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CONHECIMENTOS TRADICIONAIS NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA:

UMA AGENDA DE RESISTÊNCIA E CRIATIVIDADE

José Jorge de Carvalho

I. EUROCENTRISMO COLONIAL E DESQUALIFICAÇÃO DOS


CONHECIMENTOS TRADICIONAIS

Mais do que nunca talvez em toda a história da América Latina, vivemos um


momento de questionamento sério e profundo do modelo cultural eurocêntrico que tem
nos caracterizado desde os primeiros tempos da colônia. A formação das sociedades
coloniais no Novo Mundo se deu sob o signo da desqualificação radical de todos os
saberes dos inúmeros povos originários do nosso continente. A chamada “conquista” da
América Espanhola (ou o chamado “descobrimento” da América Portuguesa) consistiu
no trabalho negativo de converter as centenas de povos diferentes que viviam nessas
latitudes em “índios”. O termo índio foi logo em seguida associado à idéia de
“selvagem”, isto é, aquele que vive na selva e portanto não possui nem cultura nem
saber sistematizado ou relevante; ou então à idéia de “bárbaro”, isto é, aquele que segue
padrões culturais inaceitáveis, porque não civilizados. No caso do selvagem, a
desqualificação se deu pela infantilização: tratava-se de inculcar na sua mente os valores
e saberes ocidentais para humanizá-lo pela primeira vez. Já no caso do bárbaro, estigma
que alcançou a maioria das populações originárias do Novo Mundo (principalmente
quando começou a ficar claro para os invasores que elas resistiriam ao projeto de
dominação que lhes havia sido imposto), a tarefa civilizatória passava por uma dupla
intervenção desqualificadora: desacreditar os saberes e valores que eles praticavam para
logo “re-humanizá-los” (à força, basicamente) através da imposição dos saberes e
valores ocidentais dominantes.
O termo “índio” representou, assim, o primeiro sinal de uma perda ou
sufocamento dos referentes simbólicos próprios dos grupos humanos com quem os
espanhóis e portugueses se encontraram no início da colonização. A menos de 50 anos
após o início da subjugação (ou indianização) dos grupos originários do continente em
que vivemos, os colonizadores europeus começaram a trazer também milhares de
africanos escravizados para o trabalho forçado, anos após ano, por mais de 300 anos
(chegando a mais de 12 milhões de pessoas). Como no caso dos povos originários, as

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populações escravizadas pertenciam a centenas de nações diferentes que viviam por
séculos em seus territórios tradicionais no interior do continente africano. A
desqualificação dos africanos escravizados (tanto em sua sabedoria quanto em sua
humanidade em geral) foi, de início, ainda mais dramática que a dos indígenas, visto
que eles tiveram muito menos elementos próprios em que se apoiar para iniciar um
movimento mínimo de resistência contra o horroroso regime a que foram submetidos
contra a sua vontade.
As histórias da colonização desqualificadora e do genocídio físico e simbólico,
de um lado; e da resistência cultural às violências e repressões, de outro lado; e
finalmente, da revalorização dos espaços simbólicos de autonomia próprios, foram
certamente específicas para cada uma das centenas de nações indígenas. E todas elas,
por sua vez, foram diferentes das histórias de dominação e resistência vividas pelos
escravos e ex-escravos africanos nas Américas.
As nações indígenas contavam pelo menos com vários conhecimentos úteis para a
sua sobrevivência diante de uma situação de tamanha adversidade, como os detalhes da
fauna e da flora e a familiaridade com o território em geral, cuja dimensão sagrada
tentaram preservar, apesar da violência simbólica própria da colonização. Já os
africanos escravizados tiveram que refazer quase inteiramente seus saberes e códigos
culturais de origem, desenvolvendo duas estratégias básicas que distinguem as tradições
culturais da Diáspora afro-americana até hoje: ou a fuga do regime escravo, formando
as sociedades quilombolas (modelo que existiu simultaneamente em todos os países
escravistas do Novo Mundo desde o séc. XVI); ou a sobrevivência no interior do regime
escravista, negociando expressões simbólicas com os opressores brancos ocidentais e, a
partir daí, recompondo e recriando saberes próprios que lhes permitiu criar tradições
culturais que distinguem as comunidades afro-americanas até hoje.

