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“a Caté com Maturana Cristina Magro “Antonio Marcos Pereira Belo Horizonte 2002 VERSAO PRELIMINAR Favor ndo reproduzir nem citar Comentérios e criticas sao bem vindos CAFE COM MATURANA CRISTINA MAGRO ANTONIO MARCOS PEREIRA Capa: Jolie Eve Magro @ partir de desenho de EI Arbo! del Conocimiento BELO HORIZONTE 2002 Convite Todos nés subscrevemos em nosso cotidiano uma série de crengas que fazem parte de nossa tradig#o cultural, mesmo sem saber ou sem ter condigdes de formulé-las com clareza. O mais comum & 0 estarmos conscientes delas ou nem nos preocupanmos com seu iestionamento ou formulagio explicita. Isso porque crengas so como instrugdes para ‘sobrévivéncia: se tudo transcoire sem Problemas, no temos motivos para ficar revendo o manual a todo instante, Uma das crengas mais arraigadas de nossa cuitura & que vivemos num mundo extemo e independente de nds e do conhecimento que. temos dele. Certo? Certo, mas desafiar uma idéia tao difusa ¢ resistente como essa foi o que fez Humberto Maturana, neurobiélogo chileno que revirou a biologia de ponta-cabega. Ele @presentou una mancira de ver a cognigao, a linguagem e todos os fendmenos associados aos seres vivos que é a0 mesmo tempo inserida Ro contexto das principais controvérsias intelectuais do século XX, inovadora em sua proposiggo ¢ compativel com eéxploragdes cientificas recentes, No proceso de composigio de suas idéias Maturana aeabou por oferecer respostas coerentes com as que siio Gadas hoje, no mbito da biologia e das cigncias cognitivas, para problemas historicamente insoliiveis ou jogados de escante Pela novidade, amplitude ¢ pelo trabalho lingiifstico da formulaggo de suas idéias, Maturana costuma ser de dificil leitura, Esperamos apresenté-lo aqui de tal modo que vocé possa apreciar a incrivel simplicidade do mecanismo explicativo que ele monta para lidar com a exuberante complexidade.da fenomenologia dos seres humenos. E que vocé se sinta, com isso, atraido por sua leitura A teoria de Maturana é um éonvite a revermos postulados Gerais, afirmagGes particulares e modos de ver e de racidcinar 4 que estamos habituados, Vamos a elal a Matueana ato € 0 nico pensndar qe questions ‘ssepostslado, Com de Sel Gmbén, por cxexplo, ofildealo Ricined Rentye Tine! do Tempo © mundo da ciéncia comegou a viver, a partir dos anos 40, enorme excitagdo e produtividede, quando cientistas se encontraram em condigSes de tratar com teorias, métodos e técnicas cientificos um tema historicamente restrito & investigaglo filoséfica: a questo do conhecimento. Essa questio ou conjunto de questies envolve perguntas como: 0 que conhecemos? Como conhecemos algo? O que € necessario para conhecermos‘algo? Como saber que sabemos algo? A’ compreensio desse ‘fenémeno tem implicagdes para o entendimento de todas as nossas atividades, desde 0 que acontece nas situagdes diérias mais informais, como contar e ouvir um caso, ver novela ou conversar com os vizinhos, até o que fazemos em nossas atividades profissionais, intelectuais ou cientificas. Por isso, trazer seu estudo para o prestigioso dominio da ciéncia significava a certeza de lidar com ele de maneira adequada, O motivo de todo o frisson decorria de fatores diversos, inclusive da promissora associagio entre ciéncia ¢ tecnologia que caracterizou a discussio desde © inicio. Os sonhos de uma diversidade de pesquisadores vindos de uma variedade de éreas estavam voltados, ao mesmo tempo, para a compreensio da mente humana, do seu estar adequado no mundo, ¢ para a constrago de préteses mecénicas, robds, computadores de uso industrial e doméstico ¢, nao raro, a produgio de material bélico. Esses movimentos surgiram de esforgos significativos véltados para a cooperagdo entre areas, reunindo engenheiros, matemiticos, psicélogos, neurobidlogos, antropélogos, lingwiistas, filésofos e outros, em intrépidas aventuras intelectuais, Nesse empreendimento interdisciplinar pretendiam até mesmo unificar a ciéncia. E isso nfo era uma embigio pequena, como vood podem imaginar. O primeiro movimento