado, mantém ao longo da narrativa uma pose teatral, de alguém que esté contaminada pelo virus do «sentimento piiblico», isto é, alguém que faz do quotidiano um gesto estudado, que aposta no parecer, como é proprio dos saldes de provincia e de uma burguesia inculta. O seu desinteresse pelas filhas — Gracia ¢ Lourenga ~ é apenas a consequéncia desse teatro. ‘A verdade € que hi um desencontro cruel a percorrer as p: ginas de © Manto. Sem nada haver de «existencialistar, parece, no entanto, que ha uma auséncia de sagrado, uma perda que se faz sentir em cada uma das personagens. E nio apenas as que foram jf citadas; também o capitio Marcelo, Alvaro Teles, Pura, etc. "Agustina escreve como se divagasse, sem saber muito bem onde se quer fixar, o que acaba por realgar o tal efeito deambulatério. Parece que a escritora esti a espera que uma das personagens a cative e, enquanto isso nio sucede, vagueia por entre elas como se de fantasmas se tratasse. E por isso que, de certo modo, os romances de Agustina pouco nos dizem, como se reduzissem a intriga a uma espécie de grau zero. Os romances fazem-se com palavras e com tudo aquilo que elas prometem sem jamais pode- rem alcangar. Aliés, nio era precisamente isso que o narrador de O Manto queria dizer no firn da sua histéria? «Bis como se termina um livro — deixando sempre alguma coisa por dizer» (p.294).Ou entio, como se diz no Ultimo parigrafo d'A Quinta-Esséncia: «Numa historia em que as charadas nio sio resolvidas nem os mistérios sio compreendidos,s6 podemos dizer,como Cao Xuegin no fim de cada capitulo dO Sonho no Pavilhdo Vermelho: ‘Quem quiser saber 0 que se segue, nio tem senio que remeter-se as explicagdes da proxima narragio’» (p. 374), Contudo, hd coisas suficientemente enigmiticas que parecem_ compreensiveis se as situarmos num espago mitico. Por exem- plo: qual o significado de Job e dos seus familiares em O Manto? 105 A terceira e itima vez que se fala nele (cf. pp. 224 e segs.) para relatar uma historia de amor que envolve a sua filha. Porém, que tem isso a ver com Gracia ou Lourenga, com Alvaro Teles ou Camilo? A narradora diz-nos no fim deste episddio: (Mas nio sei porque conto estas coisas. Ai, ai, quem me manda a mim con- tar escas coisas!%» (p. 229). Nada ha que justifique contar estas coisas, a nio ser a meméria do amor. E que se é verdade que o romance é um «perfodo excessivo» entre «duas fidelidades — a do temperamento e o da circunstincia» (p. 278), 86 0 amor permite contar aquilo que, por ser amor, se torna meméria dele. Sabemos bem como O Manto se esforga nas paginas finais por distinguir o «contador de histérias» do «romancistav ~ retomando assim a reflexio de W. Benjamin em «O Narrador».«E 0 contador de historias ~ pego perdio ~ nao é um romancista. Lembra-se ~ no constr6iv (p. 293).Se 0 contador de hist6rias tem o privilé- gio de possuir a meméria do amor é isso mesmo que lhe permite contar uma historia, Sem a meméria do amor ele jamais poderia fazé-lo, No entanto, esta lembranga nao faz dele um romancista, L {4 que este diltimo tem forgosamente de «construi. ‘Que pretenders Agustina — ou 0 narrador de © Manto com estas reflexes? Provavelmente, dizer-nos que a meméria é, além | de cuma das grandes pedras base da tragédia» (p. 290), 0 proprio | sentido do amor, pois a ele compete fixar 0s acontecimentos que se transformario em relatos. Mas se 0 contador de historias no pode existir sem a meméria do amor, que diremos do romancista? Agustina nada nos diz sobre o assunto, mas pensamos no errar se dissermos que aquilo que o romancista tem a mais é a capacidade de construir a partir da meméria do amor. E que — ¢ de forma paradoxal -, «de todas as coisas, a menos susceptivel de se comu- nicar € 0 amor; mas a fé no amor, essa age sempre como um conhecimento acessivel a todos os homens» (p. 291). E na pagina seguinte: «Sim, o amor é uma coisa que bem poucos podem expe- rimentar». O contador de histérias relata as suas hist6rias