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O CARDEAL SARAIVA E OS LIVROS INTERDITOS* Por Anténio M. de Barros Cardoso Abstract The study of private «Bookships» is extremely interesting in order to better understand the force of the book and publishing in gene- ral, as transmission vehicles of new ideas, especially in times of severe previous censorship. In the case where their collectors are personalities of public rele- vance, as is the case of Cardinal Saraiva, the interest of these stu- dies is twofold, seeing as they help to understand the posture, options and paths followed in the course of their lives. Frei Francisco de Sio Luis nasceu em Ponte de Lima em Janeiro de 1766 e viveu até Maio de 1845. Filho de um tabeliao limiano, entrou no cendbio beneditino de Tibaes na Primavera de 1780, com 14 anos, nao pela porta de entrada tradicional na Ordem de Sao Bento — a da ascendéncia nobiliérquica — mas ja pelos seus méritos préprios, consubstanciados em queda particular para a mitisica e 0 canto. Aos 16 anos estuda filosofia no Mosteiro de Santo André de Rendufe. Af tomou também as primeiras ligdes em varias disciplinas integradas em curriculas depurados de preceitos escolas- Texto de uma comunicacao apresentada ao GILL - Grupo Interdisciplinar do Livro ¢ da Leitura - Centro de Histéria da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, em Maio de 1996. 430 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS ticos, j4 assentes na filosofia norteadora da reforma pombalina da Universidade. Um ano mais tarde, Francisco Justiniano esté em Lisboa para continuar os seus estudos no Colégio da Estrela, onde parece ter ganho gosto particular pela Histéria, influenciado pelo entdo Cronista-mor da Congregaciio Beneditina, Frei José de Santa Escolastica. Neste colégio modelou a sua personalidade religiosa e viu despertar as suas qualidades intelectuais, ao mesmo tempo que preferéncias culturais sulcam seu espirito. Por isso, cedo corre nota no seio da Ordem de Sao Bento a sua fama de frade solida- mente formado em varios dominios do conhecimento, pelo que, em 1785, jd instalado no colegio de Sio Bento de Coimbra, passou a frequentar a Universidade. Aprovado sempre «nemine dis crepante» a Ordem estimula-o através dos prémios concedidos aos alunos mais distintos. Saraiva obtém 0 grau de Doutor em teologia j4 com uma tese polémica. Vencido este obstaculo, o seu interesse volta-se para os estudos hist6rico-literdrios, gosto que viria a determinar um pedido & Real Mesa para o Exame e Censura de Livros, para ler e possuir livros proibidos, efectuado em 1792 e satisfeito por Dona Maria I", Por esta altura, um dos primeiros frutos do seu labor, 0 Estudo Comparativo entre a Histéria de D. Joao de Castro de Jacinto Freire de Andrade ¢ a Vida de D. Paulo de Lima de Diogo do Couto, 0 fez, com apenas 28 anos de idade, sécio por mérito da Academia Real das Ciéncias de Lisboa que, simultaneamente, lhe atribui a medalha de ouro!. Estes dados biograticos deixam adivinhar que o futuro Cardeal ndo poderia evoluir como intelectual conformado. Nem o caracter do homem e do clérigo, definidos nesta idade, nem 0 espirito da €poca em que viveu e dos meios que frequentava tho permitiriam. Assim aconteceu. Pelo catdlogo da sua livraria? conseguimos identificar algumas das leituras proibidas do Bispo-Conde que atestam tal inconfor- mismo’, Cf. RAMOS, Luis A. de Oliveira, O Cardeal Saraiva, Porto, 1972: FERREIRA, Ant6nio, O Cardeal Saraiva (Um Grande Limiano), Porto, 1984 ¢ RESENDE, Marqués de, Membria Historica de Frei Francisco de So Luis, Lisboa, 1864 * In CARDOSO, Anténio M. de Barros, Ler na Livraria de Frei Francisco de ‘Sao Luis Saraiva, Ponte de Lima, 1995. Usaremos ao longo deste trabalho a numer £40 constante deste catélogo. § Para tanto servimo-nos fundamentalmente do Catdlogo de Livros Defesos neste Reino, desde o dia da criagao da Real Mesa Censéria auhé ao presente (814), elabo. O CARDEAL SARAIVA E OS LIVROS INTERDITOS 431 Antes de tecer algumas consideragdes nao apenas sobre as obras, mas sobre a sua utilidade na formagiio do futuro Cardeal, determinantes do seu posicionamento como homem piiblico, parece-nos itil relembrar aqui, em tragos gerais, 0 clima censério que se vivia na época em que Frei Francisco reuniu a sua biblioteca. A censura setecentista O precioso incremento que a descoberta da imprensa trouxe a divulgagao da produgio intelectual, fomentando-a também por essa via, foi sendo acompanhado pelos correspondentes meios de con- trole e da sua institucionalizagdo ensombrando a criagao intelectual portuguesa ao ponto de a censura ser hoje também considerada como um elemento estruturante da da nossa vida cultural*. No perfodo da governagao pombalina, a censura, antes domi- nada pelo clero, conheceu fase laicisante. Sebastido José de Carvalho e Melo, ajudado pela perspicacia que o caracterizou, facil- mente se inteirou das graves imperfeigdes que o aparelho censério inquisitorial encerrava e percepcionou que o principal desses defei- tos residia no facto de nele avultar a preocupagdo com a heresia em detrimento do podar das formulagées politicas atentatérias da auto- cracia5, Conhecedor como era, das principais correntes de opiniao que vagueavam na Europa do seu tempo, o ministro de D. José, sabia do avanco racionalista e dos ideais particularmente subversi- vos, veiculados pelos escritos de alguns autores. Determinante no novo rumo que a maquina censéria portu- guesa seguiu na época, parece ter sido também o quebrar da regra de se fazer assentar a estabilidade polftica, no casamento perfeito entre 0 absolutismo régio e a ortodoxia catélica romana. 0 Portugal pom- balino, 4 semelhanca com o que sucedia entéo em muitos paizes rado para servir no expediente da «Revisto», documento em que cristalizou 0 grosso das obras interditas em Portugal e que deram corpo aos varios indices expurgat6rios, publicados desde 1551, publicado por MARQUES, Maria Adelaide Salvador, Catalogo de Livros Defesos neste Reino, desde o dia da criagao da Real Mesa Censoria athé ao presente, Coimbra, 1963, pp. 118-206. * COELHO, Jacinto Prado, Originalidade da Literawra Portuguesa, Lisboa, 1977, pp. 55-58. 5 BASTOS, José Timéteo da Silva, Histdria da Censura Intelectual em Portugal (Ensaio sobre a compreensdo do Pensamento Portugués), Coimbra, 1926, p. 97. 