Todos esses grupos humanos encontram-se agora em um processo intenso de


retomada de seus conhecimentos e valores culturais e sociais tradicionais para afirmá-
los diante da sociedade nacional em igualdade de condições com os conhecimentos de
origem européia, dominantes e utilizados para representar a nação brasileira, tanto nos
espaços internos como nos externos. A presente oficina se insere precisamente dentro
do espírito dessa retomada pela dignidade de todos os saberes e pela equanimidade na
representação cultural.

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Mesmo sob o signo da resistência, da recriação e da hibridação cultural
constante, nossas sociedades se consolidaram, até muito recentemente, como sociedades
inteiramente eurocêntricas no modo como as elites sociais, econômicas e políticas
projetaram os nossos Estados. Nossas instituições públicas de maior prestígio, tais como
museus, universidades, academias, estão marcadas pela afirmação da cultura ocidental e
pelo recalque das culturas indígenas e africanas. Por outro lado, o que caracteriza o
momento atual, de praticamente todos os países da América do Sul, é o processo de
retomada dos saberes artísticos e científicos próprios dos nossos povos tradicionais.
O horizonte de justificativa moral da colonização e da escravidão foi justamente
repetir incessantemente que os indígenas e os negros eram ignorantes, incapazes,
incultos, embrutecidos. Pior ainda, que desconheciam as formas “superiores” de cultura,
que não tinham arte sofistiocada, que não haviam desenvolvido conhecimento
científico; que eram supersticiosos em lugar de religiosos e que suas formas de
espiritualidade eram inferiores, primitivas, fetichistas, animistas, daí a necessidade de
sua conversão (forçada, claramente) ao catolicismo e a coetânea repressão, que durou
séculos, de suas formas tradicionais de religião e de espiritualidade. As tradições
xamânicas, as bebidas e formas próprias de alteração da consciência e os complexos
rituais indígenas foram perseguidos pelos sacerdotes (perseguição que continua até hoje,
em muitas nações indígenas). E no caso dos afro-descendentes, as religiões de matriz
africana também foram perseguidas, a ponto de que até trinta anos atrás os terreiros de
candomblé, xangô, batuque, mina e demais formas de cultos afro-brasileiros eram
obrigados a retirar um alvará da Delegacia de Jogos e Diversões a cada vez que
realizavam uma festa pública para os deuses africanos e para as entidades dos cultos
sincréticos (como a umbanda, a pajelança, a jurema, etc).
Abolida a escravidão e declarada a República, a natureza dessa desqualificação
cultural e simbólica generalizada continuou sem maiores mudanças até quase a metade
do século XX. Na verdade, pode-se dizer que ao longo de todo o século passado, a elite
brasileira negou os conhecimentos tradicionais de outras populações, em bases
semelhantes. As comunidades quilombolas, os camponeses, os povos da floresta
(ribeirinhos, extrativistas), os ciganos – enfim, todos os grupos detentores de vários
tipos de saberes e artes tradicionais (ou não-acadêmicas) foram “folclorizados” (em um
sentido paternalista e condescendente do termo, sem querer aqui criticar o empenho
sincero e mesmo erudito de muitos pesquisadores que se definem como folcloristas)
segundo entendimento da cultura erudita. Suas práticas culturais e seus saberes

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tradicionais foram definidos como algo que remetia ao nosso “passado”, que nos
reconectava com nossas “raízes”, porém sempre avaliados como distantes e subalternos
em relação à modernização cultural que se impunha (e ainda se impõe até hoje) como
meta para as instituições oficiais do Estado.