porque vive esse mistério, feito da incapacidade em comunicar o proprio amor, Se assim no fosse nio sentiria necessidade de as relatar. Também o romancista vive tragicamente esta impossibilidade, € 106 6 isso que o impele a construir hist6rias. Ambos ~ 0 contador de historias ¢ o romancista — sabem que «apenas a meméria do amor znos resta para tornar a vida amivel e contagiosa® (p. 292). © que ha de extraordinario nas paginas finais de O Manto, para além da reflexio que Agustina nos oferece sobre 0 romance ea literatura, é 0 anunciar de uma convicgio que nio deixa de se repetir na sua vida literdria. E talvez mio seja menos verdade que tudo aquilo que se diz ai sobre a vida se repita em todos os seus romances, «E, depois, a vida é como um manto em que se arras- tam todas as fiirias e ternuras do mundo, e que deixa ficar por toda a parte alguma coisa do seu calor € do seu peso» (p. 289) E ainda: «Nio se Ié nem se escreve © manto; ndo se pensa nem se move sequer» (ibid.). Que nos resta? Pér em narrativa a meméria do nosso amor, ou entio, se 0 no conseguirmos, escutar ao menos as memérias dos outros, sem jamais esquecermos que a vida € um manto que sarrasta todas as firias ternuras do mundo» Sermiio de Fogo (1963), romance que se segue a O Manto, comega com um ambiente doentio onde Amélia, a protagonista, criada de servir, se inicia no seu mester. Nao apenas o drama dos seus primeiros amos e dos filhos mortos ou deficientes, mas tam~ bém a «doenga» de Candinha e do doutor Jalio, seu marido, gente agastada pela vida de modo indelével. Numa atitude que Ihe é peculiar, Amélia serve ¢ frequenta esta gente de passagem e, tal como nos é dito nas primeiras piginas, «viajav de casa em casa, sempre «gastadora», incapaz de permanecet e de se fixar num lar. ‘A primeira parte de O Sermao de Fogo, denominada «A Estala- gem dos Poderosos», termina quando Amélia abandona a casa de Maria Consolata e do juiz Botelho, seu marido. Com oito filhos, todos diferentes uns dos outros, Amélia vive 0 seu atarefado quoti- diano ¢ ajuda a crescer Drina ou Félia, Brunilde, Corina ou Né- dia — alguns dos filhos de Maria Consolata. Mas 0 que é interessante neste romance € as figuras que nele se desenrolam. A importincia que Agustina Ihes concede é visivel nos titulos que escolhe para as trés partes em que se divide. Assim, 107 que significa «A Estalagem dos Poderosos»? Que figura representa? «A Estalagem dos Poderosos», também conhecida por «Teatro do Mundo» ou «Vale de Lagrimas» (ou até «Véu Pintado» — p.62),é, afinal, a propria vida, esse teatro onde os seres se encontram ¢ desencontram, sofrem ¢ amam.A vida entio figurada ~ simbo- lizada — por uma estalagem, precisamente o lugar onde os varios «tipos» vio desfilando. Os «tipos»? Como em tantos outros roman- ces, Agustina compraz-se em fazer desfilar personagens, homens tipo que se caracterizam e definem por certos sinais ow idiossin- crasias, certas maneiras de viver. Por exemplo: «(Hé homens) que vendem ao diabo a alma por um palmo de maninho, um carro de pio ¢ de tojo, adoptam os filhos dos compadres, casam as sobrinhas, intrigam contra o padre, seduzem a criada, roubam o patrio ¢ adulam-lhe o herdeiro...» (p. 52; cf., ainda, pp. 42-43). que é curioso é a maneira como os vérios tipos desfilam pela estalagem, © que nos leva a dizer que ha uma «filosofia» nos romances de Agustina, algo que se consubstancia numa visio da vida em termos de figuras e de tipos. Manuel Antunes fala-nos algures de algo semelhante. Todavia, se hoje sabemos mais sobre a literatura de Agustina, podemos sublinhar 0 sonambulismo das personagens a partir do modo como actuam 0s tipos e as figuras que «enquadram» os seus roman- ces, Neste aspecto, Amélia «vagabundeia» incessantemente, viaja pelas «figuras» e conhece stipos» sem jamais se deter neles. Afinal, O Sermao de Fogo é um livro de «viagens», se bem que de uma maneira peculiar ~ viagens na geografia das figuras ¢ dos tipos. «Toda a historia da sua vida (de Amélia) era um extenso di logo, profuso, apaixonado, violento, com interlocutores que se iam mudando, com amigos recentes, com vizinhos novos, e no havia outra intengio além desta» (p. 131), Este trecho é significa tivo porque nos ajuda a compreender como Amélia — posterior- mente madame Brouillard — deambulou uma vida inteira, reen~ contrando, no fim da vida, uma sibia quietude. Agustina Bessa-Luis niio cessa de escrever sobre as vicissitudes humanas relembrando- nos que s6 ha uma scarreira produtiva no mundo: exploragio das fraquezas humanas» (p. 127). 