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Alba Zaluar “ OS HOMENS DE DEUS _ um estudo dos santos e das festas “ _no catolicismo popular 0S HOMENS DE DEUS Um Estudo das Santos e das Festas No Catoficismo Popular A dimensio reigiasa tem sido freqientemen- 16 negligenciada na maioria dos estudos que ‘ratem das classes populares no Brasil. Se & certo que seres ¢ memérias do sagrado no femergem espontaneamente na fala polltica de opetérios e camponeses, © que assistimos 2 um proceso gradus te sacionslizaplo la- izante no proletariado industrial ¢ entre os Doiastries (mais do que no campesinato), também 6 verdade que a religi8o nfo 56 im- pregna, de um mado ou de autro, 0 centro a vida social de operérios e agricultores, co- ‘mo continua sence um bom expticador cole- tivo das razbes de ela ser como & ‘Ao sistematizar @ analisar a dimentio religio- +2 dos estudos de comunidade, cujos dados constituem seu material de campo, ALBA ZALUAR reatizou uma oportuna releitura do significado religioso na vida social comunité- ria através da conjugapto dos dados ofere- cides por numerasos autores com quem Yoga. Mais do que uma releitura, porém, @ autora fevela e complete os importantes es- tutios de comunidade jé realizados, oferecen- do 30 leitor urae anélise mais abrangente dos significados socials do fendmeno religioso, Como atirma o Professor Carlos Brand30 em s2u protic, este Os Homens de Deus cans- titui um estudo de permanente atualidade ara quantos se interessam pelo ettudo da religido no Brasil e suas implicagdes socials e poltticas, Scontinus na 2? aba) OS HOMENS DE DEUS um estudo dos santos e das festas 0 catolicisma popular ANTROPOLOGIA SOCIAL . Alba Zaluar Dicetor: Gilberto Velho Protessora de Antropologio sto insrituto de Cidncias Humanes da Unicamp Historia Social da Crianga e da Faris (28 ed.) Philippe Ariés Uma Teoria da Agdo Coletiva Howard S, Becker Camavais, Malandros ¢ Herdis (38 ed.) Roberto Da batta OEE bunched ante OS HOMENS DE DEUS El ii Social ae oe cena ci : um estudo dos santos e das festas Para Inglés Ver No catolicismo popular Peter Fry | A Interpretagto das Culturas Clifford Geertz Estigma (33 ed.) Erving Goffinan © Palécio do Samba Maria Silla Goldwasser A Sociologia do Brasil Urbano Aationy e Elizabeth Leeds Cultura e Razdo Pritica ‘Marshall Sahtins Movimentos Urbanos no Rio de Janeiro Carlos Nelson F. dos Santos ‘Arte ¢ Sociedade Gilberto Velho ~ « Divergéncia (44 ed.) Gilberto Vetho Individualismo ¢ Cultura Gilberto Velho Guerra de Orixa (22 ed.) Yionne HA. Velho © Mundo Invisivet ® ZAHAR EDITORES: ‘Marta Law stro Cavaleani faria Laura Viveiros de Castro Cavaleanti RIO OF JANEIRO Des Copyright © Alba Zaluar, 1983 ‘Todos os direitos reservados A reprodugdo ndo-autorizada desta publicagio, no todo ou em parte, constitui violae0 do copyright. (Lei 5.988) ‘capa: Miciam Struchiner Slustrapao de capa: Dengadores de Mogambique (guerteiros africanos), Festa de Sdo Benedito. Nova Veneza, Goifs. Foto de Carlos Brando, diagramacgo: Jussara C. Bivar composipso: Zahar Edltores 1983, Direitos para esta edigo contratados com ZAHAR EDITORES 5.4. Caixa Postal 207 (ZC-00) Rio de Janeiro Impresso no Brasil INDICE Preficio: Sobre homens ¢ seus deuses (Carlos Brandéo) 7 Nota inirodutdria u Introdugdo 1B 1. A pratica religiosa do catolicismo popular € a mudanga social 3 1. A Religifo e 2 Linguagem Simbélica 258 1, Religigo e ideologia 28 2 Religigo e simbolos 32 IL. As Relagdes Sociais nas Localidades 38 1, Fazendas, sitios, freguesias ¢ ropes 39 2. Patrdes e padrinhos 43 3. Vizinhanga 30 4, Povoados e cidades 33 Til, Qs Santos ¢ suas Festas 58 1, As associagdes religiosas ¢ 05 samtos 9 2. As festas 65 A folis. 70;0 festeiro 72;0s autos 77 IV. Promessas e Milagres dos Santos 80 1, Introdugio 80 2. Mal e castigo. 