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r e v i s ta

direitos
humanos
Dalmo de Abreu Dallari

Mary Robinson

Marco Antônio
Rodrigues Barbosa

Ricardo Brisolla Balestreri

Ana Rita de Paula


Izabel Maria Madeira
de Loureiro Maior

Carmen Silveira de oliveira


Maria luiza moura de oliveira

Baltasar Garzón

Augusto Boal

Sebastião Salgado

Edição comemorativa
60 Anos da Declaração Universal
dos Direitos Humanos
01
d e z e m b r o 20 0 8
Apresentação

N
asce uma nova revista sobre direitos humanos no Brasil. Já
existem importantes publicações, de diferentes perfis, voltadas
a distintos focos de interesse. Mas faltava uma, de abrangência
nacional, com abordagem mais diretamente centrada nos temas da Educação
em Direitos Humanos.
Ela tem caráter institucional, mas tal identidade não deve resultar em oficia-
lismo chapa branca. Governos democráticos não podem temer a convivência
com a crítica. A vocação da revista é desenvolver reflexões e um diálogo franco
com a sociedade civil. Seu formato e linguagem buscam um ponto intermediá-
rio entre a elaboração acadêmica e aquela mais sintética das lutas populares.
Os movimentos sociais e ONGs dessa área, as instituições e autoridades
dos poderes públicos que cuidam do tema, os segmentos universitários perti-
nentes sabem que a Educação em Direitos Humanos é o eixo mais estratégico
para a construção de uma nova consciência nacional e de um novo patamar de
respeito à dignidade intrínseca da pessoa humana, consagrada na Declaração
Universal de 10 de dezembro de 1948.
O lançamento faz parte da agenda brasileira de celebração dos 60 anos des-
sa Declaração, ao lado de marcantes eventos ocorridos em 2008, alguns com
forte marca de ineditismo, como a conferência nacional dos direitos humanos
do segmento LGBT, realizada em Brasília no mês de junho, por convocação do
Presidente da República, que também presidiu um pioneiro encontro, em São
Paulo, no mesmo mês, com presidentes e dirigentes de grandes empresas,
convocando-os ao engajamento claro nos compromissos com os direitos hu-
manos orientados pelo Pacto Global da ONU.
Entre 15 e 18 de dezembro se realiza em Brasília a 11ª Conferência Na-
cional dos Direitos Humanos, com aproximadamente 1.400 participantes, cuja
pauta central é a revisão e atualização do Programa Nacional de Direitos Huma-
3
nos - PNDH, que o Brasil formulou em 1996 e ampliou em 2002.
Revista Direitos Humanos

Um desafio colocado para a terceira versão do PNDH é incorporar a agenda


programática resultante de grandes encontros nacionais ocorridos desde 2003
Aprese
sobre o vasto leque de questões relacionadas à proteção dos direitos humanos. Milha-
res de pessoas já participaram em alguma etapa das 50 conferências abordando edu-
cação, saúde, meio ambiente, igualdade racial, equidade de gênero, cidades, criança
e adolescente, juventude, segurança alimentar, desenvolvimento agrário, economia
solidária, muitos outros temas.
Em novembro, no Rio de Janeiro, nosso País sediou o mais importante congresso
mundial já realizado para articular o enfrentamento da exploração sexual de crianças
e adolescentes, reunindo nada menos que 170 países e 3.500 congressistas. Em
dezembro, ocorreu em Brasília a 2ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com
Deficiência, precedida pelas etapas estaduais, da mesma forma que as outras confe-
rências mencionadas acima. Em março de 2009 se completará o processo da 2ª Con-
ferência Nacional dos Direitos do Idoso, que já concluiu em 2008 sua fase federativa.
Temos um cenário de conquistas palpáveis, que encorajam nossa determinação
de avançar rumo a metas mais desafiadoras. Mas também presenciamos a repetição
de intoleráveis violações, dando a tônica no cotidiano nacional: violência criminal,
torturas e desmandos policiais, presídios, racismo, homofobia, discriminações e vio-
lência contra a mulher, contra idosos e contra pessoas com deficiência, persistência
do trabalho escravo, desrespeito às normas do Estatuto da Criança e do Adolescente,
criminalização de movimentos sociais e assassinato de indígenas ou lideranças de tra-
balhadores, sendo que a impunidade ainda prevalece largamente sobre as apurações
exemplares.
Essa convivência entre avanços e violações tem sido marca constante destes 20
anos de reconstrução democrática do País, a partir da Constituição de 1988. Numa
trajetória de Estado, o Brasil já deu passos importantes no sentido de incorporar os
instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos ao nosso sistema nor-
mativo. Programas novos são iniciados a cada ano, em diferentes áreas. Mas os passos
já dados não superam o muito que ainda resta de caminhada.
entação
A revista é mais um passo. Pequeno ou grande, o passo vai na direção certa. O ani-
versário de 60 anos da Declaração Universal perpassa todas as matérias deste primeiro
número, que exibe diversidade de temas e reflexões muito ricas. A tiragem inicial será
de 8.000 exemplares, com o importante detalhe de que 500 deles serão em espanhol,
porque não somos apenas Brasil. Somos Brasil e Mercosul, somos Brasil e Unasul,
somos um Brasil que está decidido e talhado à integração crescente com Nuestra
America, dos sonhos de Bolívar, do Che e de Salvador Allende.
Buscando respeitar o tamanho de nossas pernas, a publicação nasce semestral.
Mas já planeja virar quadrimestral, quem sabe trimestral depois, ou bimestral, ou... O
certo é que ela vem para ficar. A montagem de seu Conselho Editorial foi concebida com
essa predestinação. Diferentes áreas, diferentes geografias, diferentes opiniões políticas,
partidárias, religiosas ou filosóficas estão refletidas na composição de seus 22 integran-
tes, que aceitaram incorporar mais esta trincheira a suas pesadas agendas.
Fica aqui registrado um enfático apelo aos futuros titulares da área direitos hu-
manos do governo federal, para que não deixem a seqüência ser interrompida. Uma
revista vale muito como série histórica. Só com o passar dos anos torna-se referência,
fonte para pesquisas e estudos posteriores, medição e fotografia dos debates que
prevalecem em cada período.
Na saudável alternância de partidos no poder, própria das democracias, é claro que
o voto popular autoriza os governantes a introduzirem mudanças e ajustes, deslocando
prioridades. Mas o apelo vale como alerta no sentido de que, em direitos humanos –
talvez mais do que em qualquer outro segmento –, a acumulação ao longo dos anos, o
prosseguimento, a persistência e a perseverança compõem um imperativo categórico,
ao qual estamos todos obrigados.

Brasília, 10 de dezembro de 2008


Paulo Vannuchi
sum
ário sumário>>

6
Direitos humanos:
sessenta anos de conquistas
Dalmo de Abreu Dallari

17
12
Balestreri
Ricardo Brisolla

e Direitos Humanos
Segurança pública
Concretizando nossos
compromissos

Mary Robinson

27
6
Direito à memória
34
Revista Direitos Humanos

e à verdade
Um mundo
Marco Antônio Rodrigues Barbosa todos: Univ
direitos e d
Ana Rita de Paula
Izabel Maria Madeira
Expediente
Presidente da República

40
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministro da Secretaria
Especial dos Direitos Humanos
Paulo Vannuchi
Secretário Adjunto
Maioridade para os direitos humanos Rogério Sottili
da criança e do adolescente
Conselho Editorial
Carmen Silveira de oliveira
Maria luiza moura de oliveira Paulo Vannuchi (Presidente)
Aída Monteiro
André Lázaro
Carmen Silveira de Oliveira
Dalmo Dallari
Darci Frigo
Egydio Salles Filho
Erasto Fortes Mendonça
José Geraldo Souza Júnior
José Gregori

46
Marcos Rolim
Marília Muricy
Izabel de Loureiro Maior
Maria Victoria Benevides
A verdade, onde estiver Matilde Ribeiro
Nilmário Miranda
Baltasar Garzón Oscar Vilhena
Paulo Carbonari
Paulo Sérgio Pinheiro
Perly Cipriano
Ricardo Brisolla Balestreri
Samuel Pinheiro Guimarães

Coordenação Editorial:
Erasto Fortes Mendonça
Mariana Bertol Carpanezzi
Patrícia Cunegundes
Paulo Vannuchi

Revisora:
Luciana Melo

52
Projeto gráfico e diagramação:
Wagner Ulisses

Ilustrações:
Lívia Barreto
Augusto Boal
Entrevista

Produção editorial:
Jacumã Comunicação

Secretaria Especial dos Direitos Humanos

62
Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício
Sede, sala 424
70.064-900 Brasília – DF
direitoshumanos@sedh.gov.br
www.direitoshumanos.gov.br
Sebastião Salgado
Imagens

Distribuição gratuita 7
Tiragem: 8.000 exemplares
Revista Direitos Humanos

de todos para Direitos Humanos é uma revista semestral


publicada pela Secretaria Especial dos Direitos
versalização de Humanos da Presidência da República do Brasil

direito à diferença As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade


exclusiva dos autores e não representam necessariamente a
posição oficial da Secretaria Especial dos Direitos Humanos
da Presidência da República ou do Governo Federal.

ra de Loureiro Maior Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução


parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e não
seja para venda ou qualquer fim comercial.
artigo

Dalmo de Abreu Dallari - jurista e


Professor Emérito da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (USP), Dalmo de
Abreu Dallari é autor de vários livros – e, entre
eles, o clássico “Elementos de Teoria Geral
do Estado. Entre outras atribuições, ocupa
atualmente assento no Conselho de Defesa
dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH).

Direitos humanos:
sessenta anos de conquistas
Dalmo de Abreu Dallari
1. A Declaração Universal de 1948: Na denominação dada ao documento e
compromisso humanista nas afirmações constantes do artigo primeiro

H
á sessenta anos a humanidade deu estão contidos alguns elementos esclarece-
início a uma nova fase em sua his- dores da mais alta importância, que dão o
tória, registrando num documento testemunho do extraordinário avanço já ob-
lúcido e objetivo a tomada de consciência tido, em comparação com dados anteriores.
do valor primordial da pessoa humana e Com efeito, o primeiro documento que teve
de seus direitos essenciais e universais, a denominação de Declaração de Direitos
inerentes à sua própria natureza. Isso já é foi o que a Assembléia Nacional da França
ressaltado, com muita evidência, em sua aprovou em 1789, num dos momentos mais
8
denominação, “Declaração Universal dos expressivos de afirmação da vitória da Revo-
Revista Direitos Humanos

Direitos Humanos”, e é enfaticamente pro- lução Francesa, que punha fim ao chamado
clamado em seu artigo primeiro, que inicia Antigo Regime e começava uma nova fase
com o seguinte enunciado: “Todos os seres na história da humanidade. O documento
humanos nascem livres e iguais em digni- então aprovado foi designado “Declaração
dade e direitos”. dos Direitos do Homem e do Cidadão”, o que
despertou reações veementes dentro da pró- de qualquer exceção, nascem livres e iguais, 2. Os direitos humanos e
pria Assembléia, denunciando o seu caráter deixa expresso que a Constituição ou o sis- os caminhos da História
discriminatório contra as mulheres. Isso foi tema legal que contiverem exclusões ou Perde-se na origem dos tempos o reco-
negado pelos líderes da maioria, que eram discriminações quanto aos direitos humanos nhecimento de que os seres humanos são
franceses brancos e ricos, mas o espírito dis- não têm o valor de documentos jurídicos criaturas especiais, que nascem com cer-
criminatório foi confirmado logo em seguida. autênticos, são falsificações maliciosas que tas peculiaridades, incluindo necessidades
Basta lembrar que, à semelhança dos Estados não merecem respeito e devem ser elimina- básicas de natureza material, psicológica e
Unidos da América, criados com a aprovação das. Os direitos humanos são atributos natu- espiritual, que são as mesmas para todas as
da primeira Constituição escrita da História, rais de todos os seres humanos, que nascem pessoas. Entre tais peculiaridades encontra-
em 1787, a França impediu o acesso das
mulheres aos altos cargos do governo e da
Administração Pública. “Há pessoas que colocam suas
Assim, a afirmação de que os direitos
humanos declarados são de “todos os se-
ambições pessoais, sua busca de
res humanos” exclui qualquer espécie de poder, prestígio e riqueza acima
discriminação. Isso tem ainda grande im-
portância, para constatação dos avanços, dos valores humanos”
pelo fato de que tanto os Estados Unidos
quanto a França se basearam na afirma- com eles e que a sociedade, o Estado, os se também a possibilidade de se desenvolver
ção da existência de direitos naturais das governos ou quem quer que seja não podem interiormente, de transformar a natureza e de
pessoas, sendo o primeiro deles o direito restringir com legitimidade. E aí se enquadra estabelecer novas formas de convivência.
à liberdade, sendo bem conhecido o lema a dignidade humana, que é igual para todos Tudo isso levou à conclusão de que o ser hu-
da Revolução Francesa, “Liberdade, Igual- e que é da essência da pessoa humana, não mano é dotado de especial dignidade e que
dade, Fraternidade”, e na prática negaram havendo qualquer diferença entre a dignidade é imperativo que todos recebam proteção e
por muito tempo essa afirmação. Com efei- do proprietário de uma rica mansão ou sun- apoio para a satisfação das necessidades bá-
to, ambos, Estados Unidos e França, usa- tuosa fazenda e a do favelado ou do morador sicas e para o pleno uso e desenvolvimento
vam o trabalho escravo em larga escala e de rua e mesmo do presidiário. Eles podem de suas possibilidades físicas e intelectuais.
continuaram mantendo a escravidão negra ficar sujeitos a regras legais diferentes, desde Como decorrência de todos esses fatores, foi
durante muitos anos. A mulher só foi admi- que isso não ofenda a dignidade essencial de sendo definido um conjunto de faculdades
tida como eleitora em eleições nacionais cada um. naturais necessitadas de apoio e estímulo
estadunidenses em 1920 e na França ela A Declaração Universal dos Direitos Hu- social, que hoje se externam como direitos
só foi admitida como Juíza em 1946. Além manos aprovada pela Organização das Na- fundamentais da pessoa humana.
disso, os trabalhadores tiveram que enfren- ções Unidas em 1948 foi, efetivamente, um Mas apesar de serem direitos de todos os
tar duríssima resistência, inclusive forte re- avanço para a humanidade. Existem ainda seres humanos, o que deveria levar à conclu-
pressão policial, para, no século XX, serem resistências à sua efetiva aplicação, mas a são lógica de que ninguém é contra tais di-
admitidos como “livres e iguais”. Como simples existência dessa Declaração tem reitos, a História mostra coisa bem diferente
fica óbvio, aquilo que se denominou en- servido de apoio significativo para lutas tra- disso. Há pessoas que colocam suas ambi-
faticamente Liberalismo continha uma boa vadas por meios pacíficos e para denúncias e ções pessoais, sua busca de poder, prestígio
dose de hipocrisia, pois os direitos decla- reivindicações buscando a concretização de e riqueza acima dos valores humanos. Isso 9
rados eram os dos homens brancos ricos, mudanças nas Constituições, na organização explica as violências da Idade Média, com o
Revista Direitos Humanos

excluindo grande parte da humanidade. das sociedades e nas práticas da convivência estabelecimento dos privilégios da nobreza e
Além da denominação, que abrange a humana constitucionais, visando à elimina- a servidão dos trabalhadores. Essa é, também,
universalidade dos seres humanos, a afir- ção das discriminações e a implantação da a raiz das agressões sofridas pelos índios da
mação de que todos, sem a possibilidade justiça social. América Latina com a chegada dos europeus,
artigo Direitos humanos: sessenta anos de conquistas

a Declaração dos Direitos do Homem e do


Cidadão, afirmando, no artigo primeiro, que
“todos os homens nascem e permanecem
livres e iguais em direitos”, mas, ao mes-
mo tempo, admitindo “distinções sociais”,
as quais, conforme a Declaração, deveriam
ter fundamento na “utilidade comum”. Logo
foram achados os pretextos para essas dis-
tinções, instaurando-se uma nova forma de
sociedade discriminatória com novas classes
de privilegiados, estabelecendo-se enorme
distância entre as camadas mais ricas da po-
pulação, pouco numerosas, e a grande massa
dos mais pobres.
A partir de então, as injustiças inces-
santemente acumuladas, as discriminações
impostas pela lei, excluindo da participação
política os não-proprietários e as mulheres,
o uso dos órgãos do Estado para sustentação
dos privilégios dos mais ricos e de seus ser-
estando aí, igualmente, o nascedouro das submetidos a condições indignas. Mas a fun- viçais, tudo isso acarretou mais sofrimento,
violências contra a pessoa humana, inspi- damentação teológica dos direitos humanos miséria, violências e inevitáveis revoltas. No
radas nos valores do capitalismo, que tenta foi usada maliciosamente, para sustentar que campo dos dominadores surgiram, entretan-
renovar agora sua imagem desgastada, pro- os direitos dos reis e dos nobres decorriam to, muitas disputas, sobretudo de natureza
pondo a farsa da globalização. da vontade de Deus e assim estariam justifi- econômica, em âmbito nacional e interna-
O excesso de agressões à dignidade da cadas as discriminações e injustiças sociais. cional. Essa produção de injustiças e esse
pessoa humana, em decorrência do egoísmo, Os séculos XVII e XVIII foram marcados choque de ambições levaram à perda da paz,
da insaciável voracidade, da insensibilidade por lutas contra esses privilégios. Grandes fi- com duas guerras mundiais no século XX,
moral dos dominadores tem despertado re- lósofos políticos reafirmaram a existência dos chegando-se a extremos, jamais imaginados,
ações, tanto no plano das idéias quanto no direitos fundamentais da pessoa humana, so- de violência contra a vida e a dignidade da
âmbito da ação material. Desse modo surgi- bretudo os direitos à liberdade e à igualdade, pessoa humana.
ram teorias e movimentos revolucionários, mas dando como fundamento desses direitos
que foram contribuindo para que um número a própria natureza humana, descoberta e diri- 3. A Declaração Universal
cada vez maior de seres humanos tomasse gida pela razão. Na seqüência dessas idéias, dos Direitos Humanos: avanços
consciência de sua dignidade essencial e dos a burguesia, que tinha força econômica, mas e resistências
direitos a ela inerentes. estava à margem do poder político, associou- Terminada a Segunda Guerra Mundial,
No final da Idade Média, no século XIII, se à plebe, pois ambas estavam igualmente estando ainda abertas as feridas da grande
aparece a grande figura de São Tomás de interessadas na destruição dos antigos privi- tragédia causada pelo egoísmo, pelo exces-
10 Aquino que, tomando a vontade de Deus légios de que gozavam a nobreza e o clero a so de ambições materiais, pela arrogância
como fundamento dos direitos humanos, con- ela associado e seu valioso aliado político, dos poderosos e pela desordem social que
Revista Direitos Humanos

dena as violências e discriminações, dizendo também beneficiário das injustiças. de tudo isso resultou, iniciou-se um trabalho
que o ser humano tem Direitos Naturais que O ponto culminante dessas lutas foi a Re- visando à criação de um novo tipo de socie-
devem ser sempre respeitados, chegando a volução Francesa. No ano de 1789, colocado dade, informada por valores éticos e tendo
afirmar o direito de rebelião dos que forem o poder nas mãos da burguesia, foi publicada a proteção e promoção da pessoa humana
como seus principais objetivos. Foi instituí- primento dos compromissos neles regis- superioridade política e social, sem qualquer
da, então, a Organização das Nações Unidas trados acarreta sanções de várias espécies, consideração de ordem ética, os que preten-
(ONU), com o objetivo de trabalhar perma- como o fechamento do acesso a fontes in- dem que seus interesses tenham prioridade
nentemente pela paz. Demonstrando estarem ternacionais de financiamento e aos serviços sobre a dignidade da pessoa humana, esses
conscientes de que esse objetivo só poderá de organismos internacionais, além de outras resistem à implantação das normas inspira-
ser atingido mediante a eliminação das injus- conseqüências de ordem moral e material. das nos princípios da Declaração Universal.
tiças e a promoção dos direitos fundamentais A partir da proclamação da igualdade de Mas a realidade mostra um avanço conside-
da pessoa humana, os integrantes da Assem- todos os seres humanos, em direitos e digni- rável na conscientização das pessoas e dos
bléia Geral da ONU aprovaram, em 1948, a dade, como está expresso no artigo primeiro da povos, havendo razões objetivas para se acre-
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Declaração Universal, vários pactos e tratados ditar que a história da humanidade está cami-
A Declaração é um marco histórico, não dispuseram sobre situações específicas em que nhando no sentido da criação de uma nova
só pela amplitude das adesões obtidas, mas, a igualdade vinha sendo negada, fixando regras sociedade, na qual cada pessoa, cada grupo
sobretudo, pelos princípios que proclamou, e estabelecendo responsabilidades. Essa dire- social, cada povo verá seus direitos humanos
recuperando a noção de direitos humanos e triz já penetrou nas Constituições, o que signifi- fundamentais reconhecidos e respeitados. O
fundando uma nova concepção de convivên- ca um reforço, de ordem prática, da eficácia das que reforça essa crença é a constatação de
cia humana, vinculada pela solidariedade. É normas, bem como facilidade maior para seu que vem aumentando incessantemente o
importante assinalar também que, a partir da conhecimento e sua aplicação. número dos que já tomaram consciência de
Declaração e com base nos princípios que O que se pode concluir disso tudo, é que que, para superar as resistências, cada um
ela contém, já foram assinados muitos pac- a Declaração Universal dos Direitos Humanos de nós deverá ser um defensor ativo de seus
tos, tratados e convenções, tratando de pro- marca o início de um novo período na história próprios direitos humanos. E por imperativo
blemas e situações particulares relacionados da humanidade. Os que procuram a preser- ético, mas também para defesa de seus pró-
com os direitos humanos. Esses documentos vação ou a conquista de privilégios, os que prios direitos, todos deverão ser defensores
implicam obrigações jurídicas e o descum- buscam vantagens materiais e posições de dos direitos humanos de todos.

11
Revista Direitos Humanos
artigo Concretizando nossos compromissos

Mary Robinson é Presidente da


“Realizing Rights: The Ethical Globalization
Initiative” [Iniciativa para Globalização Ética]
e membro da “Elders”. A Sra. Robinson
foi Comissária das Nações Unidas para os
Direitos Humanos entre 1997 e 2002, e
Presidente da Irlanda (1990-1997).

Concretizando
nossos compromissos
Mary Robinson

E
Este ensaio foi baseado m 2008 celebramos o 60º aniversário evitar maior deterioração e impedir o avanço
da Declaração Universal dos Direitos desta tendência se recuperarmos e fortalecer-
nos comentários feitos Humanos, oportunidade para que rea- mos a mensagem dos direitos humanos. Não
pela Sra. Robinson na firmemos a importância vital dos padrões in- consigo imaginar uma forma melhor de fazer
ternacionais de direitos humanos para a cons- isso do que reafirmando a visão de direitos e
“Harvard Business School” trução de um futuro mais justo e sustentável. responsabilidades da Declaração Universal,
[Escola de Negócios da Entretanto, as tendências vislumbradas atual- instrumento que representa um “padrão co-
Universidade de Harvard], mente não são positivas no que concerne à re- mum” para todos os povos e nações.
12 alização efetiva da promessa representada pela
em Boston, Massachusetts, Declaração. Em parte por causa das respostas Reafirmando a Mensagem
Revista Direitos Humanos

em 28 de abril de 2008. nacionais e globais aos ataques terroristas de da Declaração Universal


11 de setembro de 2001, nesta década os di- dos Direitos Humanos.
reitos humanos foram deixados de lado e, em Relembremos por um momento como
alguns casos, ignorados. Todavia, podemos era o mundo em 1948, ano em que a Decla-
ração Universal surgiu. As nações emergiam
de uma devastadora guerra mundial e do Ho-
“A Declaração Universal tem
locausto. Pela primeira vez, armas nuclea- constituído fonte de inspiração para
res haviam sido empregadas contra civis. A
Guerra Fria começara. As pessoas buscavam toda legislação internacional do pós-
laços comuns que unissem as nações e au-
mentassem a segurança humana para todos.
guerra na área de direitos humanos”
Neste contexto, surgiu um grupo de homens
e mulheres com diferentes histórias, culturas e É claro, contudo, que esta avaliação po- mundo todo. Padrões trabalhistas básicos
crenças, liderado por uma mulher notável: Elea- sitiva precisa ser contrabalançada. Cito, neste são ignorados. A pobreza prende milhões a
nor Roosevelt. O mandato do grupo, como parte sentido, afirmação feita em publicação recen- vidas de desespero.
da recém-criada Comissão de Direitos Huma- te pelo Conselho Internacional de Política de
nos da ONU, consistia em elaborar uma articu- Direitos Humanos, uma das organizações Da Declaração à Ação: Realizing
lação internacional dos direitos e liberdades de parceiras do trabalho que agora está sob mi- Rights no Século XXI
toda a humanidade. nha responsabilidade na Realizing Rights: Então, o que devemos aprender para os
Resultado desses esforços, a Declaração futuros esforços não só para proteger os di-
Universal dos Direitos Humanos ofereceu- “À medida que a reputação e a influência reitos humanos, mas também para fazer um
nos uma visão de humanidade comum e de dos direitos humanos aumenta, eles pas- trabalho pró-ativo na sua concretização?
responsabilidades mútuas compartilhadas, sam a ser ativamente mais contestados, e
aplicáveis independentemente de lugar geo- por atores ainda mais poderosos... antes Primeira lição – uma verdade provavel-
gráfico, de cor, religião, sexo ou ocupação. eram tolerados por serem considerados mente óbvia, mas normalmente não declara-
Passados sessenta anos, a Declaração – e marginais… as freqüentes referências da, é o fato de que, como em grandes áreas
seu cuidadoso equilíbrio entre liberdades feitas aos direitos humanos no contexto do mundo muitas pessoas continuam pobres
individuais, proteção social, oportunidade das relações Norte-Sul e, mais recente- e seus governos são carentes de recursos, as
econômica e deveres com a comunidade mente, a força das críticas legais aos di- populações precisam buscar apoio e assis-
– constituiu-se em instrumento de direitos reitos humanos na condução da “guerra tência junto a suas próprias comunidades lo-
humanos reafirmado por todos os governos, ao terrorismo” fizeram com que muitos cais. Essencialmente, não há condições para
e mais recentemente na Cúpula Mundial da governos quisessem restringir ou rever- que tais grupos reivindiquem seus direitos na
ONU, em 2005. ter a aplicação dos direitos humanos. forma prevista nos instrumentos de direitos
Um dos temas mais subestimados da As críticas aos direitos humanos vêm se humanos. Pensemos sobre isso no contexto
história dos direitos humanos nas últimas tornando mais disseminadas e explícitas, do mundo do trabalho: a grande maioria dos
seis décadas consiste na identificação do principalmente nos países mais ricos… A trabalhadores do mundo – inclusive os mais
quantum de influência moral, política e le- oposição e a influência cresceram juntas, pobres –, os que mais necessitam de prote-
gal exercida por aquele texto no mundo. A levando a um grau de desorientação.” 1 ção, estão no setor informal. Este fato cria um
Declaração Universal tem constituído fonte sério desafio prático para os governos.
de inspiração para toda a legislação inter- Bem sabemos que, a despeito do desen- Para criar condições de proteção dos
nacional do pós-guerra na área de direitos volvimento da legislação internacional de di- direitos humanos das comunidades muito
humanos. Seus dispositivos têm servido de reitos humanos nos últimos sessentas anos, pobres ou marginalizadas, os governos preci-
modelo para constituições e leis, regulamen- massivas violações a esses direitos conti- sam encontrar novos caminhos para alcançá- 13
tos e políticas internos de defesa dos direitos nuam a ser perpetradas nos dias de hoje. A las e atendê-las. Além disso, as organizações
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humanos. Acima de tudo, a Declaração tem elaboração de legislação formal não resultou de direitos humanos precisam encontrar no-
sido um símbolo de esperança para milhões em proteção universal aos direitos humanos. vas formas de conquistar a confiança dessas
de pessoas no decorrer de longos períodos O genocídio voltou a acontecer. As mulheres comunidades. A meu ver, a única maneira de
de opressão. e as minorias sofrem ampla discriminação no fazê-lo é por meio da celebração de parcerias
artigo Concretizando nossos compromissos