108 ‘Amélia, essa madame Brouillard, cartomante, a filha da «capa negra» — nome com que designavam a mie, tida por bruxa ~ esteve, numa fase da sua vida que se seguit ao encontro com o professor Flivio, ereduzida a ser uma pitonisa encarceradav (p. 158). Mas 0 que é extraordinério no sio os seus dotes de pitonisa ou de sibila, mas antes a maneira como a protagonista scresce» ao longo da narrativa, as experiéncias que vai recolhendo ¢ que, de uma ou de outra maneira,a vio amadurecendo. Por varias vezes,Amélia vai reencontrando antigas figuras. Revé Maria Consolata, tem noticias de Drina ou de Léon, reencontra, ainda, Josias Hoffman de quem o narrador diz, ironicamente: «Mas um dia, ao voltar de fora, Amélia encontrou em casa alguém que eu propria no esperava ver mais. Era Josias Hoffman» (p. 198). Curioso, ainda, & a visita a Candinha e a escuta do seu diflogo imaginario com 0 filho Damiio, um surdo-mudo entretanto falecido. Mas qual € o sentido destes encontros? Provavelmente fun- cionam como uma espécie de marcadores do tempo; sinais que permite a Amélia ver a sua propria transformagio na transfor magio dos outros, Na tiltima parte de O Sermo de Fogo nio aparecem apenas personagens que ocuparam um papel essencial em partes anteriores do romance, despontam também personagens wesquecidas» € que pareciam destinadas a um papel meramente pontual. Em vez disso, vimos a «capa negra ~ mae de Amélia ~ a ter um papel fulcral. Mas nao s6, O narrador diz-nos explicita~ ‘mente que quer dar voz a personagens menores, ¢ que o deixam de ser por isso mesmo. Ora, para que serve esta ebencvoléncia» do autor/narrador? Para além de ser dtil para a compreensio da vida de Amélia ~ sinalizando o seu amadurecimento ~é também fundamental para a compreensio de todas as narrativas de Agus- tina Bessa-Lufs. Porgué? Talvez porque haja sempre histrias dentro da histéria, maneira que o narrador tem de nos lembrar que podia comegar— ¢ terminar ~ 0 romance de outra maneira,ou até multi- plicar indefinidamente os romances sobre qualquer uma das per- sonagens, Neste aspecto, o romance & apenas um ponto de vista de uma personagem; outras personagens terio os seus, o que equi- vale a dizer que haverd romances enquanto existirem hist6rias (spontos de vista») 3 espera de serem relatadas. 109 © Sermao de Fogo & um dos romances de Agustina onde se conta uma historia, Mas para que uma histéria seja bem contada tem de existit uma espécie de ironia de pendor metafisico: a de que 0 tempo nfo muda, nés mesmos é que mudamos nele A ironia reside no facto de a Natureza, Deus ou a Substincia — digamo-lo assim, nos termos ¢ no sentido de Espinosa -, niio mudarem e, de algum modo, assistirem ao especticulo da hu- mana fragilidade em busca do sentido de ser e de existir. Amélia ‘ou madame Brouillard tem uma vida porque tem uma histéria e, a0 percorrer ~ de novo hegelianamente ~, varias figuras da cons- ciéncia, teve que aprender a ser, muitas vezes a partir da inimi- zade ou da fricgio. A relagio com o professor Flavio, com a gorda Félia, mostra que Amélia se descobriu a partir dessa fricgo. Quando regressa a patria o livro termina, pois finda também a sua aprendi- zagem ¢ a sua histéria. Fica a ememéria do amor», alguém que muito viveu ¢ dialogou; alguém que comecou e terminou a mandar. Amélia,a criada de servir, acaba assim por reencontrar os seus antigos «senhores», mesmo que