que promoven essas discussbes foi a cibernética, liderada pelo irrequieto psicélogo ¢ neurocientista norte- americano Warren McCulloch, McCulloch era um personagem a Durur, 1996 ¢ GaaDnen, 1995 para abistris do Periods, peculiar, que encarnava algumas das caracteristicas mais marcantes do movimento intelectual ao qual ajudou a dar forma. Obcecado pela relagdo que certas questées filoséficas tinham coi nossa biologia, desde muito cedo McCulloch dedicou-se a estudos sobre a estrutura do tecido nervoso € a condugdo dos impulsos nervosos. Buscava descrever mecanismos cerebrais de forma a compreender como nossas fungées cognitivas aconteciam fisiologicamente, desde o tato até 0 pensamento abstrato, Preocupado no s6 em fazer observag5es empiricas mas em construir bases teéricas para exploragdes futuras, desenvolven um modelo Iégico que pretendia simular 0 fancionamento do sistema nervoso. Essa idéia iria frutificar muitos anos depois nos trabalhos hoje conhecidos como “Redes Neurais” ou “Redes Conexionistas”. Sua perene preocupagio com a fisiologia, aliada & sua busca pela resoluglo de problemas que transcendiam as fronteiras disciplinares tradicionais, deixaram sua marca no trabalho de Maturana, A cibemética nfo conheceu pouso fixo: suas discussdes se deram nas famosas Conferéncias Macy, realizadas entre 1946 © 1953 de maneica itinerante, sob os auspicios da fundegao filantrépica americana Josiah Macy Jr. As conferéncias, num total de dez, foram concebidas ¢ coordenadas por McCulloch, a quem se pode creditar 0 grande mérito de ter propiciado’ o surgimento de debates genuinamente transdisciplinares em tomo’ do conhecimento. Essas conferén s foram freqtientadas’ por pesquisadores do porte de Gregory Bateson, Margareth Mead, Roman Jackobson ¢ Jacques Lacan, s6 para citar uma pequena porgio deles, Além desses, pelo menos trés outras conferéncias permitiram que se Ievasse adiante 0 ambicioso projeto intelectual da cibemnética, j4 que o movimento nfo dispunha de um centro académico no qual seus protagonistas se reuniam, Em meados da década de 50‘um outro movimento surgiu Gisposto a reinar sozinho no setor: as ciéncias cognitivas, que em seus primeiros anos se desenvolveu pela corrente teérica que conhecemos Em Dunvy, 1996:p.92- 93 yoet contra li complete dos pericipntes de cada tama das confeéacias, como cognitivismo, Essa primeira manifestagio das ciéncias cognitivas tinha sua sede principal localizada no Massachussetts Institute of Technology (MIT), e foi bastante influente e cuidadosa no que diz respeito & sua consolidagdo como programa de pesquisa. Estes movimentos intelectuais tinham muitos pontos em comum, entre eles o fato de terem se originado animados pela possibilidade de tratarem © conhecimento de maneira cientifica, Entretanto, as diferengas entre eles so também marcantes, A mais notével talvez seja 0 fato de que o cognitivismo trabalhava estritamente com modelos légicos do funcionamento mental, que nada tinham a ver com 0 que ocortia em termos fisiologicos. Além disso, os ciberneticistas estavam efetivamente abertos 20 debate entre as disciplinas, A cooperagao ¢ a interpenetragao entre areas, 20 passo que os cognitivistas pareciam compreender 0 trabalho interdisciplinar como sendo uma questio de diferentes maneiras de exeoutar um mesmo projeto. E importante que fique claro ainda que, além dos desejos comuns e apesar de suas diferengas, cibemnética ¢ ciéncias cognitivas compattilhiavam um ponto de partida bem conhecido ¢ aceito no mundo ocidentat: tomavam a fisica, em particular, ¢ as ciéncias exatas, em geral, como paradigméticas do pensamento racional ¢ cientifico, estando a pesquisa sobre algo tio abstrato’e impalpavel como a mente humana submetida ao crivo dessa malha principal. Esse modo de encarar o papel dessas areas do conhecimento 6 Ge tal maneira difuso em nossa cultura que € com ele que separamos as cifncies hard das soft: as Areas que representam mais adequadamente a realidade e oferecem o instrumental mais acvrado para conhecé-la, como a fisica e as ciéncias exatas, daquelas que no 0 