dos por um espaço de atuação da sociedade


civil e dos defensores dos direitos humanos,
tanto quanto pela garantia de que entre tais
sistemas formais e institucionalizados de de-
fesa e promoção dos direitos humanos e tais
atores da sociedade configure-se verdadeira
e efetiva dinâmica de relacionamento.
Os direitos humanos não podem ser
concretizados na ausência de instituições
efetivas e transparentes. Se os tribunais são
corruptos, sobrecarregados e ineficientes, os
direitos civis básicos reputam-se violados.
Se os ministérios sociais não têm recursos
e autonomia suficientes, ou seu quadro fun-
cional não é qualificado, os direitos básicos
de assistência à saúde, educação e moradia
adequadas não podem ser devidamente exer-
cidos. A construção e reforma dos aparatos
institucionais do Estado não é tarefa fácil ou
particularmente notável, embora essencial.
O tema do incentivo à capacitação de ins-
tituições me leva a refletir sobre um terceiro
desafio: definir as obrigações internacionais
com organizações que estejam presentes há Resguardar os direitos daqueles que vivem na mais concretamente. Nas últimas décadas
tempos nessas comunidades, tais como enti- pobreza é um desafio que todos devemos en- vem sendo amplamente reconhecida a ne-
dades religiosas, grupos comunitários, ONGs frentar, se quisermos criar sociedades mais cessidade de criação de uma espécie de
e outras. inclusivas, prósperas e justas. autoridade supranacional legitima, uma vez
A batalha pelos direitos humanos é ine- Assim, chegamos a uma segunda lição que a ação tomada em nível exclusivamen-
vitavelmente uma batalha por poder, e esta e desafio – fazer mais para apoiar os países te nacional não parece apta a resolver vários
batalha está geralmente ligada a batalhas em desenvolvimento na construção de seus complexos problemas mundiais. Conhece-
correlatas por recursos. Assim, a promoção próprios sistemas nacionais de proteção aos mos muitos desses problemas, como a mu-
sustentável de todos os direitos humanos de- direitos humanos. Por sistemas nacionais de dança climática, o comércio desigual, a dis-
pende de políticas e programas que abordem proteção, refiro-me aos arranjos institucio- seminação de pandemias e novas doenças,
as desigualdades econômicas e sociais. nais que, sob a égide regulamentadora do o comércio ilegal de armas e de pessoas, a
Descobrir maneiras de resguardar os di- ordenamento jurídico nacional e inspiração regulamentação e o monitoramento da tecno-
reitos garantidos por lei é outro aspecto vital nos compromissos internacionais assumidos logia nuclear, entre outros.
para o empoderamento dos marginalizados. pelo Estado, têm como objetivo garantir o Em todos esses casos, a coordenação
No ano passado, 2007, trabalhei para a Co- exercício e a proteção dos direitos humanos internacional e a ação coletiva se fazem ne-
14 missão de Empoderamento Legal dos Pobres, dos cidadãos. Incluem-se aí os tribunais, o cessárias se quisermos alcançar mudanças
presidida por Hernando de Soto e Madeleine Poder Legislativo, as instituições ou comis- positivas. A realidade é que hoje os Estados
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Albright. A Comissão enfatizou a importância sões nacionais de direitos humanos. Incluem- são incapazes de chegar a uma cooperação
do acesso à justiça e às demais garantias do se, ainda, os sistemas de saúde e educação, efetiva, à exceção de casos envolvendo evi-
Estado de Direito como condições para o assim como outros serviços públicos. Esses dentes interesses nacionais de curto prazo.
concreto exercício de todos os outros direitos. sistemas nacionais devem ser complementa- Tal fragilidade é também observável na seara
da legislação de direitos humanos, que ainda efetiva em questões globais e a capacidade uma sociedade estável e regrada é essen-
não alcançou patamar de desenvolvimento de atingir resultados provavelmente aumen- cial para o bom andamento do empreen-
suficiente para lidar com as responsabilida- tará, trazendo efeitos cada vez mais nocivos dimento. As empresas precisam assegurar-
des transnacionais dos Estados. para as pessoas e comunidades, assim como se que seus contratos serão devidamente
Vejamos os urgentes dilemas de direi- para a credibilidade política dos governos. observados com o respaldo dos juízes e tri-
tos humanos que nos são colocados pela A atual ausência de governos nacionais bunais de justiça, e que suas propriedades
mudança climática. Poucos negariam que o legítimos em muito locais, agravada pela e investimentos serão protegidos.
fenômeno tende a enfraquecer a capacidade governança internacional ineficiente, tem Quanto mais nos envolvemos nessas
de exercício de uma ampla gama de direitos direcionado o foco, cada vez mais, sobre as questões, mais percebemos que muito res-
humanos protegidos internacionalmente - o responsabilidades dos atores não estatais em ta ainda a fazer. Iniciativas voluntárias de
direito à saúde e mesmo à vida, o direito à matéria de direitos humanos. Dado seu po- responsabilidade corporativa, por exemplo,
alimentação, à água, à habitação e à proprie- der e influência no mundo de hoje, o setor como o Pacto Global das Nações Unidas, se
dade; os direitos dos povos indígenas e tradi- corporativo ocupou o centro deste debate. expandiram muito nos últimos anos, mas ain-
cionais, bem como os direitos associados à Definir de maneira mais precisa a natureza e da não conseguiram a adesão de empresas
sobrevivência e à cultura, à migração e reas- estatais de países com economia de mercado
sentamento; e o direito de segurança pessoal emergentes, os quais vêm se tornando atores
em caso de conflito. “Os direitos cada vez mais importantes no cenário global.
Os impactos mais drásticos da mudança Ao mesmo tempo, esforços empreendidos
climática provavelmente ocorrerão – e já es- humanos não por vários atores internacionais, coletivamen-
tão sendo vivenciados – nos países mais po- te, no intuito de construir responsabilidades
bres, nos quais os mecanismos de proteção a podem ser corporativas claras em questões temáticas
direitos costumam ser frágeis. As populações tais como violações aos direitos trabalhis-
cujos direitos são pouco protegidos têm me-
concretizados tas, ameaças à segurança pessoal e liber-
nos condições de conhecer e de preparar-se
para os efeitos da mudança climática, bem
na ausência dade de expressão, entre outros, geralmen-
te não se desenvolvem a ponto de firmar
como para demandar de maneira eficiente
ações do governo nacional ou da comunida-
de instituições mecanismos reconhecidamente legítimos
de comunicação e prestação de contas jun-
de internacional. Somado a isso, a responsa- efetivas e to ao público. Estes são enormes desafios
bilidade pelos impactos nos países mais vul- que ainda precisam ser enfrentados.
neráveis costuma não recair sobre o governo transparentes” Também é importante mencionar que o
mais próximo, mas sobre atores difusos, esforço necessário para integrar os valores
tanto públicos quanto privados, muitos dos de direitos humanos à cultura corporativa
quais estão distantes dos limites estatais. A o escopo das responsabilidades corporativas demanda recursos significativos para pro-
legislação de direitos humanos nem sempre é um quarto desafio para o futuro. gramas de treinamento e melhoria contí-
consegue ultrapassar as fronteiras para impor Todos sabemos que há diversos fatores nua. Passar aos funcionários uma mensa-
obrigações em questões como essas. subjacentes à grande ênfase que o setor gem de que a empresa acredita na ampla
empresarial vem emprestando aos direitos agenda de direitos humanos, que deve ser
Aesar do interesse crescente de defenso- humanos: fortes convicções éticas de alguns uma peça essencial nas decisões comer-
res de direitos humanos e organismos legais executivos líderes, cálculo de risco para a ciais em todos os níveis, é muito mais fácil 15
internacionais pelas chamadas obrigações reputação, o impacto da opinião pública, o na teoria do que na prática.
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“extraterritoriais”, novas regras e práticas co- comportamento dos pares e concorrentes, a John Ruggie, professor da Harvard’s Ken-
muns nesta nova área devem demorar a cons- lealdade e desempenho dos funcionários e nedy School of Government [Escola Kennedy
tituir-se. No curto prazo, a “lacuna de oferta” as novas políticas internacionais. Os líde- de Governo da Universidade de Harvard], no
entre a necessidade de ação internacional res de empresas reconhecem, ainda, que exercício de sua função como Representante
artigo Concretizando nossos compromissos

Especial do Secretário-Geral das Nações Uni- cadas ao emprego, à atividade econômica e to sustentável no futuro. Algumas grandes
das em direitos comerciais e humanos, tem à igualdade, além de maior cooperação com empresas, por exemplo, vêm se preparando
contribuído de forma inestimável nos últimos organizações especializadas nessas áreas, para analisar toda a sua cadeia de valores em
três anos ao enfatizar que todas a empresas como sindicatos e empresas. países em desenvolvimento, para descobrir
têm responsabilidade de respeitar os direitos Como podemos aumentar o poder dos como podem mudar seus processos locais
humanos. Em seu relatório mais recente, o mercados para os pobres? Se o principal de compras ou distribuição de modo a criar
professor Ruggie apresentou um marco polí- patrimônio desse segmento é o trabalho, mais empregos locais sustentáveis. Espero
tico que se baseia em três princípios: Prote- como podemos apoiá-los por meio de uma que possamos desenvolver mais essas me-
ger, Respeitar e Remediar. O marco envolve a legislação sobre trabalho decente -, ou seja, todologias no futuro.
obrigação do Estado de proteger contra os abu- um aparato legal que inclua não somente
sos aos direitos humanos cometidos por atores prevenção ao trabalho infantil e escravo, mas Uma Oportunidade de Reafirmar o
corporativos, a responsabilidade corporativa de também a criação de “condições justas e Direito Comum de Nascimento
respeitar todos os direitos humanos, e a neces- favoráveis de trabalho”, assim como “remu- O 60o aniversário da Declaração Univer-
sidade de emprego de medidas corretivas que neração justa e favorável”, capaz de prover a sal neste ano é uma oportunidade para que as
sejam efetivas. O Prof. Ruggie sugere que a res- existência humana digna, como determina a organizações, governos, universidades, gru-
ponsabilidade corporativa deve respeitar todos Declaração Universal dos Direitos Humanos? pos religiosos, empresas e outras instituições
os direitos humanos, e que deve ser efetivada Como podemos reafirmar a importância da no mundo todo reafirmem a importância dos
pelas empresas por meio de um conjunto defi- liberdade de associação e crescimento nos direitos humanos como garantias inerentes a
nido de ações, tais como: EUA e na Europa, se essa importância é ata- cada ser humano, e para que colaborem no
• Adoção de uma política de direitos hu- cada hoje em dia? estabelecimento de uma agenda positiva para
manos; Nós, da organização Realizing Rights, estes direitos no século XXI.
• Adoção de medidas pró-ativas para apoiamos os esforços da Organização Interna- Para aproveitar ao máximo esta oportuni-
entender como as atividades atuais e cional do Trabalho e de um número crescen- dade, a “Elders” – grupo de líderes forma-
propostas podem afetar os direitos hu- te de atores da sociedade civil que se unem do no ano passado por Nelson Mandela, do
manos; em torno do conceito de “trabalho decente”. qual tenho o orgulho de participar – lançou a
• Realização de atualizações periódicas Acreditamos que a ampla comunidade de ati- campanha “Todo Ser Humano tem Direitos”.
sobre o impacto e desempenho em direi- vistas em direitos humanos tem um impor- A campanha nos convida a um compromisso
tos humanos; tante papel a desempenhar, refletindo com de viver pelos princípios da Declaração Uni-
• Oferecimento ao público de mecanis- os líderes do setor privado sobre os desafios versal. Eu os convido a conhecer melhor a
mos eficientes de denúncia para lidar de gerar oportunidades de emprego decente, campanha e a se envolverem pessoalmente,
com os supostos casos de violação aos capazes de contribuir para o desenvolvimen- acessando o site – www.everyhumanhasri-
padrões de direitos humanos. ghts.org. Trabalhamos com vários parceiros
Por fim, vou me referir brevemente a um com o intuito de ajudar a reafirmar e recupe-
quinto desafio. Este diz respeito ao papel da “Algumas grandes rar a importância dos compromissos e obri-
geração de emprego e riqueza para a efetiva- gações baseados na Declaração Universal.
ção de uma série de direitos humanos. Até empresas vêm se Todos os seres humanos nascem livres e
agora, especialistas em direitos humanos
pouco disseram sobre essa questão. Valioso
preparando para iguais em dignidade e direitos. É isso que diz
o Artigo 1 da Declaração Universal. A frase
16 trabalho aplicando a perspectiva de direitos analisar toda sua é tão significativa e importante hoje quanto
humanos à análise orçamentária e à aloca- foi em 1948. Assumamos os direitos de que
cadeia de valores
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ção de assistência, por exemplo, vem sendo somos titulares desde nosso nascimento, e o
construído; nos próximos anos, entretanto, em países em usemos como pretendiam os elaboradores da
será necessário o desenvolvimento de novas Declaração Universal: para garantir os direi-
formas de análise dos direitos humanos apli- desenvolvimento” tos humanos a todas as pessoas.
Segurança pública
e direitos humanos
Ricardo Brisolla Balestreri é Secretário Nacional de Segurança Pública, Membro
“Creio firmemente que
do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos/SEDH, do Comitê Nacional para
Combate à Prática da Tortura/SEDH e da Comissão Estruturadora da Universidade Federal
enquanto os homens não
Latino-americana (UNILA-MEC). As opiniões pessoais do autor, reproduzidas no presente
texto, não representam posições do Governo Federal ou de qualquer das instituições de que o conseguirem encontrar
mesmo faça parte.
uma forma de desistir da
violência para resolver
seus conflitos, e não
encontrarem uma forma
de conviver sem recorrer à
violência, quer se trate da
violência das instituições,
quer da violência daqueles
que tentam destruir essas

H
á 60 anos, por decisão da Organiza- e pródigo em termos de direitos civis e polí-
ção das Nações Unidas, o mundo deu ticos - um viés avaliativo obviamente herdado
mesmas instituições, o
um salto gigantesco em sua história do marxismo mecanicista vulgar, que conside-
moral, aprovando a Declaração Universal dos ra os elementos “estruturais” como determi-
curso da história continuará
Direitos Humanos. nantes dos “superestruturais”. Por essa visão,
Pela primeira vez, um roteiro formal, su- tudo o que não reordene o modo de produção
a ser o que sempre foi,
ficientemente consensual entre as nações, e não gere, imediatamente, melhor distribui-
ou seja, uma monótona e
reconheceu direitos individuais e também ção de riquezas, merece desconfiança e des-
17
coletivos, superando teoricamente milenares dém. Os resultados de tal equívoco conceitual
quase obsessiva tragédia de
privilégios e preconceitos classistas, étnicos, e prático, os conhecemos através da história
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sexistas, etários, culturais. do “socialismo real”. Há quem insista, contu- lágrimas e sangue.”
Infelizmente, há quem desdenhe dessa do, nessas fórmulas jacobinas, verticalistas,
vitória, por julgar tal roteiro como insuficiente autoritárias, sempre frutos da “magia” de um (Norberto Bobbio)
no campo dos direitos sociais e econômicos poder emanado, invariavelmente, de cima.
artigo Segurança Pública e Direitos Humanos

Quem o faz, no mais das vezes, pensa estar “de baixo para cima”. Assim, princípios que
criticando, “pela esquerda”, as “ingenuidades garantam, por exemplo, as liberdades de or-
pequeno-burguesas” da militância dos direitos ganização e expressão, incidem, sempre, ne-
humanos. Sem querer, repete a lógica lempe- cessária e obrigatoriamente, sobre o aprofun-
duzana que, veladamente, nas novas formas, damento da democracia também no campo
preserva os velhos conteúdos, “mudando tudo social e econômico. Bem-estar se conquista.
para que nada mude”. Na verdade, sempre que Não se ganha de brinde, por conta de benfei-
não se critica a dinâmica do poder, particu- torias das classes dominantes.
larmente sua verticalidade tradicional, se está A Declaração Universal de Direitos Hu-
replicando uma forma conservadora de pensar manos fez bem, portanto, em destacar os
e ordenar o mundo. Uma lógica “de direita”, direitos civis e políticos. É por eles que se
portanto (aliás, antes que - por modismos de pode superar a heteronomia, construindo
pretensa pós-modernidade - me censurem e conquistando o caminho para um mundo
pelos termos aqui utilizados, preciso declarar mais justo. Obviamente, portanto, continua
total adesão a Norberto Bobbio quanto à con- sendo uma inócua candura clamar por algum
tinuidade da adequação da díade “esquerda” e tipo de declaração universal de melhor distri-
“direita” para uma compreensão analítica, um buição das riquezas.
posicionamento axiológico e uma postura de Como percebe o leitor, iniciei este artigo
intervenção no mundo contemporâneo: pela crítica do conservadorismo de esquerda,
no que atine à avaliação da luta pelos direitos
“Como já afirmei várias vezes a propósito humanos. O objetivo é tentar identificar as
daquilo que chamei de ‘as grandes dico- causas do isolamento e fragilização de tal luta
tomias’ em que qualquer campo do saber no contexto da sociedade brasileira contem-
está dividido, também da dupla de termos porânea para, na seqüência, arrolar elemen-
antitéticos direita e esquerda pode-se fa- tos de auto-isolamento e auto-fragilização,
zer um uso descritivo, um uso axiológico, particularmente no que se refere à relação
um uso histórico: descritivo para dar uma da militância tradicional de DH com o pode-
representação sintética das duas partes roso drama que se desenvolve no campo da
em conflito; axiológico, para exprimir um segurança pública. É claro que, antes disso,
juízo de valor positivo ou negativo sobre precisamos passar também pela crítica do
uma ou outra das partes; histórico, para pensamento predominante (quase “pensa-
assinalar a passagem de uma parte a ou- mento único”, em que pese uma qualificada
tra da vida política de uma nação. O uso presença pessoal, mas inorgânica e ideolo-
histórico, por sua vez, pode ser descriti- gicamente insípida - ímpar em termos his-
vo ou valorativo...A árvore das ideologias tóricos - de políticos de esquerda em postos
está sempre verde. ...Além do mais, não executivos e legislativos) no Brasil presente:
há nada mais ideológico do que a afirma- o pensamento da direita.
ção de que as ideologias estão em crise.” Emmanuel Rodríguez, autor de El gobier-
18 (Direita e Esquerda. Norberto Bobbio). no imposible, trabajo y fronteras en las metró-
polis de la abundancia, durante o Seminário
Revista Direitos Humanos

Evidentemente, na história humana, as NUEVA DERECHA: IDEAS Y MEDIOS PARA LA


verdadeiras transformações (diferentemente CONTRARREVOLUCIÓN, ocorrido em 2006 na
das meras “mudanças”) se dão, invariavel- Espanha, destacou a predominância mundial,
mente, em verticalidade anti-hegemônica, nos dias que seguem, de uma “nova direita”,
“Bem-estar se conquista. Não
se ganha de brinde, por conta
de benfeitorias das classes
dominates”
fortemente fundada no populismo e na dema- sus propias medidas represivas” (Seminário
gogia e emanada principalmente dos Estados Nueva Derecha: Ideas e Medios para la Con-
Unidos, tendo se espraiado, inclusive, pela trarrevolución-Espanha, 2006).
Europa. O risco representado por tal movi- Penso que tal característica está forte-
mento é, no mais das vezes, subestimado. mente presente também no Brasil, onde o
Contudo, há nele potência germinal para de- pensamento da direita (se é que se pode de-
sestabilizar os consensos de governabilidade nominar assim tal presente conjunto de clichês)
entre forças progressistas e conservadoras é quase um mero sinônimo de senso comum.
mais tradicionais, presentes nas democracias Não se suponha, contudo, que por suas carên-
ocidentais. cias conceituais e filosóficas, por seu empiris-
Em meio a um momento em que o sis- mo, por sua arrogância moldada na ignorância,
tema democrático representativo vive uma seja um pensamento de pouca expressão e de
forte crise de legitimidade, o discurso dessa pouca extensão. Ao contrário, vitima-nos, como
nova direita logra estabelecer uma ponte de dissemos acima, praticamente como pensa-
comunicação direta com setores muito am- mento totalitário e totalizante.
plos da sociedade, seduzindo e congregando Por ser senso comum, igualmente, não
pessoas de segmentos bastante diversos (in- se suponha - em equívoco de ingenuidade
cluindo muitas que, outrora, se encontravam espontaneísta - que provenha da “malta”. Em
à esquerda). É uma retórica marcadamente sociedades do tipo da nossa, tecidas de com-
agressiva, não comedida, rupturista, que tra- plexos mosaicos desordenados, urbanizadas,
balha a incorporação de categorias “morais” industrializadas, de serviços, consumistas
como fatores de alavancagem emocional do mas excludentes, desenraizadas, “americani-
debate político, aproveitando-se, paradoxal- zadas” no arremedo, midiatizadas e idiotiza-
mente, da crise crônica de anomia inerente ao das, onde os “sistemas de ensino”, a par da
estado neo-liberal que sustenta. Em tal dire- fragilidade conteudística, caracterizam-se por
ção, propõe “medidas excepcionais”, trocan- um enorme vazio no campo do que Piaget de-
do a liberdade pela segurança, por exemplo, finiu como “juízo moral”, o senso comum se
com o fito de combater fantasmas externos (o molda no tecnicismo universitário sem trans-
terrorismo, no mundo rico) ou internos, em versalidade humanística, nas banalidades,
todas as partes (o narcotráfico, a delinqüên- futilidades, silêncios e histerias dos meios
cia, a imigração, a pornografia, etc.). de comunicação, na “cultura” de mercado
“Lo más paradójico”, sublinhou Emma- e de manada. O senso comum, no Brasil, é 19
nuel Rodríguez, “es que esta nueva derecha, de elite. Obviamente, replica-se nas classes
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en un tan perverso como eficaz circulo vicioso populares. Daí, sua aplastadora força.
de autolegitimación, ha logrado aprovecharse Como quase todo pensamento ordinário, o
de los miedos y miserias morales que provo- nosso também aninha uma vasta gama de pre-
can las políticas neoliberales para justificar conceitos, de mitos manipulatórios, de ódios e
artigo Segurança Pública e Direitos Humanos

rancores, de “certezas” e “explicações totais”. Por aqui, não é causa de estranheza tantos televisión, publicaciones periodísticas,
O senso comum, como expressão emocional “autos de resistência” dos pobres, nem tanta tanto digitales como en papel, weblogs...)
das massas, no mais das vezes, se nutre de pena de morte de fato, nem tanto “ladrão de como instrumentos propagandísticos”.
sombras. Por isso, sobre-valoriza o poder e a galinha” se estragando em extemporâneas e Además lo ha hecho re-apropiándose
força bruta, encara como fragilidade a com- criminógenas masmorras medievais. É claro de herramientas contrainformativas que
paixão, enerva-se com a inteligência, ojeriza a que estranhamos quando essas coisas atin- empezó a desarrollar la izquierda radical
ousadia, a criatividade e a diferença. gem gente “nossa” - das classes média e alta en las décadas de los sesenta y los se-
Por isso rejeita os direitos humanos e a - pelo que levantamos grandes ondas hipó- tenta. Así, frente al rigorismo formal de
sua militância. critas de indignação passageira! A mídia nos los medios “serios” convencionales, des-
É um notável paradoxo o fato de nosso acompanha: fala quando consensuamos e pliegan una retórica hiperbólica y agresiva
país, cada vez mais progressista e moder- cala quando convém. Nos retro-alimentamos. que abusa del sarcasmo y de la soflama
nizado, cada vez mais “encaixado” na eco- A maioria dos nossos especialistas midiáti- y basa sus denuncias en hipótesis y es-
nomia global, expressar-se de forma tão cos, aliás, só expressa o conceito de organi- peculaciones fuertemente tendenciosas y
intensamente anacrônica e pobre no campo cidade quando se trata da vinculação com a escasamente contrastadas (pues su obje-
das humanidades, das “idéias de fundo”, dos própria mídia. Atacar nas sístoles indignadas tivo no es la búsqueda de la verdad, sino
projetos de sociedade. e sumir nas diástólicas fases alienadas. el desgaste del adversario)”.Seminário
Por aqui, a sociedade reage de forma bla- Resultados? Nada de novo, nada de pro- Nueva Derecha: Ideas e Medios para la
sé em relação a crimes ocorridos no período positivo. Contrarrevolución-Espanha, 2006.
20 ditatorial. Não nos horrorizamos, como em
outros lugares. Por aqui, repercute pouco a “La nueva derecha”, aseguró Emmanuel Em tal quadro, como surpreender-se que
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presença de gente agressivamente fascista, Rodríguez, “ha sido capaz de adecuarse se tratem os direitos humanos como “defesa
exibindo sua pobreza de espírito nas ruas, perfectamente al nuevo orden mediático, de bandidos”? (Em setores mais conservado-
vestindo camisetas com fotos de generais utilizando todo tipo de medios comuni- res das polícias e das forças armadas também
ditadores e os dizeres: “eu era feliz e sabia”. cativos (emisoras de radio, cadenas de são tratados como “coisa de veados”).
“Como chocar-se diante da
violência doméstica, das mulheres
apanhando e sendo traídas, das
crianças e idosos vilipendiados?”
Obviamente, não estamos sozinhos no erroneamente, fundamenta-se em dores e
quadro internacional, como afirmamos acima. restrições reais que precisam ser cuidadas.
Somos, contudo, uma espécie de replicação É aí que entra a galvanizadora questão da
piorada, pela falta de alternativas relevantes à segurança pública.
burrice única. Uma espécie de corpo que se Quero afirmar, com isto, uma genérica
vai desenvolvendo, formando musculatura, falta de compreensão histórica da mili-
mas sofrendo de anencefalia. Coisa de cultu- tância de direitos humanos em relação ao
ra periférico-dependente. tema da segurança como pauta positiva e
Procurei caracterizar, até aqui, a falta de propositiva, da sua importância não ape-
“cobertura” para a nossa causa, à esquerda nas para o Estado, mas para a Nação, de
e à direita. sua relevância para a democracia e para o
desenvolvimento. Tal incompreensão levou
Mais: como chocar-se diante da violência No dizer de Marco Mondaini (Direitos nossa dedicada e abnegada comunidade de
doméstica, das mulheres apanhando e sendo Humanos, Editora Contexto, São Paulo, DH, em poucos anos de democracia, a um
traídas pelos machões, das crianças e idosos 2006), “seja na sua versão neoliberal, dramático isolamento, revelado nas evidên-
vilipendiados? Como pasmar à frente do pre- que procura identificar nos direitos hu- cias empíricas do dia-a-dia, mas também
conceito racial, homofóbico, estético? É bas- manos uma barreira à realização racional em inúmeras pesquisas de opinião sobre
tante óbvio que, nesse contexto, se naturalize da lucratividade pelo livre-mercado; seja diversos temas que nos são atinentes.
a violência para “acabar com a violência”, se através da matriz marxista ortodoxa, que Diante disso, ao invés de revermos
prestigie a “lógica da eliminação” dos crimi- busca observar nos direitos humanos nossas metodologias e particularmente
nosos mas também dos diferentes. Dá tudo nada mais do que um conjunto de forma- nossos processos de comunicação, nos
na mesma e está “tudo dominado”, pela via lidades responsáveis pelo encobrimento empedernimos na certeza do acerto de
direita (que, por sua inconsistência teórica, da estrutura de classes e da luta entre nossas posições e na convicção do atraso
de maneira geral, não se sabe e nem se as- estas no seio da sociedade capitalista, e do reacionarismo da mesma sociedade
sume como tal). sendo, por isso mesmo, nada mais que que defendemos. E, ainda que tenhamos
Lamentavelmente, o mesmo Brasil que direitos das classes dominantes; ou ainda razão, vamos justificando e agravando o
ruma celeremente para o primeiro mundo, na linha extremamente vulgar que define dizer bíblico: “são como pastores sem re-
no campo econômico, dele se encontra pa- os direitos humanos como ‘direitos de banho, que se apascentam a si mesmos”.
teticamente distanciado no campo simbóli- bandidos’, o que se percebe claramente É claro que a comunidade de direitos
co. Em que país civilizado ou em verdadeiro é a incapacidade de compreender a fundo humanos não é um bloco monolítico e nem
processo civilizatório se poderia encontrar seu caráter universal e democrático.” todos os segmentos se enquadram na ca- 21
tanta aversão a direitos humanos? Esse é, tegoria acima. Lamentavelmente, contudo,
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contudo, o nosso cenário real e - ainda que O quadro poderia não ser tão ruim, parece-me que a maior parte de nós - do
doa - creio ser necessário olharmos corajosa contudo, se não tivéssemos ajudado a ponto vista da compreensão, dos conhe-
e criticamente as nossas piores misérias: as agravá-lo com nossa incompreensão de cimentos, da identificação com a causa
“espirituais”. que o senso comum, ainda que conclua da segurança pública como também uma
artigo Segurança Pública e Direitos Humanos

causa popular e de direitos humanos - cas, alcançadoras não apenas dos direitos precisa ser transformado. Se não tivermos
encontra-se paradigmaticamente paralisa- de ordem material mas também daqueles disposição para entrar nos quartéis, dele-
da nos anos setenta, quando vivíamos na de ordem subjetiva: balizamentos legais gacias, salas-de-aula de academias, con-
zona de risco da ditadura mas igualmente e éticos, mediação de conflitos, educa- selhos comunitários de segurança, postos
na zona de conforto da aprovação popular, ção pública de qualidade, liberdades de de polícia comunitária, não para atacarmos
heróis e heroínas de um mundo bipolar. Tal expressão, de organização, de ir e vir, de os policiais (o que abreviaria muito nossa
crítica, a faço com respeito e compaixão, criar e empreender. presença junto a eles) mas para ajudá-los
uma vez que, por anos, estive “preso” na Tal vácuo de presença do estado demo- a construir modelos alternativos de poli-
mesma torre. crático de direito gerou ambiência para o ciamento e atendimento das comunida-
Não foi fácil descer dela e ir para a estabelecimento de “governos” totalitários des, modelos com a cara da democracia,
planície da democracia, enfrentando a vida do crime organizado, que utilizam-se de sempre teremos algum programa de TV nos
como a vida é, com sua complexidade, tais áreas para estoque de armas e drogas, chamando para a crítica mas não teremos
contradições e desafios supra-pessoais. venda varejista e recrutamento de mão-de- uma polícia de proximidade, cuidando com
Não foi fácil, no início, encontrar, nas salas obra barata, além de outras atividades cri- cidadania dos cidadãos.
de aula, a polícia da qual eu tinha tantas minosas associadas. Assim, grande parte
vezes apanhado e muito menos aquela que dos pobres deste país se encontra, ainda, ...”Torna-se inquestionável a prioridade
por dois sofridos anos me havia processa- sob o tacão de uma ditadura empresarial na garantia de segurança para os pobres.
Estes são os mais atingidos em tudo, es-
“Grande parte dos pobres deste premidos que estão entre a violência da
polícia (são os eternos suspeitos) e a vio-
país se encontra, ainda, sob o lência da criminalidade comum. São eles

tacão de uma ditadura empresarial as principais vítimas do narcotráfico, das


balas perdidas, dos assaltos e estupros,
ilícita, covarde e sanguinária” da violência nas escolas”(Benevides, Ma-
ria Victoria, Direitos Humanos:Desafios
do. Foi, contudo, um enfrentamento deses- ilícita, covarde e sanguinária. São eles, os para o Século XXI, in Educação Em Direi-
quizofrenizante e necessário como serviço que não possuem recursos para enclausu- tos Humanos:Fundamentos Teórico-Me-
a uma democracia que precisa devolver a rarem-se em condomínios privados e se- todológicos, vários, Editora Universitária,
sua polícia ao povo. Mais do que parte do guros, as maiores vítimas da insegurança João Pessoa, 2007).
problema, optei, com vários outros com- pública. São, também eles, as maiores
panheiros e companheiras, por fazer parte vítimas de padrões de policiamento equi- A par de tudo isso, três fatores vêm sen-
das soluções. vocados, invasivos, reativos, truculentos, do apontados por expoentes da comunidade
Creio que, a estas alturas, faz-se ne- criminalizadores da pobreza. Os nossos acadêmica internacional como gêneses do de-
cessário o resgate de uma aparente ob- eventuais “escrúpulos” em não nos apro- senvolvimento nacional: a formação de redes
viedade que, contudo, é insuficientemente ximarmos da polícia não os ajudam em de voluntariado e engajamento cidadão, o livre
enfrentada: porquê o tema da segurança nada. Ao contrário, os mantêm presas de empreendedorismo popular e o acesso demo-
pública se tornou tão crucial para a nação um sistema servil junto aos criminosos e crático à educação de qualidade, construtora
brasileira, como revelam as pesquisas de de pânico quando da presença policial. da autonomia intelectual e do juízo moral dos
22 opinião? Nossas meras atividades de denúncias, indivíduos.
Inicialmente, porque a maioria dessa que sempre serão imprescindíveis para o Pesquisas do Departamento de Es-
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nação se encontra, historicamente, na or- aprimoramento democrático, têm se reve- tudos Internacionais de Harvard, condu-
fandade em relação aos poderes públicos, lado insuficientes e mesmo pífias quando zidas pelo professor Robert Putnam (um
vivendo em áreas de carência ou mesmo se trata da mudança de um sistema que, dos referenciais teóricos do PNUD/ONU),
de quase total ausência de políticas públi- mais do que “consertado” pontualmente, comprovam que o desenvolvimento dos
países passa, ao longo da história, neces- Várias pesquisas feitas nas duas últimas fator intimidador e dissuasório do estímulo
sariamente, pela edificação das chamadas décadas comprovam a importância da criati- e da coragem para abrir negócios, para em-
“redes de engajamento cívico”, ou seja, vidade e do empreendedorismo popular, no preender. Assim, prejudicado ou impedido
pelas teias de voluntariado social organi- campo econômico, como elementos defla- está o segundo elemento indispensável do
zado que debelam a cultura de passividade gradores dos processos de desenvolvimento “caldo de cultura” do desenvolvimento.
popular e constroem alternativas popular- nacional. É o caso da realizada pelo historia- O terceiro e último, igualmente impor-
mente sustentadas de bem estar. Tais teias dor David Landes, também da Universidade tante, é o direito e o acesso à educação
enriquecem e estimulam a qualidade das de Harvard, sobre a riqueza e a pobreza das pública de qualidade. Aqui, encontramos
ações do Estado que, de alguma forma, as nações, bem como de diversos outros estu- uma das raras unanimidades no campo das
reflete. Por esta razão, se almejamos que dos, especialmente aqueles que versam so- ciências históricas e sociais. Praticamente
as democracias representativas contem- bre as causas do bem estar contemporâneo todos os estudos e pesquisas acadêmicos
porâneas agreguem caráter socializador de de países da Europa do Norte. contemporâneos sobre desenvolvimento
bens e serviços, precisamos aumentar, ne- Da mesma forma que no item anterior, o nacional comparado creditam à educação a
las, os espaços e os saberes acumulados predomínio, em bolsões geográficos, do po- diferença entre o atraso e o desenvolvimen-
pela participação direta. der de organizações criminosas representa to. Educação envolvendo “escolarização”
um interdictu à criatividade e aos empreen- mas não apenas. A escolarização é uma
Conforme Putnam,”as comunidades se dimentos dos segmentos pobres da popula- necessidade mas não é, necessariamente,
desenvolvem, em resumo, devido às re- ção, em nossa realidade a ampla maioria. É educação. Para que o seja, é preciso que
des e associações. Nessas comunidades, preciso obter licenças dos grupos delinqü- se desenvolva, através do currículo objetivo
os cidadãos são engajados nos negócios ências e, em muitos casos, tornar a atividade (com suas temáticas e metodologias), do
públicos, confiam uns nos outros e obe- subsidiária pelo pagamento de “pedágios” e “currículo oculto” (com suas práticas re-
decem à lei. Solidariedade, participação propinas, em espécie ou em gêneros. Até lacionais) e dos “saberes prévios e locais”
cívica e integridade são valorizados. Elas mesmo a violência da criminalidade ordiná- dos sujeitos do processo, buscando a cons-
se tornaram ricas porque havia civismo ria e desordenada, que tanto aplasta o dia-a- trução da autonomia intelectual e do juízo
e não o contrário. O engajamento cívico dia das populações urbanas, funciona como moral dos mesmos.
parece ser condição do desenvolvimen-
to, independentemente de estruturas de
governo, estabilidade social, partidos po-
líticos ou ideologia.”