noutra posigao. E longe de isso Ihe trazer um olhar rancoroso, é da compreensio e do amor que o encontro proporciona que, justamente, poderiamos e deve- slamos falar Em Memérias Laurentinas (1996) comega por se assistir a uma profusio de personagens que desarma o leitor mais cuidadoso. Benévolo, eis que o narrador nos oferece no segundo capitulo os mesmos acontecimentos, embora narrados de outro modo, Dir- -se-4 que pretende sedimentar aquilo que o primeito capitulo ~ significativamente intitulado «Sucess6es» — tinha oferecido pro- lixamente. Mas, embora repetindo acontecimentos, ha algumas novidades que se enquadram no novo ponto de vista que se apre- senta—ponto de vista consubstanciado em Maria Maximina, a mie de Lourenco Guedes Ferreira. E apesar deste tiltimo ocupat grande parte do relato do primeiro segundo capitulo (e nio 56, pois é protagonista) é partindo de «Maria Maximina da Silva» (titulo do segundo capitulo) que ele é perspectivado. E por isso que Memérias Laurentinas repetem as obsesses ‘maiores das narrativas agustinianas. Maximina no se entende com 110 0 filho ¢, tal como alguém observa, trata-o «como um bastardo». E se bem que nio ame Melchior, o seu segundo marido, 0 certo E que se entende muito melhor com ele do que se entendeu com ‘Antonio Guedes Ferreira, o pai de Lourengo. Vejamos duas passa gens extraidas de cada um dos dois capitulos iniciais: «Chamava~ “se Maria Maximina e antipatizou com o marido, a quem tratava por senhor e dedicava uma atengio levemente irénica para nio ser apenas agressivay (p. 9). E mais 4 frente: «Maria Maximina casou-se com um rapaz que a impressionara pelo bom aspecto que tinha e que era conhecido por morgado das Cales. Mas nao acertou no casamento, porque Antonio Correia Guedes a decep- cionour (p.40). Sabemos bem como tais sdecepgSes» slo frequentes nos romances de Agustina. ‘Outro aspecto que convém salientar € a maneira como a autora se serve de uma cultura que, aparentemente, nao é essencial na economia do texto. Por exemplo: nas primeiras paginas fala-nos em Bacon, Cézanne, Cicero ou Mérimée. No tiltimo caso chega~ “se mesmo a dizer: «Nio me perguntem quem era Mérimée € vio 20 dicionirio» (p. 13). Trata-se, na verdade, de um suporte cultural que serve de instrumento irénico ou engrandece de forma metaforica 0 texto. ‘Também o desenrolar do mundo das personagens ~ essa grande cadeia dos seres — é marcada pela incomunicabilidade ¢ pela in- compreensio, onde até o amor s6 vale alguma coisa se mais vivido do que falado. Mas se comegarmos a acompanhar a vida de Lourengo, da mie, ¢ dos netos desta, rapidamente nos damos conta do «fechamento» que os caracteriza, Apesar da grande pro- fusio de personagens e do contacto entre clas, hé sempre uma solidio intransponivel, uma cléture que as isola ¢ faz delas seres 4 parte, Em petsonagens circunstanciais ~ como Perico ou Ana Pinheiro ~ é ainda essa sensagao de «fechamento» que sobressai Em Memérias Laurentinas & visivel a maneira peculiar com que a narrativa cresce. Volta-se sempre a Lourengo, embora de modo «espiraladoy. Inés, uma prima stia, aparece-nos apenas no terceiro capitulo; e Lourenga, a sua segunda mulher, é abordada com pormenor neste mesmo capitulo. Progressivamente, vemos ut ainda a impressio que as mulheres exerceram na vida de Lourengo, O dado esquerdo da camar comeca por ser ocupado pela avd Joana e acaba com Lourenga. Pelo meio esta Zilia,a sua primeira mulher, que morte aparentemente de tuberculose, pois o narra~ dor encarrega-se de nos confidenciar que ha sempre um mal de amor no meio de tudo isto. Mas 0 que é extraordinirio é 0 facto de as mulheres que ocuparam o «lado esquerdo da camae terem vidas indeciftaveis. A avé Joana, a prima Inés, Zilia ou Lourenca tiveram vidas «indecifréveis» (cf. p.76) — expressio que tanto agrada a Agustina ¢ que se repete nos seus romances, De passagem surgem ainda outros temas habituais, nomeada- mente a invectiva contra os poetas por parte