432 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS curopeus, beliscou este compromisso de séculos®., Conjugar estas cautelas com a preparagdo necessdria das mentalidades, tornando-as receptivas a uma conjuntura politica doutrinariamente inovadora, (absolutismo esclarecido) impuseram mudangas no aparelho censé- tio. Neste contexto, a posi¢do pombalina emergiu da Dedugdo Cronolégica e Analitica’ obra em que claramente transparece deter- minago em libertar a igreja nacional da tutela romana, colocando- a sob a dependéncia directa da realeza, o que viria a materializar-se apés a publicagéo em 5 de abril de 1768 do Decreto de criagaio da Real Mesa Censoria que, entre outras medidas, transferiu para o Estado competéncias em matéria de censura de livresca’. A laicisagao da censura a que jé aludimos, transparece do orga- nigrama da Real Mesa°, bem como das regras definidas para a orga- nizagio do novo catdlogo que deveria substituir 0 de 1624, elabo- rado ainda sob a influéncia inaciana. As baterias da nova censura dirigem-se agora contra os livros que encerram matéria teligiosa e politica, com ligeira vantagem dos primeiros. A cultura e a moral constituem as outras duas grandes preocupagdes!, Quanto a atri- buigdes, ficou confiada A Mesa, para 14 da censura preventiva, a acgao fiscalizadora das alfandegas, anteriormente exercida pelo Santo Oficio, a inspecgio das livrarias publicas e particulares, dos mercadores de livros, livreiros e impressores e ainda a tarefa de zelar pela observancia das regras impostas aos portadores de licenga para ler ou possuir livros defesos!! © Porém, esta alteracZo nao significou entre nds relaxamento da actividade cen- s6ria, antes se ird traduzir no reforco da vigiliincia no tocante a infiltragao das novas ideias que uma vez. assimiladas podériam fomentar oposigio politica, a par da preser- vacao do «cimento» religioso emi que continuavam a assentar as monarquias esclareci- das da Europa da época, que utilizam 0 mecanismo censério como arma de defesa, a0 mesmo tempo que dio passos no sentido da transformago social e cultural, apenas com uma diferenga: até meados do século XVIII competia ao Papa nomear as autori- dades censorias, a partir de meados de setecentos essa competéncia é transferida para 0 Estado. MARQUES, Maria Adelaide Salvador, ob. cit., p. 8. 7 Obra atribuida a Sebastiao José de Carvalho e Melo ¢ a outras figuras célebres da sua época, mas editada em nome de José Seabra da Silva, em Lisboa, 1767. * Decreto de Criagao da Real Mesa Cens6ria, publicado por BASTOS, José ‘Timéteo da Silva, ob. cit, p. 117. ° Composto por 20 Deputados, 10 ordindrios ¢ 10 extraordindrios, A primeira daquelas categorias integrava 6 laicos ¢ 4 religiosos, a segunda 4 laicos e 6 religiosos, ‘num apenas aparente equilibrio entre os dois grupos. '° MARQUES, Maria Adelaide Salvador, ob. cit., p. 50. " Decreto de 2 de Abril de 1768, publicado por BASTOS, José Timsteo da Silva, ob. cit p. 10. "ARDEAL SARAIVA E OS LIVROS INTERDITOS 433 Valorizando todos os cuidados postos na organizagio da vigi- Jancia censoria, parece que a muralha crigida nao foi suficiente para travar a liberdade dos espiritos mais inquietos. O aparecimento de Real Mesa nao representou muito mais que uma mudanga de tutela por parte da censura, j4 que 0 novo «crivo» nao foi suficientemente apertado para impedir a chegada até nds da «libertinagem» transpi- renaica. Antes pelo contrario, a tolerancia, embora modestamente, transparece da acgfio da nova censura. Por isso, a crescente penetra- cdo em Portugal das novidades no campo do pensamento aplicado & metafisica, a evolugdo cientifica e A organizagao societaria, consti- tuiram motivos suficientes para que, volvidos cinco anos sobre a morte de Pombal e em plena «viradeira», um decreto de D* Maria, de 21 de Junho de 1787, desse novo alicerce ao edificio censério portugués. Foi entio criada a Real Mesa da Comissao Geral sobre o Exame e Censura dos Livros. Em boa verdade, para além da chegada a Portugal, com abun- dancia, da j4 referida produgao literaria de cunho sedicioso, os com- promissos assumidos pela Rainha junto de Pio VII, aquando do res- tabelecimento das relagées diplomaticas com a cliria romana!?, determinaram a alteragdo e, muito embora a nova Real Mesa tivesse sido criada com 0 objectivo de refinar a censura, a sua acco durante a primeira fase de funcionamento, centrou-se nas obras de contetido religioso e moral, em detrimento das de cunho marcadamente filo- s6fico e politico, num regresso aos métodos e preocupagées da cen- sura inquisitorial que 0 pombalismo tentou combater. Exemplifi- cando, no que se refere a matéria politica passaram pela Mesa, com aprovacio, livros que anos antes seriam queimados: O Viajante da América ou Viagem de Hum Suisso; Recherches sur les Etats Unis; Jornal para Servir & Histéria do Século Décimo Oitavo; ou Le Temple du Bonheur. Nao abunda a preocupagao em filtrar a produ- io literaria de cunho politico, avulta antes a preocupagdo moral na nova censura! os Perante este quadro, 0 poder, ao tomar consciéncia dos malefi- cios da proliferagao de literatura de cunho politico, no tardou a rea- gir e a diagnosticar os novos males da censura. Agora, é a propria 12 No sentido de o Sumo Pontifice poder vir a nomear os ministros ¢ a delegar no novo tribunal a criar a jurisdigao necesséria para entender sobre a permissio ou proibigdo de livros em Portugal, numa intromissao consentida do Papa nos nossos assuntos internos. Idem, fbidem, p. 239. 3 Idem, p. 254. 434 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS censura censurada pela Rainha, através da pena do seu Secretario de Estado, José Scabra da Silva que poe a nu a excessiva preocupagao com © que se imprimia no reino e 0 grande descuido com as obras estrangeiras portadoras dos ecos do racionalismo fomentador da liberdade critica, bem como divulgadoras do espirito enciclopedista, em tiltima andlise sementes da sedigio e do desregramento moral. Nao se estranham as instrugdes entdo enviadas A universidade de Coimbra pela Rainha: «os tedlogos néo teem que combater arianos nem calvinistas; teem que combeter philésophos que atacam os governos a politica e zom- bam da theologia»'*, Advoga-se um regresso & censura laica, em que a intervenciio do Estado fosse decisiva, 0 que acontece a partir de 17 de dezembro de 1793, data da extingao da Mesa da Comisséo Geral Sobre o Exame e Censura dos Livros. E. 0 regresso 4 censura com inicio no ordindrio ou no Santo Oficio da Inquisig’o, ficando reservada a decisao predominante ao Desembargo do Paco. Foi uma época de vigilancia aturada que se estendeu para Id da circulagdo dos livros, as ideias e até as conversas que hipotetica- mente fizessem circular entre outras, a mensagem da revolta fran- cesa, sob a tenaz actividade persecutéria do entdo todo poderoso intendente geral da policia, Pina Manique!