fazem, como as ciéncias humanas em geral, a literatura ¢ as artes, Esse raciocinio responde também pelo prestigio de que gozam as ieorias pautadas pelas ciéncias exatds em detrimento de outros tipos de reflexao. Faz parte desse contexto entender a realidade como algo que precede o conhecimento e que existe independentemente dele. Mesmo quando se afirma que @ realidade, em si, ndo é passivel de ser conhecida, porque nosso acesso a ela € mediado por nossa linguagem, nossas capacidades cognitivas ou nossas teorias, a idéia de uma realidade Unica é postulada, Para usar os termos adequados aqui, tanto naqueles movimentos como na longa historia do pensamento ocidental assume-se em geral que a ontologia precede a epistemologia ¢ independe dela. Parte do problema do conhecimento, entio, é entender como ontologia epistemologie se relacionam. Uma solugio possivel para essa questo é a proposta do filésofo fiancés do século XVI Renée Descartes, que postulou a existéncia de uma mente, distinta e separada do corpo, que 6a sede das capacidades que nos permitem conhecer. Essa proposta € conhecida como o dualismo cartesiano. A idéia de uma mente ou a necessidade de um aparato cognitivo individual, especifico da espécie humana, que nos permita lidar de maneira adequada no mundo ¢ resistente e permeou em larga escala 0 pensamento cientifico ¢ filos6fico do século XX. Ne entrada do novo século ja dispanhemos, no eatanto, de outras alternatives. Mas 0 que importa aqui, com a referéneia a Descartes, é entendermos a extenséo Go problema do conhecimento, e vislumbrarmos 0 alcance das solugSes que apareceram ao longo do tempo Onde estava Maturana? ‘Nos anos 50 Humberto Maturana trabalhava com a equipe de ‘McCulloch no seu Laboratorio de Epistemologia Experimental, nome que evidenciava a disposigdo de investigar 0 conhecimento de maneira experimental, cientifica, e nao especulativa Por uma dessas ironias da hist6ria, conta Maturana, no mesmo MIT em que estava localizado o laboratério de McCulloch, a umas poucas portas adiante trabalhavam importantes personagens da fundago e consolidagio das ciéncias cognitivas ¢ da inteligéncia CS Ontotogte:xqilo ques, oqucerize, ose das coisas os ocer ecdo, Eptstemotggta: 0 ‘ouhimento os 0 ‘ehudo do conhecireento, artificial: Chomsky, Minsky e Papert. A orientagio dessas duas linhas de pesquisa era bastante distinta: enquanto McCulloch e sua equipe se perguntavam se um organismo vivo e o cérebro humano em particular poderiam ser compreendidos como méquinas e adequadamente descritos em térmos matemiticos, tal comparagio era um postulado basico para os cientistas cognitivos e os pesquisadores de inteligéncia artificial. Para eles, ‘assumir 0 computador como um modelo adequado da mente era um dos pressupostos fundamentals das ciéncias cognitivas. - A equipe de pesquisadores liderada por McCulloch trabalhava na replicago de um experimento de rotagzo do olho de anfibios como arf ea stlamandra, cujo organismo é de ficil regencragao. O experimento consiste em retirar 0 olho do animal de sua érbita, seccionar os nervos épticos, girar 0 globo ocular 180° e recolocé-lo no lugar. Todos os nervos épticos se regeneram, 0 olho cicatriza, mas © animal passa a Jangar a lingua para capturar sua prest com um desvio de exatos 180°. Conta Maturana que vivia insatisfeito com o sumo das discusses e a3 conclusées a que a equipe de McCulloch chegou quando escreveram juntos “O que o olho da ri diz para o eérebro da 12”, um artigo ainda hoje invariavelmente mencionado quando o assunto & percepgao, Nele, os autores postulam a existéncia de um “sistema detector de insetos” da 1, que fnciona variando os padres de excitago da retina © da rede de neurénios a cla conectada, independente da quantidade de iluminagdo. Os autores desérevem 0 trajeto dos impulsos nervosos da retina ao cérebro ¢ afirmam que a retina informa ao eérebro 0 significado daquilo que ela, a retina (sic!), estava vendo. A novidade desse estudo decorre do fato de que a explicagdo tradicional da visio desses anfibios leva em conta a intensidade de luz que