dos narradores dos romances de Agustina Bessa-Luis ¢ da autora, «elle-méme», Na P.88, depois de se dizer que os poctas nio se apaixonam, acres- centa-se: +Sao pessoas litigiosas e que seguem os caminhos da Poesia para sequestrar a admiracdo dos outros» *, Em Memérias Laurentinas aparece-nos também a figura do louco. O amigo de Lourengo Guedes é louco, alguém que surpreende dona Berta pelos seus gestos, Lourengo Guedes, o segundo rapaz, no consegue as gracas de dona Berta, o que nio acontece com o primeiro rapaz — tal como os tratam na ourivesaria da Rua das Flores, onde um ¢ outro sio aprendizes — que é claramente aca- tinhado pela mulher de Anténio José Soeiro, £ a este propésito que surge em Memérias Laurentinas uma das frases mais glosadas em recentes recens6es criticas, aquela em que o narrador (Agus- tina Bessa-Luis) afirma: «Quem mie pede explicagées pela falta de dislogo nos meus livros, aqui tem os porqués: 0 didlogo é a maneira mais cémoda de nao dizer nada» (p. 106). Ora, esta ideia surge num contexto em que dona Berta diz ao marido que nio esta triste, embora tal expressio seja falsa pois, sabendo que nio voltaria a ter 0 louco como. comensal, dona Berta «tinha razées Para estar triste porque amava o louco e nio o ia ver maiss (ibid, Um diélogo com 0 marido, ex-tanoeiro, jamais poderia revelar 0 * ‘Num programa televisvo, «Escrta em Dias,em Maio de 1996, dieia ‘Agustina que os leitores de poesia do preguicoses, 112 ave ia na alma da esposa E sio coisas destas que fazem os diflo- {gos tio desnecessirios. Aliés, encontramos também em A Quinta “Esséncia umn dos motivos porque se recusam os didlogos: «Fa coisas que nao se resolvem com os didlogos [...] Hi coisas que nio ganham nada em ser resolvidas. £ melhor ficarem como estio, so 0 lado mais dinimico da natureza» (p. 366) Mas ha ainda outro louco em Memérias Laurentinas. Falamos do filho de Lourenco Guedes, 0 incendiatio, um epiléptico atrafdo s com o fogo (se bem que Concha, a sua irma, pelas brincadeiras te jovem 6a sua também fosse deficiente).O que surpreende nest 1¢ o leva a gozar de um estatuto ¢ de uma liber- inteligéncia, 0 qui mais pormenor dade invulgar. No capitulo onde se fala dele com (digamo-lo uma vez mais: Agustina vai sempre repetindo, mas 4 ‘maneira de uma espiral ou de circulos concéntricos que se alargam, 20 lago da vida), aparece ainda uma das rnces de Agustina:a ama. Lorenza Fuentes, ama espanhola, como € habito de Agustina, tem esse dom do amor e da didiva, feito de siléncio e de uma melancolia que 0 vinho apreciado em segredo no fim da vida, suaviza sem extirpat. £ quase sempre assim com as ¢amas» espanholas: slo tristes © figis. Diz Agustina, no iltimo capitulo do romance que estamos a intitulado «Repetigio», 4 boa maneira kierkegaar— pensa esti aberto 4 como pedras atiradas figuras tipicas dos romai comentar ~ diana — que «tudo 0 que o homem vive © |. Lourenco Guedes & um «repetidor da sua condigio humana» (p.278),embora tudo 0 que se passe em Memé- vias Laurentinas se deixe compreender a pattir do signo da repeticao. De facto, eepete-se» Os Incurdveis porque se revisita o Lugar das Cales; repeter-se processos romanescos jé nossos conhecidos acima de tudo, Agustina regressa as origens ¢ tenta dizer-nos © que hi muito jé sabfamos: que se escreve sempre © mesmo Livro ‘A repetigao aparece assim como uma espécie de imagem da eter- nidade (Platio definia o tempo como a imagem mével da eterni- dade), algo que Lourenco Guedes personifica quando, no sev testament, favorece a neta (Maria) e nfo a filha (Laura). Porque? E que Lourengo Guedes quer «deixar 0 seu espirito» a Maria, quer que seja ela a arepetir 0 seu espitito até ao fim da vida. Por repeticao» (p. 272). 