®. A revelia de todos estes cuidados, a época em que Saraiva Tetine a sua livraria nao é a mais dificil para encontrar livros proibi- dos em circulagio. Com efeito, apés a criagio da Real Mesa Censéria a penetragao clandestina de livros em Portugal parece ter ocorrido com maior frequéncia, j4 que mais elevado era o numero de obras de leitura vedada em circulaao, j4 porque a partir de mea- dos do século XVIII, a edigdo clandestina se torna muito lucrativa, atingindo-se por vezes ganhos de 170% sobre o valor real da edi- '4 Tdem, p. 259. 'S Que apreendia livros no varejar constante das lojas dos livreiros que, & menor suspeita de compromissos jacubinos acabavam detidos nos calabougos. Desta perse- guicdo nao logrou escapar 6 Duque de Lafoes, apesar de parente da Rainha, bem como Bocage ¢ 0 Abade Correia da Serra, nao Ihe escaparam mesmo alguns membros da Real Mesa da Comissio Geral, nomeadamente os deputados Padre Antonio Pereira de Figueiredo e Joao Guilherme Muller, que classifica de «sediciosos e perigosos eivados de espirito repiiblicano». Cf. SILVA, Inocéncio Francisco da Silva, Diciondrio Biblic graphico Portuguez, Lisboa, 1858, Tomo VI, p. 279. O CARDEAL SARAIVA E OS LIVROS INTERDITOS 435 gio!®, 6 que mostra o livro clandestino como uma contrapartida relativamente aos prejuizos acumulados pelos editores-livreiros em edigdes autorizadas, mas pouco vendaveis. Entre nés sabe-se da existéncia em Lisboa entre 1751 ¢ 1753 de uma tipografia particular destinada a edig&o de obras nao licen- ciadas, af se produziram ediges clandestinas do Verdadeiro Método de Estudar de Verney (1751)'7. Mais para os fins do século era numerosa em Portugal a colénia francesa, engrossada a custa das perseguicdes sequentes a revolucdo de 1789 € no seu seio destaca- se um nticleo de livreiros entre os quais figuravam Roland, Aillaud, Borel, Bertrand, Meaussé, Loup, Dubié, Dubeaux e Boneond!® cuja dinamica comercial, na faixa dos «livros filos6ficos», era estimu- lada, entre outros factores, pela circunstincia de o catélogo oficial de livros proibidos servir sobretudo para intelectuais conimbricen- ses fazerem as suas encomendas!9. A par da accao vigilante de Pina Manique, chegaram-nos testemunhos dos processos usados para introduzir livros proibidos no reino, que iam da utilizagdo da «mala diplomatica»”, ao recurso a viajantes em transito entre Portugal € os centros de produgio livreiros. Necessario era iludir a Alfandega. Carl Ruders em 1801 (Viagem a Portugal) confirma por essa época que era corrente a venda de livros proibidos nas livrarias, natural- mente longe de olhares indiscretos e a pregos inflaccionados. Com efeito, apesar dos perigos que corriam, os editores arriscavam mesmo a utilizacdo do correio para distribuigo dos seus catélogos de livros proibidos, primeiro pox, discretos clientes, potenciais inte- ressados na aquisigao de literatura clandestina, mas também por livreiros, a quem a posse dos catdlogos poderia trazer graves conse- quéncias. E conhecido 0 caso do livreiro Borel, que instalado em Lisboa, em 1776, tecebia da Societé Tipographique de Neuchatel um exem- plar do catlogo das edigées clandestinas, distribuido por aquela 16 DARNTON, Robert, Le Livre Francais a Ia fin de I’Ancien Régime, in Annales Economies Sociétés civilisations, 28° anné, 3, 1973. '7 DIAS, José Sebastiao da Silva, Seiscentismo e¢ Renovagao em Portugal no Século XVIII. Estudo de um Processo Inquisitorial, in Biblos ~ Revista da Faculdade de Letras, Coimbra, Volume XXXVI, 1960, pp. 202-203 1® RAMOS, Luis A. de Oliveira, Da Aquisi¢do de Livros Proibidos nos finais do século XVIII (casos Portugueses), in «Revista da Faculdade de Letras, série de His- trian, vol.s IV-V, Porto, 1973/1974, p. 329. 19 Idem, Ibidem, p. 331 20 Idem, p. 333 436 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS sociedade?!. Com efeito, esta espécie de crime, compensava. Para 0 perceber melhor basta precisar que o prego da folha impressa tro- cada entre livreiros, se cifrava, no caso da (S.7.N.), com ligeiras oscilagées determinadas pelo grau de proibigao das obras, numa relacdo de 2 folhas de um livro licenciado para obter uma folha de livros interditos?2, Mas a necessidade aguga o engenho e a vigilancia foi também iludida pela via legal, isto 6, recorrendo aos favores de uma pessoa que tivesse obtido autorizagao para tais leituras, era sempre possivel fazer encomendas que passavam na Alfandega, apés um processo burocratico que responsabilizava vendedor e comprador no levanta- mento dos livros”, Nada que nao fosse pratica noutros paises com sistemas cens6rios idénticos ao portugués”*. Acresce ainda que, pelas malhas fiscais passaram muitos livros clandestinos cuja importagio legal se fazia em folhas no encadernadas, sem numera- go que, propositadamente, eram misturadas com folhas impressas de obras autorizadas e acondicionadas no fundo das malas de trans- porte, tornando dificil a sua detecgao pelos oficiais das Alfandegas?>. Os gabinetes de leitura foram outra via de entrada da livraria proi- bida em Portugal. Carl Ruders deixou-nos 0 exemplo do livreiro francés Meaussé, proprietario de um gabinete de leitura na capital. Em suma, no perfodo em que Frei Francisco de sao lufs Saraiva reuniu a sua «livraria» (1785-1823), 0 ambiente censério caracte- riza-se pelo predominio de laicos entre os membros das mesas encarregues do exame de livros, com excep¢ao dos anos de 1785- 1793 em que se percebem indicios do regresso a censura inquisito- rial € se verifica um abrandamento no cardcter marcadamente repres- 7! DARNTON, Robert, Edition et Sédition, L’Univers de la literature clandes- tine au XVIII e siécle, Paris, 1991, p. 29 22 DARNTON, Robert, ob. p. 30 25 RAMOS, Luis A. de Oliveira, ob. cit. p. 331 * Conhece-se 0 exemplo dos livreiros genoveses, Gabriel ¢ Philibert Gramer, ¢ Albert Gosse, que recorrendo aos servigos de um professor da Universidade de Flo- renga, faziam distribuir em itélia os «livros filos6ficos». Cf. BRAIDA, Lodovica, Le commerce du livre entre les éditeurs genevois et I'htalie au XVile siécle, in «Actas du Colloque Imerational Libraires et négoce en Europe (années 1510 ~ annés 1830)», Lyon, 1993. 