82 Malfeito 82;Mal de Deus 84 3: Promessas a8 4. Milagre 7 Milagte e controle do indeterminado 97; legitimagto social £01; Milagreiros 103 V, Os Homens e as Mulheres de Deus VI, Conclusses, Bibliografia 107 7 6 124 SOBRE HOMENS € SEUS DEUSES Um misterioso esquecimento pereotre as paginas da maior par- te dos estudos que as ciéncias sociais do pais tém realizado acerca da pritica econdmica, do modo de vida e das represen tagGes simbolicas de grupos e classes populares no Brasil: 2 di- mensio religiosa esté oculla, Mistério nao é que ela exista, ‘que quase nunca apareca quando salta da vide social para a teoria sobre a vida social. E como se, despreocupado com a questdo da existéncia real de almas e divindades, 0 pesqui- sador nfo ouvisse operirios, bdias-frias e camponeses falando sobre almas ¢ divindades em que cotidiana ¢ desigualmente acreditam, e sem a5 quais as veres thes fica t¥0 complicado ex- plicar 0 mundo quanto nos fiea diffe! pensi-io sem 0s simbo- os e entidades — slgumas igualmente sobrenaturais — de nossas ciéneias, refiigio de nossa Fé Mas € que talvez eles nem falem, Néo raro a vontade de {que os subalternos pensem sem deuses arruma no discurso da cléncia escritos onde deuses nti existem, E como ums frapd0 da sabedoria do subaltemo esta em ndo discutir com 9 supe- Hor, a nfo ser quando indispensivel, 0 que mio perguntado nfo’ é respondido, mesmo quando faz parte do substrato da idéia que responce. E bem verdade que seres e memérias do sagrado no emergem espontineos na fala politica dos servos da fbriea ou 49 lavoura. E verdade tambére que sssstiaos a ust lento pro- cess de racionalizagao laicizante entre operdrios de industria ¢ bOias-frias, mais do que entre camponeses (proprietérios, pos- seiros e parceiros). Mas é também verdadeiso que a religiso 280 s6 entremeia, de um modo ou de outro, 0 centro da via social de operitios e lavradores, como continua sendo um bom expli- cador coletivo das razdes de ela ser como & Os Homens de Deus Hi posquisas de sobra para lembrar que alguns dos saaio- res levantes populares do passado foram surtos religiosos, re- voltas de devotos. Se as ra20e8 de tudo podiam ser encontradas na histéria profana das desigualdades entre os homens, 0 imag nirio da razo tomava sagrada a tarefa da revolt e, assim, po- ‘voava de religifo o proprio processo da histéria. H motivas de sobra para crer que hoje € preciso um grande ¢ nem sempre cientifico esforgo de imaginagao criativa para separat do tra- balho politico das classes populares 0 trabalho pastoral das co- munidades eclesiais de base ¢ a presenga de setores de vanguar- dds ds igroja Cat6lica. Enquanto uma face da ciéncia esquece de ver no paleo do que acontece atores que agem porque $0 também sujeitos religiosos, as policias do Norte prendem pos- seiros devotos ¢ padses miitantes e, em ano eleitoral, politicos recebem tanto orixés quanto o Espirito Santo & frequentam quantas festas de igreja podem, pois sabem —sem nunca terem lido Marcel Mauss — que o sagrado é sotial e entre nés anda cheio de poder. Sabem que Deus pode nfo existir, mas terrei- 105, igre e figis sjudam a decidir eleigoes. ‘Nem que seja pela porta dos fundos, a sociologia ea an- tropotogis redescobrem aqui e ali a dimensao religiosa da vida social. Basta recontar 0 niimero e avaliar & qualidade de teses, livros artigos recentes sobre o assunto. Algumas das pesqui- sas mais rotdveisfeites no Museu Nacional, de onde saiu 0 es tudo pioneiro de Alia Zaluar, tem a ver com a questao religio- sa. Basta verificar também 0 fendmeno da criagd0 de centros cientificos de estudos da religifo e 2 freqiiéncis com que se realizam seminérios, congress0s ¢ simpésios onde sfo cada dia ‘mais costumeiros temas Como as relagdes atuais entre a Igreja 0 Estado, os sistemas populares de trabalho religioso, a8 for- 1mas de culto afro-brasileias e a “explosio” pentecostal. No entanto, j que nos movemos num terreno de misté- rios, é preciso reconhecer que tanto entre os pesquisadores do passado quanto entre 08 de agora ha uma estranha despropor- ‘$40 na escolha das questes pelas quais se espera que 0 conhe- Simento do religioso ajude a explicar o Social. Alguns exemplos: hd mais estudos, e de maior fOlego. sobre trés ou quatro surtos ‘messidnicos e/ou milenaristas do passado do que a respeito das, Telagdes atuais entre 0 operariado e a religio. E as religides. Né mais pesquisas sobre algumas fugidias formas religiosas Sobre Homens e seus Deuses afro brasileiras do que a respeito da vida cotidiana do catolics- mo popular. Sabemos como dimensdes socisise simbélicas par tieularmente raras e estranhas do trabalho religioso existem ¢ se articulam, mas falta explicar como a religigo comum habita 4 vida e 0 imagindrio das pess0a5 na sociedade. 