incide sobre a retina e no a atividade da retina e do sistema nervoso. : Incomodado com a solugo proposta para o problema, ao Avram Noor Chamsly, (9280 msisinuecte Bngtists ameiene da segunda meade do stoulo 20K Também cochecide por sat diviame pollioa. Marvin Lee Minsky (0927), matemiteo smedcano, um dos Plencires da fnteligénci ‘alicisle foudador do Liboratisio de Tteligeacia Aiea do Mar. Seyourt Popert ‘matemitien el afieano, tum dor pioncios da Totclipéncia Adificiel © Randador do Labortécio delntcigeacia Aditiciel do MIT, Netailizado poe mudar 9 sino com ‘0uso do computador, a MATURAYA, 19908 parnuos deccigio Dasante clara dex epeinents. Em McCuxtoct, 1988 24 publindo este amoso efaflucate sige. Maturana retornava ao laboratério no final do expediente, replicava 0 experimento e refletia sobre o que Jhe parecia ocorrer a rf. A resposta 86 veio no final da década de 60, quando Maturana foi convidedo como conferencista do congresso anual da Associagio Americana de Antropologia. Ao preparar sua palestra, que levou 0 nome de “Neurophysiology of Cognition”, chegou a compreensio que perseguia ha cerca de dez anos. Maturana entenden que a solugéo proposta pela equipe de McCulloch isolava o anfibio de seu meio, de sua histéria, ¢ atribufa ao animal uma propriedade individual que passava a ser responsabilizada por algo que ocorria nas interagSes éo animal em seu ambiente. Ainda, entendeu que tudo aquilo que fazemos no meio em que estamos depende de nossa biologia, e que, portanto, pela nossa constituigéo biolégica, nfo fazemos referéncia a nada que tenba existéncia independente de n6s. Essa caracteristica, insistiu Maturana, compartithada por todos os seres vivos. Voltando 20 experimento do olho da 14, viu que apenas para os cientistas que observavam 0 comportamento do anfibio com o olho girado a presa estava em dires oposta @ da lingua langada pelo predador. Tendo chegado a esse entendimento, que passou a orientar definitivamente toda a sua reflexdo sobre o viver ¢ 0 conhecer, Maturana abriu sua palestra no encontro de antropélogos escrevendo no quadro “Tudo é dito por um observador.” Mais ou menos na mesma época, um outro personagem notével cuidou de inaugurar uma segunda fase da cibernética. Heinz von Foerster migrou da Austria para os Estados Unidos logo apés a Segunda Guerra ¢, a convite de McCulloch, compareceu desde 0 inicio As Conferéncias Macy. McCulloch tinha ouvido falar dé seu trabalho sobre meméria e ficou imediatamente interessado. Embora esse estudo esteja hoje relegado ao bati das curiosidades cientificas, ‘Von Foerster tornou-se uma figura bastante relevante na historia da ciéncia contemporénea. Conhecido por seu incansdvel entusiasmo, esteve & frente do Biological Compister Laboratory, na Universidade ée Illinois, por um longo perfodo a partir de 1958, onde continuou a MaxTuRANA, 1970, a MaxaRO, SaxrAaaiyn © dae ideia de Matarana, or Helv von Foerster, Gsice Viencase neveida ‘em 1911, Ofercems basex fitters para o exude desiztemte complexes, Fnfluenclendo cena eopiiiver ¢ explorar ¢ expandir temas das Conferéncias Macy. Sua contribuigdo mais notavel & histéria intelectual ficou conhecida como cibernética de segunda ordem. Para 0 que aqui nos interessa, seu principal postulado era que nfo ha um ponto neutro de observagio no qual possamos nos instalar e elaborar explicagdes. Para ele, toda vez que 0 observador se propie a sair do sistema que observa com vistas a um pretenso distanciamento, ele cria um novo sistema, que o envolve também, O que Maturana fez, com um olhar esculpido pela biologia ¢ nio pela fisica, foi dar corpo e vida a esse observador, que somos nés, seres humanos que vivemos na linguagem, Fez isso de tal maneira que seu aforisma Tudo é dito por um observador a outro observador que pode ser ele mesmo se aplica a todas as nossas atividades, das aa sofisticadas, como as atividades cientifica ¢ filoséfica, as mais mundanas, como comprar verdures num sacoléo. A pergunta pelo viver + Paralelamente a isso, ocorria na biologia molecular uma série de discusses acerca dos processos