É gravíssimo, contudo, o interdictu re-


presentado pela violência das organizações
delinqüenciais à livre expressão e organi-
zação popular. Nos bolsões habitacionais
onde domina o crime, são escassas as pos-
sibilidades do soerguimento quantitativa-
mente significativo de lideranças populares
autônomas, que não estejam contidas ou
corrompidas pelas práticas criminosas.
Obstaculiza-se, assim, o primeiro ele-
mento indispensável do “caldo de cultura”
que leva ao desenvolvimento.
O segundo elemento é o livre empreen-
dedorismo.
artigo Segurança Pública e Direitos Humanos

Isso significa que a escola precisa economicamente. Ora, com as maiorias “Os Governos são demasiado burocráti-
constituir-se em instância crítica de pro- excluídas de uma educação de qualidade, cos. Suas reações são muito demoradas.
vocação intelectual e ética, em instituição fecha-se a terceira passagem para os ca- Eles estão envolvidos em tantas relações
de reserva moral, em campo contra-hege- minhos do desenvolvimento. A segurança exteriores que requerem consultas e acor-
mônico de contestação do discurso único, pública, uma vez mais, é fator preponde- dos com aliados, e têm de atender a tantos
da banalização perversa da violência, da rante para a qualidade do crescimento que grupos nacionais de interesse político que
“lógica da eliminação”, da competitivi- almejamos. demoram demais a reagir a iniciativas toma-
dade destrutiva, do machismo e do ethos Assim, ao lado do emocionalismo na das por senhores das drogas ou fanáticos
guerreiro masculino, da opressão das di- maior parte das vezes rancoroso e direitista religiosos e terroristas.
ferenças individuais, do consumismo e do do senso comum (no sentido da replicagem Em contrapartida, muitos dos Gladiadores
narcisismo hedonista, do predomínio da da retórica demagógica e mistificadora, que Globais, guerrilheiros e cartéis de drogas
força sobre a compaixão e a inteligência. apresenta paradoxalmente a violência como em particular, não são burocráticos e são,
Ora, tal cultura crítica, humanista, políti- fator refreador ou eliminador da própria até, pré-burocráticos. Um só lider carismá-
ca, autonomizante, não se coaduna com a violência) em relação à segurança pública, tico dá as ordens com rapidez e com um
indústria da violência e do crime. Uma es- sobrevive uma intuitiva sabedoria popular efeito arrepiante - ou mortal. Em outros ca-
cola com tais características dificilmente que precisamos resgatar e elevar ao pata- sos, não está claro quem realmente são os
sobreviverá, como enclave libertário, em mar da inteligência, da articulação racional. líderes. Os Governos saem cambaleando,
meio a comunidades pobres, dominadas, Essa intuição se apresenta nas pesquisas de confusos, dos conflitos com eles.”
por exemplo, pela tirania do narcotráfico. opinião, dando contas de que segurança é
Qual a segurança dos operadores por ex- a maior demanda e preocupação popular. Recordemos, ainda nesse contexto, que tal
celência desse sistema, os professores? É razoável acreditar que, na prática, o povo desvantagem paira sobre as cabeças dos cida-
Como poderão ousar intelectualmente, compreende que sem segurança será im- dãos como uma permanente tentação autori-
favorecer atividades associativas, ques- possível expressar-se e organizar-se livre- tária por parte dos governos em democracias
tionar o entorno, em escolas cercadas, mente, reivindicar, criar, empreender, fazer mais jovens e inseguras, às vezes escudada no
infiltradas, invadidas ou eventualmente negócios, aprender e ensinar. Sem seguran- senso comum, disposto a abdicar de liberda-
fechadas por confrontos entre gangues e ça, o povo percebe que é refém. des em nome de maior segurança.
grupos criminosos ou entre estes e a po- Como um derradeiro argumento aos par- Quis elencar, neste breve texto, uma série
lícia? Como trabalharão com seus alunos ceiros de luta pelos direitos humanos, su- de motivos para que nos dediquemos a estudar
o respeito ao próximo, a auto-estima e a blinhador da centralidade, em tal campo, do mais e a atuar mais no campo da segurança
auto-preservação, os limites diante dos direito à segurança pública, quero lembrar pública, a partir da óptica dos direitos huma-
direitos humanos pessoais e alheios? que o desenvolvimento amplo de uma cultu- nos. Se aí residem os nossos maiores proble-
Conforme pesquisa do IBOPE (divulgada ra de respeito e promoção da dignidade in- mas, residem também as melhores soluções.
em junho de 2007), seis em cada dez bra- dividual e coletiva só é possível em contex- Reside, talvez, a própria recuperação de nossa
sileiros acima dos 16 anos acham que a es- tos democráticos, e que o crime organizado, credibilidade junto àqueles que são os sujeitos
cola não é um lugar seguro(IBOPE, Pesquisa com seus processos transversais de poder e da intervenção de nossa militância.
Telefônica Nacional sobre Educação para a corrupção, constitui-se na maior e mais real De minha parte, tenho procurado manter
Agência Nova S/B). ameaça às democracias no mundo inteiro. coerência com estas palavras, através das
Se não há liberdade de ensinar e apren- Nesse sentido, destaco a lúcida análise de ações da Secretaria Nacional de Segurança
24 der, particularmente de construir valores so- Alvin Toffler, reveladora das incontornáveis Pública. Neste momento, 140 mil policiais,
lidários, pode haver escola mas não haverá dificuldades oficiais nos sistemas formais bombeiros, agentes penitenciários e guardas
Revista Direitos Humanos

educação. Uma vez mais, em tal quadro, os democráticos, sujeitos à transparência e ao municipais se encontram participando de nos-
pobres são sobre vitimados, perpetuando-se controle público e, portanto, submetidos a sa rede de ensino à distância e, pelo segundo
seu afastamento das possibilidades de com- estruturas mais burocráticas, ao lado da ce- ciclo consecutivo, o curso de direitos huma-
preender criticamente e ascender política e leridade informal do crime: nos é o espontaneamente mais procurado. Em
outra ação inédita no contexto internacional - a inteligência, a técnica, a racionalidade, a Ao encerrar, quero salientar que ações
em uma avaliação justa e sem qualquer ufanis- dimensão preventiva e pedagógica. transformadoras de cultura, como essas, não
mo - reunimos, financiamos e orientamos 66 As notícias também não chegam porque são uma exclusividade do estado. Certamente,
instituições de ensino superior e 82 cursos de a maioria dos intelectuais que conhecem de o estado faz muito em extensão mas as ONGs,
pós-graduação latu sensu em segurança pú- perto o valor dessas iniciativas, evita, na mídia, Fundações, Grupos Culturais, Sindicatos, Mo-
blica. Estamos articulando os primeiros onze qualquer forma de reconhecimento. O temor da vimentos e também os indivíduos que assu-
cursos de graduação e os primeiros mes- suposta condição de “chapas brancas” os faz mem uma perspectiva militante no campo dos
trados. Para os policiais que tenham ficha apresentarem-se na perspectiva exclusiva da Diretos Humanos são os grandes semeadores
limpa, queiram estudar e recebam baixos crítica e da desconstrução. Preservam, assim, da qualidade do processo. Por isso, pautar
salários, a União acresce R$ 400,00 men- seus espaços e simpatias junto aos pauteiros como prioridade a questão da segurança pú-
sais por cinco anos (o “bolsa formação”) e editores, ainda que soneguem à nação o fato blica, no âmbito da convergência e do prota-
e ainda oferece um plano habitacional que de que, ao lado de tantas coisas negativas - gonismo da causa dos direitos humanos, a par
poderá chegar a 37.000 residências dignas, que devem ser criticadas - também há espe- de romper o cerco do isolamento e conquistar
com prestações um pouco superiores a R$ rança, também há gente trabalhando muito fatias maiores de apoio social, acrescerá força
200,00/mensais. Todos os nossos cursos para fazer a diferença, para não plantar “mais na construção de uma ambiência para que o
são transversalizados pelo tema gerador do mesmo” e colher os mesmos resultados. A povo brasileiro possa se desenvolver em paz.
dos direitos humanos, que também aparece falta da socialização das pautas positivas, além Deixo-vos, pois, nesta linha, com a lucidez, a
com explicitude em todos. Nossos policiais de aplastar a população no sentimento de im- sabedoria, e o bom desafio de Paulo Freire, ele
pós-graduandos, por exemplo, têm estudos potência, abre espaço para que boas políticas mesmo um vitorioso nos grandes desafios:
obrigatórios sobre a igualdade racial, sobre públicas de estado fiquem sob maior risco
a questão de gênero (não apenas em rela- histórico, estando à mercê das sucessões e ““É absolutamente indispensável que o
ção aos direitos da mulher mas também à eventuais leviandades de governos. Na socie- povo todo assuma, em níveis diferentes,
análise crítica do ethos guerreiro masculino, dade do espetáculo, joga-se mais pela fama mas todos importantes, a tarefa de refazer
inclusive dentro de suas corporações), sobre e menos pela responsabilidade. Conheço di- a sua sociedade, refazendo-se a si mes-
combate à homofobia e liberdade de orientação versas figuras referencias que sabem do muito mo também. Sem esta assunção da tarefa
sexual (há também um módulo sobre o tema que se está realizando, que particularmente maior - e de si mesmo na assunção da ta-
no ensino à distância) e sobre direitos etários aprovam com entusiasmo diversos programas refa - o povo abandonará a pouco e pouco
(crianças, adolescentes e idosos). Hoje, todos mas que, publicamente, dizem que “nada saiu a sua participação na feitura da história.
os projetos estaduais que analisamos estão do papel”. Uma pena, mas não diminui a in- Deixará, assim, de estar presente nela e
obrigados à construção de malhas de policia- tensidade e nem os efeitos junto às bases. Elas passará a ser simplesmente nela repre-
mento de proximidade e estamos alcançando mesmas, com o tempo, terão voz. sentado”.
quase 30 mil policiais formados em cursos
especiais de polícia comunitária. Não seria
BIBLIOGRAFIA
adequado, aqui, continuar a lista. A intenção
é apenas apresentar alguns drops ilustrativos 1.BOBBIO, Norberto, As Ideologias e o Poder em Crise.Editora UNB, Brasília, 1999;
de uma praxis. Possivelmente, a maioria dos 2.BOBBIO, Norberto, Direita e Esquerda. Editora UNESP, São Paulo, 1995;
leitores não saiba disso. A mídia brasileira, 3.RODRÍGUEZ, Emmanuel ,El Gobierno Imposible -Trabajo y fronteras en las metrópolis de la
hoje, tem pauta muito negativa e desconstru- abundancia. Editora Traficantes de Sueños, Madrid, 2003;
tora. Notícias assim não têm espaço. Mas nem 4.MONDAINI, Marco, Direitos Humanos. Editora Contexto, São Paulo, 2006; 25
por isso deixam de significar uma revolução 5.Vários, Educação em Direitos Humanos: Fundamentos Teórico-Metodológicos. Editora Uni-
Revista Direitos Humanos

silenciosa na cultura da segurança públi- versitária, João Pessoa, 2007;


ca brasileira. Os resultados, com certeza, 6.PUTNAM, Robert, Comunidade e Democracia. Fundação Getúlio Vargas Editora, 1996;
virão junto a uma nova geração de líderes 7.TOFFLER, Alvin, Powershift-As Mudanças do Poder. Editora Record, Rio de Janeiro, 2003.
policiais, que privilegiará a cientificidade,
artigo Direito à memória e à verdade

Marco Antônio Rodrigues Barbosa é


Advogado. Foi presidente do Conselho Estadual de Defesa
da Pessoa Humana e presidente da Comissão Justiça e
Paz de São Paulo. Atualmente, é presidente da Comissão
Especial sobre Familiares de Mortos e Desaparecidos.

direito à memória
e à verdade
Marco Antônio Rodrigues Barbosa
Introdução nas como mera questão teórica, discursiva derada como o primeiro dos valores.

F
ormulo as seguintes premissas como e de enunciados; são também de natureza Ainda por direitos humanos não devemos
pontos de partida para as demais re- prática, sem os quais não há paz. Entendo, considerar somente aqueles em favor do in-
flexões sobre o objeto deste trabalho: por fim, que tais direitos só têm sentido, divíduo como criatura, mas também os que
entendo que os direitos humanos, cujo dis- para a consecução do bem comum, com a pertencem a cada um de nós enquanto inte-
curso tem longa tradição, além de seu con- plena realização e promoção da dignidade grantes de uma coletividade. A liberdade, um
26 teúdo ético e moral, são parte integrante de humana. Aliás, assim reconhece a Consti- dos direitos humanos fundamentais, mesmo
um contexto histórico, à medida que estão tuição Federal de 1988, ao fixar princípios nas democracias mais tolerantes e abertas, é
Revista Direitos Humanos

inseridos em uma determinada realidade, e ao estabelecer normas comprometendo o racionalmente limitada em razão da indispen-
com componentes históricos, políticos e Brasil, sua sociedade e seu governo com a sável convivência com o exercício de todos os
sociais; considero também que os direitos busca de uma nova forma de organização direitos individuais e da necessária igualdade
humanos não devem ser compreendidos ape- social, na qual a pessoa humana é consi- entre os cidadãos. Daí exsurge o bem comum
que deve se sobrepor ao bem próprio, inte- Com base no conjunto das situações e transformação social, com o objetivo de cons-
grante de projeto pessoal. Todo e qualquer na realidade atual, pode-se afirmar que os di- truir uma sociedade mais justa, e como um ins-
pacto, por mais legítimo que se apresente e, reitos humanos, entre os quais estão aqueles trumento de luta pelo total respeito aos valores
sobretudo, diante da necessária igualdade que a Constituição de 1988 enumerou como democráticos e aos princípios republicanos da
entre os cidadãos, traz consigo uma par- direitos fundamentais, ainda não vigoram em cidadania, tais como a liberdade e a igualdade.
cela de renúncia à liberdade do homem . sua plenitude para um grande número de bra- Este texto não pretende suscitar ques-
Trata-se de falácia, portanto, quando se diz sileiros. Passadas duas décadas da promul- tões meramente teóricas. A perspectiva deste
que uma liberdade termina quando se ini- gação da Constituição Federal, grande parte trabalho, ao relacionar a luta pelos direitos
cia a de outrem, pois a liberdade deve ser de seus dispositivos, especialmente aqueles humanos aos princípios da cidadania, de-
exercida conjuntamente e com igualdade. relacionados com a garantia de efetivação mocracia, justiça, liberdade e igualdade, é
E os que matam, os que torturam, os que dos direitos econômicos, sociais e culturais, exprimir com especificidade que tais valores
estupram, os que desaparecem com seres que constituem condição de igualdade e li- também não podem subsistir sem a plena vi-
humanos devem ser punidos. berdade, ainda continuam sem ser aplicados. gência do “Direito à Memória e à Verdade”,
Os direitos humanos, em sua formula- Infelizmente, ainda subsistem muitas exclu- principalmente porque nosso País nunca teve
ção discursiva, vão surgindo com a contínua sões, marginalizações e injustiças, apesar a vocação para preservar a sua memória,
valorização da pessoa humana e do ideal de de a sociedade brasileira estar mudando e muito menos para tornar exemplar a trajetó-
liberdade, através de sucessivas gerações, as camadas mais pobres da população esta- ria daqueles que lutaram por uma sociedade
com forte ênfase no século XVIII, quando rem adquirindo consciência de seus direitos, mais justa. Isto é o que acontece, por exem-
então tais direitos foram expressos pelas além de terem avançado no sentido de sua plo, num passado mais recente, com a me-
revoluções liberais democráticas, a ameri- organização, à medida que, aos poucos, vão mória dos feitos daqueles que foram presos,
cana (1776) e francesa (1789). Os direitos descobrindo a importância da solidariedade. torturados e mortos durante o regime militar
humanos constituem uma conquista da ci- Por outro lado, forçoso é reconhecer que iniciado em 1964, assim como, num passa-
vilização e, hodiernamente, tais direitos se o Brasil atualmente conta com um governo do mais remoto, ocorre com a memória de
apresentam mediante a configuração jurí- comprometido com a integração social, em- indígenas, negros e com a memória daqueles
dica, remetendo à idéia de norma. bora ainda não tenha chegado ao nível do que participaram dos primeiros movimentos
A par do aspecto discursivo, é preciso acesso social à informação. pela independência nacional, que cinicamen-
reconhecer que, na prática, ao longo da his- Ademais, como assinala Dalmo de Abreu te seguem sendo chamados de movimentos
tória universal, é trágico o desrespeito aos Dallari, de inconfidência, tal como ocorre com a In-
direitos humanos. Na história latino-ame- confidência Mineira – desfeita, em 1789, em
ricana, em geral, e na brasileira, em parti- (...) um conjunto de circunstâncias (...) Ouro Preto (MG), logo em seu nascedouro e
cular, é notável a negativa desses direitos, várias ações do governo federal, desen- cujo único protagonista, que foi enforcado e
sobretudo aos cidadãos menos favorecidos cadeadas nos últimos cinco anos, já co- esquartejado, era um militar – e com a In-
economicamente, com total desrespeito meçaram a produzir efeitos positivos, be- confidência Baiana, iniciada em Salvador, em
à promoção da dignidade humana. Trata- neficiando, sobretudo, as camadas mais 1794, e se prolongou durante quatro anos.
se de uma história marcada por profundas pobres da população brasileira .
desigualdades entre os que tudo têm e os Reflexões sobre o direito à memória
que nada possuem, compondo, os primei- De qualquer forma, no contexto histórico- AA proposta deste capítulo é ressaltar,
ros, uma estrutura político-social elitizada e político, mesmo atual, e em particular no Brasil, em primeiro lugar, que o direito à memória
oligárquica, resistente a transformações es- a plenitude da vigência dos direitos humanos, com verdade, se desrespeitado, afeta todos 27
senciais para melhorar a qualidade de vida incluindo-se aí o direito à memória e à verdade, os cidadãos, influindo no cotidiano de suas
Revista Direitos Humanos

dos últimos, economicamente mais fracos, deve ser considerada como instrumento pri- vidas. A proposta é também demonstrar a
e inseridos no âmbito de um sistema explo- mordial da realização e promoção da dignidade importância da memória nos seus mais
rador que, muitas vezes, quando ameaçado, humana. E essa plenitude deve ser permanente, amplos e diversos sentidos, isto é, como
também tortura e mata. entendida como uma poderosa ferramenta de acontecimento histórico, psicológico, in-
artigo Dreito à memória e à verdade

dividual e coletivo e, em especial, fazer Ao contrário do esquecimento, a memória


a correlação entre o direito à memória e a individual e coletiva, como forma de requali-
comunicação ou direito à informação com ficação das referências que compõem a iden-
verdade, realçando a importância dessa tidade brasileira, são os eixos primordiais e a
correlação, seja como um dever moral e forma de aplicar na prática os fundamentos
ético, seja como um ato político de resis- dos direitos humanos, libertando de nossos
tência e de luta, pois, como assinala Bal- corações as lembranças nefastas do passado,
tasar Garzón: tais como a tortura.
O esquecimento, ao contrário da me-
A condição humana consiste em lutar cons- mória, já consideravam os gregos da Grécia
tante e permanentemente para mudar o Arcaica como a mais dolorosa das experiên-
mundo e melhorar nossa própria existência, cias. Irmão da morte e do sono, os gregos
no sentido de reduzir ou eliminar a explora- mencionavam o esquecimento como a ver-
ção de uns seres humanos por outros, em dadeira morte, o portador do silêncio, da in-
todas as partes, desde as políticas às crimi- diferença e da obscuridade, e entendiam que
nais, ou ao menos assim deveria ser . um homem morre quando o esquecem, vive
quando o lembram. Entendiam também que,
A preservação da memória, por ser um para que o nome de um homem de bem não
registro de fato ou acontecimento histórico viesse a fenecer, era essencial resgatar-lhe a
e mesmo psicológico, individual e coleti- memória, elogiá-lo, lembrar os seus feitos
vo, exerce função primordial na evolução em benefício da pólis.
das relações humanas: trata-se de um ato Para o escritor austríaco Imre Kertéz,
político, de resistência e de luta que cons-
titui a base sobre a qual a sociedade pode (...) enquanto o homem sonhar – as coi-
afirmar, redefinir e transformar os seus va- sas boas ou ruins –, enquanto o homem
lores e ações. Nesse sentido, aliás, ensina tiver histórias sobre as origens, lendas
Carmen Lúcia Vidal Pérez: universais, mitos, haverá literatura, a des-
peito do que e do quanto falem da sua
Rememorar é um ato político. Nos crise. A verdadeira crise é o completo es-
fragmentos da memória encontramos quecimento, a noite sem sonhos (...).
atravessamentos históricos e culturais,
fios e franjas que compõem o tecido Neste ano em que se comemora o
social, o que nos permite resignificar sexagésimo aniversário da Declaração
o trabalho com a memória como uma Universal dos Direitos Humanos, apro-
prática de resistência. (...) São nas au- vada em 10 de dezembro de 1948 pela
sências, vazios e silêncios, produzidos Assembléia Geral da ONU, e o vigésimo
pelas múltiplas formas de dominação, aniversário da Constituição cidadã, pro-
que se produzem as múltiplas formas mulgada em 5 de outubro de 1988, uma
28 de resistência (...) que, fundadas no das tarefas primordiais da Comissão sobre
inconformismo e na indignação peran- Mortos e Desaparecidos Políticos, criada
Revista Direitos Humanos

te o que existe, expressam as lutas dos pela Lei nº 9.140/95, além de colaborar
diferentes agentes (pessoas e grupos) para proteger esta Carta Magna contra os
pela superação e transformação de contumazes violadores de direitos huma-
suas condições de existência . nos, é também colaborar para resgatar e
preservar a memória daqueles que tomba- um dos aspectos mais execráveis do caráter
ram por um ideal democrático, valorizan- nacional que é a tentativa de supressão de-
do os seus feitos; é também de lutar pela finitiva da memória, a recusa dos donos do
punição daqueles que praticaram crimes poder de ajustar contas com o passado, a
contra a humanidade, tais como a tortura manutenção da ignorância, sobretudo entre
e os desaparecimentos forçados. os jovens, provocada pela intencional omis-
A reconstituição da memória, fundada na são de fatos históricos inclusive nos currí-
verdade, é essencial: é o meio pelo qual se culos escolares.
pode readquirir o sentimento de identidade, É preciso insurgir-se contra essa supres-
tanto individual quanto coletivo, na medida são da memória, contra esses pactos de si-
em que ela fornece o elo de continuidade lêncios e de concessões mútuas, conscien-
e de coerência de uma pessoa ou de um tizando a geração atual e, por conseguinte,
grupo em sua reconstrução de si. Resgatar as futuras, de sorte que estas tenham pleno
a memória com verdade também é funda- conhecimento dos fatos históricos que avil-
mental para elucidar o que é inconsciente taram seres humanos, tais como as ditadu-
e irracional, passando-os à consciência ras que nos atormentaram, cujo surgimento
para transcendê-los. Reavivar a memória pode ter muitas causas, dentre elas está
histórica de um passado mais recente, quase sempre a descrença na democracia e
relativa às atrocidades praticadas pela a crença ilusória em promessas milagrosas.
ditadura militar que vigorou no Brasil por É preciso que tais gerações tenham cons-
21 anos, é premente para dar voz ao que ciência de que as ditaduras, qualquer que
ficou imanente e obscuro, submerso no seja o pretexto de que se valham, são muito
ambiente internacional de rivalidade entre parecidas: não toleram os opositores, cer-
duas potências – União Soviética e Esta- ceiam as liberdades, censuram a imprensa,
dos Unidos –, que dividiam o mundo em violam os direitos humanos, prendem, tor-
dois blocos, e submerso pelo que emana- turam e matam.
va da “doutrina de segurança nacional”, Tanto a história recente do Brasil, marcada
freqüentemente utilizada para justificar por violações dos direitos humanos no perío-
violações aos direitos humanos nos anos do ditatorial, como a de outros períodos mais
de governo autoritário que antecederam a remotos, com o cerceamento dos direitos de
vigência da Constituição de 1988. amplos segmentos da sociedade, estão a exi-
Na realidade, mesmo ao retomar-se gir ações efetivas na identificação, preserva-
a ordem democrática, representada pela ção e difusão das memórias de centenas de
promulgação da Constituição de 1988, os brasileiros que lutaram por ideais democrá-
brasileiros ainda se vêem diante da doloro- ticos. É relevante a formação de uma cons-
sa perda da memória do País. É conhecida ciência coletiva, no sentido de se saber que
a estratégia dos regimes de força: as dita- a tortura foi historicamente utilizada no Brasil
duras, tal qual a que infernizou milhares de como instrumento de repressão política e de
brasileiros durante 21 anos, criam raízes, manutenção do poder: a propósito, a chamada 29
projetam-nas no futuro, produzem a supres- Inconfidência Mineira e a denominada Incon-
Revista Direitos Humanos

são da memória que se prolonga diante de fidência Baiana, Canudos e o Estado Novo são
um pacto de silêncios e concessões mútu- exemplos bastante claros e conhecidos.
as, acomodando precariamente os sobrevi- A tortura foi largamente utilizada con-
ventes da guerra suja e mantendo intocado tra os setores marginalizados da população
artigo Direito à memória e à verdade

desde a época da Colônia: é o que ocorreu trágica história vivida no Brasil, nos cha- Reflexões sobre o direito à verdade
com os índios, cuja população extermina- mados anos de chumbo, têm o direito de A primeira reflexão que faço em re-
da girava em torno de 5 milhões, ou como ocultar os fatos, entorpecer a memória. lação à verdade é conceitual. Conceitu-
ocorreu com milhares de negros escraviza- A proibição de restaurar a memória com almente, podemos chamar de verdade
dos. Durante a ditadura militar, a tortura foi verdade é o primeiro passo em direção ao aquilo que não podemos modificar. Me-
sistematizada e institucionalizada. A partir precipício. Trata-se de proibição de resga- taforicamente, na expressão de Hannah
de 1964, centenas de cidadãos passaram te da memória ou de ignorância dos acon- Arendt, ela é o solo sobre o qual nos co-
a ser ilegalmente presos e submetidos às tecimentos históricos, por trás da qual se locamos em pé e o céu que se estende
mais bárbaras torturas, com a conivência de esconde a mediocridade, a impossibilida- acima de nós.
toda uma estrutura montada para acober- de de vencer a força das idéias. Sobre a verdade, ensina Paulo Klautau Fi-
tá-las. O golpe de 1964 inaugurou a fase É inescusável, portanto, o resgate da me- lho que, “se na vida privada, o dever de dizer
do requinte, da especialização no méto- mória com verdade e sua preservação, para a verdade consiste num imperativo da moral;
do de torturar, matar e desaparecer com que as violações aos direitos humanos, com na vida pública, esse dever será tratado, pelo
pessoas. Os regimes de segurança nacio- mais ênfase às ocorridas em nosso passado menos, com o mesmo rigor”.
nal na América Latina, dos quais o Brasil recente, mais precisamente durante a ditadu- Citando ensinamentos de Kant e de Han-
foi o primeiro, não hesitaram em adotar ra militar, sejam reconhecidas e sancionadas, nah Arendt, ele acrescenta: “O homem público
30
a tortura como técnica de combate. Tais não apenas porque deva haver justiça para não pode se eximir da verdade, nem pode cul-
Revista Direitos Humanos