0 politica que existe no que é profano pode apresentarse como & na pesqui- 1 social, mas 0 social que hd no sagrado correga 2 sina de pare- fer que nfo existe quando deixe de ser “puro”, estranho ou pitoresco, Ha um mérito nos “estudos de comunidade” de que se serve Albe Zaluar em Os homens de Deus. Bles foram posti- velmente um primeiro momento em que @ religiZo, liberteda de ser um desenraizado “folelore dos subalternos”, libertouse também de ser parte invisivel da historia dos senhores, ou dos momentos em que 2 histdria dos povos que habitaram o pais se fez contra eles. Livee de ser a excegfo da cultura e exee- Gao ne historia, a religifo surge na praga ¢ no quintal. Surge fos sinais essenciais e corriqueiros da vida, como formas de ferenga € culto, do cotidiano ov dos dias de festa da comuni- dade. Fora o excelente trabalho jé realizado de descriglo dos sistemas religiosos das sociedades tribais, nos estudas de come ridade pela primeira ver € feita a etnografia da vida religiosa dda sociedade regional, seja como um dos capitulos da organiza- 80 social e simbdlica de Iré, Craz das Almas, Itaipava, Minas Velhas ov Piagabucu, seja como o sistema de trocas escolhido para estudo, como em Santos e visagens, de Eduardo Galvéo. HS um mésito mais atual em Os homens de Deus. Ao reunit "2 parte religiosa” dos estudos de comunidade, cujos Gados constitu’ como seu material de campo, Alba Zaluar res liza proveitosa releitura do significado do retigioso na vida so- cial comunitaria, através da conjugagao dos dados oferecidos pelos autores com quem dialoga. Mais que ume resenhe, alguns anos depois, dos varios estudos de comunidade que depress 2 antropologia de hoje quer esquecer, Alba Zaluar desvenda entre Svas passagens sobre a questdo da vida religiosa 0 que dei- Xou de ser feito neles. Assim, ela rearticula o que é descrito pa- Ta oferecer a andlise de sigaificados socivis que, isolados, % GesorigOes anteriores nfo pretenderam desvendar: as relagSes tentre simbolos, representagbes sociais ¢ religigo; a estrutura 1425 articulagbes dos espagos e categorias de sujeitos através dos Os Homens de Deus quais, entre crengas, cultos, e festas, flue, por debaixo das fo las da f&, as do poder e das divis6es do trabalho e de outros se- tores da vida Social; a onganizagdo interna e 0 processo do tra balho religioso do campesinato brasileiro; os sistemas — muito mais complexos e diferenciados do que se imagina — do ima Binario popular catdlico. Nada falaria melhor sobre o valor da experigncia de re leitura Feita por Alba Zaluar a respeito da religifo do campesi- nato brasileiro do que a insistente procuce que Seu trabalho teve por toda parte, entre outros pesquisadores no sé de reli- sido no Brasil. Uma procura de que fui testemunha e que aca- bow sendo um sinal a mais da urgéncia de que a tese finalmence ‘aparecesse como um livro, Um livro por certo to atual agora {quanto no tempo em que foi escrito. CARLOS BRANDAO Professor Adjunio de Antropologia ICH, Unicamp 10 NOTA INTRODUTORIA Esta tese foi apresentada em fevereito de 1974 como disserta- gf0 de mestrado no Museu Nacional. O perfodo de sua geste G40 foi de grande efervescéncia intelectual ¢ de notével parali- sago politica, Aos colegas ¢ professoret que, juntos comigo, colocavam seu entusiasmo em interminéveis discuss6es ¢ semi- nirios, vai o meu crédito por terem construfdo 0 clima neces- sario de dividas e de agueadas curiosidades. Agradecimentos especiais vo para Allan Shuttleworth, Clyde Mitchell, Peter Worsley, Brian Roberts, que iniciaram 0 penoso trabalho de desmantelar minhas certezas e me langas no fluxo dos proble- mas tedricos. Roberto Cardoso de Oliveira e Roberto Da Matta continuaram esse trabalho no ritmo acelerado do inicio da dé- cada de 1970, Como meu orientador de tese, Roberto Da Mal- ta teve ainda a gentileza de ler ¢ comentar os trabalhos iniciais, © a redagto final desta tese. Luis Antonio Machado da Silva leu a versso inicial do Capitulo TV ¢ me langou novas questBes. Moucir Paimeira generosamente me fez indicagdes bibliografi- cas importantes. ‘A pesquisa foi feita no periodo em que recebia uma bol- sa de estudos conivedia pelo Consetho Nacional de Pesquisas. © Prof. Manoel Diegues J1., diretor do Centro Latino-america- no de Pesquisas em