envolvidos na produgzo do RNA. ¢ das proteinas. Perguntava-se se 0 RNA produzia proteinas ou se as proteinas produziam RNA. Para Maturana 0 proceso haveria de ser circular: as proteinas produziam o RNA que produzia proteinas, numa atividade circular fechada assim: FS RNA Proteinas me Essa é uma formulag&o inicial da compreenséo dos processos operacionalmente fechedos que Maturana toma como tipicos dos seres vivos, base para a construgao de seu pensamento. ‘Meturana estava entZo imerso na pergunta pelo conhecer, como também estavam grande nimero de cientistas de sua época, ¢ na perguata pelo viver. O que é a vida? O que distingue os sistemas vives dos que parecem ser igualmente complexos, mas que nao chamamos de vivos? Qual a unidade bisica da biologia: a espécie, 0 Ancte Anote P gene ou o individuo? $20 questdes como essas, historicamente problemiticas para os bidlogos, que Maturana se propunha a responder. Para se ter uma idéia do que esti em jogo af, vejamos trés ordens de respostas para a pergunta pela vide, Uma delas, conhecida como vitalista, afirma que ha um principio, uma substincia ou forga vital (que pode ser, por exemplo, Deus, ou uma ordem universal superior ou césmica), que mesmo impossivel de ser observada é fidade responsivel pelo surgimento dos seres vivos. Uma outra possibi de responder & pergunta pelo que é um ser vivo consiste em fomecer ume lista de propriedades essenciais caracteristicas dos seres vivos, tais como capacidade de reprodugo ¢ de movimentagio. No entanto, no fécil dizer quando a lista est’ completa, nem é facil estabelecer que propriedades so efetivamente essenciais para a identificagio de seres vivos. No caso da propriedade “capacidade de reprodug&o”, por exemplo, 2 mula teria que ser excluida da lista dos serés vivos, 0 que evidentemente seria um erro. Uma terceira perspectiva é a conhecida como sisémica, Operando com o conceito de sistemas abertos, propde uma compreenséo dos organismos como sendo voltados para a consecugao de objetivos ou para a execugdo de fungdes no mundo em que vivem. A proposta sistémica tem diversas vantagens em relagdo as anteriores: reage contra a redugdo de uma entidade, como 0 corpo humano, por exemplo, as propriedades dos seus elémentos, como érgios ¢ células; entende que as caracteristicas gerais do sistema so geradas pelas relagdes entre suas partes e ndo sdo encontradas em nenhum dos componentes em particular; abre a possibilidade de se lidar com a dinamica dos sistemas no meio em que interagem, pois afirma que desta interago emergem novas propriedades, numa evolugdo constante. Essa compreensio leva a perspectiva sistémica a escapar do ahistoricismo e do redieionismo tipico das propostas anteriores, qa Mavozns, 1995.11 or A Teoria Gerat de ‘Sistemas fol propos 1940 pelo bisogo vienetue Ludvig von Rthaltfly. oO 10 A. proposta, no entanto, néo fornece elementos para se distinguir os seres vivos das méquinas que simulam comportamento, que jamais chamatiamos de “vivas”. Como distinguir um ser vivo de uma maquina que produz substéncias quimicas, por exemplo, também composta de componentes complexos e processos de produgZo que interagem na realizagao de um todo organizado? Essa é uma questo crucial para Maturana. Ele recusa as respostas disponiveis e se dirige 4 pergunta pelo viver redefinindo o campo da biologia e seu préptio objeto de estudo - 0 que vive, o vivente. Em De Maquinas y Seres Vivos, Maturana e Varela tratam a questo de como distinguir um sistema vivo de uma méquina, buscando formular 0 que caracteriza esses sistemas como um todo auténomo, dindmico ¢ vivo. Argumentam que essa distingio ndo deveria se dar mediante referéncia a fingdes e objetivos das células num orgenismo multicelular maior, na medida em que hé seres vivos unicelulares que sobrevivem por si mesmos, Nem poderia se dar de maneira reducionista referindo-se a estruturas particulares ou componentes da célula como o nicleo ‘ou genes, que fossem responsiveis por toda a complexidade do que ocorre a0 ser vivo em suas interagSes no meio, ao longo de sua existéncia, Para eles