regimes escreveram a história de sangue as famílias, mas também porque isso é in- tivar o segredo (...) e a publicidade deve ser
e violência inimagináveis: é a história da dispensável para consolidar a reconstrução considerada como a solução para o ‘conflito
própria negação do conteúdo dos direitos do Brasil como um País verdadeiramente da política com a moral’”. A publicidade – en-
humanos, que é o direito à VIDA. democrático e republicano. Queremos que a tende esse insigne doutrinador – se traduz no
Nem os algozes, nem as vítimas da tragédia não se repita nunca mais. princípio de que “são injustas todas as ações
que se referem ao direito de outros homens, Lúcia de Fátima Guerra Ferreira ensina mentais e ignora os anseios da cidadania pela
cujas máximas não se harmonizem com a pu- que, na linha do “(...) sentido mais amplo do construção de uma memória coletiva e pelo
blicidade”. A publicidade – conclui – constitui direito à informação, aparecem não só os di- acesso a informações estruturais para as vidas
a garantia certa da moralidade da ação, porque reitos ligados à liberdade de imprensa, mas o individuais de milhares de cidadãos brasilei-
a declaração pública de uma ação injusta a tor- direito às informações referentes ao passado ros. A reconstituição da memória, fundada na
na por si mesma impraticável. A publicidade e ao presente ”. verdade, é conseqüentemente um instrumento
tem a dupla função de revelar a injustiça da Conforme expressou José Augusto Lind- necessário e inarredável.
ação e de torná-la impraticável. É a verdade gren Alves, Em que pese a lacuna da plena reconstitui-
advinda da comunicação que impede a injusti- ção da memória, fundada na verdade e, portan-
ça. Como tal, trata-se de uma exigência neces- o restabelecimento do sistema demo- to, na verdadeira e correta elaboração de nossa
sária para tornar possível uma prática política crático de direito – dos direitos políti- história, já tivemos, por outro lado, importan-
adequada aos ditames da moral. cos e a mobilização da sociedade na tes iniciativas, dentre as quais destaco a) a Co-
A comunicação da verdade é o que cola- busca de novos padrões inspirados na missão Justiça e Paz de São Paulo, fundada em
bora para extinguir a ignorância; seu papel é ética – permitiu revelar a verdade. Foi 1972 por iniciativa do Cardeal D. Paulo Evaristo
fundamental para resgatar a consciência de possível, assim, verificar com muito Arns, que teve papel preponderante na defesa
responsabilidade dos indivíduos e da coleti- mais clareza o estado deplorável dos dos direitos humanos; b) o Grupo Tortura Nun-
vidade, de respeito para com a vida humana direitos humanos e o grau de ameaça ca Mais (surgiu em 85 no Rio e se espalhou, a
e a natureza, a partir da requalificação dos va- que isso significa à instabilidade tanto partir de 90, por diversos estados brasileiros,
lores fundamentais dos quais os direitos hu- doméstica quanto internacional . como São Paulo, Pernambuco, Minas Gerais,
manos genuínos são alguns de seus pilares e Bahia, Alagoas, Paraná); c) o projeto Brasil
sem os quais não há possibilidade de paz. A No Brasil, entretanto, após passadas mais Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo e
negativa de comunicação ou informação, ao de duas décadas do término do regime au- d) o livro-relatório, intitulado Direito à Memória
revés, em estrita consonância com a verdade, toritário, ainda não se restaurou por inteiro a e à Verdade, elaborado pela Secretaria Espe-
importa em censura, que, se cometida por verdade, pois, por exemplo, ainda não foram cial dos Direitos Humanos da Presidência da
funcionários do governo ou por outras instân- totalmente disponibilizados à população os República – ato de justiça e não de vingança,
cias do Estado, nega o princípio democrático assim chamados arquivos da ditadura e, por- que sinaliza uma nova etapa no reconheci-
do poder transparente e a democracia não tanto, a totalidade das informações pertinentes mento do direito à verdade e à memória, ao
medra em terreno onde sua existência é con- a qualquer cidadão. Ainda não se mostrou, contar as histórias dos mortos e desaparecidos
dicional. Todo governo deve prestar contas integralmente, o que realmente se passou no políticos, a partir dos julgamentos, realizados
de seus atos à cidadania e a condição desse período ditatorial. Resistências internas em com fundamento na Lei 9.140, de quase 500
imperativo é a livre imprensa, pois, sem ela, abrir os arquivos da ditadura ainda subsistem e casos pela Comissão Especial sobre Mortos e
é impossível avaliar os governantes ou obter têm gerado controvérsias no âmbito do Estado. Desaparecidos Políticos. Além disso, lembro
informações por qualquer cidadão a respeito Contudo, nenhum governante tem o direito de ainda as várias medidas tomadas no âmbito
de si próprio. O direito de saber o que fazem ocultar a verdade dos fatos. A negação injusti- judicial, que ajudaram a recuperar a verdade e,
os administradores não é cedido a ninguém ficada do amplo e livre acesso a esses arqui- por conseguinte, a memória de acontecimen-
pelo povo soberano. A censura é tutela que vos viola preceitos básicos de direitos funda- tos que por si só mudaram o curso da história,
reduz o cidadão à menoridade. A imprensa li-
vre está na essência do regime democrático.
Nele, “nenhum indivíduo humano transfere o “A censura é tutela que reduz o 31
seu direito natural a um outro (em proveito do
cidadão à menoridade. A imprensa
Revista Direitos Humanos

qual ele aceitaria não mais ser consultado).


Ele transfere ao todo da sociedade da qual é
parte. Os indivíduos permanecem, assim, to-
livre está na essência do regime
dos iguais, como no estado de natureza ”. democrático”
artigo Direito à memória e à verdade

“Perdão é ter consciência, é Ainda segundo outro ensinamento de


Paulo Klautau Filho, em obra já citada nes-
revitalizar a memória de que a te trabalho, tal como a dignidade da pessoa
humana constitui o núcleo essencial dos
vida não pode ser regida por uma direitos humanos, o princípio da veracidade,

relação de dor e ódio ” como corolário da pessoa humana, constitui


razão justificadora do direito à liberdade de
tais como as sentenças proferidas nos casos nacional, que só pode se fundar na verdade. expressão (art. 220 da Constituição) . Para
Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho. O País não deve mais conviver com fan- esse jurista, a dimensão social da liberdade
Como dito acima, é importante a restau- tasmas e feridas não-cicatrizadas. É inadmis- de expressão e de informação exige que seu
ração da verdade, como um ato histórico, para sível que a pseudo-segurança da sociedade exercício se dê com intenção de veracidade,
perpetuação da memória, em homenagem aos e do Estado sirva de pretexto para proteger os sob pena de frustrar o alcance de sua fina-
que tombaram e deram suas vidas pela demo- interesses e assegurar a impunidade de pes- lidade republicana e democrática. Por isso,
cracia. Ter acesso à verdade, formar a memória soas e categorias ligadas a órgãos do Estado conclui: é vedado o anonimato, sendo as-
coletiva são atitudes indispensáveis, como e às corporações militares. É preciso que as segurado o direito de resposta (a busca da
forma de redefinir o passado, refletir o pre- Forças Armadas, em especial o Exército, ad- verdade no livre debate de idéias) e a inde-
sente e projetar o futuro. Lembrar, desvendar e quiram consciência de que a reconciliação no nização por dano material e/ou imagem, à
esclarecer são anseios da cidadania, não para Brasil exige uma clara posição institucional, vida privada e à honra das pessoas. Além de
alimentar o ódio, a raiva – o que faz mal. Tam- exige uma participação na chamada mesa de garantias individuais, esses limites à liberda-
pouco para perdoar ou esquecer. O perdão não diálogo, para, com civilidade, se discutirem de de expressão são garantias, também, do
é esquecimento, não é o pingar de um ponto os temas da tortura e dos desaparecimentos acesso à informação verdadeira para toda a
final numa história. Perdão é ter consciência, é forçados. As Forças Armadas brasileiras, que sociedade. Tais limites e garantias concreti-
revitalizar a memória de que a vida não pode contam nos seus quadros com muitos coman- zam, no corpo da Constituição, a velha crença
ser regida por uma relação de dor e ódio. Não dantes e oficiais honrados, não têm por que de que a mentira destrói a dignidade do ser
se trata de revanchismo ou ódio, mas, sim, continuar suportando o ônus e tampouco se humano. Enfim, no que tange à relação entre
de criar uma racionalidade capaz de sublimar confundirem com aqueles que praticaram cri- veracidade e liberdade de expressão, pode-
aquela tragédia que é a bestialidade humana. mes contra a humanidade, ao infligirem inomi- se deduzir que: 1) exige-se que o princípio
O reconhecimento dessa verdade históri- náveis sofrimentos a centenas de cidadãos. veracidade seja respeitado e protegido; 2) se
ca é essencial para a conscientização de que a liberdade de expressão não se aplicasse, o
condenar a tortura no Brasil e no mundo não O direito à verdade na Constituição princípio da veracidade não seria respeitado,
é apenas necessário, mas um dever de cada Federal nem protegido e 3) exige-se a aplicação da li-
cidadão que respeite a justiça e os direitos hu- Vejamos agora a questão da verdade à luz berdade de expressão. Pode-se, daí, concluir
manos. Ser contra a tortura não envolve ape- da Constituição Federal de 1988. Já em sua que as normas constitucionais que dispõem
nas uma posição política. É mais do que isso: abertura, no artigo 1º, clara está a afirmação sobre a liberdade de expressão, à medida
consiste em uma questão ética, de princípio, da opção política em favor dos princípios re- que se fundamentam, também, no princípio
que precisa ser trabalhada para conscientizar publicanos e democráticos. Esses princípios, da veracidade, integram o conjunto de dis-
o conjunto da sociedade de que a tortura é um assim como os fundamentos enunciados positivos que compõe o direito à verdade do
crime que lesa a humanidade, e cada vez que nos cinco incisos, devem nortear a condu- cidadão, perante o poder público em nosso
32 uma pessoa é torturada, degradada e aviltada ta do poder público da República Federati- ordenamento.
na sua condição de ser humano, a sociedade va do Brasil, o que supõe um compromisso Ainda no que concerne ao direito à verda-
Revista Direitos Humanos

como um todo é igualmente atingida. Somen- incondicional com a verdade, em virtude de de, ressalte-se agora o direito que qualquer
te o conhecimento pleno do que efetivamente o direito à verdade decorrer do princípio fun- cidadão tem, perante os órgãos públicos, de
ocorreu nos chamados anos de chumbo será damental e constitucional da dignidade da obter informações de caráter particular, con-
capaz de promover a verdadeira reconciliação pessoa humana (CF, art. 1º, inc. III). forme assegura o art. 5º, inciso XXXIII , da
Constituição Federal. Essa regra constitucio- com espírito democrático, necessitam com- Insisto que a reconstituição da memó-
nal importa na rejeição ao segredo e à menti- preender que, no passado, por ação de parte ria, fundada na verdade, é um instrumento
ra governamental, pois o reconhecimento do de seus membros, foram utilizadas indevida- necessário e fundamental. Questões es-
direito à informação, em última análise, con- mente e que sua imagem, perante a sociedade, senciais serão relegadas ao esquecimento,
duz ao reconhecimento do direito à verdade estará definitivamente restaurada quando elas se não houver um processo permanente de
do cidadão e a um dever governamental de próprias se convencerem de que são as pri- recuperação da memória, que, segundo
dizer a verdade, o que configura um princípio meiras interessadas em apurar toda a violência ensinou Norberto Bobbio,
fundamental em nossa Constituição, vale di- praticada durante a ditadura militar. Quando
zer: o direito à verdade justifica-se com base isso ocorrer, serão reconhecidas como parte (...) é a fonte inesgotável de reflexões
nos princípios éticos republicano e democrá- fundamental em um Estado de Direito. Impõe- sobre nós mesmos, sobre o universo
tico, decorrendo e buscando essencialmente se, ademais, que a sociedade civil, de forma em que vivemos, sobre as pessoas e os
a promoção e proteção da dignidade humana, organizada, continue a propugnar por legisla- acontecimentos que, ao longo do cami-
conforme anota Paulo Klautau Filho, citando ção infraconstitucional adequada e a exigir o nho, atraíram nossa atenção (...) O mun-
o professor Fábio Konder Comparato em obra respeito aos princípios democrático e republi- do do passado é aquele no qual, recor-
aqui já mencionada. cano, por meio da efetiva possibilidade de ob- rendo a nossas lembranças, podemos
Deixo de aprofundar a análise relativa à tenção, por qualquer cidadão, de informações buscar refúgio dentro de nós mesmos,
legislação infraconstitucional. Ressalto apenas revestidas de veracidade. Agindo assim, será debruçar-nos sobre nós mesmos e nele
que o legislador não exerceu corretamente sua preservada a verdadeira memória nacional. reconstruir nossa identidade (...) .
tarefa constitucional de regulamentar o inciso
XXXIII do art. 5º da Constituição Federal em
nenhum de seus aspectos: não houve quanto
à exceção da imprescindibilidade do sigilo a BIBLIOGRAFIA
definição de situações e a criação de critérios
1 DIAS, José Carlos. Democracia e Violência. publicação da Comissão Theotônio Vilela, p.
aptos a orientar a inversão (em favor da segu-
125, Editora Paz e Terra Política.
rança) da prevalência do direito à plena infor-
2 DALLARI, Dalmo de Abreu. Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodoló-
mação governamental, que integra o feixe de
gicos. Editora Universitária, p. 48.
direitos ligados ao direito à verdade dos cida-
3 GARZÓN, Baltasar. Un Mundo sin Miedo. Plaza Janés, Ed. 2005, p. 12.
dãos em face do poder público, em concreti-
4 PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal. O lugar da memória e a memória do lugar na formação de pro-
zação ao princípio da veracidade. As vítimas e
fessores: a reinvenção da escola como uma comunidade investigativa. In: Reunião Anual da
parentes de pessoas que sofreram os horrores
Anped, 26, 2003, p. 5. Disponível em : <http://www.anped.org.br/reunioes/26/trabalhos>.
da ditadura, em nome da segurança nacional,
Acesso em:
embora, num Estado de Direito Democrático,
5 KERTÉZ, Imere. A língua exilada.
tenha o direito à verdade, os conceitos de se-
6 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2006.
gurança da sociedade e do Estado continuam
7 KLAUTAU FILHO, Paulo O Direito dos cidadãos à verdade perante o poder público. Editora
a ser utilizados para proteger os interesses e
Método, p. 66 e p. 68.
assegurar a impunidade de pessoas ligadas a
8 SPINOZA, Tratado Teológico-Político. p. 16.
órgãos do Estado e às corporações militares,
9 FERREIRA, Lúcia Guerra. Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodoló-
que, no passado, durante a ditadura, atuaram
gicos. p. 135.
como torturadores, infringindo-se, assim, o 33
10 ALVES LINDGREN, José Augusto. Os Direitos Humanos como tema global. São Paulo: Pers-
princípio democrático do poder transparente.
Revista Direitos Humanos

pectiva, 2007.
11 BOBBIO, Norberto. O Tempo da Memória. De senectude e outros escritos biográficos. 9ª ed.,
Conclusão
Rio de Janeiro: Campus, 1997.
Reitero que as Forças Armadas, cuja maio-
ria de seus integrantes é composta de pessoas
artigo Um mundo de todos para todos: Universalização de direitos e direito à diferença

Um mundo de
todos para todos:
Universalização de direitos
e direito à diferença.
Ana Rita de Paula
Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior

34
Revista Direitos Humanos
Ana Rita de Paula, psicóloga, é consultora da SORRI-BRASIL há 15 anos, além continuamente o número dos que por ela
de outras organizações não-governamentais e órgãos públicos municipais, estaduais são marginalizados, inclusive nos países de-
e federais. Recebeu, entre outros, o Prêmio Direitos Humanos da Universidade de São senvolvidos. Assim como a mecanização da
Paulo, em 2001 e o Prêmio Nacional de Direitos Humanos, outorgado pela Secretaria agricultura provocou o êxodo rural, inflando
Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, em 2004. Mestre e Pós- cidades e suas periferias, a racionalização
doutoranda em Psicologia Social, Doutora em Psicologia Clínica, pela Universidade atual da produção empurra os pobres ainda
de São Paulo (USP). Há 30 anos faz parte da liderança do movimento pela defesa dos mais para as margens da economia, a infor-
direitos das pessoas com deficiência. matização crescente da indústria torna supe-
rado o trabalho não especializado e contribui
Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior é médica fisiatra e neurologista, para o desemprego estrutural. Nas socie-
docente do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, dades emergentes, alega-se a necessidade
especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do Ministério do desmonte da previdência pública como
do Planejamento, e especialista em Bioética da Universidade de Brasília. É titular da sendo necessário à eficiência da gestão go-
Academia Brasileira de Medicina de Reabilitação, conselheira titular do Conselho vernamental, transformando a exclusão em
Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e, desde 2002, está no cargo de contrapartida aceitável da competitividade
coordenadora geral da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de nacional.
Deficiência (CORDE), órgão da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência Já no campo do pensamento, a valoriza-
da República. Recebeu diversos prêmios e condecorações dos estados e instituições ção da pluralidade das idéias e a relativização
brasileiras e foi eleita em 2002 membro do Conselho de Honra da Rehabilitation da verdade consolidam o antiuniversalismo
International. Pertence ao movimento de luta das pessoas com deficiência desde 1987. pós-moderno, opondo-o ao período histórico
Está à frente das atividades da convenção como orientadora do processo e participou da anterior, ou seja, a modernidade.
7ª e da 8ª sessões do Comitê da ONU que elaborou a Convenção sobre os Direitos das Considerando que a Declaração Univer-
Pessoas com Deficiência. sal dos Direitos Humanos surgiu durante a
modernidade, com sua tentativa de identificar

A
lguns estudiosos identificam na con- se estabeleceram. Como todo período histó- uma situação ideal e universal para o homem,
temporaneidade características que rico, a pós-modernidade possui uma face po- esse documento se tornou um instrumento
determinam um período histórico sitiva e outra negativa. Convivem, lado a lado importante para a efetivação dos ideais ilumi-
denominado pós-modernidade. Uma dessas e simultaneamente, a valorização do multi- nistas de liberdade, igualdade e fraternidade.
características é o pluralismo das idéias e a culturalismo, as atividades terroristas e o uso Nesse contexto, a Declaração de 1948
aproximação e valorização das diferentes cul- da mão-de-obra de países subdesenvolvidos inovou a gramática dos direitos humanos,
turas do planeta. pelas corporações multinacionais. ao introduzir a chamada concepção con-
Segundo Boaventura de Souza Santos , Lindgren Alves afirma que as caracte- temporânea de direitos humanos, marcada
a pós-modernidade se caracteriza como um rísticas da globalização deste fim de sécu- pela universalidade e indivisibilidade destes
período de transição, na medida em que os lo são bastante conhecidas, assim como direitos. Universalidade porque clama pela
valores da modernidade estão em crise . Ao são reconhecidos seus efeitos colaterais. A extensão universal dos direitos humanos, sob
mesmo tempo, novos paradigmas ainda não busca obsessiva da eficiência faz aumentar a crença de que a condição de pessoa é o re-

“A valorização da pluraridade das idéias e 35

a relativização da verdade consolidam o


Revista Direitos Humanos

antiuniversalismo pós-moderno, opondo-se ao


período oposto anterior, ou seja, a modernidade”
artigo Um mundo de todos para todos: Universalização de direitos e direito à diferença

quisito único para a titularidade de direitos e violações de direitos, exigem uma resposta Destacam-se, segundo Flávia Piovesan ,
considera o ser humano como um ser essen- específica e diferenciada. Neste cenário, as
cialmente moral, dotado de unicidade exis- mulheres, as crianças, as populações afro- três vertentes no que tange à concepção da
tencial e dignidade. Indivisibilidade porque a descendentes, os migrantes, as pessoas com igualdade: a) a igualdade formal, reduzida
garantia dos direitos civis e políticos é con- deficiência, dentre outras categorias vulnerá- à fórmula “todos são iguais perante a lei”
dição para a observância dos direitos sociais, veis, devem ser vistas nas especificidades e (que, ao seu tempo, foi crucial para a aboli-
econômicos e culturais, e vice-versa. Quando peculiaridades de sua condição social. ção de privilégios); b) a igualdade material,
um deles é violado, os demais também o são. Apesar de reconhecermos as transforma- correspondente ao ideal de justiça social e
Os direitos humanos compõem, assim, uma ções históricas não podemos negar que a De- distributiva (igualdade orientada pelo critério
unidade indivisível, interdependente e inter- claração Universal dos Direitos Humanos tem sócio-econômico); e c) a igualdade material,
relacionada, capaz de conjugar o catálogo de sido argumento daqueles que não têm voz e correspondente ao ideal de justiça enquanto
direitos civis e políticos com o catálogo de os direitos humanos refletem um construído reconhecimento de identidades (igualdade
direitos sociais, econômicos e culturais. axiológico, a partir de um espaço simbólico orientada pelos critérios de gênero, orienta-
Essa característica da Declaração é ex- de luta e ação social. No dizer de Flores, os ção sexual, idade, raça)
pressa em seu próprio titulo. É a única de- movimentos compõem uma racionalidade de
claração da ONU que recebeu o nome de resistência, na medida em que traduzem pro- Essas concepções invocam uma plata-
universal e não internacional como ocorreu cessos que abrem e consolidam espaços de forma emancipatória voltada à proteção da
com as demais. Almejava-se, desde a sua luta pela dignidade humana . dignidade humana.
formulação, que esse documento se tornas- Não se trata de propor a reforma de um Segundo Bueno e Paula, vale a pena
se um instrumento da modernidade racional, documento tão importante como a Declaração ressaltar aqui que a discussão sobre a valo-
secular, democrática e universal. Universal dos Direitos Humanos, embora re- rização da diversidade pode ter uma leitura
Porém, como falar atualmente de um ho- conheçamos a necessidade de contextualizar distorcida e ser utilizada para escamotear
mem universal depois que a psicanálise, a sua produção, considerando que se trata de processos de exclusão social . É preciso
antropologia, a etnologia e a própria filosofia um documento datado, ou melhor, histórico, cuidado ao discutir este tema para não
já demonstraram a ilusão da concepção de como toda produção humana, e não atempo- incorrer em um discurso ufanista que pre-
indivíduo como ser único, indivisível e natural ral como parece pretender ser. É inegável que coniza a tolerância a supostas diferenças
e as conseqüências nefastas dessa forma de a Declaração Universal dos Direitos Humanos individuais. Quando falamos de diferenças,
pensar? Na contemporaneidade falamos da influenciou positivamente o mundo, nos últi- temos consciência de que, ao apontá-las,
determinação pelas estruturas econômicas, mos 60 anos. estamos descortinando um processo his-
sociais, culturais, lingüísticas de um sujeito Necessitamos sim do reconhecimento tórico de desvalorização e exclusão social
dividido psiquicamente. dos direitos das mulheres, dos direitos das apoiado em características como gênero,
Tornou-se fundamental para os movimen- pessoas com deficiência, e de outras mino- raça e etnia. Não se trata, portanto, de con-
tos sociais de luta das minorias falarem, por rias, como parte integrante dos direitos hu- siderar todas as diferenças como próprias
exemplo, das diferenças de gênero. Homens manos universais, engajando-nos na luta pla- da natureza humana e sim do enfrentamen-
e mulheres habitam corpos e mentes diferen- netária pelos direitos fundamentais de todos to do processo histórico da transformação
tes, suas realidades mentais e corporais, por os seres humanos. É necessária a compatibi- da diferença em desigualdade. O debate
sua vez, são construídas dentro da cultura. lização entre o particularismo das culturas e a sobre diversidade só se torna conseqüente
Torna-se insuficiente tratar o indivíduo de idéia de direito universal. quando não oculta os fatores produtores da
36 forma genérica, geral e abstrata. Faz-se ne- Ao lado do direito à igualdade, surge, desigualdade e pobreza. Todos somos dife-
cessária a especificação do sujeito de direito, rentes e é preciso denunciar quando essas
Revista Direitos Humanos

também, como direito fundamental, o direito


que passa a ser visto em sua peculiaridade à diferença. Para que haja, de fato, uma igual- diferenças são usadas para manter grupos
e particularidade. Nesta ótica, determina- dade de condições é de suma importância o sociais marginalizados.
dos sujeitos de direitos, ou determinadas respeito à diferença e à diversidade. Ao longo da história, as mais graves vio-
lações aos direitos humanos tiveram como qual se pretende chegar, tendo como ponto das em 13 de dezembro de 2006, em
fundamento a dicotomia do “eu versus o de partida a visibilidade às diferenças. Isto homenagem ao 58° aniversário da De-
outro”, em que a diversidade era captada é, essencial mostrar e distinguir a diferen- claração Universal dos Direitos Huma-
como elemento para aniquilar direitos. ça e a desigualdade. nos. A mais recente das Convenções
Vale dizer, a diferença era visibilizada para Boaventura de Souza Santos acrescenta: dirigidas a um segmento marginaliza-
conceber o “outro” como um ser menor do da sociedade - nem por isto redu-
em dignidade e direitos, ou, em situações temos o direito a ser iguais quando a zido em tamanho - entrou em vigência
limites, um ser esvaziado mesmo de qual- nossa diferença nos inferioriza; e te- em 3 de maio de 2008, após ultrapas-
quer dignidade. mos o direito a ser diferentes quando sar o mínimo de vinte ratificações. O
A emergência conceitual do direito à a nossa igualdade nos descaracteriza. processo de elaboração, aprovação e
diferença e do reconhecimento de identi- Daí a necessidade de uma igualdade ratificação pelos países que culminou
dades é capaz de refletir a crescente voz que reconheça as diferenças e de uma neste documento é um exemplo desta
dos movimentos sociais e o surgimento diferença que não produza, alimente nova concepção e geração de direitos,
de uma sociedade civil plural e diversa no ou reproduza as desigualdades .. trazendo especificidades que tornam
marco do multiculturalismo. efetivos para as pessoas com defici- 37
Se, para a concepção formal de igual- Izabel Maior afirma: ência os direitos e as garantias funda-
Revista Direitos Humanos

dade, esta é tomada como pressuposto, mentais do texto de 1948. A leitura de


como um dado e um ponto de partida abs- A Convenção sobre os Direitos das cada um dos 30 artigos da Declaração
trato, para a concepção material de igual- Pessoas com Deficiência foi homolo- Universal dos Direitos Humanos está
dade, esta é tomada como um resultado ao gada pela Assembléia das Nações Uni- referida diretamente nos 40 artigos de
artigo Um mundo de todos para todos: Universalização de direitos e direito à diferença

conteúdo da Convenção estreante na


ordem jurídica internacional, incluídos
“Nada aconteceu por acaso.
os artigos do Comitê e da Conferência No Brasil, cada resultado foi
dos Estados Partes. Agora este seg-
mento da humanidade pode dizer que marcado pela luta ininterrupta,
é parte dos iguais na diversidade e no notadamente, a partir de 1980”
valor inerente de cada pessoa .