II. RESISTÊNCIA DOS POVOS TRADICIONAIS E


INCLUSÃO CONSERVADORA DAS ELITES

Um primeiro momento de revalorização dos conhecimentos tradicionais das


nossas comunidades deu-se através de uma conscientização, de uma parte da elite
intelectual branca dominante, de que esses conhecimentos são parte integrante e
constitutiva das nossas nações. Assim, desde o início do séc. XX, assistimos a um
movimento constante, ainda que minoritário, de “coleta”, “resgate” e incorporação das
culturas indígenas e africanas nos arquivos, museus e instituições de ensino e pesquisa
dos nossos países. No caso brasileiro, as décadas de trinta e quarenta do século passado
foram emblemáticas dessa primeira revisão do eurocentrismo exclusivo que ainda hoje é
predominante na política cultural da nossa elite estatal. Esse modelo de incorporação da
diversidade cultural do país admitia o símbolo indígena ou africano, porém sempre
absorvido pelo paradigma epistêmico ocidental. O intelectual branco eurocêntrico
avaliava a maior ou menor importância dos conhecimentos tradicionais não-ocidentais
de acordo com os parâmetros artísticos e científicos ocidentais. Em seguida, procedia a
incluí-los no rol dos símbolos culturais que ele definia como “nacionais” ou meramente
“regionais” a partir dessa avaliação, da qual os artistas populares estavam previamente
excluídos.

O movimento modernista no Brasil foi paradigmático dessa absorção seletiva e


excludente. Os conhecimentos tradicionais eram documentados e mesmo digeridos, mas
os criadores e detentores desses conhecimentos continuavam de fora do processo
decisório e também do acesso pleno aos bens e serviços que o Estado concedia a esses
intelectuais sensíveis à diferença estética cognitiva e simbólica até então negada. Esse
primeiro modelo de incorporação da diferença cultural pode ser caracterizado como um
modelo fundamentalmente monológico de conceituação e promoção da diversidade

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cultural. Dada sua longa história, podemos identificá-lo ainda hoje em muitas políticas
de relação com as comunidades tradicionais em que os seus conhecimentos são
valorizados e erigidos à condição de emblemas ou ícones nacionais muito perto de um
tipo de multiculturalismo unilinear, ou liberal: a diversidade cultural é apresentada pelo
Estado, mas a hierarquia decisória e a hegemonia epistêmica não mudam. É a cultura
ocidental que detém os parâmetros para valorizar a diversidade que inclui o não-
ocidental; todavia, esse movimento é sempre de mão única, não sendo dada às
comunidades detentoras de conhecimentos tradicionais a chance de testar seus
parâmetros próprios para avaliar os conhecimentos ocidentais hegemônicos. Do ponto
de vista conceitual, podemos dizer que a diversidade cultural passa a ser celebrada, mas
a preço de conter e sufocar a diferença. Aceita-se a pluralidade de manifestações
culturais, mantendo porém a exclusividade dos critérios de avaliação da eficácia –
estética, simbólica, científica – dos elementos que compõem essa pluralidade.

Insistindo ainda nesse ponto crucial, afirmar a diversidade, apenas, como é


colocado na pauta atual da indústria cultural transnacional, não desafia necessariamente
os exclusivismos, os privilégios e os eurocentrismos arraigados há séculos. Pelo
contrário, pode até fortalecê-los, na medida em que elementos exóticos são
incorporados à matriz cultural dominante e as elites podem apresentar uma imagem
interna e externa do país como diverso sem alterar a hierarquia de prestígio e poder
fundante da nação brasileira como cristã e ocidental. Para construir uma diversidade
cultural que não seja superficial, é preciso dar voz aos mestres dos conhecimentos
tradicionais, dividir com eles, não apenas um lugar no cenário, mas a concepção e a
construção do próprio cenário.

III. REVALORIZAÇÃO INTERCULTURAL E DIÁLOGO


HORIZONTAL ENTRE SABERES

Uma nova retomada surge agora, com a criação da Secretaria da Identidade e da


Diversidade Cultural e a plataforma internacional gerada pela Convenção da
Diversidade da UNESCO, em que os detentores dos conhecimentos tradicionais
começam a fazer parte do processo decisório no que diz respeito à reconstrução do

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perfil de diversidade cultural do Brasil. Movimentos análogos, alguns mais amplos,
outros mais restritos, vêm ocorrendo paralelamente em outros países sul-americanos,
como na Bolívia, no Equador e na Venezuela No momento em que o processo de
incorporação passa a ser dialógico, o modelo de multiculturalismo conservador dá lugar
a um paradigma de multiculturalismo crítico, em que os conhecimentos tradicionais
deixam de ser apenas objetos de estudo, ou produtos artísticos ou simbólicos para ser
promovidos e passam a funcionar também como epistemologias alternativas às
epistemologias ocidentais.