a distingdo teria que vir de um tipo particular de organizagio das suas partes num todo. Ao tipo particular de organizagio dos seres vivos, eles denominaram organizagto autopoiética. Com isso estavam, dizendo que os seres vivos se “auto-produzem’, enquanto as méquinas sio ‘produzidas por outros’. No caso das méquinas, ha sempre alguém que as projeta para realizar determinadas fung6es, que as fabrica € que as informa ou instrui com todos os procedimentos necessérios para executar suas fisngdes de maneira adequada, No caso dos seres vivos 0 mesmo nfo se dé pois sio fruto de uma histéria da sua espécie imbricada na historia individual. Os seres vivos, entio, nem so seres que tém uma finalidade, um propésito de funges, como as Ancte PO maquinas, nem séo passiveis de instrugio pelo meio. Maturana ¢ Varela resumem dizendo que os seres vivos so seres antopoiéticos (que se auto-produzem, e.g. uma célula), enquanto as maquinas so seres alopoiéticos (que so produzidos por algo ou alguém de fora, e.g. um computador). ‘Maturana insiste que, em ciéncia, a explicagéo de um fendmeno qualquer precisa dar conta também, com o mesmo mecanismo cexplicativo, de outros fendmenos que podem ser observados. junto daquele de que © cientista tratou primordialmente. Assim, respondendo pergunta pelo viver, ele o faz de modo a se dirigir também a todos os fendmenos que observamos no ambito de vida dos seres vivos, incluindo a cognigao, a linguagem, os fendmenos sociais, 0s fenémenos mentais, a autoconsciéneia, Sem se intimidar pela heterodoxia das afirmagSes que vai fazendo, Jenga um olhar novo sobre cada um destes fendmenos e os redefine, Os primeiros anos da teoria Com esse posicionamento, Maturana muda inteiramente 0 foco das pesquisas sobre cognigao. Nas ciéncias cognitivas a investigagao tinha por objetivo a descrigo dos processos subjacentes a uma atividade, como por exemplo jogar xadrez, traduzir textos de uma lingua para ovtra ou constrvir sentengas em uma determinada lingua. Um dos produtos dessas’pesquisas foram as incriveis m4quinas de jogar xadrez, Uma delas, a Deep Blue, produzida pela IBM, desafiou o maior enxadrista do mundo, Garry Kasparov, em 1996. Quanto as méquinas de traduzir, “um sonho inicial do movimento cognitivista, vemos hoje pelos softwares dispontveis no mercado que na pratica 6, problema é muito maior que ma teoria, O foco em um elenco de procedimentos para a realizagio de agdes mostrou-se ser parcamente adequado a certas atividades que envolvem variéveis controladas, come jogar xadrez, ¢ totalmente inadequado para dar conta de atividades nas quais uma boa dose de imprevisto ou de variabilidade contextual est4 em jogo, como dirigir or Aspredigaes dequess riquinas de joger sadrex eam possivee ‘pibestiaract «| ‘conpleridade do problems. Apeser das primero: programs de xadtezterem aperecido 1958, em 1966 08 sreloresjogavara nim ‘etigio deaprendizes¢ (lquer deat para tum jopséoe mesic, mepow um carro no transito de uma cidade grande ou traduzir um texto de uma lingua para a outra. Para Maturana, para fomecermos uma explicagao adequada da cognigao precisamos compreender as caracteristicas de um ser vivo, porque so elas que determinam as interagGes do individuo no meio. Ele questionou a idéia dos processos ‘cognitivos concebidos como captagio de caracteristicas do ambiente (percepgo), mapeamento da informagio captada ou registro de representagdes da mesma na mente-cérebro({dentificagio), armazenagem —(meméria) manipulagio das representagdes (raciocinio). Ao invés disso, sugeriu que a cogni¢o © todos os fenémenos com os quais esté relacionada eavolvem de maneira integral 0 individuo como ser bioldgico. Tss0, diz ele, € algo que informalmente sabemos, pois estamos certos de que se uma pessoa sofre um acidente com decorrente lesfo cerebral ou esta sob efeito de drogas, por exemplo, aquilo que cla pode fazer muda, Mas ento 0 que € cogni¢o para Maturana? Ele diz. que todas as vezes que queremos saber se alguém sabe algo nés Ihe fazemos uma pergunta, Esta pergunta vai exigir que a pessoa faga alguma coisa, Se