A Convenção sobre os Direitos das Pes- Tão importante quanto a convenção é dois turnos de votação no Senado Federal.
soas com Deficiência foi valorizada pelo o Protocolo Facultativo, pois se não fo- Nas sessões do Congresso não houve voto
Estado brasileiro desde a sua concepção rem suficientes as instâncias nacionais, o contrário e, como resultado, a Convenção
no momento da abertura das assinaturas Comitê da Convenção atuará no monitora- dos Direitos das Pessoas com Deficiência
na sede da ONU em Nova York, em 30 de mento e na apuração de denúncias de vio- e o Protocolo Facultativo passam à his-
março de 2007, quando o Brasil firmou a lações dos direitos humanos, individuais e tória, como o primeiro tratado de direitos
posição de ratificar a Convenção e o Proto- coletivas, oriundos dos países signatários humanos tornado constitucional no Brasil.
colo Facultativo, assumindo compromisso do documento opcional. O Decreto Legislativo n°186, de 9 de julho
em casa e no cenário internacional. O caminho da incorporação do tratado de 2008, promulgado pelo presidente do
Interessante salientar que não se ma- às leis brasileiras teve início quando o po- Senado Federal, é o documento que passa
nifestaram vozes divergentes a respeito da der executivo, por meio da Mensagem Pre- a orientar toda e qualquer regra jurídica a
ratificação da Convenção, pois foi um texto sidencial n° 711/2007, encaminhou a Con- respeito das pessoas com deficiência.
construído por 192 países, o qual reflete venção da ONU à Câmara, solicitando a sua De acordo com Izabel Maior , é impor-
costumes, crenças e estágios diferentes de tramitação com a equivalência de emenda tante comentar o artigo 4º das obrigações
respeito pelas liberdades fundamentais e constitucional, com base na Emenda Cons- gerais dos Estados Partes, que precisa ser
dignidade inerente das pessoas com defi- titucional nº 45/2004. aplicado em conjunto com o artigo 3º dos
ciência. A Convenção é um tratado atual, Após intenso trabalho de articulação da princípios gerais. Entende-se que dos prin-
um documento internacional pela vida ple- área governamental, liderada pela Coorde- cípios derivam todas as questões definidas
na do segmento a que se destina. nadoria Nacional para Integração das Pes- no rol das obrigações gerais e, posterior-
Mesmo para alguns países que já estão soas com Deficiência - CORDE e pelo Con- mente, em cada um dos artigos temáticos
em estágio avançado de promoção social selho Nacional dos Direitos das Pessoas que demonstrarão a forma mais adequada
desse conjunto da população, como o Bra- com Deficiência - CONADE, instâncias da de garantir direitos fundamentais para as
sil, a Convenção traz em seu bojo a obriga- Secretaria Especial dos Direitos Humanos pessoas com deficiência, devido às parti-
toriedade de não discriminar e de dar todas da Presidência da República, e por forte cularidades que são inerentes a elas.
as oportunidades e apoios necessários à pressão do movimento social, o processo As afirmações dos princípios e das
inserção dessas pessoas na vida social e de tramitação foi alcançado a partir de um obrigações gerais são os pontos centrais
no processo de desenvolvimento do país. acordo das lideranças partidárias, tanto na a serem analisados no aspecto da congru-
Apesar de não serem aspectos novos para a Câmara dos Deputados como no Senado ência ou não entre a Convenção e a legis-
nossa legislação, a confirmação de diversos Federal. lação nacional. Assim, dentre os princípios
pontos específicos de direitos e de dignidade Foram vitoriosos os esforços para que da Convenção estão: o respeito pela digni-
38 das pessoas com deficiência confere maior o rito escolhido fosse realmente aquele dade inerente, a independência da pessoa,
destaque à política de inclusão do governo que consta no § 3° do artigo 5° da Consti- inclusive a liberdade de fazer as próprias
Revista Direitos Humanos

federal. Com o advento da Convenção, os tuição Federal, com equivalência à emenda escolhas, e a autonomia individual, a não-
governos passam a ter obrigações gerais que constitucional, ou seja, votação e aprova- discriminação, a plena e efetiva participa-
precisam ser traduzidas em políticas públi- ção por 3/5 dos deputados em dois turnos ção e inclusão na sociedade, o respeito
cas, planos, programas e ações concretas. e, igualmente, o quorum qualificado nos pela diferença, a igualdade de oportunida-
des, a acessibilidade, a igualdade entre o
homem e a mulher e o respeito pelas capa-
cidades em desenvolvimento de crianças Referências bibliográficas
com deficiência. ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos na pós-modernidade. São Paulo, Pers-
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soa Portadora de Deficiência, apresenta, no
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social, do respeito à dignidade da pessoa de 2008.
humana e outros, indicados da Constitui- MAIOR, Izabel Maria Madeira de Loureiro. Apresentação (In) A convenção sobre Direitos das
ção Federal de 1988.
Pessoas com Deficiência Comentada. Coordenação de Ana Paula Crossara Resende e Flavia
A comparação entre os dois artigos,
Maria de Paiva Vital. Brasília, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Coordenadoria Nacio-
respectivamente o da Convenção adotada
nal para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 2008.
pela ONU e o da lei federal brasileira, reve-
la estreita relação ao escolherem os termos PIOSEVAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo, Editora Saraiva, 2006.
e seus significados: dignidade humana e SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade.
igualdade de oportunidades. Todavia, a di- São Paulo, Editora Cortez, 1997.
ferença de dezoito anos entre esses docu-
mentos enfatiza a evolução dos processos
para a cidadania das pessoas com defici- 1988, que originou a Lei n° 7.853/1989, processos de tomada de decisão, deverão
ência, por meio da evolução de integração posteriormente regulamentada pelo De- ser consultadas as pessoas com deficiên-
para inclusão social. Da mesma maneira, creto n° 3.298/1999. Esses documentos cia, inovando a Convenção quando se re-
mostrando atualização, a questão de gêne- nacionais, junto a outros, com destaque fere inclusive às crianças com deficiência,
ro e de crianças, por se tratarem de grupos para as Leis n° 10.048 e 10.098, de 2000 e que por intermédio de suas organizações
vulneráveis. o Decreto n° 5.296/2004, conhecido como representativas, passam ativamente a tomar
No artigo 1º da lei federal, encontra-se o decreto da acessibilidade, colocam-nos parte nas deliberações que se relacionam
menção expressa sobre afastar discrimina- em igualdade com o ideário da Convenção às suas vidas.
ções e preconceitos, enquanto a Convenção da ONU. Também cabe repetir que as ques- Nada aconteceu por acaso ou como
de 2006 explicita a não-discriminação. tões referentes às pessoas com deficiên- benesse. Muito ao contrário, no Brasil,
Fica evidente que os princípios gerais cia são conduzidas na esfera dos direitos cada resultado foi marcado pela luta inin-
estão assentados na valorização da diver- humanos desde 1995, quando passou a terrupta, notadamente, a partir de 1980,
sidade humana e na não-tolerância com existir, na estrutura do governo federal, a quando teve início o movimento social
as mais diversas formas de discriminação Secretaria Nacional de Cidadania do Minis- das pessoas com deficiência em defesa
contra as pessoas com deficiência. tério da Justiça. de seus direitos. Sob o lema “Nada so-
Continuando, no que concerne à po- Para esclarecer, estão em perfeita con- bre nós, sem nós”, as pessoas com defi- 39
lítica brasileira voltada às pessoas com formidade o comando do novo tratado in- ciência escreveram e ainda escrevem, no
Revista Direitos Humanos

deficiência, alguns aspectos não podem ternacional e as normas brasileiras quando Brasil e na ONU, a sua história, cada vez
ser esquecidos. Em nosso país, a política estabelecem que na elaboração e na imple- com mais avanços e conquistas que se
de inclusão social das pessoas com de- mentação da legislação e das políticas para traduzem em redução das desigualdades
ficiência existe desde a Constituição de executar a presente Convenção e em outros e equiparação das oportunidades.
artigo Maioridade para os direitos humanos da criança e do adolescente

Carmen Silveira de oliveira é Psicóloga. Doutora em Psicologia Clínica (PUCSP).


Sub-Secretária de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria
Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Ex-Presidente e atual Vice-
Presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - CONANDA.

Maria luiza moura de oliveira é Psicóloga. Mestre em Psicologia Social


(UCGGO). Presidente do CONANDA, representante do Conselho Federal de Psicologia.
Professora e pesquisadora da Universidade Católica de Goiás (UCG).

Maioridade para os direitos humanos


da criança e do adolescente
Introdução: brasileira, pois colocou os direitos da po- no artigo 227 da nova Constituição: a criança

E
m 2008 comemora-se o aniversário de pulação infanto-juvenil inscritos na agenda e o adolescente como sujeitos de direitos, a
maioridade do Estatuto da Criança e do contemporânea dos Direitos Humanos. Esta sua priorização absoluta, bem como a respon-
Adolescente (ECA). Na sua emergên- construção revolucionária foi resultado de um sabilidade compartilhada de proteção integral
cia, em 1990, destacam-se dois cenários. longo processo de mobilização social, que entre a família, a sociedade e o Estado.
De um lado, a mobilização social diante das promoveu transformações profundas prin- Esta iniciativa pioneira minimizou a “es-
graves violações dos direitos infanto-juvenis, cipalmente na concepção da criança e do quizofrenia jurídica” referida por Méndez
como a chacina de meninos e meninas de adolescente como seres humanos em desen- (2001), no caso dos países que conviveram
rua da Candelária e as sucessivas denúncias volvimento, reafirmando a condição peculiar com a vigência simultânea de duas leis, regu-
de torturas no sistema Febem. De outro lado, que lhes assegura a proteção integral. lando a mesma matéria, de forma antagônica:
temos a luta pela redemocratização, cuja A convergência de lutas em favor da resti- a Convenção e a velha legislação de meno-
aliança social fecundou o ECA, considerado tuição dos direitos permitiu que o Brasil fosse res. Para Barcellona (1997), o Brasil também
40
um dos filhos diletos da gravidez democráti- a primeira nação a promulgar um marco legal inovou na tradição sociojurídica da região, ao
Revista Direitos Humanos

ca no País, na medida em que foi concebido em sintonia com a Convenção sobre os Direi- apontar que a capacidade de produzir leis é
e partejado em meio à formulação da nova tos da Criança, aprovada seis meses antes, ao uma competência social e não somente uma
Constituição Federal de 1988. final de 1989, no âmbito das Nações Unidas. prerrogativa dos parlamentos.
Nesse contexto, o Estatuto da Criança Isso porque os princípios mais importantes Dessa forma, estes novos mecanismos
e do Adolescente inaugurou um novo para- que estavam sendo discutidos no documento de produção do direitos influenciaram outras
digma ético-político e jurídico na sociedade internacional foram praticamente sintetizados reformas legislativas. Calcula-se que o ECA
tenha inspirado no mínimo 15 legislações Isso parece fazer ainda mais sentido no nal entre os adolescentes pode ser um bom
latino-americanas, coincidindo também com caso brasileiro, pois o Código de Menores de exemplo comparativo das diferenças entre
o período de enfrentamento dos governos 1979 pode ser considerado como “dispositi- essa legislação menorista e a garantista dos
autoritários na região. Nessa medida, para vo central na política social do autoritarismo direitos. O velho sistema era, fundamental-
aqueles autores, o novo marco legal pode militar das décadas passadas” (MÉNDEZ, mente, “correcional” e as sanções eram arbi-
ser entendido não somente como condição 1999). Isso não quer dizer que o direito de trárias, tanto por prever a nebulosa categoria
necessária para a melhora da situação de “menores” possa ser considerado um sub- de “situação irregular”, quanto pela inexis-
crianças e adolescentes, mas também para a produto das ditaduras militares dos anos 70, tência de fundamentação do magistrado, do
qualidade da vida democrática. mas apenas que ele se adaptou muito bem a contraditório ou do direito de defesa. Já no
Contudo, partindo da perspectiva de que esse projeto social. novo marco legal, os delitos são tipificados, a
uma boa legislação é apenas um primeiro O Estatuto da Criança e do Adolescente medida socioeducativa é limitada na duração
passo (e nem sempre o mais importante ou (ECA) é uma Lei que traduz a determinação e intensidade e os adolescentes têm as mes-
o mais difícil, em especial no caso brasileiro política que pauta os princípios da doutri- mas garantias processuais que as do direito
em que proliferam leis que “ficam no papel”), na de proteção integral, contrapondo-se ao penal de adultos. Isso favorece “uma verda-
cabe indagar quais os efeitos dessas novas antigo modelo dos Códigos de Menores de deira educação para a legalidade”:
premissas legais tanto na cultura quanto, de 1927 e 1979, que se dirigiam “à infância em
uma forma mais pragmática, nas políticas situação irregular”. Ou seja, o Estado só re- “... al respeto de las reglas, se obtiene
públicas e nas próprias condições de vida de conhecia como seu dever e responsabilidade sobre todo respetando al adolescente,
crianças e adolescentes no Brasil, decorridos o cuidado com o “menor” quando esse ne- incluso infractor, como ciudadano res-
18 anos de implementação do Estatuto. cessitava de amparo ou tutela nas situações ponsable, y exhibiendo el respeto y, por
caracterizadas por ato infracional ou omissão lo tanto, el valor de las reglas em la pro-
O ECA e a refundação social por parte da família. pia respuesta punitiva a sus infracciones.”
É importante destacar, em primeiro lugar, Nesse sentido, o ECA afirma a noção de (FERRAJOLI, 1999, p. XVIII)
que no plano legislativo essa refundação, de “criança e adolescente como sujeito de direi-
um direito da infância e adolescência, rompe tos”, preconizando a garantia ampla dos seus Entretanto, se os espectros dos governos
com uma tradição jurídica do velho Estado direitos pessoais e sociais assumida por toda autoritários já não rondam os tempos atuais,
liberal, em que, na esfera privada. “meno- a sociedade, como estabelecido em seu ar- as diretrizes da Convenção e do ECA enfren-
res ” e mulheres estavam alheios ao direito tigo 3º: tam renovados obstáculos ideológicos nos
e submetidos às dinâmicas espontâneas de anos 2000, decorrentes de uma situação que
relações afetivas e tutelares, sejam familia- A criança e o adolescente gozam de todos pode ser traduzida na máxima “Estado social
res, como no caso do poder absoluto do pai- os direitos fundamentais inerentes à pes- mínimo e Estado penal máximo”, expressão
patrão, sejam extrafamiliares, a exemplo das soa humana, sem prejuízo da proteção in- utilizada por Wacquant (2001) para designar
intervenções policiais ou caritativas (FERRA- tegral de que trata essa Lei, assegurando- a tendência de judicialização das questões
JOLI, 1999). se-lhe, por lei ou por outros meios, todas sociais ou, como prefere o autor, de “crimi-
O autor sinaliza que esse paradigma tra- as oportunidades e facilidades, a fim de nalização da miséria”.
dicional, por sua natureza informal e ausência lhes facultar o desenvolvimento físico, Assim, observa-se no Brasil, por exem-
absoluta de regras, se revelou discricionário mental, moral, espiritual e social, em con- plo, uma preocupante tendência à redução
e favoreceu os piores abusos e arbitrarieda- dições de liberdade e de dignidade. da maioridade penal e ao aumento das taxas
des. Ele chama atenção para o fato de que, de internação no sistema socioeducativo, em
no contexto latino-americano de pobreza A abordagem da prática do ato infracio- especial da adolescência pobre, o que serve
endêmica e de desigualdades sociais, essas
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funções do direito empurraram milhões de
crianças e adolescentes à institucionaliza- “O Estatuto da Criança e do
Revista Direitos Humanos

ção, adoções ou a uma relação adulta com


a sociedade, tais como o trabalho infantil ou
Adolescente traduz a determinação
a criminalidade. Por isso, Ferrajoli refere que política que pauta os princípios da
essa antiga legislação era, ao mesmo tempo,
paternalista e repressiva. doutrina de proteção integral”
artigo Maioridade para os direitos humanos da criança e do adolescente

não apenas para uma expulsão forçada de


convívio social com vistas a neutralizar essa
pobreza sem destino na globalização, mas
também para aplacar a comoção pública à
medida que se sugere que “algo foi feito”.
Cabe ressaltar, todavia, que a insegurança
que move a maioria da população para de-
mandas punitivas tem uma capacidade de
autopropulsão, como refere Bauman (2008),
isto é, o pressuposto da sua vulnerabilidade
depende mais da falta de confiança nas de-
fesas disponíveis do que do volume ou da
natureza das ameaças reais.
Dessa forma, é preocupante a prolife-
ração de abrigos na última década no País,
inclusive por motivo de pobreza e por longa res quanto do ECA. Por isto, Méndez (1999) populares, processo marcado por momentos
permanência, como indicou o mapeamento propõe que é necessária a renovação entre importantes ao longo da história, nas diferentes
nacional realizado pelo IPEA em 2002, ao le- os operadores jurídicos com vistas ao novo conjunturas dos séculos XVIII, XIX e XX, bem
vantar cerca de 40 mil crianças e adolescen- direito, aliada à refundação urgente no campo como ao agravamento da questão social com
tes nessa condição. É pertinente lembrar que, dos operadores sociais. Isto porque, segundo o advento da industrialização/urbanização, ou
na vigência da legislação menorista, a segre- ele, “la história es muy clara em mostrar las seja, a constituição da sociedade capitalista, que
gação dos pobres estava inclusive sugerida peores atrocidades contra la infância come- impôs a exploração abusiva à classe operária,
e estimulada, ao prever que o “menor” em tidas mucho más em nombre del amor y la de onde provinham crianças e adolescentes, e a
“situação irregular” deveria ser encaminhado protección, que en nombre explícito de la precarização das condições de vida a que eram
à autoridade judicial competente, ou seja, propia represión”. É assim que os maiores submetidos esses operários. Dessa maneira, foi
quando a criança ou adolescente estivesse investimentos nas políticas públicas brasilei- se estabelecendo e se consolidando a prática da
privado de condições essenciais para sua ras continuam sendo feitos para viabilizar as institucionalização destinada a um público-alvo
subsistência, saúde e instrução obrigatória, últimas medidas protetivas (como a constru- de “exclusão social” a quem a “cultura da insti-
inclusive quando eventualmente a privação ção de mais e mais unidades de internação tucionalização” assegura sua existência.
fosse em razão de manifesta impossibilidade socioeducativa ou abrigos) e não aquelas que Portanto, a refundação social a partir da
de pais ou responsáveis para esta provisão. constituem a base da promoção dos direitos Convenção e do Estatuto deve priorizar, como
Ao contrário, o ECA estabelece que “a mera de crianças e adolescentes. objeto de intervenção no campo da cultura, a
falta ou carência de recursos materiais não Além do ônus financeiro desta opção, os necessária desinstitucionalização de crianças
poderá jamais constituir um motivo suficiente resultados se mostram tão inócuos quanto e adolescentes na medida em que as marcas
para a perda ou suspensão do pátrio poder”. “enxugar gelo”. Ao contrário, tais iniciativas tutelares vêm sendo continuamente agenciadas
Como explicar, então, a não observância des- institucionalizantes reforçam os sintomas de e reavivadas no próprio ambiente de sua imple-
ta diretriz? desfiliação e apartheid e não levam em conta mentação. Também está em jogo a percepção
Sugere-se que a persistente institucio- que, para milhões de crianças e adolescentes adultocêntrica da infância e adolescência, na
nalização observada nessas duas situações que são vitimas de violações dos direitos no persistente perspectiva de miragem das crian-
aqui analisadas se deva tanto a uma discri- Brasil, o que está em jogo não é tanto a po- ças e dos adolescentes como cidadãos me-
cionariedade jurídica, quanto a uma outra, de breza, mas processos complexos que trans- nores, conforme se pode observar na quase
42 natureza pedagógica. Dito de outra maneira, cendem as fronteiras das classes sociais, ausência de sua participação, ainda hoje, na
couberam aos juízes na doutrina da situação como demonstram a incidência dos castigos formulação das políticas públicas a eles desti-
Revista Direitos Humanos

irregular desenhar e executar as políticas para corporais ou do abuso sexual, por exemplo. nadas e, acima de tudo, como sujeitos ativos
a infância pobre, mas os operadores sociais No Brasil, a cultura da institucionalização de de um novo pacto social, desnaturalizando sua
também sustentaram políticas compensató- crianças e adolescentes pobres vem associada “incapacidade política” e confrontando o papel
rias reforçadoras de práticas institucionali- à questão da regulamentação legal e social na de consumistas preferenciais destinado pelo
zantes, tanto no marco do Código de Meno- gestão da infância e adolescência de camadas mercado globalizado.
O novo direito e as condições de
vida da infância e adolescência
Um segundo eixo possível de avaliar
a implementação do ECA se refere a seus
“É preocupante a proliferação de
efeitos na materialidade da existência das abrigos na última década no País,
crianças e dos adolescentes brasileiros. An-
tecipadamente, parece razoável supor que um inclusive por motivo de pobreza e
período de dezoito anos é insuficiente para a
superação das extremas dificuldades de ga-
por longa permanência”
rantir a proteção integral de aproximadamen-
te 62 milhões de crianças e adolescentes no
Brasil, com a maior população infantil das do debate plural e dinâmico frente às deman- do 92% dos municípios, e 5.004 conselhos
Américas, a quinta maior dimensão territorial das de uma sociedade contraditória, em seu tutelares em 88% das cidades brasileiras,
e uma história secular de graves desigualda- projeto político de reconhecimento do sujeito muito embora a maioria deles funcione de
des sociais, como a condição de pobreza de criança e adolescente como ator social. forma muito precária, como aponta a Pes-
metade dos brasileiros entre 0 e 17 anos. Por outro lado, a (re)constituição de di- quisa Bons Conselhos, realizada pela SEDH/
Mas nesse curto intervalo temporal algu- ferentes órgãos no poder público se revelou CONANDA em 2006.
mas iniciativas foram implementadas, a co- uma tarefa imensa e ainda inconclusa. A es- Cabe lembrar que a organização de Con-
meçar pela constituição do chamado Sistema timativa é de que esse contingente de pro- selhos de Direitos com caráter deliberativo e
de Garantia dos Direitos, uma das novidades moção e defesa dos direitos de crianças e paritário e de Conselhos Tutelares eleitos pela
apresentadas pelo marco legal brasileiro na adolescentes some, hoje, cerca de 100 mil própria comunidade, bem como a realização
interpretação da Convenção. O advento do pessoas, entre conselheiros e operadores da de Conferências bienais, são experiências
Estatuto retirou da justiça e da assistência so- justiça. Outras centenas de milhares de técni- ainda inéditas no cenário internacional e re-
cial a centralidade da política de atendimen- cos operam nas políticas sociais básicas, seja ferência para as Nações Unidas. Até hoje, a
to e, de certa forma, estimulou a criação de na gestão pública direta, seja em parceria. proposição de um conselho paritário e deli-
inéditos mecanismos de defesa dos direitos Entretanto, a previsão de Varas Especiali- berativo pode ser considerada muito ousada,
da infância e da adolescência, tais como os zadas no ECA, por exemplo, não foi suficiente ainda mais se considerarmos o seu papel
Conselhos de Direitos, Centros de Defesa, as para garantir a sua criação, pois elas existem de formulador das políticas públicas e não
Frentes Parlamentares e a rede de jornalistas em apenas 1/3 das comarcas dos municípios apenas deliberador, como se observa entre
amigos da criança, entre outros. de grande porte, num total de 92 unidades, outros conselhos setoriais. Da mesma for-
Nessa perspectiva, vale ressaltar a criação, com evidentes prejuízos para a garantia do ma, os conselhos tutelares, propostos como
em 12 de outubro de 1991, do Conselho Na- acesso à justiça da população infanto-juvenil. independentes de qualquer poder constitu-
cional dos Direitos da Criança e do Adolescen- Também na maioria das capitais brasileiras ído e eleitos de forma direta pelas próprias
te (CONANDA), órgão do Estado brasileiro, de inexistem Defensorias Públicas voltadas para comunidades são, por definição, ouvidorias
composição paritária, de caráter deliberativo e esse segmento, o que cerceia o direito à de- comunitárias. Entretanto, o próprio Comitê
controlador das ações de promoção, proteção e fesa técnica, em especial nos setores mais de acompanhamento da implementação da
defesa de direitos da criança e do adolescente, pobres. Alguns autores apontam certa relação Convenção ainda não assimilou o alcance
incumbindo-se assim de zelar pela efetivação entre condições materiais da infância e con- dessa proposição e, assim, sistematicamen-
das políticas sociais públicas destinadas à dições jurídicas. Em países onde as crianças te aponta ao Brasil a necessidade de incluir
criança e ao adolescente. apresentam condições de vida precárias, são a figura do ombudsman em seu Sistema de
Ao instituir os conselhos de direito e tute- observadas condições jurídicas semelhantes, Garantia dos Direitos, uma medida ainda a
lares, o Estatuto, em uma experiência singular demandando “un proceso brutal de exigen- ser devidamente analisada, considerando a 43
em comparação com outros países, estabele- cias de naturaleza casi milagrosas a la nueva dimensão continental do País e a sua condi-
Revista Direitos Humanos

ceu um espaço de participação democrática ley”, segundo Méndez (1999). ção federada.
e de incidência política da sociedade civil na Já os conselhos de direitos e tutelares Quanto aos indicadores, observam-se
construção de políticas públicas. Esse espaço contam com aproximadamente 77 mil conse- vários avanços, a começar pelos dados rela-
é demarcado por tensionamentos dialéticos, lheiros. São 5.104 conselhos municipais dos tivos ao direito à vida. Uma criança brasileira,
que se produzem na construção democrática direitos da criança e do adolescente, cobrin- do sexo masculino, nascida em 1990, tinha a
artigo Maioridade para os direitos humanos da criança e do adolescente

expectativa de vida projetada para 62,3 anos,


enquanto os bebês nascidos em 2006 tiveram
“O ECA acrescentou novos
6,2 anos acrescidos a esta média. No caso das
mulheres, a expectativa aumentou em 7 anos,
conteúdos ao conjunto de direitos
evoluindo de 69,1 para 76,1 anos. A taxa de da criança e do adolescente”
mortalidade de crianças menores de um ano
teve um decréscimo de 44,9% nesse intervalo dos direitos nessa faixa etária acontece pela sexual, a experiência brasileira vem sendo
de tempo, diminuindo de 46,9 para 24,9 mor- ausência de melhor acompanhamento. reconhecida, como demonstra o fato de o
tes em cada 1000 crianças nascidas. Também Por outro lado, o índice de desenvolvi- Brasil ter sido escolhido para sediar neste
houve redução na taxa de mortalidade abaixo mento infantil (IDI), calculado pelo Fundo ano o maior Congresso Mundial na área. Uma
dos 5 anos de idade – de 59,6 para 29,9 – o das Nações Unidas para a Infância (Unicef), das inovações foi a abordagem intersetorial.
que possibilitou ao País melhorar sua posição mostra que em 2006 nenhum estado brasi- Desde a década de 1990, o governo federal
no ranking mundial, saindo da 86ª para a 113ª leiro apresentou um índice baixo, ou seja, vem desenvolvendo iniciativas específicas, a
posição, em decorrência de ações básicas de menos de 0,500 , muito embora persistam exemplo do Programa Sentinela, atualmente
saúde, saneamento e segurança alimentar. as iniqüidades regionais no interior de cada designado Serviço de Enfrentamento à Vio-
Os bons resultados dos programas de estado e também as desigualdades étnico- lência, Abuso e Exploração Sexual Contra
transferência de renda dirigidos a grupos raciais, como no caso da maior vulnerabili- Crianças e Adolescentes. Atualmente estão
vulneráveis permitiram que o País chegasse dade das crianças e adolescentes indígenas em curso mais de 30 ações envolvendo di-
aos índices mais baixos de pobreza e extrema e afro-descendentes. retamente 10 ministérios, que compõem
pobreza desde 1987, com a menor desigual- Na área de proteção a crianças e ado- a primeira Comissão Intersetorial, da qual
dade de renda dos últimos 25 anos. Atual- lescentes vítimas da violência, novos ins- participam ainda representantes do Conanda,
mente, 4,7 milhões de crianças até seis anos trumentos foram formulados em sintonia da sociedade civil organizada e organismos
são beneficiadas pelo Bolsa Família, o que com o Estatuto. O velho modelo Febem vem internacionais. Semelhante experiência inter-
corresponde a mais da metade das crianças sendo gradualmente reordenado a partir do setorial é desenvolvida com o Sinase e o Pla-
pobres nesta faixa etária. Sistema Nacional de Atendimento Socioe- no Nacional do Direito à Convivência Familiar
Muito embora se observe uma melhoria ducativo (Sinase) e do Plano Nacional do e Comunitária.
de indicadores de desenvolvimento humano, Direito à Convivência Familiar e Comunitária,
como a redução da pobreza, alguns autores destacando-se a recente iniciativa do governo Os novos cenários e desafios
apontam os riscos de transformar os cida- federal no lançamento da Agenda Criança e Conclui-se, portanto, que três doutrinas
dãos em clientes. Por isto, preconizam uma Adolescente, com ações de 14 ministérios e inspiraram o Estado e a sociedade em sua rela-
inversão massiva em educação, o que equi- orçamento em torno de R$ 3 bilhões. ção e forma de tratar a criança e o adolescente:
vale ao desafio, em uma sociedade da infor- No trabalho infantil, o Brasil chegou a atingir a Doutrina do Direito Penal do Menor; a Doutrina
mação, de universalizar o acesso, mas com em 1992 o seu mais alto nível histórico, com da Situação Irregular e a Doutrina da Proteção
qualidade, como aponta o Plano de Desen- 9,6 milhões de crianças e adolescentes tra- Integral. Cada uma delas trouxe uma forma
volvimento da Educação, lançado pelo MEC balhadores, ou seja, 22% do total nessa faixa própria de concepção de criança e adolescen-
no ano passado. etária. Decorridos 14 anos, foram retirados do te, demarcando o processo social percorrido
Os avanços na educação ainda são tí- trabalho infantil cerca de 5 milhões. Em 2005, ao longo da história. Nesse percurso, um dos
midos, mas com melhor acesso à educação 18,7% das crianças com idades entre 5 e 17 aspectos fundamentais foi a passagem da po-
infantil entre 4 e 6 anos, atingindo 76% do anos trabalhavam, sendo que em 2006 esse nú- pulação infanto-juvenil da condição de objeto e
total das crianças, bem como ao ensino fun- mero foi reduzido para 11,1%, e em 2007 caiu “menor” (objeto e vítima) para a condição de
damental, que evoluiu de 79% em 1990 para para 10,8%. Contudo, a queda é desigual para criança/adolescente (sujeito de direitos).
44 98% em 2006. Destaca-se que, no caso da pobres, negras e moradoras das zonas rurais do Nesse processo, o ECA acrescentou
educação infantil, o ECA é a primeira lei fede- País, demandando maior ênfase nas políticas novos conteúdos ao conjunto de direitos
Revista Direitos Humanos

ral que assegura direito à creche. Entretanto, de combate às ineqüidades de gênero, etnia e da criança e do adolescente, contemplando
muito ainda precisa ser efetivado à medida setor produtivo, com destaque para a agricultura pontos como: políticas sociais básicas; po-
que somente 15% das crianças até 3 anos e trabalho doméstico. líticas de assistência; proteção especial e
estão matriculadas e a maioria das violações Também no enfrentamento da violência garantia e defesa de direitos. Isso reafirma o
ECA como uma lei revolucionária no campo os recentes casos de violência veiculados na Mercosul, com o GT Iniciativa NiñoSur, e do
dos direitos coletivos, sociais, econômicos e mídia nacional, mas que ocupam o primeiro Instituto Interamericano da Organização dos
culturais, visando à superação do assisten- lugar no ranking das denúncias dos conse- Estados Americanos (OEA).
cialismo e clientelismo. Constituiu-se em lhos tutelares e do Disque 100 em mais de E, principalmente, torna-se urgente a for-
um dos instrumentos que vem contribuindo 60% dos casos; mulação de uma Política Nacional dos Direitos
para o desenfoque da criança-problema, pos- - a urgente universalização e integração da Criança e do Adolescente, em favor de um
sibilitando a ampliação da concepção que de sistemas de informação, em especial para Sistema de Proteção Integral, a fim de não su-
alcançou todas as crianças e adolescentes notificação de casos de violência, sistema perespecializar e fragmentar as políticas, mas
enquanto oportunidade e não-risco. socioeducativo, rede de conselhos tutelares também para romper, com maior radicalida-
Por último, cabe uma análise prospec- e de abrigamento; de, a idéia menorista de um desenho voltado
tiva. O processo de globalização modificou - a necessidade de maiores investimentos para a infância e adolescência pobres. Aliada
não apenas o compromisso entre o Estado e em sistemas locais de promoção dos direitos a isto, é fundamental definir uma agenda de
o mercado, como deslocou alguns temas da da criança e do adolescente, em especial pela longo prazo, a exemplo de um Plano Decenal,
agenda de direitos humanos. A categoria in- condição federativa do Brasil e pela maior capi- rompendo com o imediatismo e perspectiva
fância, por exemplo, tem sido marcadamente laridade das políticas públicas nos territórios; de gestão de um mandato governamental em
influenciada pelo contexto contemporâneo. O - o fortalecimento de instâncias estaduais favor de uma estratégia de Estado.
fenômeno da adolescência, colocada como e municipais de articulação das políticas de
ideal social nos anos 2000 (CALLIGARIS, direitos da criança e do adolescente, a exem-
2000) influenciou o encurtamento da infân- plo do papel exercido pela SPDCA e Conanda “É fundamental
cia, à medida que crianças orbitam em tor- em nível federal;
no de uma estética juvenil e se alimentam - a mobilização e apoio aos espaços de- definir uma
dos apelos midiáticos para uma erotização
precoce. O consumismo exacerbado, por
mocráticos de articulação da sociedade civil na
constituição de redes de proteção destinadas
agenda de
sua vez, seduz os adolescentes ao acesso a à repactuação em favor da população infanto- longo prazo,
bens e signos, intangíveis para a maioria dos juvenil, em especial na busca de novos atores
brasileiros, restando a frustração e a desqua- estratégicos, universidades, empresários, asso- a exemplo do
lificação diante daqueles mais privilegiados,
reforçando o apartheid social, que favorece a
ciações comunitárias e de famílias, associações
profissionais, sindicatos de trabalhadores e de-
Plano Decenal,
distinção entre “nós” e “eles” e sedimenta
estratégias excludentes da “cidade para al-
mais movimentos sociais;
- consolidação de estratégias de coo-
rompendo com
guns” (OLIVEIRA et al., 2006). peração internacional, como no âmbito do o imediatismo”
Em tal contexto, identifica-se um conjun-
to de desafios de aprimoramento do ECA e
da implementação das políticas públicas de Referências bibliográficas
promoção dos direitos humanos de crianças BAUMAN, Zigmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008.
e adolescentes: CALLIGARIS, Contardo. Adolescência. São Paulo: Publifolha, 2000.
- o enfrentamento dos novos cenários BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Ado-
de violência contra crianças e adolescentes, lescente, e dá outras providências. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília,
como a drogadição e envolvimento com o DF, 27 set. 1990.
narcotráfico, a exploração sexual no turismo, FERRAJOLI, Luigi. Prefácio. In: MÉNDEZ, Emilio Garcia; BELOFF, Mary. Infância, Ley y Demo-
a pornografia infanto-juvenil na Internet, as cracia em América Latina. Buenos Aires: Editorial Temis, 1999.
crescentes taxas de mortalidade por violência 45
MÉNDEZ, Emilio Garcia. Infância, Ley y Democracia: uma cuestión de justicia. In: MÉNDEZ,
entre crianças e adolescentes, sobressaindo-
Revista Direitos Humanos

Emilio Garcia; BELOFF, Mary. Infância, Ley y Democracia em América Latina. Buenos Aires:
se os homicídios e acidentes;
Editorial Temis, 1999.
- a constituição de estratégias diferen-
OLIVEIRA, Carmen S. de et al. Criminalidade juvenil e estratégias de (des)confinamento na
ciadas diante da reiterada violação dos di-
cidade. Revista Katálysis. Florianópolis: Editora da UFSC, vol 9, nº.1, janeiro/junho 2006.
reitos humanos de crianças e adolescentes
no ambiente doméstico, como demonstram
artigo A verdade, onde estiver

A verdade,
onde estiver
Baltasar Garzón é Juiz de Instrução na “Audiencia Nacional”, tribunal penal de máxima
instância na Espanha. Sua trajetória na magistratura tem sido caracterizada pela afirmação dos
direitos humanos em casos envolvendo genocídio, corrupção, narcotráfico e terrorismo, entre
outros. Ganhou especial projeção, em 1998, quando emitiu ordem de detenção dirigida ao
ex-presidente chileno, general Augusto Pinochet.