2S Tais priticas foram correntes na distribuidora de Neuchatel que, face aos ris- €0s que os transportadores corriam, criou mesmo mecanismos de previdéncia, que fazia accionar em caso de falha nas operagdes de contrabando, salvaguardando a subsistén- cia aos familiares dos transportadores. Cf. DARNTON, Robert, ob. cit., pp. 34-35. O CARDEAL SARAIVA E OS LIVROS INTERDITOS 47 sivo da primeira fase do funcionamento da censura prévia, notado a partir da criagdo da Real Mesa Cens6ria em 1768. As preocupagoes, até aquela data, mais marcantes relativamente aos escritos versando matéria religiosa, passam a privilegiar os livros cujo contetido se enquadre nas vertentes filoséfica e politica, tudo a par de um rela- xamento da vigilncia, forgado pelo crescimento do ntimero de edi- ges, obstaculizante do aturado trabalho de anilise que é possivel constatar em periodos anteriores. Esse abrandamento é particular- mente sentido no tocante as edigdes estrangeiras, algumas vertidas em lingua portuguesa que, no virar da centiria, entram cm Portugal em ntimero elevado pelo recurso aos mais variados artificios. Os ‘ros interditos de edicdo portuguesa Frei Francisco, embora tenha beneficiado das maiores ou menores facilidades que a conjuntura cens6ria ia permitindo a difu- sio dos livros defesos, nao deixou de usar da licenca para ler e pos suir tais livros, prerrogativa que Ihe conferia a qualidade de docente da Universidade de Coimbra (1792). Por essa altura, como j4 apon- tamos, liberto do afd a que o doutoramento o havia obrigado, volta ‘© seu interesse para os assuntos de natureza historica, literdria e filo- s6fica «que concorriam na sua mente com os de indole sacra»®. Que livros adquiriu Saraiva constantes das listas censérias e a coberto da citada autorizacio? Nao se estranha a auséncia na livra- ria de Saraiva de grande numero de edigdes portuguesas proibidas de circulagdo. Com efeito, no que toca & produgio intelectual nacional considerada deficiente pela censura, ela era eliminada a nascenga. Quer dizer impedida de ser impressa, pelo que o ntimero de obras em circulacio foi reduzido. Contamos na Livraria de Saraiva apenas 10 obras nessas condigées, editadas em Portugal. Destas, cinco sao do século XVII, quatro do século XVIII e uma do século XIX, Os locais de edig’o mais referenciados sao Lisboa e Evora? e a maioria destas edicgdes cabe no capitulo da teologia, seguida das relativas a literatura autonomista seiscentista e da Histéria. 26 RAMOS, Luis A. de Oliveira, O Cardeal Saraiva, Porto, 1972, p. 30. 27 Cito edigdes em Lisboa e apenas uma em Evora. Estas duas cidades foram durante 0 século XVIL os principais centros de edigdo em Portugal, juntemente com Coimbra e Alcobaga. Cf. MARTIN, Henri-Jean, Livres Powvoires et Société a Paris au XVile siécle (1598-1701), Genéve, 1984. 438 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS No capitulo da teologia mistica e ascética, merece destaque o livro do padre Joao Rebello a Histéria dos Milagres do Rosdrio, ¢ de muitas e diversas devogoens, e servigos, que Santos, e pecadores fizerad ad Santissima Virgem Maria, e a Jesu Christo Nosso Salvador, pelas quaes receberaé grandes bens temporaes, e espiri- tuaes; provados todos com milagres, e cazos estranhos, que aconte- ceraé, e facilmente se podem fazer. Suprimido pela Real Mesa Censéria em 17717. este livro, conheceu mimero significativo de edi¢des que deixam adivinhar a sua grande aceitagio*¥, A supressiio assentou em dois factores, o primeiro decorrente da circunstancia de © seu autor ser membro da Companhia de Jesus ¢ o segundo, prende- se com 0 seu contetido integrar matéria supersticiosa. Ainda neste capitulo, Frei Francisco de Sdo Luis, no deixou certamente de ler a obra que surge no catalogo apenas sob a desig- nagdo através da qual se tornou mais conhecida, Mistica Cidade de Deus*!, que correu sob o longo titulo de Maria Santissima, Mystica Cidade de Deos, Breve Compendio da Vida, e Mystérios de Maria, que na obra da Venerdvel Madre Soror Maria de Jesus de Agreda se contém. recopilagam das mesmas obras, que traduzidas em lingua Portugueza, inclui summariamente as virtudes, dons e gracas com que o Eterno Pay honrou neste mundo a Trindade Soberana de Jesu Maria Jozé a quem as offerece, as consagra e dedica hum seu devoto natural de Lisboa. acrescentado nesta impressGo com o iti- nerario da Terra Santa, obra impressa pela primeira vez em Lisboa, em 1685, apés ter sido proibida de circular em Espanha pelo Santo Oficio da Inquisigao desde 1681°2. Entre nés foi suprimida em Setembro de 17705, 28 N° 300 do «Index». Ainda em Evora, viria a ser reeditado pelo mesmo Manuel Lyra em 1608 e posteriormente so conhecidas as edigdes em Lisboa, 1614, por Jorge Rodriguez, 1669, por Ant6nio Craesbeeck de Mello, 1676, 1691 e 1725 por Joao Galvio. ?° MARQUES, Maria Adelaide Salvador, ob. cit. p. 185. Editado em Evora, por Manuel de Lyra, em 1602, 2° SILVA, Inocéncio Francisco da, ob. cit., Tomo LV, p. 25. +! N° 1037 do «Index», % Maria Santissima, Mystica cidade de Deos, breve compendio da vida, e Mystérios de Maria, que na obra da Venerdvel Madre Soror Maria de Jesus de Agreda se contém. Recopilacam das Mesmas obras, que traducidas em lingua Portugueza, inclui swnmariamente as virtudes, dons e gragas com que o Eterno Pay honrou neste mundo a trindade soberana de Jesu Maria Jozé. A quem as offerece, as consagra e dedica Hum seu devoto natural de Lisboa. Acrescentado nesta impresséio com o Itinerério da Terra Santa,Lisboa, na Nova Oficina de Ant6nio Duarte Pimenta, 1743, p. 3. *8 MARQUES, Maria Adelaide Salvador, ob. cit., p. 119. 