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bIA Casa da Invencao: I A edigdo revista @ ampliada Luis Milanesi } | Copyright 1997 Luts Milanesi Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.02.1998. E proibida a reprodugao total ou parcial sem autorizagao, por escrito, da editora. H edigao, 1997 44 digo, 2003 ISBN —85-85851-45-7 Projeto grafico e capa: Vicente Gi) Produg4o e editora¢ao eletrdnica: Marcelo Mario Revisao: Geraldo Gerson de Souza Direitos reservados a ! ATELIE EDITORIAL Rua Manoel Pereira Leite, 15 06709-280 — Granja Viana — Cotia— SP Telefax: (11) 4612-9666 wwwaatelie.com.br e-mail: atelie_editorial@ual.com.br Printed in Brazil Foi feito depésito legal 2003 N w wea & - 7 8 9 Sumario 6 Pu avacyjavvaaeayeyuausueeececaryeccueeccapibansui Bula 6 abl JA que existe, pra que serve? 9 » Seringas e sapatées 16 Formas difusas e sobreviventes de cultura 21 -1DotremaTV 28 Em busca de um arquétipo edotempo perdido 39 O modelo parisiense 49 As experiéncias domésticas 57 1 Agrande construgao 60 > A biblioteca de vidro 62 .2 A restauragéo 67 -3 Oremendo 69 .4 Mistura grossa 69 .5 Sintese 70 Aquilo deu nisso. 75 1 No Brasil, os padrés 86 .2. Na Republica, os leigos 87 .3E gs artistas? 93 | 4 Mério'desvairado 98 Cultura pra quem? Bibliotecas para analfabetos? 105 »O sonho do aicaide 109 Informacao que virou acervo. $6. 115 Acultura do centro 129 1 Anticultura 145° +Lili eos moinhas’ 150 2 Outras praticas. 158 Centro de acdo cultural 161 1.Os trés verbos. 172 ZA Cultura ea cidade 186 Concretamente 195 1 Alguns numeros 201 . 2 Bibliotecas ou centros de Cultura? 209 3 O capital humano 214 > Factétum 216 4A participagdo 218 5 A qualidade 223 5.1 Padroes de qualidade 226 5.2 Atender 48 demanda? 227 5.3 Ou criar a demanda? 228 5.4 Um perfil de servico publico de informagéo 230 5.5 Critérios para avaliagao 232 5.6 O que conta 234 6 O prego 259 Notas 271 Indicagées Agentes culturais, incluindo bibliotecdrios, poderao obter subsidios para as suas atividades. Ndo é um programa para um projeto arquitet6nico, mas pode ser til aos arquitetos que recebem a misséa de criar um Centro de Cultura. Professores que atuam na érea de humanidades, principalmente no campo das artes, poderdo encontrar quest6es para discutir com os seus alunos. Posologia Recomenda-se uma leitura atenta, principalmente quando parecer que 05 problemas e as solugdes estao claros. Em alguns momentos, sera necessario reler paginas anteriores. Leituras, como as recomendadas, S80 essenciais para uma compreensdo mais adequada das questées discutidas. Tolerabilidade A obra apresenta um-alto grau de tolerabilidade uma vez que o seu conteudo é flexivel e@ um convite ao aprofundamento das discussdes. >|Bula Fe AULUULLT Hava y agence pare csayerg espe tip aaie ani pce aca sag UOOUOUUOO EUG LS THEORET cen Pstunpena i aniean tinny Composicao Precaucées Este texto contém dois elementos, normalmente, £ fundamental que teoria e pratica & incompativeis: 0 jargao universitario (em dose possam ser acompanhadas nas suas £ homeopatica) e ficcao. O primeiro incorpora velhos relagdes quase sempre de conflito. e novos conceites, perfeitamente assimilaveis pelo A obra tem mais efeito se o seu corpo académico; o segundo permite-se inventar contetdo for confrontado com a histérias, ainda que inspiradas em fatos concretos. pratica existente na campo de sua abrangéncia. Néo & recomendavel aos que apreciam as textos e querem, distancia do contexto. Propriedades © objetivo da obra é, através da discusséo de um conceito de agao cultural, estabelecer as formas, Os espacos onde essa a¢do pode ser efetuada e expandida. A todo momento estd presente que tanto a forma quanto a fungdo deverdo ser delineadas a partir do meio social, tendo, por isso, Contra-indicagées rostos diferentes que variam de acordo com esse O livro é absolutamente vetado meio numa mutabilidade que reflete a sociedade aos que perderam a capacidade @ que, ao mesmo tempo, procura mudé-la de sonhar. Limiihinialanilnise Li€ Ja que existe pra