Recentemente, o magistrado conduziu procedimento investigatório a respeito de 114 mil


pessoas desaparecidas durante a Guerra Civil Espanhola e dos doze primeiros anos do
regime franquista. Como resultado de seu trabalho, apresentou em 18 de novembro de 2008,
extenso relatório no qual identificou 20 fossas coletivas aonde foram enterrados opositores do
regime, nomeou um corpo de peritos para realizar as atividades de exumação e identificação
dos corpos e determinou que as investigações que dirigia passassem a ser conduzidas
pelo Governo espanhol e pelas autoridades provinciais dos locais onde as covas coletivas
foram encontradas. A decisão judicial, embora também tenha determinado a extinção da
responsabilidade penal de Franco e de outros oficiais de Estado ligados ao regime de
repressão, em razão do falecimento dessas autoridades, recebeu o apoio público de figuras
como José Saramago e Ernesto Sábato, que a reconheceram como verdadeiro libelo pela
investigação de crimes contra a humanidade e pela efetivação dos direitos humanos, em
especial do direito à memória e à verdade.

O Juiz Baltasar Garzón visitou o Brasil a convite da Secretaria Especial dos Direitos Humanos
da Presidência da República (SEDH/PR) na segunda quinzena de agosto de 2008. No breve
período em que esteve no país, realizou duas palestras sobre o tema do direito humano à
memória e à verdade. A primeira delas, promovida pela SEDH/PR, a revista Carta Capital
e a UNESP, no hotel Renaissance, em São Paulo, e a segunda, no auditório da Faculdade
de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Este ensaio foi transcrito a partir da palestra
46 “Direito à Memória e à Verdade”, proferida pelo Sr. Garzón na tarde do dia 18 de agosto de
2008 na capital paulista
Revista Direitos Humanos
T
odos os que aqui estamos temos uma mei contato com ele numa data concreta - 28 Outra coisa é o debate político que se produz
vocação universalista para a justiça, de março de 1996. Nesse dia, decidi admitir sobre essas normas, mas que deve produzir-
a responsabilidade, a verdade, a me- o trâmite, como juiz central de instrução, de se antes de sua criação, de modo que quando
mória, a luta contra a impunidade e contra a uma iniciativa por crimes de genocídio, terro- as normas finalmente emergem num texto le-
repressão. Mas haverá muitos que amanhã rismo e tortura contra as Juntas Militares ar- gal, presume-se que houve, já, a ocorrência
– se é que a eles chegarão as notícias mais gentinas, aforada pelas vítimas da repressão prévia de um debate reflexivo. Assim deveria
atuais sobre o evento de hoje – se pergun- durante os anos indicados no processo . ser em democracias.
tarão: “Quem é que vem falar de algo que já Naquele momento a iniciativa teve reper- Todavia, não devemos esquecer que nem
está superado? De algo que não é moderno? cussão, mas não em demasia. Na imprensa, tudo está permitido nos sistemas democráti-
Quem é que vem falar disto?” inclusive, dizia-se que o que se fazia era “um cos. Há um limite. São inaceitáveis as inter-
Isto foi o que sucedeu na Espanha, cujo brinde ao sol”. No uso espanhol, a expressão pretações que rompem com o Direito Interna-
processo de transição democrática, um pro- indica algo importante, mas que não serve cional dos Direitos Humanos, com o Direito
cesso chamado modelo em muitas partes do para nada, que é uma perda de tempo, algo Internacional Humanitário, com o Direito Pe-
mundo, avocou um esquecimento que ainda posto em marcha por uma pessoa louca. E nal Internacional – as normas que constituem
perdura. O esquecimento da justiça. diz-se assim porque, se é certo que existem a espinha dorsal do direito internacional – e
O afã da modernidade, de entrar na Eu- as normas que aí estão para serem cumpri- admitem, como válidos, como eficazes, como
ropa, a idéia de que seria mais progressista das, há dois tipos de juristas: os que acredi- legais e como legítimos, sistemas como o de
olhar na direção do futuro, em vez de fazê-lo tam nestas normas e as aplicam, interpretan- Guantanamo, por exemplo.
na direção do passado, levou a uma transição do-as num ou noutro sentido, e outros, que Se no dia de hoje há pessoas defendendo
que no plano político foi modelar e no social assumem que as normas existem, que estão a legitimidade e a própria idéia de legalidade
nos deu a entrada para o clube dos países em um livro, mas que esse livro se coloca na de um sistema de violação sistemática dos
democráticos, mas que deixou pendente uma biblioteca e não há nada mais a fazer. direitos fundamentais por meio de práticas
conta com a justiça. A justiça não esteve à A essa segunda categoria normalmente como a tortura, o tratamento desumano e de-
altura das circunstâncias. pertencem às normas do Direito Internacio- gradante, a verdade é que vamos buscá-la,
Minha aproximação destes temas não foi nal, sobre as quais se debate em todo lugar. onde estiver.
uma aproximação científica. Como juiz, até Os governantes apelam à defesa dos Direitos O que conseguimos no século XX, o
1996, meu conhecimento das conseqüências Humanos, ao compromisso de luta contra a século mais violento de toda a história da
das ditaduras do Chile, da Argentina, Brasil, impunidade, mas quando se trata de aplicar humanidade, foi uma consciência universal
Paraguai, Uruguai etc era uma aproximação de essa doutrina em carne própria, se esquecem dos Direitos Humanos. É verdade que pade-
intelectual interessado, de estudante rebelde de tudo que deveria ser lembrado. A lei está cemos, no século XX, particularmente na sua
dos últimos anos da ditadura franquista. lá, mas não se aventure ninguém a aplicá-la, última porção, muito depois do Holocausto e
Naquela época, decidimos manter uma porque imediatamente se alega que isso con- da Segunda Guerra Mundial, em datas mais
indignação ativa diante de um sistema que já figuraria uma intromissão, uma ingerência no recentes, no coração da Europa ou na África
era anacrônico em todos os sentidos, e que princípio da soberania e territorialidade de ou na América Latina – me refiro mais espe-
nunca deveria ter existido. Os acontecimentos outro país. cificamente aos casos da ex-Iugoslávia ou de
que naquela época se produziram com o gol- “Como aplicar o princípio da justiça uni- Ruanda –, padecemos de cenas que rompem
pe de Estado do Chile, ou das Juntas Milita- versal quando se trata das relações econô- com o sentido mais elementar de defesa dos
res argentinas, com a repressão feroz contra o micas de um país com outro? Como aplicar Direitos Humanos e consciência universal de
povo maia, na Guatemala, e em outros casos, essas normas, se tais relações econômicas defesa dos mesmos. E isso na década em 47
era notícia não demasiadamente freqüente e podem ver-se deterioradas?” Com estas per- que conseguimos, como sabem, decidir, no
Revista Direitos Humanos

tampouco de interesse. Em meu país havia guntas, distorce-se o debate, levando-o a estatuto do Tribunal Penal Internacional, pôr
“outras coisas” mais urgentes a atender. uma esfera que é a do debate político. Uma fim aos crimes contra a humanidade.
Minha aproximação com este tema foi coisa é discutir sobre normas legais, que têm Na sessão inaugural de julgamento con-
conseqüência da minha atividade judicial. To- interpretação jurídica, e, neste caso, judiciais. tra os responsáveis por crimes de genocídio
artigo A verdade, onde estiver

e contra a humanidade do Tribunal Penal lidade penal em alguns casos e foram feitas Não estava previsto, ninguém havia pre-
Internacional da ex-Iugoslávia, o promotor prisões em outros. Segundo: oxalá tivésse- visto, mas o fato é que já não vivemos mais
Richard Gloston disse uma coisa certa: que mos um Nelson Mandela em cada um dos em fendas compartimentadas. Estas existiam
nunca imaginamos que depois da Segunda países que padeceram. com a repressão. Fala-se hoje muito sobre al-
Guerra Mundial poderiam ocorrer fatos como Um dos argumentos utilizados para cri- deia global. Então falemos de aldeia global e
aqueles que havíamos visto outrora e que ticar a ação judicial é a fragilidade do siste- falemos de globalização. Eu não gosto desta
nunca imaginamos não estar preparados para ma democrático que sai de um sistema de palavra, mas gosto mais quando falamos dela
fazer frente aos mesmos. ditadura, com a ameaça de possível reversão simultaneamente a universalização, pois esta
Sou juiz e, portanto, tenho que defender o para um novo estado de repressão. Apesar última me apraz. Falemos de universalização
lado da Magistratura, o lado do que faço. Por disto, uma autêntica democracia tem que dos Direitos Humanos. E falemos do concei-
esta razão, vou advogar pela compatibilidade se arriscar para se consolidar em direção ao to universal de vítima. Falemos também do
entre as distintas formas de responder a fatos futuro. Não é uma questão de passado, mas caráter internacional dos crimes que foram
gravíssimos contra os Direitos Humanos, a uma questão de consolidação e de prevenção cometidos e que se cometem. E falemos da
crimes produzidos durante etapas de repres- para o futuro. investigação – por que não? – desse tipo de
são, de ditadura, depois destes períodos se A idéia de que vale tudo, ou de que “aqui crime, quando tais crimes afetam a comuni-
haverem concluído. Essa forma de justiça não há limite para a vontade de quem decide dade internacional.
transicional que defendo compatibiliza, por violentar os direitos básicos das pessoas” é Quando se trata de investigação de crimes
um lado, a memória e a verdade – com a uma doutrina gravíssima, que nos traz à me- como, por exemplo, de narcotráfico, ninguém
criação das Comissões de Verdade e Memó- mória a doutrina da Segurança do Estado, a jamais se questiona sobre sua caracterização
ria – e, por outro, a resposta penal. doutrina da Escola das Américas, a doutrina como crime internacional. Todos a festejam e
Há um erro muito generalizado sobre que, desde então e até agora, alguns ainda promovem a cooperação entre os juízes, entre
este assunto. Quando se cria uma Comissão praticam. os fiscais e entre os sistemas policiais para
de Verdade, uma comissão sobre a verdade Vocês devem recordar a decisão que foi que atuem pró-ativamente.
histórica, se toma sempre o exemplo da Áfri- tomada na Argentina imediatamente após a Por que, quando se trata de crimes muito
ca do Sul como base para que se argumente queda das Juntas Militares. Em 1985, o pre- mais horrendos, como crimes contra a hu-
favoravelmente a soluções de continuidade, sidente Raúl Afonsín aprovou, consentiu e manidade, genocídio, massacres contínuos e
como se esta fosse a única forma de enfrentar propugnou a aprovação das “leis de perdão”, outros, surge o sentimento nacionalista e a
os fatos do passado. Inclusive – e incluo a sob o argumento de que delas dependia a proteção daqueles que violentaram todos os
Espanha entre estes países – aprovam-se as segurança do povo argentino. O resultado sistemas de direito?
chamadas “leis de memória histórica”. Na histórico foi bem diferente. Aqueles que, de Custa-me entender como não se vê que,
Espanha, por exemplo, em 2007, tal lei não boa-fé, como Raúl Afonsín, interpretaram a lei justamente em decorrência da universaliza-
contou com o consenso das forças políticas. como segurança e conveniência para manter ção dos Direitos Humanos na comunidade in-
O partido da oposição, o Partido Popular, se o poder e a democracia, equivocaram-se, ternacional, já não há mais espaço para a im-
desvinculou da iniciativa e, deste ponto de porque as vítimas e os coletivos de Direitos punidade relativamente a crimes que são, ou
vista, incorreu em erro, porque os temas de Humanos não se calaram. podem ser, catalogados como crimes contra
memória coletiva, de memória de um povo, Tentaram fazê-los calar durante a ditadura a humanidade. Eles não podem ter uma res-
são eles mesmos uma questão de Estado. e depois dela, mas houve o ciclone das mu- posta que se afaste do princípio da igualdade
Devem ser, portanto, assumidas por todo o lheres com os lenços em suas cabeças, que perante a lei. Não é tão complicado.
48 Estado, já que se trata de crimes contra o tinham um clamor que era muito mais alto do Além disso, não é certo – e o digo com o
povo, livres de prescrição. que o de qualquer outra voz que se alçasse máximo respeito a quem eventualmente dis-
Revista Direitos Humanos

Muitos decidem que apenas com uma no horizonte. Tanto foi assim, que elas não corde da minha posição, mas também com a
Comissão nos moldes da África do Sul ter- chegaram apenas aos organismos interna- máxima contundência –, não é certo que os
mina a tarefa da justiça. Há, aí, dois erros. cionais. Elas chegaram também à justiça de sistemas democráticos se quebram quando
Primeiro: na África do Sul houve responsabi- outros países e lá aforaram suas ações. ação da justiça se produz. É mentira, é exa-
tamente o contrário, e as provas históricas Humanos, no caso Velásquez Rodrigues,
estão dando razão a meu argumento. Há, em e, depois desse caso, em uma infinidade
muitos países, processos abertos e nada su- de sentenças. Foi o que disse, mais recen-
cede neles que enfraqueça a democracia. temente, a mesma Corte Interamericana,
O que sucede, sim, é que se está conhe- quando prolatou duas sentenças memoráveis
cendo o que realmente aconteceu. Sucede a respeito das auto-anistias de Fujimori – a
que quando as provas afloram, nos damos primeira, no caso Barrios Altos; a segunda,
conta da imensidão do mal que se produziu. no caso La Cantuta, de 14 de março de 2002.
Sucede que quando há torturas sistemáticas Àqueles que se aproximam desses temas, eu
em Abu Ghraib, no Iraque, e elas são colo- aconselho encarecidamente que as leiam.
cadas a limpo, sobre a mesa, no princípio Sabem qual foi o resultado dessas sen-
os responsáveis negam as evidências, mas tenças? O resultado é que Fujimori está sen-
quando as provas são reveladoras, eles colo- tado no banco dos réus, está sendo julgado,
cam as mãos na cabeça e se perguntam: “O e ao presidente do tribunal querem afastá-lo,
que está acontecendo aqui?” porque está, nem mais nem menos, exigindo
Essa consciência democrática, eu, do que se faça um julgamento justo. Isso não
ponto de vista de minha experiência como foi permitido noutra época, e agora o está
juiz, venho comprovando e ainda comprovo. sendo. Então que se questione, inclusive, o
Em todos os países a discussão é a mesma. presidente do tribunal, mas que relembremos
Por exemplo: se estamos diante de crimes que esse questionamento provavelmente não
contra a humanidade, ou não. Se há prescri- teria sido permitido naquela época. Naquela
ção para os crimes contra a humanidade, ou época tal presidente provavelmente teria de-
não. Se é possível aprovar uma lei de anistia saparecido.
que proteja os perpetradores e, se aprovada Uma resposta está sendo produzida e essa
essa lei de anistia, é possível aplicar o cri- resposta saiu das mãos do Sistema Interame-
tério da permanência delitiva desses crimes, ricano de Direitos Humanos, desconhecido de
reivindicando a atualidades dos mesmos. Fujimori, que não aceitava a competência da
Para aqueles que não são técnicos em Corte. Mas nenhum poder é indefinido, nem
Direito, a permanência delitiva de um crime mesmo o dos ditadores. E, afinal, a grandeza
é uma categoria que se aplica principalmente do sistema democrático, do Estado de Direi-
ao caso da desaparição forçada de pessoas. to está em quem responde, não com ânimo
Segundo essa tese, enquanto não se dê razão de vingança, senão de justiça. E estas são
certa do paradeiro da vítima por aqueles que coisas perfeitamente separáveis e distintas.
produziram a desaparição, ou pelas autorida- A vingança é um sentimento, mas a justiça
des do Estado que a consentiram, propicia- é um valor, um valor fundamental, dos mais
ram ou não a evitaram, e posteriormente por nucleares entre os princípios democráticos.
aqueles que detêm controle dos eventuais Não sou eu quem dirá que a justiça rege
dados, provas, documentos etc, e não co- tudo, ou que há de reger quase tudo. Se qui-
loquem essas informações à disposição da sermos, poderemos falar da justiça e criticá- 49
justiça, o crime permanece sendo cometido. la, e não faltarão razões para isso, seja no que
Revista Direitos Humanos

Isso eu disse, já em 1988, quando aca- concerne à lentidão, à falta de compromisso,


bava de começar meu destino atual, com à falta de razão ou à falta de consciência que
sete anos de profissão como juiz. Disse isso nós, juízes, muitas vezes podemos ter frente
também a Corte Interamericana de Direitos aos problemas da sociedade e à resposta que
artigo A verdade, onde estiver

devemos dar a todos e a cada um dos fenô- Pensam alguns que a proibição conduz chet e sua família. Logo depois de haver sido
menos com caráter criminoso que nos são necessariamente ao resultado desejado. Isso ordenada por mim a detenção de Pinochet e
apresentados. ocorre, atualmente, no caso das imigrações. o bloqueio de todos os seus bens, em 1998,
Nós, juízes, não podemos selecionar Pensam alguns que, estabelecendo nor- uma Comissão instituída em decorrência da
nossos casos. Justiça a la carte não é justiça. mas duríssimas contra a imigração, podem Lei Patriótica, nos Estados Unidos, investigou
E, definitivamente, aqueles que desejam pas- “colocar portas no campo”. A imigração vai o banco Riggs, que era onde Pinochet depo-
sar por cima de alguns casos, o que pedem continuar acontecendo enquanto não forem sitava seu dinheiro.
é uma justiça a la carte. E ninguém, ninguém solucionadas as matrizes, as causas reais da Reuniram-se os senadores. O senador
está acima da lei. Isto que é dito há muitos mesma. Wilson, que liderava essa Comissão, disse:
séculos é, também, um princípio que está em No caso do decreto argentino, o que ele “Bem, ocorre que lembro que há uma reso-
todos os textos internacionais. enfrentou foi uma inércia judicial já inicia- lução de um juiz espanhol bloqueando os
Falava do caso Barrios Altos, mas peço da, que não podia parar e que nos obrigou bens de Pinochet. Como é possível que, no
que voltemos ao caso da Argentina. A inicia- a inventar, ou, mais que inventar, a encontrar ano 2000, oito milhões de dólares das contas
tiva de derrogação das leis de Ponto Final e novas formas de cooperação dentro do marco do senhor Pinochet e de sua família desapa-
Obediência Devida a princípio deu um passo legal internacional que se nos dava. E con- reçam? Quem autorizou essa reintegração de
tênue, mas o que sobreveio foi sua anulação seguimos. Juízes e promotores argentinos dinheiro?” Perguntou-se isto e rapidamente
pela Corte Suprema de Justiça. Foi uma de- cooperaram com juízes espanhóis, franceses, as autoridades chilenas começaram as inves-
cisão que não impôs nenhuma fratura ao Es- italianos etc na investigação desses crimes. tigações contra Pinochet e contra sua família
tado e à sociedade. Vejamos as voltas que a História dá. E isto por crime fiscal, porque evidentemente não
Houve, ademais, uma grande ação histó- é o que quero que guardemos hoje – o fato de haviam declarado nada à Fazenda Pública,
rica de assinatura de um decreto com refe- que negar-se à evidência da necessidade de não haviam pago os impostos.
rência a mim, o que é uma honra. Por meio justiça pode ser uma arma contra si próprio. Uma das conseqüências da investigação
50
desse decreto, qualquer cooperação da justi- Aquela justiça que era negada no caso Pino- foi o direcionamento de nove milhões de dó-
Revista Direitos Humanos

ça argentina para a investigação dos crimes chet, assim como aquela cooperação que se lares para as vítimas. É que, como conseqü-
que eu adiantava naquela época, na Espanha, negou no caso da Argentina, foi que deter- ência dos trabalhos da Comissão, uma ação
foi proibida. Esse decreto foi anulado por Er- minou, ao final, o início de investigações de contra o banco Riggs foi aforada. E, de meu
nesto Kirschner. crimes fiscais e desvio de bens contra Pino- lado, tive que determinar, ou aprovar, o acor-
do entre vítimas e, nesse caso, o banco fede- paramilitares, seu financiamento e enri- Há uma frase, um pensamento que a mim
ral dos Estados Unidos, em nove milhões de quecimento – aquilo que se dizem “delitos me chamou poderosamente a atenção e que
dólares, depositando na conta da Fundação conexos”. Quando se fala de delitos cone- descreve bastante bem quais são os limites
Salvador Allende, a quem encarreguei de dis- xos, é difícil admitir que um crime contra a que qualquer Estado de Direito deve deter,
tribuir o pagamento proporcionalmente a to- humanidade seja conexo com outro crime, diferentemente do que sucede a qualquer
das as vítimas que compareceram. Vejamos, que poderia ser o crime político. Melhor: Estado que não seja de Direito, ou no qual a
então, as voltas que dá a vida. Quem pensaria em todos os casos deveria ser o contrário. repressão esteja instalada.
que esse resultado seria produzido? Essas iniciativas polêmicas, que estão Essa frase foi dita pelo general Della
Diz o capítulo primeiro do Livro-Relatório sendo tomadas, incluem uma resposta ju- Chiesa na época do seqüestro de Aldo
da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos dicial e uma resposta reparadora das víti- Moro, presidente da República italiana,
Políticos do Brasil: “Só conhecendo profun- mas. Reparadora nas esferas moral, ética, em 1978. Aldo Moro havia sido seqües-
damente os porões e as atrocidades daquele econômica, no direito à verdade – com trado pelas Brigadas Vermelhas, orga-
lamentável período de nossa vida republicana audiências públicas, com confissão da ver- nização terrorista italiana, e o general
o país saberá construir instrumentos eficazes dade dos fatos cometidos – e uma resposta Della Chiesa era o responsável máximo
para garantir que semelhantes violações dos penal, escassa por certo, que, de acordo da seção anti-terrorista naquele momen-
direitos humanos não se repitam nunca mais”. com o princípio da proporcionalidade da to. Posteriormente esteve em Palermo,
Estou absolutamente de acordo. Pelo papel pena, vem sendo muito questionada, já Sicília, onde, em 1982, foi assassinado
de juiz histórico que se desvela, se postula que o limite de pena que tal norma estabe- pela Máfia. Esse mesmo assassinato foi
e se reafirma nesse relatório, não é apenas o lece é de apenas oito anos. Mas inclui uma investigado por Giovanni Falcone, de-
máximo aquilo a que se pode aspirar. complexa realidade de penas alternativas pois, mas isto é outra história.
O máximo a que se pode aspirar em que, com a participação das vítimas, está A história de 1978 foi que, quando de-
qualquer sistema democrático, partindo e ganhando cada vez mais espaço. tido um dos presumidos seqüestradores de
afirmando a consistência do mesmo, é que a Vê-se, nesta seara, o enfrentamento que Aldo Moro, alguém sugeriu ao general Della
ação da justiça não tem porque ser uma jus- se faz entre a Corte Suprema da Colômbia Chiesa que seria permitido torturá-lo, que ele
tiça de máximos, mas apenas de si mesma. e o presidente Uribe. Um presidente com podia pressioná-lo e dessa maneira obter in-
Como no aforismo latino, dura lex, sed lex, uma popularidade de aproximadamente formações e salvar Aldo Moro. A resposta do
a lei é dura mas é a lei, essa lei deve ser in- 90%, e que é digno de muita admiração e general Della Chiesa foi: “A Itália não pode
terpretada e nós, juízes, temos a obrigação respeito, em muitos casos está fazendo um permitir a prática da tortura”.
de fazê-lo. Há possibilidade de resposta por enfrentamento com a Corte Penal Suprema, Esta reflexão indica quais são os limi-
meio da via judicial. Há respostas que estão uma confrontação que tem atingido limites tes, quais são as fronteiras inquebrantáveis.
sendo dadas em outros países, e que estão muito perigosos. Ademais, o que traduzem, o que transmitem
sendo criticadas e são polêmicas, mas que Mas uma resposta está sendo produzida. é o que deve ser a resposta das instituições
estão sendo abordadas. Portanto, cada um, em seu próprio âmbito, e, principalmente, ainda que não apenas, do
Por exemplo, a Lei de Justiça e Paz, na tem possibilidade de dar essa resposta, sem- Poder Judiciário e do Ministério Público, para
Colômbia, que possibilitou a desmobiliza- pre tendo em mente aquilo que eu dizia no encabeçar essa ação regeneradora e de pro-
ção de 36.000 paramilitares e de 19.000 princípio, ou seja, a constatação de que não teção real às vítimas, que o merecem.
guerrilheiros das FARC. É verdade que ge- vivemos sós, em apenas um país. Vivemos O problema com as vítimas não é só o de
rou polêmicas importantes, e está gerando em todos os países e as vítimas não são só terem-nas matado, torturado, ou de as terem
porque, como conseqüência dela, uns 60 brasileiras, espanholas, argentinas, francesas feito desaparecer, mas é também a segunda 51
legisladores da atual Câmara de Repre- ou iraquianas, mas são vítimas universais, e, tortura aplicada a elas, a denegação da jus-
Revista Direitos Humanos

sentantes e de outras esferas municipais e portanto, tanto a comunidade internacional tiça, e a terceira, fazê-las responsáveis por
governamentais da Colômbia estão sendo tem direito de exigir que a justiça se cumpra, qualquer mal que possa acontecer a um Es-
investigados pela Corte Suprema. E estão quanto o tem o cidadão do lugar onde esses tado, quando esse Estado se declara incapaz
sendo investigados seus vínculos com os acontecimentos se produziram. de protegê-las.
entrevista
Augusto Boal

MOVIMENTO HUMANOS DIREITOS – Esta en- MHuD – E a discussão atual sobre os crimes
trevista é uma alegria enorme para o Movi- de tortura, sobre anistia dos torturadores?
mento Humanos Direitos. Vamos começar com BOAL – Eu estou preocupado. As pessoas usam as
a questão da tortura. Quanto tempo você ficou palavras e todas as palavras são apenas meios de
preso? Sabia do que estava sendo acusado? transporte. Você tem de explicar o que está dentro
52 AUGUSTO BOAL – Fiquei quase quatro meses de cada palavra, qual a carga que cada palavra leva
preso. Um mês eu fiquei isolado em uma cela dentro de si. A palavra pode transportar o contrário
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de segurança máxima, que tinha dois portões daquilo que está no dicionário. Você diz com uma
grandes, dada a minha extrema periculosidade… intenção e a pessoa entende o contrário. A gente
Olhem só a minha cara... Eu não sabia do que es- tem que ter todo o cuidado quando fala, espe-
tava sendo acusado, mas desconfiava. A gente ia cialmente a jornalistas e a juízes. Está se falando
fazendo algumas coisas importantes, mas nunca muito se a tortura prescreve ou não prescreve. A
elas eram aprovadas pela ditadura... Declaração Universal dos Direitos do Homem diz
Em 1971, Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido, foi preso, torturado e exiliado.
Morou na Argentina de 1971-1976, onde dirigiu o grupo “El Machete” de Buenos Aires e
montou as peças “O Grande Acordo Internacional do Tio Patinhas”, “Torquemada” (sobre a
tortura no Brasil) e “Revolução na América do Sul”, de sua autoria. Foi nesse período que
iniciou intensas viagens pela América Latina, onde começou a desenvolver novas técnicas do
Teatro do Oprimido: Teatro-Imagem, Teatro-Invisível e Teatro-Fórum.
Em 1976 mudou-se para Lisboa, onde dirige o grupo “A Barraca”. Dois anos depois é
convidado para lecionar na Université de la Sorbonne-Nouvelle. Em Paris, cria o Centre du
Théatre de l´Opprimé-Augusto Boal, em 1979.
Trabalhou em diversos países europeus e desenvolveu as técnicas introspectivas do Teatro
do Oprimido: o Arco-Íris do Desejo. Antes de regressar definitivamente ao Brasil, montou no
Rio de Janeiro “O Corsário do Rei” (de sua autoria, letras de Chico Buarque, música de Edu
Lobo) e “Fedra” de Racine. A convite do então Secretário de Educação do Estado do Rio de
Janeiro, professor Darcy Ribeiro, Boal voltou ao Brasil em 1986 para dirigir a Fábrica de Teatro
Popular. O objetivo era tornar a linguagem teatral acessível a todos, como estímulo ao diálogo
e à transformação da realidade social. Ainda em 1986, criou, com artistas populares, o Centro
de Teatro do Oprimido – CTO-Rio, para difundir o Teatro do Oprimido no Brasil.
O Movimento Humanos Direitos (MHuD),
No CTO-Rio, desenvolveu projetos com ONGs, sindicatos, universidades e prefeituras.
que entrevistou Augusto Boal para esta
Em 1992, candidatou-se e foi eleito vereador da cidade do Rio de Janeiro pelo PT, para fazer
primeira edição, é um coletivo da sociedade
civil, formado por 43 associados, que realiza Teatro-Fórum e, a partir da intervenção dos espectadores, criar projetos de lei: é o Teatro-
e executa projetos e programas de proteção e legislativo.
defesa dos direitos humanos. Composto por A partir de 1996, fora da Câmara dos Vereadores, Boal e o CTO-Rio seguiram na
militantes de diferentes áreas profissionais consolidação do Teatro Legislativo. Em 1998, conseguiram o apoio da Fundação Ford, para
- atores, produtores, fotógrafos, professores a criação de grupos comunitários de Teatro do Oprimido. Boal também realizou diversas
e outros -, o MHuD tem como propósito Sessões Solenes Simbólicas, de Teatro Legislativo, no exterior.
fortalecer o espírito de cidadania na Em 1999, transformou a ópera “Carmem” de Bizet em Sambópera, uma experiência
sociedade brasileira, agindo em cooperação inovadora que traduziu as músicas originais para ritmos genuinamente brasileiros.
com outras organizações, promovendo e Sua mais recente pesquisa é a Estética do Oprimido, programa de formação estética que
incentivando o debate público e a reflexão integra experiências com o som, palavra e imagem.
sobre o tema dos direitos fundamentais. Para
A Estética do Oprimido tem por fundamento a certeza de que somos todos melhores do
garantir foco e maior efetividade, as ações
que pensamos ser, e capazes de fazer mais do que aquilo que efetivamente realizamos: todo
desenvolvidas pelo Movimento concentram-
se em quatro eixos prioritários: a erradicação ser humano é expansivo.
tanto do trabalho escravo quanto do trabalho A principal criação de Augusto Boal, o Teatro do Oprimido, é hoje uma realidade mundial,
infantil, a demarcação das terras indígenas e sendo a metodologia teatral mais conhecida e praticada nos cinco continentes.
dos territórios quilombolas, e a promoção do Nessa conversa com Bruno Cattoni, Dira Paes, Generosa de Oliveira, Ricardo Rezende
sócio-ambientalismo no país. e Salete Hallack, do Movimento Humanos Direitos (MhuD), ele fala sobre tortura, direitos
humanos, segurança pública e sobre teatro, claro.