Ciéncias Sociais, franqueou-me o uso desse centso no periodo da pesquisa. © Capitulo VI ndo estava inclufdo no plano original da tese, pois foi escrito dois anos depois, quando eu ja desfrutava do estimuo intelectual de meus coleges do Unica. Cito anos se passaram, O que me leva a publicé-la tanto tempo depois é a insisténcia de alguns amigos, como Carlos Rodrigues Brando, Guillermo Rau) Ruben, Gilberto Velho " (Os Homens de Deus @ Roberto Da Matta, que nunca entenderart por que nao a pu- bliquei. Explico. Por preguiga de the tirar 0 tam académico. O primeiro destes amnigos acabou me convencendo de que talvez 105 leitores mais interessadas no assunto descobrissem as iro- nins, diividas e entusiasmadas descobertas por debaixo deste tom. A ele, pelas insistentes palavras, e a Gilberto Velho, pelos atos coneretos, vai meu malor agradecimento, seguindo-se os demais. ‘Meus filhos Ricardo e Marilia comportaramse brava- mente durante meus constantes perfodos de ineficiencia ma- tema enquanto escrevia as linhas que se seguem. Por té-los feito suas relutdntes e, as vezes, indignadas vitimas, esta tese tem grande divida para com eles. Campinas, outubro de 1982 2 InTRODUGAO 1. APRATICA RELIGIOSA DO CATOLICISMO POPULAR E AMUDANCA SOCIAL ‘A presente tese foi concebida a partir de um estudo do movi- ‘mento messiénico do Contestado, a ser apresentado na Univer- sidade de Manchester, quando me deparei com a necessidade de entender 0 catolicismo popular a fim de tornar possivel a interpretago de certos fatos da movimento. Minha preocups- {¢80 nfo estava centrada nas causas sociol6gicas que explica iam a eclasfo do movimento, procurando relacioné-lo a gran- ides. crises SOcials provocadas por formes, pestes ou guerras ou ppela desagregagdo dos lagos soviais que sustentam sociedades Eamponesas. Os diversos modelos usados nesse nivel de anilise deixam de lado as perguntas que buscava responder: por que o pfotesto ou desespero coletivo resultante dessas crises assumiu 2 forma de movimento religioso milenarista ¢ messidnico? ‘Com essa preocupasio, iniciei um estudo do catolicismo popular, que constitufa a maneira mais generalizada de conce- ber o mundo ao meia rura! brasileiro. A anélise colocava-me fem outro nivel: tratavase de explicitar certos aspectos do sis- tema de representagdes, crengas, valores ¢ idéias, expressos nfo somente através de discursos propriamente ideol6gicos, mas prineipalmente através de ages rituals, que me dariam as Chaves para a compreensio de sua I6gica. Isso se entende pela inexisténcia de uma teologia do catolicismo popular ov de teblogos que formulem sua teoria de maneira relativamente coetente numa obra letrada. Os devotos dessa religifo nfo ‘ cancebem como teoria pura, destigada das coisas terrenas; 0 catolicismo popular € uma religifo voltada para a vida aqui na 13 Os Homens de Deus Testa. Nesse sentido, & uma celigido prética e é sua prética que pretendemos estudar. Considerei, portanto, a pritica religiosa local, baseada prineipalmente na execugo de promessas e na realizaggo de festas a0 santos, como uma linguagem que expressaria as idéias dos agenies a respeito da oposico e complementaridade existentes entre as pessoas ¢ entre os diversos grupos sociais. Estava especialmente interessada em suas concepeBes sobre a5 relagdes entre as classes sociais que compunham a sociedade local. © primeiro problema era entender como os “caboclos” interpretavam, por melo das categorias de percepea0 do ca- tolicismo, os acontecimentos ordindrios ¢ extraordindrios de sua vida quotidiana ¢ como essas intespretacdes eram zemeti- das 4 quebra das regras costumeiras de relacionamento entre a5 pessoas ¢ grupos, O segundo problema era desvendaratravés da andlise de certos rituais, esses padres de relacionamento. A anilise de certas festas de Santos que, enquanto tituais, repre~ Sentariam ¢ reconstituisiam, no plano simbélico, # unidade imaginada entre as classes sociais constituiria o principal ins. ‘trumento para isso. Mas a propria forma pela qual se concebia 4 dependéncia dos homens em relagfo 20s santos guardaria cer~ ta homologia com a dependéncia dos “eaboclos” para com seus patroes. Para realizar essa pesquisa, utiizei estudos de “eomuni- dades” rutais, em voga entre antropélogos e sociélogos