que serve? “Centro Cultural” — essa placa se espalha pelas cidades brasileiras, afixada em casas simples ou em construgdes monumentais. Nao ha um censo cultural brasileiro que permita dizer quantas placas existem afixadas na fachada desses edificios. E se houvesse, seria preciso encara-lo com uma certa cisma: 0 que é um centro de Cultura? O que poderia ser identificade como tal? O certo é que a placa, com toda a sua imprecisdo, passou a ser almejada. Nos érg4os publicos ¢ uma solicitagao prioritaria. Deseja-se, ao que parece, UM atestado antiignorancia. Quem a tem - a placa — obtém um ponto a mais na grada¢do de Civilidade. ~ ontusnyy ap 110 “Cultura” é um elemento conferidor de status e até os que ndo a tém pensam assim. Objetiva-se erguer um desses prédios menos pelas suas funcées e mais pela sua forma — uma construgao que é 0 discurso ufanista da “cidade culta”, ratificando um déesejo. A busca da forma é essencial como a torre de uma igreja, mas indagar sobre as fun¢6es da Cultura é tao complicado quanto discutir o transcendente. A pergunta, por que um centro cultural? nao propiciaré um longo discurso. £ um prédio, um teatro, uma biblioteca, um museu, um arco do triunfo, é uma forma com func&o imprecisa a qual o homem comum no atribuiria nenhuma utilidade sua vida pratica. A idéia de “centro cultural” nao é brasileira. O que acontece em Paris, Londres ou Nova York chega facil ao Brasil, descendo pelo rio Tieté, subindo com um pouco de dificuldade pelo Sao Francisco e se espraiando pelas barrancas do Amazonas. Os ribeirinhos, os que estado a margem, desde muito ouvem os rumores da Corte (e agora das metropoles), olham a Veja, veer o -Fantastico global e repetem em versdes nacionais 0 medelo d’além-mar, antropofagicamente como queria Oswald de Andrade (devoramos e reinventamos a moda da casa, dando feigdes nossas e s6 nossas aquilo que os outros geraram), Ou reproduzimos de maneira reflexa as invencées alheias, como Darcy Ribeiro indicou, e o fazemos com a dignidade vazia da incompeténcia. Monteiro Lobato, com a sua satira poderosa do perfil brasileiro, preferiu dar um outro nome a essa preferéncia nacional pela copia: macaquice. Com o mundo via Embratel alojado nos limites da telinha da TV, as possibilidades de contrafacaéo tornaram-se mais faceis. Nao é necessario ler sobre outras experiéncias, viajar Ou ouvir os relatos dos viajantes: agora basta girar um botao para receber todos os estimulos do planeta que os produtores selecionaram para nés. As revistas antigas mostraram a Torre Eiffel como agora o video exibe o Beaubourg. E dai para sermos antropofagicos, reflexos ou macacos, estamos a uM passo. No Brasil nao se falava de centros de Cultura até que os paises do chamado primeiro mundo tomassem a iniciativa de construf-los, com alta visibilidade. Talvez tenha sido a Franga, tradicionalmente dedicada ao cultivo da Cultura (e, por muito tempo, o supremo modelo da inteligéncia nacional) a deflagradora da novidade. Os franceses dos anos setenta mostraram ao mundo com o alarde possivel o Centro Cultural Georges Pompidou, © Beaubourg, alavanca disseminadora da idéia. Se ndo fosse uma obra bem-sucedida dentro de seus propésitos culturais, poderia ser identificada apenas como um excelente instrumento publicitario da civilizagao francesa. Suspeita-se qué essa gigantesca construgdo tenha gerado pelo mundo afora centenas de centros culturais, direta ou longinquamente inspirados nela. Os viajantes voltam de Paris deslumbrados com a sua grandiosidade fisica e a exceléncia das acées nela desenvolvidas. E propagam a idéia, transformando um templo em matriz. A Franga estabeleceu o modelo de um centro cultural. Paris ditou a moda. Alta Cultura. Os prefeitos, por iniciativa prépria ou instados a fazé-lo, procuram 0s 6rgaos publicos que financiam construgées e pedem, as vezes amparados por deputadas, recursos para a construcdo de um centro cultural. Essa é uma das solicitagdes mais freqitentes que chegam dos municipios. Algumas vezes levam um projeto