assim: “Ninguém será submetido a tortura, nem a escravocrata, quando as mulheres não votavam, os beldia e nossa rebelião eram legítimas. O Brasil
tratamento ou castigo cruel, desumano ou degra- estrangeiros eram escravos ou metecos e também democrático assinou a Declaração que a ditadura,
dante”. Então, é proibido pela Declaração Universal não votavam. Era uma democracia restrita. depois, negou. Quem era, então, subversivo? As
dos Direitos Humanos torturar. O Brasil é signatá- Forças Armadas, é lógico. Foram elas que sub-
rio, então logicamente, não pode torturar. Mas ouvi MHuD – Era uma democracia direta de uma verteram o Estado de Direito, legal, que existia até
alguém importante dizer que tem de ver os dois população muito pequena. 1964. Eram subversivos e chamavam os legalistas 53
lados. Diz a Declaração: “Considerando essencial BOAL – Pinochet disse uma vez que eles eram de subversivos. Agora algumas pessoas andam
Revista Direitos Humanos

que os direitos humanos sejam protegidos pelo um país democrático, porque as decisões eram dizendo: eles foram terroristas! Mas quem foi que
Estado de direito, etc”. A ditadura não era um Esta- tomadas em conjunto. Conjunto de quem? Dos instaurou o terror? Foi a ditadura!
do de direito. A semântica é um campo de batalha três chefes das Forças Armadas. Tem uma coisa O terror do Estado foi instaurado por um grupo
onde cada um quer se apropriar do significado das bonita na Declaração que diz assim: “...para que o de civis e militares – a gente não pode esquecer
palavras. Por exemplo, democracia. Os atenienses homem não seja compelido, como último recurso, que muitos civis estavam no poder e alguns con-
inventaram essa palavra quando eles eram um país à rebelião contra a tirania e a opressão”. Nossa re- tinuam ainda. Então, esse argumento de que os
entrevista Augusto Boal

dois lados eram iguais não é verdadeiro. Vivíamos MHuD – Agora, não querem dizer onde estão os estigma. O pessoal do meu Centro conseguiu fazer
em um país democrático e eles subverteram esse arquivos. Dizem até que não existem arquivos. um espetáculo de Teatro-Fórum na praça, no meio
regime e impuseram um regime que não era de BOAL – Talvez não tenham as provas documen- da cidade, com esses presos – com esse tipo de
Direito, era regime de força. E depois nos cha- tais, mas existem as testemunhais e elas também preso que às vezes pode sair no domingo. A platéia
maram de subversivos. Impuseram o terror e nos são válidas. As pessoas que foram torturadas, e as era de gente livre, moradores do local, que entrava
chamaram de terroristas. Quem se rebelou contra pessoas que assistiram. em cena tentando achar soluções para os problemas
a ditadura estava amparado no texto de validade mostrados na peça e improvisava. –“Ah, se eu es-
universal, assinado por quase 200 países. MHuD – Mas você acha que de fato não existem tivesse preso, faria tal coisa, assim, assim e tal”. E
No meu próximo livro, “A Estética do Opri- arquivos? todos improvisavam juntos, presos e cidadãos livres.
mido”, eu transcrevo a Declaração Universal dos BOAL – Eles devem ter escondido, não é? Isso Depois disso, como houve esse contato humaniza-
Direitos Humanos inteirinha - é uma coisa linda. sim. E devem ter queimado. Parece que já queima- dor, acabou em parte, aquele ostracismo.
Se o mundo fosse realmente guiado por ela, seria ram alguns, uma parte. Eles têm tanta vergonha.
um mundo maravilhoso, porque ela dá todas as Além de covardes estão envergonhados do que MHUD – Mas houve a inclusão, depois, desses
garantias para o indivíduo se desenvolver como fizeram. Medalhas ostentam no peito, arquivos ex-detentos ou detentos em regime progressi-
ser humano. se escondem. Se a gente pensar tendo as idéias vo? Houve a inclusão na sociedade?
claras, quem for contra a punição de crimes está BOAL – Alguns deles já tinham o privilégio de po-
MHuD – Você é a favor da punição do tortura- sendo a favor do crime continuado. Se você não der ir para casa e voltar, não era preso permanente.
dor, da abertura dos arquivos? pune, você é a favor do crime continuado. É o que Estava na cadeia, mas podia sair, vai trabalhar em
BOAL – “O sertanejo é antes de tudo um forte” está acontecendo. Não com presos políticos, mas tal lugar, sempre sob custódia. Outros vinham de
escreveu Euclides da Cunha. Parafraseando, eu presos comuns estão sendo torturados. outras cidades. Mas o que sentimos foi a quase
diria: “O torturador é antes de tudo um covarde”. O meu Centro trabalhou durante muito tempo extinção do opróbrio. Em um outro espetáculo,
Porque ele não tortura em igualdade de condições, com o Depen (Departamento Penitenciário Nacio- um preso encenou o seu caso: estava há um ano
ele não combate. Ele tortura uma pessoa que já nal, do Ministério da Justiça), em muitas prisões, na cadeia e que não tinha cometido crime ne-
está vencida, que não tem mais defesa, e nunca e a gente via o que acontecia lá dentro. nhum. O advogado já tinha provado que não era
tortura sozinho. Eu mesmo fui torturado por seis A verdade é terapêutica. Se você não fala a ele, mas ele continuava preso. Quando fizeram o
ou sete homens armados. Puni-lo é uma neces- verdade, não quer saber a verdade, dá úlcera. É espetáculo, por coincidência tinha uma juíza que
sidade também das Forças Armadas, que devem melhor não ter úlcera, é melhor dizer a verdade. É assistiu a cena na platéia e aí ela acionou o alvará
expurgar covardes do seu meio. A gente quer um uma terapia social, não terapia individual só, não. de soltura dele. Ele não voltou na cela nem para
Exército de gente corajosa. Aeronáutica, Marinha O fato de a discussão continuar mostra que ela pegar a escova de dente, foi direto para casa.
com gente de coragem. Se existem covardes no está muito viva. Na Argentina os juizes julgaram,
meio deles, devem ser excluídos e julgados. Sem- um por um, todos os torturadores Na África do Sul, MHUD – E toda a cidade participava bem disso?
pre dentro da lei do Estado brasileiro. Não existe fizeram tribunais da reconciliação: o torturador que BOAL – Muita gente, a praça cheia. A gente esteve
nenhuma lei no Brasil que autorize a tortura. Então, fosse lá e confessasse, e se dissesse que esta- também em uma outra prisão, em Campo Gran-
é evidente que a primeira coisa a fazer é limpar as va arrependido do que tinha feito, era absolvido. de (MS), e não tinha onde fazer o espetáculo. O
Forças Armadas de covardes, de torturadores. Se A punição qual era? Era que todo mundo ficava único lugar viável era em frente a uma cela com
existe um crime, tem que haver punição. Se você sabendo. O castigo era obrigar o torturador a dizer 200 presos lá dentro, grades imensas. Só tinha
não pune o crime, as pessoas saem dizendo que a verdade, castigo moral. Todo mundo ficava sa- aquele espaço. Tinha que pedir autorização aos
se devia não só torturar, mas matar, como aquele bendo que havia sido torturador. presos para fazer o espetáculo na frente deles. Aí
Bolsonaro. Temos que saber quem foi torturador. E pensamos: - “Eles vão ficar chateados, vão gritar,
se houve algum guerrilheiro que torturou, eu tam- MHUD – Vamos falar sobre o tema da seguran- atrapalhar, vão ficar com raiva da gente”. O grupo
bém acho covardia. A tortura é covardia. ça pública neste momento no Brasil. De que for- de teatro explicou: - “É uma forma de teatro em
ma você vê esse tema e os direitos humanos? que você apresenta um problema para imaginar
MHuD – Mas você acha que o crime é pres- BOAL – Os Direitos Humanos incluem, é claro, o soluções; quando termina, começa a mesma peça
critível? direito à Educação, à Saúde, à moradia digna e ao outra vez, e o espectador pode dizer ‘pára’, entrar
54 BOAL – Em lugar nenhum se diz que esse crime trabalho, à Cultura e a Arte, enfim, tudo que está na em cena, substituir o protagonista e improvisar so-
é prescritível. famosa Declaração de 1948. Mas, objetivamente, luções”. Os presos e eles toparam. Então fizemos
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sobre a segurança, quero contar um episódio, ou o espetáculo na frente da cela. Quando terminou
MHuD – Agora, para saber quem é o torturador dois. Em Presidente Prudente tem uma prisão bem a peça, começou o fórum. Entrou um espectador
tem que abrir os arquivos... perto da cidade que era como se fosse um lepro- daqueles convidados que tinham vindo conosco,
BOAL – É, tem que ter as provas. Podem ser teste- sário. Ninguém queria nem chegar perto. Mesmo depois outro, mais outro. Daí a pouco, um preso
munhais ou documentais. depois que eram soltos, os presos carregavam o de dentro da cela falou: - “Pára, eu tenho uma
idéia!”. O carcereiro não hesitou, abriu a porta, o gente já sabe que sacrificou muito vocês, agora é televisão. Sou antigo. Tinha grandes romances.
preso saiu, entrou em cena, fez a sua intervenção a vez de vocês”. Não acredito que os cem homens Por exemplo, “Os três mosqueteiros”, “O conde de
e voltou pra cela. E mais dois ou três presos: - “Eu mais ricos do mundo da revista Forbes, de repente, Monte Cristo”. O Correio trazia todos os sábados
também tenho uma idéia!”. Foi uma alegria para vão ter um acesso de humanismo e vão distribuir dois ou três capítulos, minha mãe recebia e lia,
nós, porque parecia uma metáfora do Teatro do metade das suas fortunas para os miseráveis desta gostava muito de ler.
Oprimido. A gente não quer que o espectador fi- terra. Isso não vai acontecer nunca. Se você não
que prisioneiro na sua cadeira. Quer que ele tenha está organizado e não faz a sua organização atuar MHUD – Em fascículos?
a liberdade de invadir a cena e dizer o que pensa e politicamente, você vai continuar sempre subme- BOAL – Fascículos. Foi encenando o “Conde de
se manifestar. E ali, naquela prisão, conseguimos tido. Os bancos que estão se fundindo. Para quê? Monde Cristo” com meus irmãos, irmãs e primos
a liberdade de imaginar, de pensar juntos. Conse- Para favorecer o cliente que vai lá e deposita seu que estreei como diretor de teatro. Eram cenas
guimos estabelecer um diálogo humano. Entraram dinheiro? Não. É para mais ainda enriquecer os curtinhas, de dez minutos. Depois do almoço de
em cena convidados, carcereiros, prisioneiros... próprios bancos e seus acionistas. Todas grandes família, as pessoas sentavam e assistiam. Come-
seres humanos. fusões que a gente está vendo são para fortalecer cei assim a gostar de teatro.
os mais fortes. Se os mais fracos, oprimidos, não
MHUD – Mas, e a segurança pública? se fortalecem, não vão se libertar nunca. Penso MHUD – E seus colegas não tinham a mesma
BOAL – Direitos Humanos são para todos, sem que através do diálogo teatral as pessoas podem condição financeira. Vocês moravam na Pe-
exclusão. Nas prisões, fazemos questão de traba- ser levadas a entender melhor as alternativas para nha. Imagino que as crianças eram muito po-
lhar com presos e também com funcionários que a sua situação de opressão e a pensar com a pró- bres e você era filho de um padeiro, de modo
também têm os seus problemas de segurança e pria cabeça. que tinha uma condição um pouco melhor.
econômicos. Mas veja uma criança que nasce em Como era isso?
uma comunidade pobre: sua única chance de se MHUD – Como é que você descobriu o teatro? BOAL – Meu pai tinha duas padarias, mas também
integrar tem sido a de entrar para o tráfico. Ou pas- BOAL – Na minha infância não tinha novela, nem não era rico.
sar fome. Isso eu estou falando porque é prática
nossa. Muitas peças que os jovens com que traba-
lhamos já fizeram são sobre eles mesmos: jovens
que não têm outra saída. Peças sobre crianças
que são exploradas, sexual e economicamente.
Vem alguém e fala: - “Você quer ser o aviãozinho?
Você vai ganhar por semana o que um operário não
ganha por mês.” Eles vão mesmo. Não têm uma
escola que dê um embasamento, não têm saúde
e às vezes não têm nem família. A situação está
mudando, mudando bastante, mas ainda é assim.
A gente se enganava no começo quando per-
guntava a um jovem: - “Você tem família?” Ele
respondia: - “Tenho! A gente tem pai, tem mãe”.
Mas quando a gente perguntava pela família, cada
um pensava na sua. Eu pensava no meu papai,
minha mamãe, na mesa dos domingos onde todo
mundo se reunia com primos, tios. Para ele, fa-
mília era um pai que sumiu ou era bêbado, um
desempregado, a mãe que trabalhava como louca,
a filha que se prostituía ou que havia engravidado
menina. Família para ele é isso.
55
MHUD – Como é que você vê esse embate da
Revista Direitos Humanos

hegemonia e do pensamento contra-hegemôni-


co no mundo?
BOAL – Acredito que só os oprimidos vão libertar
os oprimidos. Não acredito que, de repente, os
homens vão ser bonzinhos com as mulheres: - “A
entrevista Augusto Boal

MHUD – Mas havia interação? não eram negros, eram muito pobres. Então eu nesse telegrama. Como uma das acusações contra
BOAL – Sim, mas eles não vinham para o teatro escrevia sobre eles. Eu vivia no meio dos oprimi- mim era a de que eu teria levado artigos contra a
não. Com eles era o futebol no meio da rua em dos. Não era tão oprimido como eles, mas vivia na ditadura e entregue ao Sartre para que os publicas-
frente: os carros, que passavam de meia em meia Penha (Zona Norte do Rio de Janeiro) que era um se na sua revista, Les Temps Modernes, Sartre es-
hora, paravam até a gente fazer um gol. Teatro bairro pobre. Na minha rua não tinha nem esgoto. creveu afirmando que não tinha sido eu o portador
mesmo, era dentro da família, coisa familiar. daqueles artigos “contra a sangrenta ditadura que
MHUD – Você teve ligação com o Partido Co- enxovalhava o Brasil”. O militar leu o telegrama no
MHUD – E sua relação com o Abdias Nasci- munista? tribunal e falou assim: - “Tá vendo, até preso você
mento? BOAL – Não. Eu nunca fui de nenhum partido, a está fazendo subversão”.
BOAL – O Abdias é o meu mais velho amigo, mui- não ser quando fui vereador e entrei para o Partido
to querido e admirado. A gente se conheceu em dos Trabalhadores. Dentro do Teatro de Arena havia MHUD – E as idéias do Nelson Rodrigues e as suas
1948. Por coincidência, foi o ano da Declaração vários atores que eram do Partido Comunista. idéias, como conviviam pessoas tão diferentes?
dos Direitos Humanos. Esse é um dos direitos fun- BOAL – A cabeçadas e bicadas, viu. Eu nunca
damentais: a amizade! MHUD – Guarnieri (Gianfrancesco), por exemplo? concordei com o Nelson, em nada. Eu só concor-
BOAL – Guarnieri sempre disse que era, e era dava que ele era um cara muito amigo. E eu era
MHUD – O Abdias é do Teatro do Negro, não é? mesmo, todo mundo sabia. Guarnieri, Vianinha muito amigo dele também.
BOAL – Teatro Experimental do Negro. O Solano (Oduvaldo Vianna Filho), havia vários. Mas eu
Trindade, aquele poeta negro, que também era ex- nunca concordei com o Partido Comunista. MHUD – E muito brilhante também.
celente, era de São Paulo. Eu fazia peças e dava BOAL – Muito brilhante, inteligente, eu gostava
para o Abdias. MHUD – Por que? demais dele e ele me ajudou bastante. E nós torcí-
BOAL – Uma das razões principais é que eu não amos pelo mesmo time, que é o Fluminense.
MHUD – Mas quando você o conheceu, em acreditava muito na história de que havia duas bur-
1948, como foi? guesias brasileiras, entreguista e nacionalista. Eu MHUD – Ele aceitava as suas idéias revolucio-
BOAL – Em frente à Associação Brasileira de Im- achava que os oprimidos não deviam entrar nes- nárias para o teatro?
prensa tem um bar que se chamava Vermelhinho. sas nuances, deviam lutar pelos seus direitos que BOAL – De maneira nenhuma. Nem as minhas,
Não sei se tem ainda, mas tinha. Era ponto de en- eram – e são – legítimos. nem as do Vianinha, nem as de ninguém. Mas
contro de pessoas de teatro. Eu conheci o Nelson admirava a gente. Ele foi sempre muito bacana
Rodrigues lá. Sou engenheiro químico. Não pare- MHUD – Mas certamente você era um materia- comigo, mas desastrado também.
ço, mas tenho diploma e tudo, até da Columbia lista dialético, assim como eles.
University, veja só! Eu era diretor do Departamento BOAL – Eu nunca me classifiquei assim. MHUD – Em que sentido?
Cultural da Escola Nacional de Química, na Praia BOAL – Um mês depois que eu estava preso, já
Vermelha (Urca). Fui procurar o Nelson para ele MHUD – Mas os existencialistas gostavam mui- estava na cela coletiva, com mais 15 pessoas lá,
fazer uma conferência para os alunos da Química, to de você, porque o Sartre chegou a te defen- às vezes 17, e ele escreveu um artigo para me de-
mas ali no sede do Serviço Nacional de Teatro, em der quando você foi preso. fender. Só que a defesa dele dizia que eu nunca
frente ao botequim. Me lembro que a gente esta- BOAL – Não é que ele gostasse, é que ele defendia tinha me metido em política, que eu só falava de
va na porta, esperando chegar o pessoal, e vinha qualquer um que lutasse pelos Direitos Humanos. teatro, era um anjo celestial. Disse que uma vez
um, dois, três, quatro, cinco, dez pessoas. Chegou eu e ele estávamos no velório de um amigo co-
uma hora em que o Nelson disse pra mim: - “Você MHUD – Quer lembrar um pouco dessa história mum e eu, em vez de falar com a viúva sobre as
não prefere que a gente faça essa conferência ali com o Sartre? qualidades do morto, só falava de teatro, na frente
no Vermelhinho, comendo uma media com pão e BOAL – Com o Sartre o contato que eu tive foi do caixão. Ele sempre foi amigo de verdade, mas
manteiga?” Eu morri de vergonha. Depois o Abdias uma vez só, em uma conferência que ele fez e a era um reacionário que Deus me livre. Ele defendia
quis montar uma peça minha com o Grande Otelo. gente debateu alguma coisa sobre Brecht. Eu dizia a ditadura. Era muito impossível engolir as idéias
Também fiquei muito amigo do Grande Otelo. uma coisa, ele dizia outra. Não me lembro o que políticas dele. A gente já nem discutia mais. É
dizíamos, mas, acho que eu tinha razão... engraçado quando você tem um amigo de quem
56 MHUD – E você já tinha sensibilidade do social, você gosta demais, mas o cara pensa o oposto de
tinha preocupação com os Direitos Humanos? MHUD – Ele mandou uma mensagem quando você.
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Boal – Tinha que ter. Porque perto de onde eu mo- você foi preso.
rava tinha o Curtume Carioca e a padaria servia os BOAL – Foi um movimento que se fez, realmente MHUD – A estética pressupõe uma ética.
operários de lá. Eu trabalhava com o meu pai na muito importante para me soltar. Ele mandou um BOAL – A estética sempre revela uma ética. Em
padaria e via o pessoal chegando, conversava. A telegrama para o tribunal. Um dos militares que teatro, mais ainda, porque quando você vê espe-
maior parte deles era de negros e mesmo os que estava me julgando leu o que o Sartre tinha escrito táculo, não é uma coisa estática. A peça mostra
o movimento de um grupo social e esse movimento meçaram a trabalhar comigo em cima dessa idéia: e ninguém protesta nem faz nada”. Começavam
vai de um lado para outro, no sentido de aumentar a como é que se transforma a ata de uma assembléia, a provocar o jovem ator e o rapaz se defendia.
opressão, ou no sentido de eliminar a opressão. O uma cena da Bíblia, qualquer material escrito, além Criava-se uma confusão danada. Um dia o rapaz
teatro, através da empatia, transfere as idéias da peça das notícias de um jornal, em teatro. A gente desen- fugiu com as moças atrás dele e ficou cercado no
para o espectador: esse é o perigo ético do teatro. volveu muitos grupos em São Paulo que faziam isso. fundo do corredor da estação, todo mundo desceu
Foi quando eu fui preso. Depois fui para Buenos Ai- para ver o desenlace da cena. Mas isso a gente
MHUD – Nesse sentido é que se criou o Teatro res. Cecília é argentina, ela tinha família lá. Ficamos fez, digamos, 10 vezes. Tinha que ser 100 ou 200,
do Oprimido? cinco 5 anos. Lá eu desenvolvi o Teatro Invisível, mil. Aí vira um fato político importante. A gente ia
BOAL – O Teatro do Oprimido, na verdade, foi porque queria fazer teatro na rua. e voltava na mesma linha de metrô, com o mesmo
criado sempre pela relação com a realidade. Por grupo. Mudavam os espectadores. No metrô as
exemplo, a primeira forma de teatro oprimido foi lá MHUD – Isso em que ano? cenas têm que ser curtinhas porque se abrem as
em São Paulo. Porque todas as peças que a gente BOAL – Em 1971. portas a cada dois minutos.
fazia, a polícia proibia. Eu me lembro de um espe-
táculo que se chamava “Feira Paulista de Opinião”. MHUD – Qual é a função social desse teatro MHUD –Você teve experiência no Brasil e in-
Tinha peças do Guarnieri, Bráulio Pedroso, Plínio invisível? ternacional. O teatro tem uma linguagem uni-
Marcos, Lauro César Muniz, Jorge Andrade e eu. BOAL – A função é revelar o escondido. A opres- versal?
Músicas do Gil, Caetano, Sérgio Ricardo, Sydney são existe muito mais insidiosamente quando é BOAL – No caso do Teatro do Oprimido, ele hoje é
Miller, Edu Lobo, e artes plásticas de todos os invisível, não se vê. Então você revela o que não mundial mesmo. Tem um site internacional, www.
jeitos de 15 ou 20 artistas. Em cena estavam a se vê, mas existe. Na Alemanha a gente fez, per- theatreoftheoppressed.org, e lá você vê, se não
Miriam Muniz, Antonio Fagundes, Garnieri, Renato to de Frankfurt, onde muitos imigrantes não têm me engano, 55 países onde se pratica o Teatro do
Consorte, a Cecília Thumim, um grande número onde morar, uma cena no meio da praça com uma Oprimido. Nós conhecemos mais uns 20. E se vê
de ótimos atores. O espetáculo era um mural em boliviana que queria ficar no país. Os transeuntes os grupos que praticam: 150, mais ou menos. A
que a gente perguntava: - “O que é que você acha vinham e começou a discutir o problema teatral- gente sabe que tem muitos mais. Na África, nós
do Brasil de hoje?”. E cada artista respondia da mente. É um instrumento político. A gente nunca trabalhamos em Moçambique, Angola, Guiné Bissau,
sua maneira, sempre com uma obra de arte. faz pegadinhas, nunca obriga ninguém a entrar e existe anualmente o Festival do Teatro do Oprimido
Eu me lembro que tinha uma escultura que era em cena, não humilha ninguém, nem ridiculariza. no Senegal, onde sempre algum de nós está lá par-
um túnel que se chamava “Milagre Brasileiro”. A E tem um texto, a gente estuda o texto. A gente ticipando. Eu fui à Índia em 2006 para a inauguração
pessoa entrava em uma cadeira de rodas e, no fim, representa a peça, só que não diz que é peça. Os da Federação Indiana de Teatro do Oprimido e tinha
a cadeira de rodas apertava um interruptor e acen- passantes vêem aquilo e participam, têm vontade 12 mil pessoas no desfile que eles fizeram e lotaram
dia a imagem de Nossa Senhora Aparecida. Então, de participar e se instaura um debate político civi- a Wellington Square para ouvir a gente falando. No
a pessoa tinha que sair andando, não podia voltar lizado. Mas ninguém é obrigado a nada. primeiro semestre deste ano trabalhei em oito paises
para trás. O milagre era: quem anda de cadeira de diferentes. O TO é mundial mesmo.
rodas rezando, sai a pé. Um quadro era a bandeira MHUD – E a função pedagógica? Porque o MST,
brasileira que se transformava na bandeira ameri- por exemplo, está usando o Teatro do Oprimido. MHUD – Voltando aos desdobramentos do Teatro
cana. Tinha também uma banana enorme, que era BOAL – Eles trabalham com a gente há vários do Oprimido, fale da sua parceria com a Cecília.
o símbolo do tropicalismo, logo na entrada. E a anos. A função do nosso teatro é sempre essa, a BOAL – A Cecília trabalhou comigo, sobretudo em
peça foi proibida. de trazer à consciência das pessoas o tema escon- um ateliê que durou dois anos, em Paris, 1980-
Depois houve uma greve geral lá em São Pau- dido que você está querendo tratar. Porque o mais 82, sobre o Arco-íris do Desejo, que é a parte do
lo, centenas de artistas vieram para o nosso palco difícil é você mostrar o que todo mundo já olhou, Teatro do Oprimido que trata das opressões inter-
e a Cacilda Becker proclamou o estado de deso- mas não viu. Então você tem que fazer ver aquilo nalizadas. Não é terapia (Cecília é psicanalista),
bediência civil. Foi uma coisa extraordinária. Mas que apenas se olha. mas pode ser terapêutico. Isso foi lá em Paris, ela
veio Médici. Começaram a proibir tudo, a gente Agora, para ter eficácia política, você tem que ainda estava na faculdade lá.
não podia fazer mais nada. Aí a gente começou fazer cem vezes no mesmo dia. Aí explode. Em Pa-
a inventar o Teatro Jornal: através de notícias de ris a gente fazia uma cena sobre a violência contra MHUD – Quantos anos vocês têm de casados?
jornal, fazíamos cenas de teatro. as mulheres no metrô. Era um cara que começava BOAL – 42 anos. 57
A Cecília Thumim, minha mulher, e Heleny a bolinar uma moça, ambos atores, a moça recla-
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Guariba (que foi depois assassinada pela ditadura) mava e ninguém ajudava. Duas outras atrizes que MHUD – É importante a idéia do amor no seu
davam aulas no nosso curso de teatro, com alunos estavam lá, quando a moça ia embora – e provo- teatro, ou só a política, a ética?
que beiravam os 18 anos, gente novinha, entre cador atrás dela. Diziam: - “Olha, esse rapaz aqui BOAL – A política é amorosa. Ou pode ser. Devia
eles Celso Frateschi, Denise del Vecchio, Dulce como ele é bonito. Vamos lá provocar ele também ser. A política é uma forma de amor. Ou de ódio.
Muniz... Convidei todos no fim do curso e eles co- porque é permitido bolinar as pessoas no metrô O que vocês estão fazendo não é política? O Movi-
entrevista Augusto Boal