brasi- feiros nas décadas de 1940 € 1950, que apresentavam diversas vantagens com relag£0 aos estudos “folcl6ricos” do catolicis- mo popular. Primeizo, os estudos de comunidade pretendiam ser descrighes completas das localidades focalizadas, isto é, ofe- teciam dads sobre-diversos aspectos da vida social local, per- mitindo evitarse a descrigfo “folclorica” dos ritos religiosos fora de seu contexto social. Em segundo lugar, embora geo- graficamente separades, as “comunidades” foram estudadas entre 0s anos de 1940 ¢ 1953, quando importantes mudangas ‘ocorriam no meio rural brasileiro, tanto na esfera da produgo econdmica quanto na da religifo. Em terceiro lugar, por esta- xem geograficamente separados e por testemunharem essa tran siglo de vm Brasit rural antigo para novas condigoes “moder. nas” de vida, esses estudos ofereciam material de indiscutivel qualidade para se tentar uma comparapo orientada pels pert- 6 Introdugo pectiva tebriea que procuca articular os fen6menos ideotégicos, ai inclu{da a religido, aos outros niveis da estrutura social. Des. sa forma, seria possivel superar as teorias regionalistas ¢ difu- sionistas a respeito disso. Entre 0s diversos estudos abordados, escolhi apenas cin- co para servirem de base d argumentacS0 seguida nesta test. Eram cles que apresentavam as descrigdes mais completas da vida social das “comunidades”, especialmente das prdticas cell. siosas locals: 0 estudo da “comunidade” amazonense de I, feito por Eduardo Galvao (1955); dois municipios de S40 Pau fo ~ a "comunidade” de Cruz das Almas, estudada por Donald Pierson (1966), ¢ a de Iaipava, estudada por Emilio Willems (1961); um ovtzo no serto da Bahia — Minas Velhas —, pes- ‘quisado por Marvin Harris (1956), e, finalmente, dois trabalhos de Alceu Maynnard Araujo abordando diferentes aspectos da vida social de um mesmo municipio — Piagabucu —, 0 primeito fomecendo dados gerais sobte a “comunidade” (1961) e 0 se- gundo, mais extenso, sobre a5 concepe6es religiosas localmente sstociadas & medicina (1959) Neisas “comunidades”, foram assinaladas diversas mu- dangas nos padres tradicionais de devogdo aos santos, devo- fo essa que existia em todos os municipios mencionados. Nas “cidades” (nuiceos urbanos dos municipios), as irmandades te- ligiosas leigas tornavam-se mais € mais controladas pela hie- rarquia da Igreja Catélica e iam pesdendo a importéncia que tinham como congregadores das populagBes locais. Santos des- conhecides no meio rural eram festejados nas cidades e as ir- mandades, quando ainda existentes, em vez de congregarem e representarem as locilidades, passavam a representar divisBes as clastes sociais af presences. Nas cidades, também as festas realizadas para homenagear certos santos de devogdo local dei- xavam de seguir a5 normas costumeiras: 0 grupo de misicos devotos do santo (Folia) nfo mais percorria a regido circunvi- Zinha ecolhendo dédivas para 0 repasto coletivo e a distribui- $0 gratuita de comida, os quais estavam sendo substitufdos por barraquinhas vendendo “comes e bebes” e pelo leildo de prendas, Nao havia mais bailes nem folguedos, que eram vio- lentamente criticados pelos padres e pelos que compartilhavam sua doutrina, os quais viam nesses eventos uma profanagdo da solenidade sagrada. As procissOes e 25 novenas dominavam as 6 Os Homens de Deus festas da fgreja. For fim, ab promessas, que eram sempre feitas ‘em fungdo das festas tradicionais, pareciam estar também mu- dando de catiter: no contexto “urbano”. falavase mais no uso de ex.votos ¢ nas romarias feitas as cidadessantutios para pa- at promessas Essar mudzngas, segundo 05 auioses dos estudos, acom- panhariam 0 contraste entre as “cidades”, micleos urbanos dos municipios que ngo excediam os 1 mil habitantes, ¢ 2 rea rural circundante. Uma das explicagGes para isso mais enfatiza das por diversos autores seria a de que a atuagio da Igteja, vi- sando caracterizat a prética religiosa popular como profana ¢ assim proibila, teria finalmente desagregado esses padres tra- dicionais, substitvindo as atividades “profanas” pelas “sagra- as", isto é, aprovadas pela liturgia catélica. Ao mesmo tempo, a agdo de catequese operaria # substituiggo das catogorias ¢ concepetes religiosas populares pelas do catolicismo oficial! Entre os