0 CARDEAL SARAIVA E OS LIVROS INTERDITOS 439 De Frei Anténio do Rosério, leu a Carta de Marear™, editada pela primeira vez em Lisboa a expensas de Antonio Pedrozo Galrao, em 1702°> ¢ proibida por sentenga da Real Mesa Censéria de 1769, juntamente com outras obras do autor, embora permitida a pessoas privilegiadas*®, Inoc€ncio diz. nao a ter visto’, o mesmo nos suce- deu, apesar dos esforcos que fizemos para compulsar este livro. A Apologia a Favor do Padre Antonio Vieyra (...) porque se desvanece e convence o tratado que com o nome de Crisis escreveo contra ella a rev.da D. joanna Ignez da Cruz, religioza de S. Jeronimo, da Provincia do México*®, da autoria da Madre Soror Margarida Indcia, um exemplar da teologia parenética e homilitica, editado em Lisboa, em 1727, conta-se também entre os livros que Saraiva reuniu®?. A literatura de intuitos nacionalistas, tao cultivada durante 0 século XVII portugués, encontra-se, na sua vertente pragmitica, bem representada no micleo principal da livraria de Saraiva. No entanto, para 14 das muitas obras civadas de pragmatismo e inten- Ges terapeuticas para os males que afligiam o Portugal da época, é possfvel inventariar uma literatura de exaltagdo das exceléncias da Patria de cunho marcadamente fantasioso, alicergada nas maravilhas do passado e que, de forma grenérica, serviu para ilustrar 0 discurso parenético restauracionista’”. Nem por alguma dessa literatura se encontrar proibida de circular, Saraiva deixou de a ler. Neste grupo, insere-se 0 livro Restauracao de Portugal Prodigiosa Offerecido ao Senhor Rei Dom Jodo IV *!, (1* edigio) da autoria de outro Jesuita, © padre Joao de Vasconcelos, que foi Reitor em varios Colégios da companhia*”, circunstancia por si s6, motivo suficiente para que este clérigo visse interditos & leitura os seus escritos. No ,entanto, as raz6es apresentadas para tal proibigao escoram-se nas caracteristi- 34 N° 149 do «index». 35 MACHADO, Diogo Barbosa, Bibliotheca Lusitana, Coimbra, 1966, Tomo 1, p. 378 56 MARQUES, Maria Adelaide Salvador, ob. cit., p. 188. 37 SILVA, Inocéncio Francisco da, ob cit., Tomo I, p. 262. 38 N° 632 do «Index». 39 MARQUES, Maria Adelaide Salvador, ob. cit., p. 122. 4 MARQUES, Joao Francisco, A Parenética Portuguesa e a Restauragéo 1640- -1668, Porto, vol.Il, p. 212. 41 N° 507 do «Index» — Foi publicado sob o nome suposto do Doutor Gregorio de Almeida Ulyssiponense, Cf. SILVA, Inocéncio Francisco da, ob. cit., Tomo LV, p. 46. 2 MACHADO, Diogo Barbosa, ob. cit., Tomo Il, p. 781. Editado em Lisboa, por Anténio Alvares, em 164: 440 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS cas da obra. Com efeito, a Real Mesa Censéria em julho de 1768%3, suprimiu 0 livro sob a argumentagiio de se tratar de um dos mais sdlidos fundamentos em que se estribavam aqueles que durante o século XVII esperavam o regresso do Rei D. Sebastiaio, animados de inabalavel crenga nas profecias que recheiam o texto, todo ele ten- tativa manifesta de cimentar a fé dos Portugueses na restauracdo de 1640. D. Joao IV, é af apresentado como o verdadeiro «encoberto», predestinado por Deus a servir 0 reino, ao mesmo tempo que afasta a dominagio castelhana“. Por certo, pesou na decisio da mesa o cardcter supersticioso dos argumentos. Damiao Peres, classificou este livro, na nota prévia a reedicao de 1939, por ocasido das come- moragées dos trezentos anos do afastamento da dominagao filipina, como uma excelente crénica da restauragao e uma das mais vivas expresses do nacionalismo portugués seiscentista‘>, Embora 0 seu autor logo no cap. I prometa 0 uso da verdade em tudo quanto nela se relata e manifeste intengo de guardar respeito as determinagdes papais no que toca ao expurgo da literatura fasta- siosa, predestinatoria e visionaria, ndo deixou de recorrer ao «pro- digio» ¢ A «superstico»*®, De resto, foram obras como esta que ins- piraram os autores da ja citada Dedugdo Cronolégica e Analitica, em que os inacianos acabam a expiar os males por que passou 0 pais desde que a ordem fora introduzida em Portugal. Joaquim Verissimo Serrao destaca-Ihe também 0 cardcter marcadamente fantasioso, ao mesmo tempo que define este titulo como catalizador de camadas da populagao ainda hesitantes na defesa da causa nacionalista‘?. #3 MARQUES, Maria Adelaide Salvador, ob. cit,, p. 120, “4 SILVA, Inocéncio Francisco da, ob. cit., Tomo IV, p. 46. * Restauracdo de Portugal Prodigiosa, Edigao dirigida por Damiao Peres, Barcelos, 1939, 46 Senio vejamos: logo no cap. II da primeira parte «mostra-se entenderem-se varios lugares das Escripturas Sagradas, de Portugal ¢ suas conquistas» no cap. V alude 4 visto de Dom Afonso Henriques, tema logo retomado no cap. VI, para nos capi- tulos VIII e IX se ocupar respectivamente dos «sucessos maravilhosos» do nosso pri- meiro rei «despois de morto» e de «hwn caso prodigioso» que aconteceu & sua estétua. Prossegue na mesma linha no cap. XXVIII onde se relata «un prodigio notdvel que aconteceo em hum barco de Santarém no dia da Acclamagao de Sua Magestade» até a0 cap. XXXV onde, por exemplo, se relatam «... vaticinios que vieram da india de como Portugal teria rey portuguez». Enfim, os exemplos podiam multiplicar-se. ULYSSIPONENSE, Doutor Gregério de Almeida, Restauraciio de Portugal Prodi- giosa, Lisboa, 1753, fls., 6, 35, 39, 118 € 123. “7 SERRAO, Joaquim Verissimo, Historiografia Portuguesa. Doutrina e C Vol. Il, Lisboa, 1972, Vol. IT, p. 160. O CARDEAL SARAIVA E OS LIVROS INTERDITOS at Também integrado na literatura patriética, Saraiva possuiu o poema Anacephaleoses da Monarquia Lusitana*®, da autoria de Manuel Bocarro Francez, publicado em Lisboa por Antonio Alva- res, em 1624 e reeditado em 1809 pela Typografia Lacerdina*?. Este texto viria a ser proibido pela Mesa Censéria em Dezembro de 1774, sob a classificagdo de «... hum daqueles muitos maliciosos e perniciosos estratagemas, praticados neste reino pelos individuos da supprimida, abolida e extincta sociedade jesuitica», destinado a ocupar 0s ouvidos do rei e dos ministros, alimentando-lhes 0 espf- rito com profecias de se vir a transformar no imperador de um novo império, trazendo-os constantemente alterados com «estrondosas maquinagoens», fazendo os homens supersticiosos & fanaticos. Com base nestes argumentos a obra foi queimada em conjunto com outras do mesmo autor. Bocarro Francés acalentou neste livro um sonho em tudo idéntico ao de Anténio de Sousa Macedo que preconizou 0 quinto império portugués®. Pela ousadia cometida ainda sob a dominagio filipina, o autor sofreu as agruras da prisdo © seguiu 0 caminho do exilio™!. Nem tudo foi mau ja que este afastamento per- mitir-Ihe-ia privar com Kepler e Galileu®?. No Ambito da literatura de intuitos nacionalistas cabe também 0 Tractado da Vida, Virtudes e Doutrina Admirdvel de Simdo Gomes Portuguez, vulgarmente chamado 0 Capateiro Sancto™3, Foi seu autor 0 padre jesuita Manoel da Veiga“. Mereceu também conde- nado a pena de fogo e varios exemplares foram queimados na Praga do Comércio em 14 de Junho de 1768, Cumprindo-se as determina- ges da Real Mesa Censéria®* que classifica as profecias de Simao 48 N° 677 do «Index». 