arquitet6nico; em outras, apenas consultam se é possivel o apoio financeiro. Raramente se expde um programa de atividades ou se discute uma funcdo. Apenas se exibe o projeto de uma construgao. Qual é 0 significado desses pedidos? O que, de fato, nessas ocasides desejam? Se fosse feito um esforgo para encontrar uma resposta, por certo seria necessario conciliar visOes disparatadas e ambiguas, 0 que resultaria num objeto nao claramente identificado. Pistas: ~ Minha cidade ja tem biblioteca, agora quero construir um centro cultural. — Ja temos um teatro; agora queremos dar ao nosso pove um centro de Cultura. — O pessoal do teatro quer um local para ensaiar... Vou reformar 0 cinema e fazer a casa da Cultura. —Foj a primeira escola da cidade... Agora, para preservar a meméria do municipio, sera museu e centro cultural. Case da tomogto o Jt — Vamos reformar o antigo cinema e transformé-lo num espaco de Cultura. As vezes, 0 administrador municipal esta, distraidamente e sem empenho, encaminhando reivindicagoes de segmentos intelectualizados de sua cidade, e isso n&o representa uma op¢ao prioritaria em seu programa de trabalho. Cultura raramente faz parte de um projeto de desenvolvimento que se relaciona com outros segmentos da administracéo do municipio. E mais um atestado de bom gosto e de civilidade, portanto é um elemento externo, algo que se pde Sobre e nao que nasce, cresce e se transforma dentro. O discurso de reivindicagaéo faz refer€ncia a um atavio, a um adereco, a um enfeite que, afinal, ndo tem muita justificativa. No entanto, quem a solicita faz parte do segmento falante, os que se manifestam pelos meios de comunicacao, os que formam opiniao ou que, pelo menos, convencem, Isso até pode justificar uma obra cara: é reivindicada por um publico muito especial, inteligente, culto e isso vem reforcar a idéia do “monumento a Cultura”. A responsabilidade pela construcao é do prefeito, mas estdé dilufda: raramente pessoas de destaque ousam atacar uma biblioteca, um teatro, um museu. Seria passar um atestado de auto- ignorancia. Podem até considerar que um hospital, uma escola ou até mesmo uma cadeia seriam mais Uteis 4 vida da cidade, mas dizer isso nem sempre é facil. Um centro cultural € quase sempre caro: é 0 preco que se paga para ter, além de um espaco para atividades culturais, um monumento. Em alguns casos, mais raros, 0 proprio prefeito toma a iniciativa de construir o centro de Cultura, vendo nisso uma obra que, de alguma forma, tem significado para a populacdo, seja “para dar livros aos estudantes pobres” ou transmitir urbi et orbi a exceléncia do nivel da populacao local Existem, também, aqueles que imaginam erigir um monumento a si proprios, uma piramide comemorativa de sua administracao. Se concretizado esse objetivo ou outro qualquer que esteja na base de tal construgaéo, a polémica passa a ser inevitavel: por que edificar tal prédio se o municipio tem outras necessidades? Os mais corajosos, aqueles que néo receiam ser chamados de “ignorantes” puxam 0 coro: por que nao asfaltar as ruas OU tapar os buracos das estradas? Por que nao fazer 0 gindsio de esportes que vai atender a setores muito mais amplos da populagdo? Por que nao resolver problemas de saneamento basico, fundamental para a satide e o bem-estar das pessoas? Com essas alegacées, e tantas outras, a obra cultural fica encurralada, desvelando cruamente a dificil questa 95 Mesmos que a defendem ficam sem argumentos sdlidos para justificd- la. Por um lado, alegam que, ante tantas caréncias, os gastos nao se justificam. “Livros néo matam a fome e teatro nao da emprego a ninguém.” Os desempregados e os que nado tém o que comer raramente opinam. N&o é um atavio num corpo mirrado? Mesmo assim, projetos sao feitos, edificios sao construldos, propagando-se pelo pais algo de novo, que ndo @, exatamente, o que Cultura sempre foi. Nao é biblioteca, nado é teatro, néo é museu. Nominalmente, é centro de Cultura. Nao resta divida: em poucos anos, © Brasil anexou, por meio da a¢ao de seus