113 ‘outro lado, como diz uma das personagens, «a diivida toda a f& que temos». Deveremos enttio pensar na repetigio como simbolo da vida ¢ das ditvidas que esta, ncessantemente, nos suscita? Parece- “hos que sim. De facto, vida inteira é um exercicio da suspeita, coisa que é trasladada nos préprios romances de Agustina Bessa- -Luis. O que se diz, em Memérias Laurentinas, sobre 0 casamento, a provincia,as mulheres,a inteligéncia ou a loucura,sio repetigdes do que ja se sabia. Dai 0 paradoxo, o efeito deambulatério, a revisitagio de certas «figurase, e 0 extraordinitio exercicio de suspeita que tal pressupde. Um Cio que Sonha (1997), um dos mais recentes romances de Agustina Bessa-Luis, gira em torno de uma personagem que comega por nao ster segredos» (p. 13) e acaba por se revelar cheia deles. Maria Pascoal, de seu nome, confessou um dia ao marido, Léon, que «se parecia como um co que sonha» (p.32). Ea morte prematura que itd exacerbar 0 mistério sobre a vida e obra de Maria Pascoal, simbolicamente personificada por um cio sonha- dor, «completamente inofensivo e perspicaz a0 mesmo tempo» (p.34). Apesar de Léon, enredado na sua inutilidade, reconhecer que nio conhecia aquela com quem efora casado durante meia dizia de anos ¢ de quem nio sabia positivamente nada» (p. 265), vai lentamente recolhendo sinais que, longe de Ihe oferecerem uma compreensio da esposa, vio-Ihe revelando capacidades ines peradas que, se fossem conhecidas, nao teriam possibilitado 0 casa- mento (cf. p. 264). Também o leitor acompanha o jovem vitivo neste percurso de interpretagio e, como ele, apercebe-se da difi- culdade em saber quem foi efectivamente Maria Pascoal. As pi- ginas que lhe sio atribuidas ~ piginas que durante muitos anos 0 seu marido se recusow a ler~,sio um exercicio de ironia de uma «provincianay que, fingindo costurar num quarto de Monte-Faro, escteve o seu manuscrito, Os grandes elementos da prosa agustiniana entrelagam-se em Um Cio que Sona. © tema das velhas e nobres familias, com 0 seu grio de loucura ¢ de orgulho, com as suas criadas e os seus motoristas, é uma das matrizes que nos permite aceder & relagio entre a «provinciana» Maria Pascoal e 0 jovem e rico Léon Geta 114 Fernandes, «o diltimo ramo de uma espiral de geragdesr (p. 12) ‘Também a relagio Norte/Sul ~ «© Norte é uma coisa, 0 Sul € outray ~, assunto frequente nos romances de Agustina, se encon- tra em Um Cao que Sona, Mas nao s6. Quer se encare a prosa de Agustina como a repeti¢io pachorrenta de certos tragos que cul- minam numa exuberincia da linguagem de inesgotivel riqueza semantica (verdadeira festa da linguagem) ou como retratos levia~ nos de mero eftito retérico, o certo € que os dados estio langa~ dos desde o primeiro capitulo do romance. Fala-se ai dos Geta Fernandes, de Maria Pascoal, dos rapazes do Bando, delineando- ~se a historia que as paginas subsequentes se encarregario de esmiugar, Contudo, se a narrativa progride, isso acontece dentro de uma rede que o primeiro capitulo di a conhecer ao leitor, Maria Pascoal, eprovinciana inteligentes, revelou-se um mis- tétio para Léon, rapaz bom que era «superficial e diplomado em felicidade» (p. 47). © segredo de Maria Pascoal e das horas que passava em Monte-Faro, leva Léon a conjecturar se ela no seria como a jovem princesa Nausica que se fazia passar por Homero ara contar a sua Odisseia. Ora, o que aparece como uma suspeita rapidamente se torna verosimnil, aumentando a expectativa de Léon € dos proprios leitores sobre quem foi verdadeiramente esta «Nau- sicav, Se a vida de Léon é de uma extrema vulgaridade — sendo toda a sua vida uma espécie de sinecura — a da sua jovem esposa € invulgar e enigmatica De micronarrativa em micronarrativa vamos compreendendo © lado intrigante que havia no cardcter e na vida de Maria Pascoal S6 madame La Roque, que foi a segunda mulher do avé de Léon, tinha intuido a natureza, «se nio monstruosa, pelo menos intri- gante> (p. 118) de Maria Pascoal. De facto, e para além da sua «superioridade» em rela¢io ao marido, ha uma vivéncia que leva © narrador a confiar-nos que ela tem mais de «mil anos», apesar de morrer com apenas vinte ¢ cinco. Naquele que é suposto ser © primeiro encontro entre Maria