4° SILVA, Inocéncio Francisco da, ob. cit. Tomo V, p. 377-378. 50 CIDADE, Hernani, Ligdes de Cultura e Literatura Portuguesas, Vol. Ul, p. 395, 51 Bocarro Francez. viajou por diversos pafses europeus € foi condecorado com 0 titulo de Grande Palatino pelo Imperador Frederico III da Austria em 1647. Cf. SILVA, Inocéncio Francisco da, ob. cit., p. 377. IDADE, Hernani, ob. cit., Volume 1, p. 349. 53 N°617 do «index», Lisboa, por Matheus Pinheiro, 1625. Sao conhecidas edi- des posteriores deste texto em Lisboa, por Francisco Villela em 1673, por Pedro Ferreira em 1723 ¢ por José Filipe em 1759. Cf. SILVA, Inocéncio Francisco da, ob. cit., Tomo VI, p. 121 54 MACHADO, Diogo Barbosa, ob. cit., Tomo IIL, p. 400. 55 Collecedo dos Editaes, que se ten publicado pela Real Meza Censéria, erecta por El Rey Fidelissimo D. José I nosso Senhor pelos quaes proibe varios livros desde 10 de Junho de 1768. até 6 de Marco de 1775, Lisboa, 1779. 4a2 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS Gomes como simulagdes da «Companhia denominada de jesus» destinadas a alimentar a crenca dos sebastianistas na vida e vinda miraculosa do «encoberto» No campo da Hist6ria, tematica que muito interessou Saraiva, da autoria do Abade Fleury, possuiu um exemplar dos Discursos sobre Historia Eclesidstica®®, edigio de Lisboa,i773. O autor fez parte da «petite cour» de Bossuet®” que o influénciou a tomar ordens*’, A sua Historia Eclesidstica, é classificada pelos revedores da Real Mesa Censéria como uma obra bem ordenada e de grande autoridade, mas os Discursos foram considerados trabalho menor, apesar da grande nomeada de que gozava entdio o Cardeal®”. Uma andlise mais atenta do seu contetido, coloca-nos perto dos motivos da relutancia quanto & sua livre circulagao e simultaneamente da correntes de opiniao com que Saraiva ia tomando contacto. No pri meiro dos discursos em que este texto se encontra repartido e que serviu de prefiicio 4 Historia Eclesidstica, justifica-se a necessidade da sua publicagao com vista ao esclarecimento critico de alguns aspectos da doutrina, disciplina e costumes da Igreja. A posicao cri- tica prometida por Fleury, evidencia-se sobretudo no Discurso Terceiro, ao versar matéria controversa para a €poca, e por certo, merecedora de especial atengao da censura, nomeadamente, sobre a falsidade de algumas reliquias, a denincia da superstigio®! e da riqueza material da Igreja® pelo perigo que representam para a cor- tup¢ao dos costumes® ¢ incontinéncia do clero. Continua no Discurso Quarto, ao questionar a imunidade do clero®, ao mesmo tempo que aponta os inconvenientes do poder temporal da igreja®, dos legados®” e das subvengées pecuniérias®, assuntos sobre que os 56 N° 183 do «index», 5” Histoire de la Litterature Frangaise ~ La Litterature Religieuse — de Francois de Sales & Fénelon, Ditig. por J. Calvet, Paris, 1938, p. 466. SSTOUCHARD, Jean, Histéria das Ideias Politicas, Mem Martins, vol Il, p. 144, * BASTOS, José Timéteo da Silva, ob. cit., p. 198. © FLEURY (Abbé), Discours sur 'Histoire Ecclesiastique, Paris, 1763, p. 86. © Tdem, Ibidem, p. 89. © Idem, p. 102. 3 Tdem, p. 104 © Idem, p. 105. 5 Idem, p. 154. © Tdem, p. 157 ©" Idem, p. 167, ® Idem, p. 170. O CARDEAL SARAIVA E OS LIVROS INTERDITOS 443 quais 0 autor também reflecte. Abertamente contra a Escolastica®, os seus textos deixam transparecer uma exegese sagrada que nao prescinde da boa razio, posigao partilhada pelo Cardeal Saraiva. Ja no campo da Histéria portuguesa, entre a livraria interdita que Saraiva possuiu, conta-se um exemplar do livro Catasthrophe de Portugal na Deposigdo d’el Rei D. Affonso Sexto e subrogagao do Principe D. Pedro o unico, justificada nas calamidades publicas, escrita para justificagéo dos portugueses™, por Leandro Dorea Caceres e Faria. Esta obra, cujo verdadeiro autor foi D. Fernando Correa de Lacerda, homem profundamente versado nas letras sagra- das e profanas, cultor da lingua portuguesa’! com justiga, acusado de parcialidade neste texto, onde descreveu 0 golpe palaciano que levaria D. Afonso V1 a abdicar da coroa. Na sequéncia destes acon- tecimentos, de perto acompanhados pelos padres Jesuitas, D. Pedro II subiu ao trono e Afonso VI, primeiro deportado para Angra do Heroismo, é posteriormente encarcerado no Palacio de Sintra, con- digo em que veio a falecer em 16837. Esta narrativa de D. Fernando Correa de Lacerda, é vulgarmente descrita como muito parcial e também nao passou nas malhas da censura pombalina’. De resto, os seus erros estimularam Camillo Aureliano da Silva € Sousa a escrever em sentido oposto a Anti-catdstrophe, Historia DEI Rei D. Affonso VI de Portugal, editada no Porto, pela Typo- grafia da Rua Formosa, em 1845. Saraiva como bom escritor de hist6ria nao podia deixar de tomar contacto com as miiltiplas versdes sobre os acontecimentos, tanto mais que teve em projecto redigir também uma historia de Portugal, tarefa que acabaria por nao concluir, mas que se percebe através do contetido das suas obras completas levaria a bom termo com éxito. ©® «Je conclus celui-ci en van faisant remargues, ce que je pense avoir prowvé, que les changemens arrivés dans la discipline de VEglise depuis cing au six cens ans, ont point été introduits par l'auiorité des éveques et des conciles, pour corriger les pratiques anciennes; mais pour la negligence, par ignorance, par erreur fondée sur les piéces fausses, comme des Decretales d'Isidore; et par les mauvais raisonnemens des Docteurs Scholastiques». dem, p. 188. 70 N° 78} do «Index». Tl MACHADO, Diogo Barbosa, ob. cit., Tomo Il, p, 23 Doutor em canones pela Universidade de Coimbra, Inquisidor e Deputado do Conselho Geral do Santo Oficio, Comissério Geral da Bula de Cruzada e nomeado por D. Pedro 1] em 1673 Bispo do Porto. 