municipios, no entanto, existiam diferencas quanto ao grau em que essas mudangas se faziam sentir. Em ltd, por exemplo, as irmandades religiosas ¢ a festa do santo popular = Sao Benedito ~ continuavami a ser importantes no nicleo urbano. Na cidade de Itaipava, a festa do Divino Espirito San- to era igualmente importante, tendo voltado 2 folia a pescosser a regio ¢ a haver, conseqiientemente, dist:” ~- gratuita de comida durante as festas, quando fot tevantada ume proibicao govemnamental nesie sentido e amenizada a oposigao da Igreja. Na cidade de Minas Velhas, as irmandades no sf0 importantes © Mesmo assim, alguns autores admitem que esta expiicagZo seria in- sulicent. ‘As tsansformagées ccorridas na putica religion local nfo Jerlam entendidas apenas Como resultante da inucncia dos padees os aicleos wbanot, onde se localizava sede da pas6quia. Gulvio sugere ‘que a diferenas entre estrutura soci! da cldade e 9 do pavoado rund Jeriam necessiras pata entendetmos estas mudanges, mat nfo elabora 43 questio (Galvdo, 1955:4-9). Wille fala numa rorrespondéncia entse ® proceso de secalarzagfo,ocorsio em parte Pela agfo da izes, 05 rocesos depominados de “desapiepapao" © de “indivduatizact® gue 4 desenvolviam em todas as des da vie Soci. Mat, na introduggo de teu tabatho, cle proprio lnvanta divas acerca da relagdo entre esses procesios « do carter dos mesinos sem contudo explorat suas ipl Sag6es teéticas no decorrer do trabatho (Willems, 1961: 915). (W. tb flares, 19562208), 16 Introdugso ©, 20 contrério do que acontece na rea rural do municipio, a5 festas de santo perderam quase todas as caracteristicas tradi cionais. Nzo hé mengéo de irmandades importantes na orgi znizaggo da “comunidade” de Cruz das Almas e tampouco de festas religiosas populares tradicionais. Nem na cidade nem ma Area cural a8 festas seguiam os padstes tradicionais de coleta de contribuigdo para a festa ¢ a distribuiga0 de comida durante os festejos. Habitantes do municipio compacecer 2 festas 122- lizadas em cidades vizinhas, especialmente em Pirapora, para onde vao também em romaria Esses dados parecem indicar que, de fato, é insuficiente relacionar a ruptura dos padtdes tradicionais da religiso popu- lar & intervengfo de hiererqula eclesiastica da Igreja Catélica, possuidora de uma concepego propria do “sagrado” e da litur- fia adequada para a homenagem aos santos que se baseava nt teologia oficial da Tgreja. Is50 fica ainda mais evidente quando percebemos que outras mudangas socials signifieativas ocor- siam nesses municipios, conforme vetemos no proximo cap tulo. Em Cruz das Almas, por exemplo, o municipio do qual desaparecen 2 pritica tradicional de devopo a0s santos, a relagtes dos fazendeiros com os lavradores que trabalhavam suas terras jd no ets mais vista por estes como sendo relagbes patemalistis, de prateclo ¢ de lealdade pestoais. Os lavradores, 40 Se comparatem aos operdtios de Sto Paulo que faziamm gre. ves e recebiam aumento de salérios, reclamavam da exploragio que sofriam (Pierson, 1966: 153). Por outro lado, a comercia- izagio dos produtos agricolas nfo era feita, como em Ita, por exemplo, pelo menos para os sitlantes, por intermédio de um patra que monopolizasse toda a transa¢o comercial com eles. Negociantes vindos de grandes cidades, motoristas de cami- ho ou os préprios tavradores viajando para os grandes cen- tros urbanos se encarregavam de colocar os produtos no mer cado. E era 0 eilcvlo feito pelo favrador de que saftas teriart (© melhor prego no mercado que determinava as plantagdes (ibidem:271). Desaparecia igualmente o costume de coopera: ‘fo vieinal para certas tarefs — 0 mutiréo. ‘Mas essa comparagifo entre os diversot munic{pios nfo se poderia fazer sem problemas, Esses municipios foram estud dos por divertos autores que enfatizavam diferentes aspectos, tomando seus estudos mais ricos em algumas éreas que era ou: 7 Os Homens de Deus tras, As lacunas de informagoes dai provenientes cabriam fatos importentes pera desenvolves minha argumentagdo dentro da peispectiva tebrica em que me coloquet. Por isso, tive de recor- rer a estudos especificos, como por exemplo sobre 0 compa- drio, sobre 0 modo de produgto da plantation tradicional e sobre as festas tradicionais, a fim de complementéles Embora 0 presente