queremos saber se alguém sabe medicina perguntamos como trataria uma pessoa com tais e tais sintomas. Se a resposta for satisfatoria para quem fez a pergunta, este poder dizer que aquela pessoa a quem foi feita a pergunta sabe medicina. O problema, entdo, é identificar a conduta adequada, que Maturana toma como expressio do conhecimento. Se o problema & 0 proprio conhecimento, a cogniglo, ¢ se sabemos que hé Cognigz0 quando observamos a conduta adequada, o que precisamos compreender & como surge 2 conduta adequada e como a observamos, Para Maturana a conduta adequada tem a ver com a histéria da espécie e a histéria de vida dos individuos. Isso € 0 que ele resume no aforisma Conhecer é viver, viver é conhecer. B é isso 0 que ele se propoe a explicar. Nos primeiros anos de elaboragdo do mecanismo explicativo oO Aiba de dotermintsmo ‘sraturel és dat ogicrchave aqui Veaos tntae dito com raisdasthens pigion Be scpiisier Ancte Arnote F para dar conta do que é 0 viver e o comhecer, ¢ de seu desdobramento na explicagdo dos fendmenos humanos, Maturana teve um importante colaborador, o biélogo também chileno Francisco Varela. Com ele, as obras seminais deste pensamento se tomaram conhecidas. De Maguinas y Seres Vivos, que mencionamos anteriormente, foi o primeiro livro que escreveram juntos. Em 1984 publicaram BI arbol del conocimiento. Las bases bioldgicas del entendimiento humano, que, traduzido para mais de dez linguas, ‘constitui uma acessivel introdugao 20 pensamento destes autores. Neste livro, cuidadosa ¢ didaticamente elaborado, Maturana e Varela exploram de maneira bastante ampla algumas das conseqiténcias de seu modo de entender 08 seres vivos, e que depois cada um deles, em separado, passou a tratar ¢ detalhar. Dada a influéncia ¢ visibilidade das obras que fizeram juntos, ¢ da preservagiio por ambos da hipétese da orgamizagdo autopotética dos seres vivos em seus trabalhos posteriores, Varela costuma ser associado ao trabalho de Maturana sem a devida precaugio. A partir dos anos 80 até sua morte, Varela desenvolven suas idéias com o nome de Teoria da Atwagéo (enaction), que cle fazia questio de afirmar que era distinta em muitos pontos cruciais da Biologia do Conhecer, nome que Humberto Maturana dé ao seu préprio trabalho. O explicar e as explicagées cientificas Antes de continuarmos, precisamos refletir um pouco sobre como Maturana se dispSe a propor uma explicagao cientifica para a vida ¢ 0 conhecimento se ele proprio afirma que nfo podemos fazer referéncia 2 um mundo externo que justifique nossas afirmagdes, A cigncia ndo depende exatamente da possibilidade de fazermos isso? Nao sdo as regularidades de um mundo extemo, objetivo, que a ciéncia descreve? Se no fazemos referéncia a um mundo extemo € independente que dé peso ¢ validade ‘para nossas explicagBes, ou em contraste com o qual podemos conferir nossas afirmagées, 0 que fezemos 20 explicar? Para Maturana 0 que sfo as explicagées ¢ 0 que Or Organizopto ceulopeiéiiea 8m da optes erudais desta, ears, que chepos 8 Tewar onome deeoria daauiopotese. Veo etinig so an pipina 26 @ so as explicagdes cientificas? Maturana se deteve sobre essa questio porque, buscando responder 4 pergunta pelo conhecimento, entendex que no poderia deixar de refletir sobre 0 préprio afazer cientifico, a ciéncia, que é apenas um dominio particular de conhecimento. ‘Uma explicago é uma reformulago da experiéncia nos termos aceitos por aquele que faz a pergunta, S¢ uma explicagio é uma reformulagao da experiéucia, aceita enquanto tal pela pessoa que pergunta, é essa pessoa quem decide o que conta como uma explicago satisfatéria. Um dos muitos exemplos de Maturana 6 a situagio por vezes embaragosa a que nossas criangas costumam nos meter. De onde viemos? pergunta com uma ponta de ansiedade a gerotinha que soube do nascimento de um bebé na vizinhanga. A mée, que ainda nio estava segura de usar os livros disponiveis nas melhores casas do ramo e que nos ajudam nestas horas, conta a histéria da cegonha branca, que trax no bico os bebés Inmanos, ¢ da cegonha prela, que traz os filhotes