72 DORIA, Anténio Alvaro, Afonso VI, in «Diciondrio de Histéria de Portugal», Tomo I. p. 44.2 46. 73. Mesa suprimiu-a por sentenga de 24 de Julho de 1769. MARQUES, Maria Adelaide Salvador, ob. cit., p. 150. 444 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS As edigdes estrangeiras proibidas de livre curso em Portugal No que toca a edigdes estrangeiras, elas surgem bastante dis- tanciadas, em nimero, das edigdes portuguesas que representam apenas 13,4% do total dos livros proibidos pela censura que detec- tamos no «index» da livraria do monge beneditino, Os locais de proveniéncia das edigdes identificadas sao Paris, Amesterdao, Genebra, Londres, Veneza, Génova, Valadolid ¢ Drosde, assim ordenados pelo ntimero de edicées, Sob 0 ponto de vista tematico, as 49 obras editadas distribuem- =se em maior mimero pelo grupo ciéncias e artes, o que mostra 0 interesse de Frei Francisco de Sio Luis pela leitura das novidades literdrias mais representativas da evolugao do pensamento setecen- sta, impedidas de livre circulagao em Portugal. O destaque vai para o grupo de obras classificadas como de filosofia racional. Os que se referem as inovagoes no campo do pen- samento econémico, aparecem em segundo lugar, seguidos de perto pelos que integram matérias relativas a educagao ¢ politica. Também se encontram representadas a filosofia moral ¢ a medicina, embora eM posicdo minoritéria. Procurarei deixar aqui um olhar mais pro- ximo dos titulos que nos pareceram testemunhos ignificativos da busca da novidade literdria a que 0 monge beneditino associa o gosto do biblidfilo, consubstanciado numa evidente preferéncia pelas primeiras edigdes que pudemos constatar na andlise global deste corpus bibliografico. A Tilosofia das luzes aparece bem representada neste conjunto, a comegar pela obra maior de Jonh Locke, um dos mestres do pen- Samento setecentista, que dividiu com Newton a tarefa de transfor- mar os quadros de pensamento, bem como da prépria concepgao do mundo. O monge beneditino tomou conhecimento do pensamento de Jonh Locke, através da obra De Intelectu Humano, edigéo de Londres, 170175, que a Real Mesa Censéria proibiu, nos primeiros dias do scu funcionamento”®. A responsabilidade da censura e inter- digdo desta obra, dividiram-na o padre Antonio Pereira de Figueiredo, ™ SOBOUL, Albert, LEMARCHAND, Guy FOGEL, Michéle, Le Sidcle des Luniéres, Patis, 1977, Vol. 1, p. 359. 78 N° 355 do «Index», *° FERRAO, Antonio, ob. cit,, p. 387. O CARDEAL SARAIVA E OS LIVROS INTERDITOS 445 Frei Inacio de Sido Caetano e Frei Francisco de Sao Bento. Apesar de os dois tltimos terem manifestado opiniao favordvel a livre cir- culagaio deste titulo, Anténio Pereira de Figueiredo manteve-se intransigente atendendo a circunstancia de Locke defender que a liberdade nao est4 na vontade, mas na faculdade de _ em con- tradico com as escrituras, os concilios € os padres’. Com efeito, a profundidade reflexiva de Locke, que ultrapassa o inatismo carte~ siano, tornando extensiva a critica racional a religiéo ¢ & organiza- cio politica nos seus Tratises of Gouvernement (1690), era matéria Cuja divulgagio nao interessava as componentes laica e religiosa da censura intelectual pombalina. Da sua leitura Saraiva soube tirar proveito, cita-o com frequéncia nas suas Obras Completas. © Dictionnaire Historique et Critique, de Pierre Bayle, edigao de Amesterdio, 175078 seria auséncia notada neste conjunto biblio- grafico, dado tratar-se da obra mais importante do filésofo francés, como pelo facto de o seu contetido ter constitufdo preciosa utensila- gem de que se serviram os enciclopedistas””. Voltaire, reconhecendo © seu precioso contributo na moldagem do pensamento critico das luzes, chamava-lhe 0 «imortal Bayle»®?. A filiagao religiosa do fild- sofo francés, protestante, e por esse motivo tefugiado na Holanda, constitufa argumento suficiente para que as suas obras fossem inter- ditas em Portugal. De resto, assim aconteceu com 0 Diciondrio, proibido em 17698! e nem os extractos do mesmo, que correram sob © titulo Extraits du Dictionnaire Historique et Critique, lograram escapar a vigilancia da censura que, logo em Setembro do ano seguinte os suprimiu®?. Nao é de estranhar a preocupacdo dos cen- sores, dado que esta obra’, no é mais um reportério completo de historia e de filosofia, mas antes, um trabalho em que no caso da his- toria se procurou rectificar erros e clucidar dificuldades, de forma abertamente critica. J4 os artigos de filosofia, trazem a marca do cepticismo que caracterizou Bayle, insuficiente no entanto para 0 77 BASTOS, José Timéteo da Silva, ob. cit., pp. 153-154. 78 N° 70 do «Index». 7 BEDIER, Joséph et HAZARD, Paul, Histoire de la Litterature Francaise, Paris, s.d., Vol. II, p. 36. 80 TOUCHARD, Jean, ob. cit., p. 150. 81 FERRAO, Anténio, ob. cit., p. 351 82 MARQUES, Maria Adelaide Salvador, ob. cit., p. 149, 83 Existe um exemplar na B.PMLP,, trata-se da 4* Edigdo, revista corrigida € aumentada, Amesterdam, 1730. 446 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS derrube total das barreiras presentes em Descartes. Bayle antes se Mostrou um cartesiano de segundo plano, sem deixar de ser um eru- dito notavel e um grande vulgarizador®4, A sua critica alargou-se ao campo politico & no tocante a religido, minou, com seguranca iré- nica, os dogmas®®, ao mesmo tempo que combateu a intolerancia, com a crenga na eficdcia do pensamento, na bondade e na fora do Progresso do espirito humano. Saraiva, no deixou de contar com um exemplar desta importante obra dos finais do século XVIII, na sua estante, No capitulo das obras de referéncia que reflectem 0 espirito do século em que Saraiva formou o seu caracter, insere-se também o Dictionnaire Philosophique de Voltaire, Dele possuiu uma edigaio de Amesterdao, datada de 178986, Testemunho notavel do prodigioso génio do fildsofo francés em veicular ideias abstractas através de um estilo directo e mordaz. Cada entrada deste diciondrio, é uma ligio de literatura, combate e divulgagéo’7, Voltaire partilhou, como é Sabido, da incompreensdo da maior parte dos filésofos no que diz respeito ao fenémeno religioso, ndo se estranha assim que a postura critica relativamente ao clero e & Igreja se manifeste em grande ntimero dos