trabalho mio esteja focalizando os estudos de comunidade em si, mas antes a [dgica do catolicis- mo popular que se pode extrair dos dados oferecidos por eles, € necessério explicitar alguns dos pressupostos teéricos que conduziram suas pesquisas. Néo pretendo nem uma avaliagto, nem uma sociolagia do pensamento de seus autores, mas sim- -plesmente marcar os pontos em que minha perspectiva tebrica deles diverge ¢ as possiveis dificuldades resultantes do uso de seus dados. Em ptimeiro lugar, a preocupagto bésica desses autores parece estat em assinalar o contcaste rurel/urbano dentro dos municipios tomados como unidade de andlise, assim como ca- racterizar a vida social af encontrada como sendo “tural” {tar- bém “folk”) ou “urbana”. Para isso, orientaramse pelos estu- dos clissicos da urbanizago, especialmente referidos a obra de Redfield. Nesses estudos, tratou-se da patsagem de um mundo rural para um mundo urbano, colocados num continuo, a quaf 3e teria desenvolvido através de um processo de desorganiza- 0 social, de quebra dos padrées coletivistas ¢ de transfor- magdo das relagbes face 2 face, pessoais ¢ intimas, em relag6es impessoais e distantes, Nossos autores também falavam da de- sorganizago social, da individuatizagao e da secularizacto sem- pre presentes nos ndcleos urbanos dos municipios por eles es- tudados, mas 20 mesmo tempo pretendiam definir o caréter — uurbano ou rural? — da “comunidade” como uma todo. Ao fazer isso, utilizaram critérios de classificagao bastante diferentes, pois enfatizaram diferentemente as caracterfsticas urbanas. AS. sim, Cruz das Almas e Piagabugu foram classificadas como ru- sais pela ausEncia de alternativas culturais & cultura “Yolk” ou “ristica, onde ocupavam lugar privilegiado & devogso 0s san- 08 a5 crencas no sobsenatusal (Pierson, 1966; Araujo, 1961) Minas Velhas foi considerada urbana pelo indice de especiali- 2a¢f0 profistional e de divessificagfo de seus habitantes, bem como pela existéncia de um ethos urbano de distinggo do am- 8 Introdugso biente rural e de desprezo pelo mesmo (Haris, 1956:22.25); aipava, por sua vez, foi considerada rural por continuar atividade agricola sendo @ principal para seus habitantes (Wit- Jens, 1961) ‘Mas fol 0 proprio Willems que apontou as principa dif. culdades em se entender a mudanga com base nesse arcabougo tebrico. O bias resultante ¢ 0 de se imaginar um mundo rural coletivista, sem conflitos socisis, com uma estrutura sactaliza. da, por contraste com um mundo urbano desorganizado, indi- viduatista e confitivo. Mas, diz ele, nto se pode conceber “um ‘matco zero para essas comopbes sociais que substituiriam uma existencia comunitdria, isenta de discdrdia interna ¢ mudanga cultural, por uma sociedade definida negativamente™ (Willems, 1961:11), Acrescentese a isso que tanto o mundo urban ‘quanto © rural si organizados em coletividades segundo cer tos prinefpios diferentes, mas que nfo excluem 0 cantflito em nenhum dos casos. A pesquisa deveria justamente focalizar es+ s€8 prinefpios de organizagéo diferentes nos contextos urbano ¢ rural. E, mais sinda, esses principios de oxganizaggo poder remeter a sistemas econdmiicos distintos que sobrepujém 0 meto contcaste urbanojrura). O maior problema sentido na anilise dos dados oferecides por esses autores reside no fato de que as caracteristicas dessa nove Sociedade urbana no fo- ram pensadas com relagdo a existéncia de uma ordem social capitalista que nelas se desenvotvia, mas que se estendia além delas, em que operavam novas relagSes sciais, novas formas de controle © de organizagao entre as pessoas. Os dados que aptesentaram, no entanto, apontam para transformagBes ocor- ridas no campo que podem ser entendidas como a extensfo dessa ordem social 20 meio rural, mostrando que 0 contraste modo de produgio capitalista/modo de produgéo da plunta- tion tradicional & camponés nfo se sobrepbe a6 conteaste ur- banofrurl? A énfase deste estudo no esté sobre 0 contraste usbano/ rural propriamente, quer dizer, 0 contraste entre o niicleo cen- FG teimo modo de produgdo aqui € empregady em seu stalido Into, ‘que se sefere 3 sstrutura social como um todo, com seus diversos niveis (econsmico, politico e ideolégico) articulados entre sh 19 Os omens de Deus tral do municipio ¢ a area rural