Pascoal e Léon comeca por haver um mistério, pois a estudante do MUD, que se presume ser Maria Pascoal, sempre «guardou siléncio sobre isso» (p.137). Tam- bém o préprio Léon snunca quis averiguar» (p.143) se se tratava 115 cfectivamente da sua futura esposa. De forma simbélica, Agustina Bessa-Lufs conduz o leitor a um enigma que se estende assim até ao fim da narrativa: a incerteza da prépria relag3o amorosa, essa adesordem absolutay. Quando se escreve que «a desordem & blime, a ordem é s6 conveniente» (p.128) ¢ se acrescenta que «0 amor nao tem que ver com o prazer. £ pura coincidéncia; dai a frustragio do prazer. Quanto ao amor, é a desordem absoluta Absoluta, esté a perceber?o (ibid.), reitera-se uma das questdes fundamentais do mundo romanesco de Agustina Bessa-Luis. A sensago que Maria Pascoal «traiu imensamente» Léon vai-se fortalecendo a ponto do narrador dizer: lulgara (Léon) casar com uma mosca-morta e ela enganara-o brilhantemente (p.186). Significa isto que ha uma espécie de sonambulismo em Léon, expressio que retomamos de Oscar Lopes e que serve para caracterizar 0 modo de ser de intimeras personagens agustinia- nas. Na verdade, Léon sempre viveu com extrema indoléncia, até quando © manuscrito de Monte-Faro aparece em forma de livro, € premiado e proporciona uma inesperada celebridade aquele que acaba por se assumir como o seu autor. Dir-se-4 que a vida se vai vivendo em Léon, indoléncia que o crito da sua jovem esposa e que acaba por ficar esquecido durante «quinze anos» e que, por outro lado, impossibilita de ter outra atitude para com Kitia,a jovem que vive com ele e com a qual se fecha o romance. Léon nio conhece entio aquela com quem viveu; nem é capaz de assegurar se se trata da estudante do MUD que, um dia, lhe bateu a porta e que saiu tio depressa como entrou. Arrastada pelos acontecimentos, a vida de Léon distingue-se radicalmente da vida da esposa, alguém cujo «sonambulismo» reside numa fuga «ao mundo» e que é, na verdade, uma tentativa de o deciffar e suportar através da escrita. «Sonambulismo», aqui, significa «obses- so» ¢ entrega total ¢ recéndita a arte da escrita. Mais do que saber quem € 0 autor do «documento» e a refle- xio sobre a propria literatura que se desenrola em Um Cao que Sonha, impressiona a vivéncia silenciosa de Maria Pascoal que se serve de Léon para que o seu ensimesmamento seja total. Funda- pede de lero manus 116 mental é a cegueira de Léon perante 0 mundo da esposa e 0 «sor irénico que Maria Pascoal faz deste afastamento intrans- ponivel. Se Virginia Woolf escrevia A Room of Onte’s Own, Agus- tina Bessa-Luis imagina uma mulher que teve uma sinfancia feliz» a escrever a sua Odisseia Por fim, a incomunicabilidade que h4 em toda a comunica- ‘gio ~ tema que perpassa a obra de Agustina Bessa-Lufs ~ e a neces- sidade concomitante de cada individuo descobrir ¢ entranhar-se no seu proprio mundo e ultrapassar assim a mera tagarelice mun- dana, faz da arte — da literatura — um exercicio radical de procura de si mesmo. A importincia que a autora dé 4 Histéria—e que nos permite dialogar com alguns dos seus momentos e com os seus testemunhos privilegiados, como Shakespeare, Kierkegaard, Tolstoi ou Homero -, permite-nos ainda compreender a obses- sio da autora com um certo tipo de genealogias ou «latrocinios» (cf. Ordens Menores). A sua maneira, Agustina Bessa-Luis teima em vera alma de dentro para fora, mostrando que é assim que as coisas e os seres ganham sentido. Um Cio que Sonha é um romance denso, capaz de se interro- gar sobre a intriga da e na literatura, retomando infatigavelmente © mistério do individuo e do caminho que este percorre, Com este romance, o leitor fica a conhecer mais um rosto da enorme familia que Agustina Bessa-Luis encetou ha cinquenta anos. Um rosto que personifica uma maneira peculiar de escrever, reite- rando a exuberincia da linguagem e a maneira de velar e desvelar © mundo,

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