artigos que integram esta obra, a comecar pela primeira entrada, abade, uma critica afinada a clerizia regular. A critica ao clero prossegue na entrada «inguisigdo: (...) é, como se sabe, uma inven¢do admirdvel e absolutamente cristd, destinada a tornar todo 9 reino hipdcrita>, sem mais®® A f& também também nao escapou a anilise especulativa: «o que é a fé?, interroga-se Voltaire: ¢ acredi- tarmos naquilo que parece evidente? nao: é evidente que hd um ser necessdrio, eterno, supremo, inteligente, mas isso ndo é artigo de fé, mas de razdo. (...) a fé consiste em acreditarmos, ndo naquilo que nos parece verdadeiro, mas naquilo que se apresenta como errado e falso ao nosso entendimento»®®. Apesar de versar matérias polé- micas, como a da superioridade das leis civis as leis eclesidsticas, numa perspectiva analitica contréria a ortodoxia catélica, Saraiva nao prescindiu desta obra, onde Voltaire coloca a questao da liber- “ BEDIER, Joséph et HAZARD, Paul, ob. cit., p. 361 8S Idem, Ibidem, p. 36. 86 N° 162 do «Index». *7 PONTE, Bruno da Ponte ¢ ALVi Filoséfico de Voltaire, Lisboa, 1966, p. 19. 88 Idem, Ibidem, p. 87. ® Idem, p. 14. Joao Lopes in introdugdo a0 Diciondrio O CARDEAL SARAIVA E OS LIVROS INTERDITOS 447 dade de pensamento, demonstrarando a insensatez do cristianismo ao querer aniquilar o que afinal Ihe havia servido de principio”. Igualmente do desagrado dos censores foram, por certo, os resulta- dos apresentados pelo autor relativos as pesquisas sobre o homem, tema jd iniciado no Traité de Metaphysique sob 0 titulo Doutes sur L’homme e retomado na Philosophie de L’Histoire (1756), sinteti- zados na entrada «chaine des étres crées» do Dictionnaire Philo- sophique. Aqui, mostra-se defensor do poligenismo, em contradi¢ao com 0 livro do Génesis, num claro brago de ferro com os tedlogos do seu tempo?!. E poderiam multiplicar-se as referéncias ao con- tetido desta obra de Voltaire, justificativas da sua interdigao em setembro de 1770, mas também da boa utilidade de que se revestiu para Frei Francisco de Sao Luis®. Saraiva leu ainda Boulanger, L’antiquité Devoillé au Moyan de la Genese, Source et Origine de la Mythologie et des Cultes des Payens, numa edi¢do de Amesterdio, 17773 obra também suprimida pela Mesa Censéria desde Setembro de 1770, classificada junta- mente com outros livros interditados na mesma altura, como «abo- minaveis producdes da incredulidade, e libertinagem de homens tao temerarios, e soberbos que se denominam espiritos fortes, e se atri- buem o especioso titulo de filosofos»°>. Com efeito, nela se questio- nou a criagdo do mundo tal qual descrita no Livro do Génesis, con- trapondo-se-Ihe a busca de uma resposta as questées de como e quando comegou o mundo, a partir da filosofia racional, numa altura em que a matéria em anilise parecia caber em exclusivo & revela- 80%, As obras completas de Helvétius”” que constam em quarto lugar na lista de compilagdes, no catélogo das obras de filosofia interditas & livre circulacio, organizado por Robert Darnton, com base no ntimero de encomendas recebido pela Société Typographique 9 Idem, p. 116. °! SOBOUL, Albert, LEMARCHAND, Guy, FOGEL, Michéle, ob. cit.. vol. I p. 515. 52 MARQUES, Maria Adelaide Salvador, ob. cit., p. 143. 93 N° 49 do «lndex». ° MARQUES, Maria Adelaide Salvador, ob. cit., p. 131. °5 FERRAO, Anténio, A Censura Literdria durante 0 Governo Pombalino. Coimbra, 1927. p. 353. % Boulanger, L’Antiquité Devoillé au Moyan de la Genése, source et origine de la Mythologie et des cultes des payens, Paris, Adrien Egron, imprimeur, Gl. Dufour et Comp., 1812 (3* ed.) °7 NP 304 do «Index». 448 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS de Neuchéte”®, integraram também a Livraria de Frei Francisco. Entre as obras deste autor, contam-se algumas condenadas a fogueira publica como Le Vrai Sens du Systeme de la Nature, classificada como uma das obras em que espirito dos filésofos libertinos, «der- ramou 0 veneno todo da sua abomindvel seita»®®. O mesmo sucedeu com De L’Esprit (1758), suprimida em 17751, gue obteve sucesso de escAndalo, enquanto versio radical do atefsmo!!, No «index» da livraria de Saraiva encontra-se uma obra com 0 mesmo titulo, mas sem indicagio do autor!®, Pela data de edig%o, nao nos foi possivel identificé-la como da autoria de Helvétius, uma vez que é referen- ciado o ano de 1757 e a primeira edigdo desta obra data de 1758103, lapso do autor do inventério? deixamos a interrogacio. Rousseau, encontra-se bem Tepresentado. Saraiva possuiu as Suas obras completas, editadas em Paris, 1757!4. Ao 1é-las, conhe- ceu de perto as ideias politicas do autor, patentes no Contrat Social, bem como a feicdo pragmitica da sua aplicacio nas Lettres a M. Buttafuoco sur la Législation de la Corse (1765) e nas Considé. rations sur le Gouvernement de la Pologne et sur sa reformation '®5, © interesse de Frei Francisco de Sao Luis pelas obras de Rousseau!®, parece ter sido significativo, ao ponto de incluir na sua biblioteca, para 14 desta compilaciio, uma edi¢do do Discours sur Uinegalité Parmi les Hommes, precisamente a primeira edicio, Drosde, 1755'°7. Aqui Saraiva percebeu o alcance sociolégico da obra do fildsofo francés!8. O tema de fundo desta obra é 0 da «bondade natural» e do «regresso a natureza», nao no sentido de °S DARNTON, Robert, ob. cit., p. 220. Este posicionamento na lista mostra a importincia alcangada pela obra filos6fica de Helvétius em toda a Europa, de resto 0 autor aparece mesmo em primeira posi¢do na lista de tratados de filosofia mais encon. mendados. Através dela tomou contacto com a combinagao de teoria sensualista do Conhecimento sensacionismo com a ética fundada no interesse «utilitarismo moral» ue inclui nos seus objectivos o maior bem estar para a maioria «eudemonismo social». ” BASTOS, José Timéteo da Silva, ob. cit, pp. 179-180. 10) MARQUES, Maria Adelaide Salvador, ob. cit. p. 192, 1°! TOUCHARD, Jean, ob. cit., vol. I, p. 192. 102 N® 198 do «lndex» '°3 TOUCHARD, Jean, ob. cit., vol. I, p. 192. 1OFN® 514 do «index» 105 Idem, Ibidem, p. 204. 196 Suprimidas por edital da Mesa Censéria, de 24 de setembro de 1770, MAR- QUES, Maria Adelaide Salvador, ob. cit., pp. 188-189, 107 N° 517 do «lndex» 108 TOUCHARD, Jean, ob. cit., Vol. II, p. 208.

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