ciccundante, ou entre essas pe- quenas cidades e as grandes cidades da regido, mas tim sobre a tuptura das relacBes tociais que ocorria também nas éreas 1wals, com a transformagho das selapbes de patronagem ¢ de dependéncia pessoal entre os que de alguma forma possufam a terra e os que nela trabalhavam. As condigdes de vida simila- res em {odos os municipios estudados, que permitem fezerte ‘uma comparago entre eles, s80 devidas em parte & manuten- 0, em todos eles, de aspectos tradicionals da “sociedade ru- ral” ou da “cultura folk”, por sua vez. causada pelo fato de o ‘solamento dessas dreas nfo se ter quebrado totalmente e, em conseqiéncia disso, seus habitantes continuarem “privados” dos recursos culturais © materiais dos grandes centros urba- ‘nos do pais. Mas, para as finalidades do presente estudo, so a5 relagBes pessoais de dependéncia que ligavam os pequenos sitiantes, roceiros, agregados, attendatérios, trabalhadores ru- rais ou coletores de borracha aos fazendeiros ou comerciantes, geralmente denominados patr6es, que constituem o ponto ne: wrilgico da questto. Essas relagbes assimétricas que ligavam pessoas pertencendo a classes sociais diferentes por lagos de dependéncia pessoal caracterizaram a vida rural no Brasil até uum passado bem recente, Dado 0 sistema de distribuiggo desi- gual do poder e dos recursos, em especial a terra, os dependen- tes procuravam obter certas vantagens através de uma relaco pessoal com os proprietérios de terra ou patrOes, em favor de quem o sistema funcionave, Em troca de seus sesvigos ¢ de sua lealdade pessoal, eles esperavam obter protegd0, ajuda especial Ou favores nos contratos de boca feitos com os patrOes, que thes garantiam o trabalho ¢ alguma segucanga no mundo in- certo © de recursos fechados em que viviam (cf. Hutchinson, 1966; De Kadt, 1970:9-33). ‘S40 as diferencas nos padroes de patronagem entre os municipios mencionados, ou a ruptura deste padrao com cer- 425 personalidades socizis como 0 fazendeiro, que n08 forne- cem um termo de comparagdo para comprovarmos as teorias, antropolégicas que articulam a religiSo com o restante da es- {eutura social. Mas, néo estando interessados em marcar essas descontinuidades no proprio meta rural, noss0$ autores, sem deixar de mencioné-las, dificultam a comparagéo por disso- ciarem as mudangas religiosas das outras mudangas e por to- 20 Introdugio matem, como unidade de anilise, 0 municipio como um todo, Assim, no marcam a5 Seas especificas dentro do municipio fem que essas transformagbes jé haviam ocorrido de modo ra: dical e onde é legitimo suspeitar que se abandonavam as ati tudes religiosas tradicionais. Isso seré analisado no segundo capitulo ‘Nio estou querendo insinuar, entretanto, que a mudanga na pratica religiosa tenha seguido, de maneira imediata ¢ mecd- nica, as demais mudangas sociais. Estd fora de duvida que ela foi agenciada pela Igreja e que sua agdo fot erucial no processo. © que quero afirmar € a impossibilidade, dado o material de ‘que dispunha, de refinar a comparagdo e de precisar 08 proces- 505 complexos de articulagfo entre a pritica seligiosa ¢ a préti- ca Social como um todo, entre o nivel ideoldgico a que a pri- meita pertence ¢ 08 outros niveis da estrutura social. Em segundo [ugar, cofoca-st em questo 0 proprio con- crite de catolicismo popular ou folk, que em ultima andlise vem @ ser a questo de que classes sociais compartilhavam as mesmas préticas ¢ crengas religiotas. Willems, por exemplo, menciona 25 diversas situagGes em que uma camada da popula- ¢i0 Se auto-identificava como “povo”, infelizmente sem expli- citar que categorias de pessoas af se inclufam. Por vezes, como na realizacfo da festa do Divino, a festa do povo, essa categoria se opunlia a lgreja, que tina outra festa ~ a do Sagrado Secra- mento; outras vezes se opunha a elite urbana, que menospre- zava os bailes e crendices populares. Na elite urbana, 0 autor inclufs tanto os altos funcionérios quanto os grandes comer- ciantes fezendeiros que moravam na cidade, o que sugere haver certa divisio de classe entre os que seguiam a teologia oficial da Igreja e 0: que praticavam o catolicismo popular. ‘Mas este proprio autor menciona intimeras vezes a participagéo

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