IV. TEMAS DA OFICINA

O objetivo da oficina será então oferecer um espaço de reflexão e troca sobre os


conhecimentos tradicionais que incorpore os mestres(as) e líderes das comunidades lado
a lado com funcionários do Estado, pesquisadores e produtores culturais vinculados às
comunidades, aos grupos tradicionais e às suas redes (ampliadas e migrantes) de arte e
de saberes. Esse trabalho em colaboração, se executado a contento, poderá significar
uma das primeiras experiências de interculturalidade, em que cada participante fala a
partir do seu horizonte cultural, ao mesmo tempo que se dispõe a incorporar aspectos
dos horizontes dos outros participantes. As áreas de diálogo intercultural a respeito dos
saberes tradicionais são múltiplas. Eis alguns dos temas possíveis:

1. Saberes geográficos – Discutir as toponímias alternativas e as várias


demarcações dos territórios que conformam o país e as regiões, nacionais e
internacionais, em que vivem e por onde circulam os povos tradicionais.
Promover as condições para um descentramento da leitura metropolitana dos
territórios que não toma em consideração suas dimensões sagrada, mítica, étnica,
lingüística, ambiental, etc.
2. Saberes lingüísticos – Abrir espaço para uma consciência da diversidade
lingüística brasileira (em geral muito baixa na população), que implica uma
valorização, entre outras, de:
a) as línguas de origem africana faladas e cantadas em contextos sagrados e
rituais – como o iorubá (ou Nagô), o Fon (ou Gêge) e o Kimbundo, ambos presentes

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no candomblé, no xangô, no batuque e no tambor de mina; e o kicongo, presente no
Candombe e no Congado. Também, o patuá falado na fronteira do Amapá com a
Guiana Francesa.
b) As 180 línguas indígenas.
c) A “língua geral”, ou ñeengatu, falada desde a colônia e preservada no Alto Rio
Negro.
d) As línguas internacionais, como o guarani, o tukano, o desana e outras
fronteiriças, como o espanhol, o inglês, o francês.
d) A língua Rom dos ciganos.
e) As línguas asiáticas, como o japonês, o chinês, o coreano, o vietnamita.

3. Saberes sobre a flora - Aqui não se trata apenas de realizar um catálogo das
plantas conhecidas pelos povos tradicionais e dos seus usos medicinais ou
produtivos, mas também de trocar idéias e concepções sobre o sentido e as
maneiras de classificar e estabelecer diferenças entre as espécies.
4. Saberes sobre a saúde – Conectado com o tema anterior, é preciso ir além de
apenas coletar os usos medicinais das plantas, tais como o entendem os povos
tradicionais. Há que discutir também as próprias concepções de saúde, de
equilíbrio do ser humano, da validade relativa da distinção mente-corpo, dos
estados alterados de consciência, dos mecanismos (benéficos ou maléficos) da
somatização de emoções, afetos e de mais experiências subjetivas.

5. Saberes técnicos e artesanais - Toda a gama de artesanato, técnicas de construção,


de casa, de barcos, de meios de transporte, de utensílios de pesca, de caça, de trabalho
no campo, etc.

6. Saberes performáticos - Intercâmbio de conhecimentos sobre dança, mímica,


utilização de máscaras, cantos, recitação, contar histórias, atuação, construção de
personagens, palhaçadas, técnicas de concepção de palco, de cenários, etc.

7. Saberes musicais – Todos os estilos e gêneros de cantos, sagrados e profanos,


uníssono e em várias vozes. Técnicas de vocalização, de projeção, modulação e
alteração de voz, etc.

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8. Organologia – Técnicas e concepções de construção dos instrumentos musicais:
percussivos, flautas, rabecas, violas, arcos, etc.

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