dos animais, numa histéria longa e romantizada que a crianga aceita como explicagiio para aquela imaravilhosa experiénoia dos bebés virem ao mundo. A menina vai embora feliz com a explicagdo © fica assim confiante em sua sabedoria até que a professora aparece na sala bartigudinha dizendo que vai ter um bebé, ou até que algum outro evento experienciado pela crianga desencadeie uma dévida sobre a explicagzo de que dispunha. A garota volta a mie e pede outra explicagio, até que o que cla ouve como uma explicagdo seja consistente com o que experiencia na escola, na vizinhanga ou assistindo a TV. Assim, quem pergunta € que valida a explicagiio, e nfio um suposto mundo a0 qual a explicagao faz: referéncia Sob esse aspecto uma explicagio cientifica niio é diferente: é também uma reformulagZo da experiéncia e depende da accitagio da comunidade de cientistas ¢ observadores para ser validada e aceita. O enorme aparato metodolégico ¢ retérico de que se reveste a ciéncia promove acordos, sustenta a concordancia da comunidade — ¢ nio garante acesso privilegiado ao “real”, A explicagio cientifica tem, no am Ver MATER AGA, 19876 Maruman, 18908, por exempta, Anvte ? Ancte F 15 entanto, caracteristicas que the so peculiares e que as distinguem das explicagses cotidianas. Uma explicagao cientifica é a proposigo de um mecanismo que vem apresentado sob forma de quatro operagdes inter-relacionadas, que so recursivamente aplicadas na validagio das explicagdes dos cientistas, Assim, nfo h4 nenhum aspecto ou operagio dos ctitérios de validaggo das ‘explicagées que seja cientifico em si Nao hé observagées, deduges, confirmagies ou predigses cientificas que, destacadas do conjunto das quatro operagées seja suficiente, seja seu ponto central ou o mais importante. Podemos entender estas quatro operagdes assim: primeiro, 0 cientista precisa observar 0 fendmeno que constitui sua pergunta e descrevé-lo de maneira accita pela comunidade de cientistas como um fenémeno observado no dominio da descri¢ao proposta. Em seguida, precisa propor um mecanismo explicativo composto de uma hipétese de trabalho (hipdtese explicativa) e conceitos que, articulados, gerem 0 fendmeno que se quer explicar, Esse mecanismo explicativo precisa gerar também outros fendmenos que séo observados junto daquele que constitui o problema inicial. aqui que surgem as afirmages relacionadas com a predigZo. E aqui que temos uma importante etapa de validagao das explicagSes cientificas porque um mesmo mecanismo estaré sendo empregado para gerar um niimero diverso dé fendmenos. No entanto, essa etapa, sozinha, néo constitai uma explicagdo. Por iltimo, o cientista precisa retomar a opcragao inicial e reaplicar 0 mecanismo a cada um dos fendmenos previstos, validando a cada passo sua explicagio como um mecanismo explicativo adequado. Como € possivel construir um mimero bastante grande de mecanismos explicativos distintos, 0 cientista precisa selecionar, dentre eles, um no qual deposite confianga, que tenha cada uma de suas etapas aceita pela comunidade, e que gere os fendmenos que cle considera relacionados & sua pergunta. Assim, é 0 conseniso maximo Ante F a Recursvo€difecate de ‘repetido Nerepeto, lume opeasio€plinds sempre sre oman Semeate: Yaw g fam nvinn, ‘pera énptcnca reo seule da perio sation meV oat freer. OBL 16 obtido no processo de construggo de uma explicagao cientifica que responde por sua extensiva validade e pelo seu status privilegiado em nossa sociedade, néo uma pretensa referéacia a uma realidade independente ou uma acurada representagao da mesma. Maturana conta que leu na Time Magazine a seguinte historia: numa prova de fisica, © professor deu a um estudante um altimetro pediu que determinasse @ altura da torre do campus. O aluno foi a uma loja, comprou um rolo de. barbante, subiu na torre, amarrou 0 altimetro num barbante, baixou-o até a base da torre, e entio mediu o barbante: 32,50m. Reprovado! O aluno recorreu e obteve uma oportunidade de refazer a prova. A mesma tarefa the foi atribuida:

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