mento Humanos Direitos não é política? Claro que guas, com várias sociedades dentro do próprio palavra família, era aquela mesa da minha infância
sim, mas por que? Por amor! Brasil. Que homem é esse que dialoga com a que vocês estão vendo ali no meio da minha sala.
diferença e que consegue realizar tanto? Aos quatro anos eu me escondia embaixo, até que
MHuD - Você deve ser um homem de muita fé. BOAL – É a minha ética. Eu sempre digo para o a minha mãe me achava. Para mim, família era
Você tem religião? Acredita em Deus? meu grupo que o importante não é o tamanho do essa mesa com meu pai, minha mãe, todo mundo
BOAL – Nem desacredito. passo, é a direção desse passo. Se você está dan- em volta. Para eles, era outra coisa. Eles faziam
do um passo na direção certa, mesmo pequeno, diferente, esculpiam o corpo de uma pessoa tra-
MHuD – Você é agnóstico? isso é bom. Agora, se você dá um passo imenso balhando, outra se embriagando, outra fazendo
BOAL – É difícil explicar. Todas essas formulações na direção errada, quanto maior pior. Às vezes a qualquer outra coisa. A gente trabalhava só com
das religiões dão uma explicação que é mais ou gente faz uma coisa que é muito pequena, mas imagens. Essa foi a primeira técnica; hoje temos
menos lógica. Eu sou amigo do Frei Betto. Quando que está na direção certa. É bom. dezenas de técnicas muito mais sofisticadas, mas
eu estava preso, ele já estava preso antes de mim. Na Estética do Oprimido quando a gente faz simples de usar.
Às vezes vinha na minha cela e conversava sobre um trabalho com as crianças e pede para fazerem Quando eu trabalhei em Buenos Aires, eu ti-
Jesus Cristo enquanto ser humano, vivendo em a bandeira do Brasil, elas são levadas a fazer um nha um grupo que se chamava Machete, aquele
uma determinada época. A gente conversava mui- quadro igual ao modelo. Depois, a gente pede para instrumento de cortar cana. Em Portugal, trabalhei
to sobre religião. Eu adorava essas conversas. Não fazer a bandeira do Brasil do jeito que elas acham com a Barraca; em Paris, fundei o Centro do Teatro
é que eu seja agnóstico, mas não tenho nenhuma que devia ser, ou como elas acham que é o Brasil. do Oprimido de Paris, depois eu vim de volta ao
religião. Alguma explicação as pessoas precisam Elas mudam tudo. Pintam revólver, fuzil, violência, Brasil e fundei o Centro do Teatro do Oprimido.
ter para compreender porque estão neste mundo e drogas. Um menino disse: - “Eles ensinam pra
que mundo é este em que estão. As religiões for- gente uma porção de coisas, mas a gente vê que MHuD – A gente não chegou a falar direito da
necem metáforas de alguma coisa desconhecida. a verdade não é essa”. Aquele menino abriu os Cecília.
Eu disse que a palavra é um meio de transporte olhos para a realidade por meio da pintura, para BOAL – Ela me ajudou muito na elaboração das
e digo que a palavra Deus é um imenso navio de uma realidade que estava sendo negada. Diziam: - técnicas do Arco-Íris do Desejo que trata das
carga. Transporta muita coisa contraditória. Tem “O amarelo é o ouro; o verde é a mata amazônica; o opressões interiorizadas. Ao mesmo tempo traba-
gente que diz que acredita em Deus e vai ver quem azul é o céu”. E ele: - “Não é nada disso, porque o lhava comigo como atriz, é uma excelente atriz,
é Deus para cada um deles. São deuses projetados céu está poluído, a riqueza está na mão dos outros nas peças que eu dirigi no Brasil, na Argentina, em
por cada um. e estão devastando a Amazônia”. Quando o meni- Portugal, na França. Mas, como tinha que aprender
no pensa isso, quando está pintando a bandeira, uma língua nova a cada mudança provocada pelo
MHuD – Santo Agostinho dá a idéia de que o naquele momento ele deu um passo gigantesco exílio, acabou desistindo da profissão. Quando nós
amor faz a ética. para entender o Brasil e para entender o mundo. morávamos em Buenos Aires ela trabalhava em
BOAL – Agora mesmo eu estava discutindo o que Já que estávamos falando de religião, a Ma- teatro na sua língua materna e eu, quando podia,
é ética e o que é moral. Na verdade, a moral são dre Tereza de Calcutá disse uma frase que eu acho viajava por toda a América Latina e desenvolvi o
os costumes. A escravidão já foi moral no Brasil e muito linda: - “Tudo o que a gente faz é uma gota Teatro-Fórum no Peru, onde dirigi a parte do tea-
ninguém discutia. Era um direito do cidadão que de água no oceano, mas se nós não fizéssemos tro no programa de Alfabetização Integral baseado
comprou um outro ser humano no mercado, pagou nada, faltaria uma gota de água no oceano”. no método do professor Paulo Freire que é uma
o preço convencionado, ter direito sobre vida e morte
dessa pessoa. Então era moral, ninguém se espanta- MHuD – Vamos retomar a questão do diálogo
va com isso. É verdade que ética e moral parecem a com as diferentes culturas?
mesma coisa, mas quando Aristóteles define a ética, BOAL – Foi justamente trabalhando com comuni-
ethos, ele a define como sendo aquilo que a sociedade dades indígenas, no Peru, Bolívia, Colômbia, Vene-
almeja como perfeição. A palavra ética é uma coisa de zuela, México, que eu conversava com as pessoas
hoje para o futuro, é o que eu desejo. Moral é aquilo que e me dava conta de que as palavras não tinham o
existe, a ética é aquilo que se deseja fazer existir e co- mesmo sentido para mim e para elas. Eu falava
meça a existir com esse próprio desejo. Você quer que espanhol, mas espanhol é minha segunda língua,
58 a humanidade se humanize. Então você tem uma ética não a primeira; eu tinha que fazer uma tradução.
humanística, que vai contra o lado predatório, que ainda Eles falavam aquelas dezenas de línguas que têm.
Revista Direitos Humanos

subsiste em muito ser humano. Mas isso não tem a ver Comecei a ver que não nos entendíamos com
necessariamente com a idéia de Deus. palavras e comecei desenvolver Teatro-Imagem,
sem menosprezar a palavra, falar com imagens, a
MHuD – Você é um homem além fronteiras, imagem do corpo deles próprios e suas relações
você conseguiu se comunicar com várias lín- com as coisas. Por exemplo, quando eu falava a
enorme influência mundial. Eu sinto muito orgulho mas nunca vi um ator tão sincero quanto aquele certa idade, temos que falar sério, e ficamos cada
por saber que nos Estados Unidos, todos os anos, que fazia o marido quando gritava: - “Me perdoa, vez mais reduzido à expressão verbal. O Teatro do
desde 1994, se realiza uma Pedagogy and Théâtre nunca mais, nunca mais eu vou te enganar!”. Oprimido quer restaurar aquilo que você já tem.
of the Oppressed Conference, com a participação Só que tem escondido dentro de você. Temos
de centenas de professores e de gente do teatro, MHuD – Esse é ator mesmo! grupos, por exemplo, de empregadas domésticas,
juntando os dois métodos que têm tantas seme- BOAL – Era personagem... e pessoa. Eu percebi que trabalham com a gente há 10 anos. Uma de-
lhanças. que a invasão do espectador em cena era meta- las disse uma coisa maravilhosa. A gente fez um
fórica das transgressões que você tem de fazer na espetáculo e elas pediram para fazer dentro de um
MHuD – Já havia tido um encontro com ele? vida real para se libertar das suas opressões. Você teatro. Fizemos um festivalzinho no Teatro Glória.
BOAL – Nós fomos amigos 40 anos. Ele dizia que não pode se libertar se continua exatamente na Quando terminou, me disseram que uma delas es-
éramos amigos desde sempre. No Peru além da mesma estrutura opressiva. Você tem de fazer uma tava chorando. Fui ver o que era: - “Por que você
alfabetização com o método do Paulo Freire, tinha transgressão. Se não fizer, não se liberta. Aquela está chorando?” - “Nós somos ensinadas a não
alfabetização em cinema, em serigrafia e eu alfabe- invasão foi uma metáfora dessa verdade social. falar, a ser invisíveis; e hoje a gente estava aqui
tizava em teatro. Uma vez a gente estava tentando representando, ensaiando, tinha um homem na
fazer dramaturgia simultânea. A gente fazia a peça MHuD – Pensando em uma estratégia educa- escada dizendo: - “Eu quero iluminar você melhor.
e depois perguntava à platéia: “O personagem agiu cional, você considera o teatro como um ele- Vai mais pra frente”. Nós somos invisíveis, mas lá
direito ou não? O que você acha que ele deveria ter mento fundamental para alfabetizar? ele estava querendo que nosso corpo fosse visto.
feito?” Os espectadores davam sugestões e a gen- BOAL – Quando eu falo alfabetizar, falo na própria A gente é ensinada a não falar nada. A família está
te improvisava cada sugestão que eles davam. Nós linguagem do teatro. discutindo coisas, eu quero dar opinião, não poso.
tentávamos várias maneiras que a platéia sugeria, E no ensaio tinha um cara pondo microfonezinhos
mas a gente guardava o poder da cena. MHuD – Na linguagem do teatro como um direi- nos nossos vestidos e dizendo: - “Fala alto, para
Até que uma mulher violenta, grande, deu uma to à sensibilização. A gente trabalha com comu- que se possa ouvir lá em cima nas galerias.” Eu
sugestão e a gente tentou a sugestão dela. Ela ficou nidades carentes. Carentes de tudo, de cultura, perguntei: - “Foi por isso que você chorou?” -
furiosa: - “Eu não disse isso. A protagonista foi en- de sensibilidade, de acesso à sensibilidade. “Não, não foi por isso não. De noite, a gente estava
ganada pelo marido. Ela tem que ter uma conversa Será que a gente não pode pensar, falando da representando, eu entrei em cena com a luz, com o
clara com ele e depois ela perdoa”. A gente fazia, origem do problema, na implantação de uma microfone e tudo. E a família para quem eu traba-
e a mulher: - “Mas eu falei uma conversa clara!”. educação cultural? lho há 15 anos estava toda lá embaixo, no escuro,
Depois de três tentativas, eu fiquei nervoso e dis- BOAL – Claro, esse meu novo livro tem um subtí- me vendo. E foi a primeira vez que me viram de
se para ela mostrar que raio de conversa clara era tulo que é “O Pensamento Sensível e o Pensamen- verdade.” Um de nós perguntou: - “Foi por isso
aquela. Ela entrou em cena, pegou uma vassoura, to Simbólico na criação artística”. Existem duas que você chorou?” - “Não, não foi.
agarrou o ator que fazia o marido: - “Vamos ter formas de pensar. Uma forma de pensar simbólica, - ”Então, por que? - “Eu chorei porque quan-
uma conversa clara!”. E começou a baixar o cabo quando se usa sobretudo as palavras e certos ges- do acabou o espetáculo e vim pro camarim e olhei
de vassoura no marido. Essa era a conversa clara tos. Palavra é um som que você produz ou é um no espelho. E eu vi uma mulher.” Silêncio. - “Foi a
que nós não havíamos entendido. Eu já trabalho traço que se faz no papel. Uma palavra não tem primeira vez que eu vi uma mulher no espelho”.
há meio século com atores, alguns excepcionais, existência. Você vê um traço, lê, porque se con- - “O que você via antes? - “Antes eu via uma
vencionou que aquela coisa é um “a”, aquele é um empregada doméstica.”.
“b”. A criança, quando nasce, começa a conversar
com a gente. Só que a linguagem dela é a lingua- MHuD – Isso é genial!
gem sensível, não é a linguagem das palavras. Ela BOAL – Genial! Ela se olhava como empregada
se comunica, está dizendo alguma coisa. Você põe doméstica. Ela não era a Maria, era Maria empre-
uma música, ela dança, usa arte normalmente, seu gada doméstica. De repente ela olhava e via uma
comportamento é estético, pensamento estético, mulher. Ela disse: - “Sabe que até que sou boni-
pensamento sensível desde o nascimento. Não ta?” Ela não tinha percebido que era bonita.
temos que ter medo da palavra Estética porque ela
significa simplesmente a comunicação sensorial. MHuD – É o teatro invadindo a alma e cumprin- 59
do o seu papel, que é revelar. Eu me lembrei,
Revista Direitos Humanos

MHuD – Para relembrar esse momento sensí- com isso, da parceria com o Chico (Buarque).
vel, que está adormecido... Você não fez uma peça com o Chico que era
BOAL – A capacidade de expressão artística vem “Mulheres de Atenas”?
da infância. Depois é oprimida pelo poder da BOAL – Eu escrevi a peça que tinha quatro can-
palavra. Não nos deixam brincar depois de uma ções. Perguntei se ele queria musicar, ele falou
entrevista Augusto Boal

que sim e começou a musicar. A peça ia ser feita MHuD – Naquele momento de resistência, o espetáculo com minha peça, “Revolução na Amé-
logo, dois ou três meses mais tarde. Ele começou Chico Buarque era muito companheiro seu? rica do Sul”, na concha acústica do Castro Alves,
a musicar e fez a primeira, que era essa. Aí o pro- BOAL – A gente se via muito. É engraçado, no exí- em Salvador, para mais de 5 mil pessoas. O Lima
dutor desistiu de fazer a peça. E eu falei com ele lio você vê muito mais as pessoas do que quando Duarte dizia que quando a platéia ria, ele sentia
que, já que estava com a mão na massa, por que você está aqui. Quando você está aqui, tanto você como se fosse gol: explosão. Ele falava e vinha
não fazia as outras três? - “Eu vou fazer, vou fazer.” como os outros têm mais o que fazer. Mas o Chi- aquela onda sonora. Até balançava com o espetá-
E depois nunca mais fez. co, em qualquer lugar onde a gente estava exilado, culo, você estava acostumado com um certo ritmo
em Buenos Aires, Lisboa, Paris, a gente sempre e tinha que parar um pouquinho assim, e depois
MHuD – Você estava na inquietação da igual- se via. Aqui a gente mal se vê. Fernando Peixoto vinha outra onda.
dade entre homem e mulher? era outro que eu via em toda parte quando tínha-
BOAL – É sempre uma das coisas que eu acho mos o Oceano Atlântico pelo meio e agora que ele MHuD – O público é público que fala, “especta-
mais extraordinárias. O porquê de as mulheres mora em São Paulo não vejo mais... As pessoas se atores”
serem tão oprimidas. Em toda parte do mundo, encontram muito quando trabalham juntas: hoje, BOAL – Você não pode ser espectador na vida. A
é impressionante. Na Índia, uma mulher disse meus grandes companheiros de trabalho são os própria idéia da palavra teatro, teatron em grego,
para o meu filho, o Julián que sempre trabalha Curingas do CTO. já tem um elemento imobilizador, porque teatron é
sempre comigo na Europa, ela disse que não o lugar onde se vê. Você vai para ver. Eu não sou
era oprimida porque “o meu marido não me MHuD – Quem foram seus parceiros, quem são? contra isso, eu gosto de escrever peças e gostaria
bate mais do que eu mereço.” É terrível. Teve BOAL - Alguns atores, como o Guarnieri, Lima Du- que fossem mais montadas até. Mas temos que
uma norueguesa, da cidade de Mo I Rana quase arte, eu trabalhei com eles 10 anos pelo menos. fazer um outro teatro também, mais livre, em que o
dentro círculo ártico, que nos respondeu, so- Eram os mesmos atores, sempre. O Guarnieri, saía espectador seja espect-ator.
bre a relação de homens e mulheres, que lá na e voltava, saía e voltava. O Lima também, mas so-
Noruega não tinha problema nenhum. Pergun- mando tudo deu mais de 10 anos. Paulo José, eu MHuD – Quantos Curingas no CTO existem hoje?
tei: - “Mas vocês ganham a mesma coisa que trabalhei muito com ele, com a Dina Sfat, a Isabel BOAL - Atualmente são oito pessoas que im-
os homens pelo mesmo trabalho?”. Ela falou: Ribeiro. Juca de Oliveira também, bastante, Flávio pulsionam o Teatro do Oprimido – trabalham em
- “Não, não, os homens ganham mais que nós”. Migliaccio, Miriam Muniz, Antonio Fagundes, Mil- todos os estados menos Amazonas e Pará porque
Eu falei: - “Bom, isso é opressão”. - “Não, não ton Gonçalves... Esse pessoal todo, atores exce- é longe e as passagens são caras. Eu devo a eles
é opressão porque os noruegueses são muito lentes. Flávio Império, maravilhoso cenógrafo. essa enorme expansão do TO por todo o terri-
bons maridos e tratam a gente muito bem.” tório nacional e na África. Tem mais uns quatro
Ela não tinha entendido que a opressão não MHuD – Naquele momento você já tinha cons- Curingas que estão agregados. Então seriam 12.
está no exercício do poder, está na posse do po- ciência de que estavam fazendo e marcando a Tem dois em São Paulo, um em Recife, curingas
der. Se você tem o poder de oprimir, mas você história do teatro brasileiro? locais. Temos várias vertentes no nosso trabalho.
é bonzinho, você não vai oprimir, mas tem o po- BOAL - Na verdade, não. O que a gente tinha era Uma são os Pontos de Cultura - a gente traba-
der de oprimir, isso já é opressão. Outra, sueca, aquela ética. A gente tem que falar do Brasil para lha em 16 estados. Somos o que eles chamam
essa foi mais engraçada, porque a sueca também brasileiros. A gente admirava muito o TBC, o Te- “Pontão de Cultura”. Os Pontos que têm alguma
protestou. Ela falou também que não havia opres- atro Brasileiro de Comédia, mas admirava como coisa para mostrar para os outros são os Pontões:
são lá. - “Vocês ganham a mesma coisa que os coisa que não tinha a ver com a gente. Os atores nós temos o Teatro do Oprimido Este projeto é
homens?” Ela respondeu: - “Não, no Brasil e na falavam até com uma entonação meio italiana. Os patrocinado pelo Ministério da Cultura que já
França as mulheres ganham menos que os ho- diretores do TBC eram italianos, eles tinham um criou mais de mil Pontos. Depois trabalhamos
mens. Aqui não, aqui eles ganham mais do que jeito italiano de fazer e faziam muito bem. A gente em um projeto com o Ministério da Saúde, com
nós”. E ela não percebia que era uma oprimida a não queria isso, a gente queria fazer um teatro bra- a Saúde Mental, nos CAPS – Centro de Atenção
mais, mesmo na Escandinávia. sileiro, sobre problemas brasileiros. A gente não Psicossocial, onde a gente trabalha sobre a pos-
estava querendo fazer história. Estávamos vivendo sível superposição entre o delírio patológico e o
MHuD – Você esperava o sucesso da música o presente que era duro. delírio artístico, e o uso dos ritmos na criação
“Mulheres de Atenas”? de diálogos e de estruturas sociais. O teatro em
60 BOAL - A música é uma denúncia do conformis- MHuD – Que público era esse que ia assistir os geral já é uma forma delirante de arte. A gente já
mo, mas tinha gente que entendia literalmente: espetáculos? fez algumas experiências muito lindas. Às vezes
Revista Direitos Humanos

sigam o exemplo das mulheres, elas sofrem e isso BOAL - Tinha dois tipos. Um era um público mais as pessoas perguntam: “Mas cadê o resultado?”
é bom. A peça estava denunciando isso, mas teve “pequeno burguês”, que vinha ao próprio Arena, O resultado é que, em muitos desses CAPS que
gente que disse: - “Ah, você está contra as mu- que tinha 160 lugares. O outro era quando a gente a gente trabalha, o consumo de drogas, de me-
lheres, você está pedindo que sejam boazinhas”... ia para o Nordeste ou para o interior de São Paulo, dicação baixa em até 80%. Quer dizer, alguns
Deus me livre! quando a gente fazia teatro na rua. Nós fizemos um 20%, outros 50% e chega até a 80% de redução.
O teatro não cura, mas substitui, tranqüiliza e dá MHuD – O importante é que você trabalhou pe- com as telas que reproduzem o que foi dito em voz
mais um pouco de felicidade para as pessoas, los Direitos Humanos a vida inteira. alta; depois as telas se tornam independentes e
para não ficarem tão angustiadas. A gente tam- BOAL – É uma forma de viver. Mas aquele é um prê- discutem sozinhas, depois troca a tela e a pessoa,
bém trabalha em escolas com a Estética do Opri- mio político. Quem ganha, em geral, são políticos. e assim por diante. O que é muito teatral, extre-
mido e publicamos Metaxis, uma revista sobre mamente teatral. E chama-se Imagem-Tela. Tem
cada projeto que fazemos. E existe a Fábrica de MhuD – Nós, do Movimento Humanos Direitos, uma técnica que se chama Arco-íris do Desejo.
Teatro Popular, que a gente tem em três estados estamos extremamente felizes com esta opor- Quando você tem uma relação com uma pessoa,
do Nordeste, patrocinada pela Petrobras. tunidade de chegar mais próximo de você. essa relação é como um Arco-Íris, não é de uma
E tinha o trabalho com o Depen, mas a buro- BOAL – E eu de vocês. Agora eu queria acrescen- cor só. Você ama, mas também odeia, tem inveja,
cracia atrapalhou. Eles dizem que nunca tiveram tar uma coisa só, que vocês perguntaram e eu aca- admiração, etc. Então você separa essas cores do
programas tão bons como esses que a gente fazia, bei respondendo só pela metade, quero responder desejo com os atores que representam cada uma
mas agora está parado porque uma das nossas a outra metade agora. Quando fui para a França, eu dessas cores. Primeiro, um de cada vez, depois
Curingas é professora primaria de 16 horas de estava acostumado com as opressões latino-ame- dois juntos, depois o desejo contra a vontade, a
jornada. Segundo eles, a professora não podia ricanas. Sempre tinha a história da polícia, chega vontade contra o desejo. As pessoas vinham com
participar. Existe uma lei que permite. Não poderia a polícia, aí vem a polícia. Quando eu fui para a problemas e a gente tinha que inventar a técnica
se fossem 40 horas, que é tempo integral. Ela é França, comecei a trabalhar em vários países da mais adequada a esse problema. Nós inventamos
professora de português e fazia o Teatro do Oprimi- Europa e sempre vinham pessoas que também fa- durante dois anos técnicas novas. No meu livro
do nos nossos programas. Temos toda razão. Mas lavam da polícia. Arco-Íris do Desejo tem doze.
mesmo que estivéssemos errados – o que não é o Mas vinha gente que dizia sobre opresso-
caso, - os burocratas teriam que ver qual é o bem res que eu não conhecia. Falava assim: - “A minha MhuD – Quando foi isso?
maior. O Tribunal de Contas da União pergunta o opressão é que eu não consigo me comunicar”. Eu BOAL – 1980 até 1982..
que significa Curinga. Aí você tem que explicar o brincava e dizia: “Vem cá, você está me comunican-
que é Curinga, tudo bem, só que demora meses do e não consegue se comunicar... Já é o começo da MhuD – Com a Cecília? O casamento ideal
até que venha a resposta e a aceitação do termo. comunicação”. A pessoa dizia: - “Tá vendo, você não mesmo...
Um dos direitos humanos é acabar com a buro- me entendeu, não foi isso que eu disse”. Tinha outro BOAL – Mas depois a gente veio para cá e ela agora é
cracia, porque a burocracia é um peso morto que assim: - “A minha opressão é o medo do vazio”. Es- psicanalista, tem o consultório dela lá no Leblon.
atrapalha os próprios projetos do governo. Este sas duas coisas vinham sempre.
governo teria tido um resultado ainda melhor nos Que medo do vazio, que nada! Eles não co- MhuD – Mas as técnicas desenvolvidas ficaram.
setores culturais se não fosse tão violenta a buro- nhecem as boas opressões latino-americanas, BOAL – Ficaram e depois a gente desenvolveu
cracia. Fiscalização sim, burocracia não. ficam inventando opressões. Eu soube, então, mais outras técnicas que não existiam. Agora,
Você tem um projeto enorme e útil, mas eles que na Europa, em países ricos, a percentagem de no Centro do Teatro do Oprimido, eu e os meus
nunca pensam no bem maior. Por exemplo, a gente suicídios era maior que na América Latina com as Curingas estamos querendo fazer uma coisa muito
ia fazer uma plataforma no meio da arena, no meio ditaduras. Aqui se matava muito, mas lá as pesso- importante, que é ir até o mais fundo possível, o
da sala e, em vez disso, fizemos arquibancadas as se suicidavam mais. Tive que levar a sério. A mais íntimo dos protagonistas, e chegar até o Tea-
móveis para a platéia sentar. Gastamos o mesmo Cecília, minha mulher, e eu resolvemos fazer uma tro Fórum, o mais social e político.
dinheiro, nem mais nem menos, tudo comprovado oficina que durou dois anos. A gente queria desco-
e aceito. Mas no projeto original estava “no meio brir novas técnicas para ajudar essas pessoas com MhuD – Boal, você tem alguma preocupação
da arena” e eles disseram: - “Por que não pediu esses tipos de problemas. especial com o futuro, da humanidade princi-
autorização?” Você pede autorização e leva quatro Vinha uma pessoa que dizia assim: - “Olha, palmente?
meses para vir a resposta. E os operários estavam o meu problema é que eu não consigo me comu- BOAL – A vida inteira sempre foi assim, todas as
lá, esperando... nicar com fulano, porque a gente vive há muito sociedades sempre foram assim: conflituais. A
tempo juntos”. Cada um projetava no outro uma utopia não foi feita para a gente alcançar. O sonho
MHuD – A gente precisa falar do Prêmio Nobel. imagem que já não era mais o outro. Duas pessoas é para você ir atrás dele – não se alcança. Utopia
Qual foi a sua sensação de ter sido indicado? que vivem juntas há muito tempo, projetam telas e sonho nos estimulam a ir mais longe. A utopia
BOAL – O que mais me alegrou é que eu tive in- um no outro. Você não fala mais com o outro, você é muito útil, o sonho é muito útil, tem que sonhar 61
dicações que vieram dos cinco continentes. Isso fala com a tela que você projetou. Então, Cecília e para poder chegar lá ou pelo menos o mais perto
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foi genial. Mas eu não tinha a menor esperança. eu inventamos uma técnica que trata desse proble- possível. Temos que lutar por ele, sim. A vida é pro-
Meu nome continua indicado, pode ser o ano que ma: os participantes criam telas, que é representa- curar cada vez mais. E se um dia alcançarmos o nos-
vem. Mas eu também não tenho a menor esperan- das por outros participantes na posição do corpo, so sonho, então temos que sonhar mais alto ainda!
ça. Nunca vou ganhar o Prêmio Nobel da Paz, meu na fisionomia, etc, que ficam na frente do outro Temos que ser cidadãos e eu penso que ser cidadão
nome vai ficar lá rodando. Não é ruim não. e os protagonistas devem conversar em voz baixa não é viver em sociedade: é transformá-la!
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imagens
Sebastião Salgado

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Trabalhadores da Allana
Coffee Curing Works.
Karnataka, sul da India,
2003
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Uma mulher mal alimentada e


desidratada espera a sua vez no
hospital em Gourma Rharous.
Mali, 1985

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Revista Direitos Humanos
Criança trabalhando na
plantação de chá Mata,
Ruanda, 1991
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Revista Direitos Humanos
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Colheita de chá numa plantação perto de Cyangugu.Ruanda,1991

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Orfanato ligado ao hospital no campo de refugiados Número Um de Kibumba. Goma, Zaire, 1994
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Uma jovem Marubo


na aldeia de Maronal.
Amazonas, Brasil.
1998

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Comunidade de Yuracruz.
Província de Imbabura.
Equador. 1998

Envoltos em cobertores para


se defenderem do vento frio
matinal, refugiados esperam
em frente do campo de
Korem. Etiopia, 1984
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Revista Direitos Humanos
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Muitas vezes os locais


de abastecimento
de água ficam muito
longe dos campos
de refugiados. Goma,
Zaire. 1994

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Declaração Universal dos Direitos Humanos
Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III)
da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948
Preâmbulo Artigo X Artigo XXII
Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segu-
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, rança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação
todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e ina- para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Esta-
lienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, acusação criminal contra ele. do, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.
humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência Artigo XI
da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens 1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser Artigo XXIII
gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada 1.Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de em-
a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido prego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra
aspiração do homem comum, asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. o desemprego.
Considerando essencial que os direitos humanos sejam prote- 2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão 2. Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual re-
gidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou muneração por igual trabalho.
como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão, internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela 3. Toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneração
Considerando essencial promover o desenvolvimento de rela- que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso. justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma
ções amistosas entre as nações, existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescen-
Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Artigo XII tarão, se necessário, outros meios de proteção social.
Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na 4. Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e neles ingres-
valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sar para proteção de seus interesses.
mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra
condições de vida em uma liberdade mais ampla, tais interferências ou ataques. Artigo XXIV
Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a Toda pessoa tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação
desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito uni- Artigo XIII razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas.
versal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observân- 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residên-
cia desses direitos e liberdades, cia dentro das fronteiras de cada Estado. Artigo XXV
Considerando que uma compreensão comum desses direitos e 2. Toda pessoa tem o direito de deixar qualquer país, inclusive 1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de asse-
liberdades é da mis alta importância para o pleno cumprimento desse o próprio, e a este regressar. gurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação,
compromisso, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indis-
Artigo XIV pensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença,
A Assembléia Geral proclama 1.Toda pessoa, vítima de perseguição, tem o direito de procurar invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de sub-
A presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como e de gozar asilo em outros países. sistência fora de seu controle.
o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, 2. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistên-
com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, ten- legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos cia especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimô-
do sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e contrários aos propósitos e princípios das Nações Unidas. nio, gozarão da mesma proteção social.
da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e,
pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacio- Artigo XV Artigo XXVI
nal, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância univer- 1. Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade. 1. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita,
sais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, 2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução ele-
quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição. nem do direito de mudar de nacionalidade. mentar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessí-
vel a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.
Artigo I Artigo XVI 2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvi-
Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e di- 1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer retrição mento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos
reitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matri- direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução pro-
umas às outras com espírito de fraternidade. mônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao moverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações
casamento, sua duração e sua dissolução. e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações
Artigo II 2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno con- Unidas em prol da manutenção da paz.
Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liber- sentimento dos nubentes. 3. Os pais têm prioridade de direito n escolha do gênero de
dades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer instrução que será ministrada a seus filhos.
espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou Artigo XVII
de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou 1. Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade Artigo XXVII
qualquer outra condição. com outros. 1. Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida
2.Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade. cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo
Artigo III científico e de seus benefícios.
Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Artigo XVIII 2. Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais
Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consci- e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou
Artigo IV ência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião artística da qual seja autor.
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo
e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas. ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coleti- Artigo XVIII
vamente, em público ou em particular. Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em
Artigo V que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração
Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo Artigo XIX possam ser plenamente realizados.
cruel, desumano ou degradante. Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este
direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de pro- Artigo XXIV
Artigo VI curar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e 1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o
Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhe- independentemente de fronteiras. livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível.
cida como pessoa perante a lei. 2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará
Artigo XX sujeita apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o
Artigo VII 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de reunião e associação fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liber-
Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer dis- pacíficas. dades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem
tinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção con- 2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação. pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
tra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra 3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma,
qualquer incitamento a tal discriminação. Artigo XXI ser exercidos contrariamente aos propósitos e princípios das Nações
1. Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de sue país, Unidas.
Artigo VIII diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.
Toda pessoa tem direito a receber dos tributos nacionais com- 2. Toda pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público Artigo XXX
petentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos funda- do seu país. Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser inter-
mentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei. 3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; pretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pes-
esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por soa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato
Artigo IX sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que as- destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui
Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado. segure a liberdade de voto. estabelecidos.
Revista Direitos Humanos

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