administradores, uma nova palavra no rol das reivindicagdes e realizagdes municipais, um vocdébulo corrente, mas cujo conceito nao é facilmente explicitado, permanecendo na zona das incdgnitas entre tantas outras que permeiam a vida do pais. E muito mais do que isso: as doencas, a dor, a morte dao origem ao atendimento médico, aos hospitais. No entanto, sao palavras que fazem Nascer e prosperar os centros culturais, € o discurso que da origem ao Prédio, quase sempre obra de grande visibilidade como se fosse um marco ao bom gosto do municipio, um templo que nao serve apenas para abrigar OS crentes em estado de ora¢ao, mas para ser em suas formas o préprio louvor a uma divindade que pouco se conhece. - Acasa da. ven > Seringas e Sapatées Era para ser um posto de satide, o local onde os desvalidos procurariam solucao para as suas mazelas. O desenvolvimento das doengas movido pela miséria foi maior do que 0 projeto do prédio: 0 arcabouco construido era menor que as necessidades. Lé estava a obra inacabada e servindo de abrigo e, eventualmente, motel aos desprovidos de local mais discreto e confortavel. Era preciso dar um destino a obra inacabada. Como a cidade nao dispunha de uma biblioteca publica decente e nem de outro espaco para atividades artisticas, o prefeito resolveu fazer as adaptaces posstveis enecessérias (nessa ordem) e instalar no triste motel da pobreza 0 desejado “Centro Cultural”. . Protestos. Mais uma vez acjuelas mesmas vozes que soam previsivelmente speras quando hé pela frente algum projeto que, serdo incompreensivel, élouco e sendo louco pode ser profético nao perderam a oportunidade de lavrar oseu protesto. Alegaram que seria um desperdicio, que 0 erario publico nao poderia suportar tal gasto inutil, que as prioridades eram outras. Um vereador, com toda a solenidade, disse que os ricos ganhariam um centro de Cultura e os pobres perderiam o seu motel. O prefeito considerou pura demagogia. Mas nao tinha muitos argumentos para convener a oposi¢do. Em pouco tempo, 0 jornal da cidade e a radio passaram a ampliar a opinido contraria a0 “Centro Cultural”. Daf para chegar a opiniao ptiblica da pequena Urututuba ocaminho foi curto. Em pouco tempo a cidade mostrava-se contraria ao projeto do prefeito. Para todos aquilo nao tinha muito sentido. £ verdade que alguns cidadéos ousavam apoiar 0 prefeito, dizendo que Urututuba era o fim do mundo, perdida em Sua ignordncia de varias geracdes. Dona Violeta, uma ex-cantora do Coro Santa Cecilia de nome real Lurdes, intérprete obstinada em sua juventude de uma dria da Traviata, chegou a protagonizar na porta da igreja, depois da missa das dez, um bate- boca com o vereador que preferia “ motel para os pobres ao invés de Cultura para os ticos". Filhas e maes foram mencionadas no bate-boca, bern como os termos ignaras, obtusas, tapadas, rameiras, marafonas e mundanas. Cena memordvel. Dias depois, 0 Osério da Farmacia, que assistira a cena, tomou partido pré centro cultural. Ele, na década de quarenta, escrevera um pequeno livro de sonetos e desde entao conservava 0 titulo de Unico urututubense editado. Escreveu um artigo no qual defendia dona Violeta ea inten¢ao do prefeito. Achava que “a mocidade precisava de um pouco de Cultura, uma vez que nao tinha outro interesse na vida além de sair com cairo do pai e quebrar a cara em qualquer poste ou barranco™. Além disso, ele teve coragem de escrever, “ pouca Cultura é sindnimo de muita maconha”. Alias, alguém dissera ao prefeito que o consumo de drogas estava aumentando de maneira alarmante. Para os pais, professores e todos os outros que, de alguma forma, eram responsaveis pelo harmonia de Urututuba a situacao exigia medidas rapidas. Nao seria esse um motivo para construir 0 Centro Cultural? De qualquer forma, O artigo do Osério da Farmacia provocou a ira de um outro vereador da oposicao. Em sessao tumultuada da Camara disse que a Cultura nunca combateu a maconha. Ao contrario, disse ele, “os artistas 6 que eram chegados..,” Dona Violeta, que nunca fora de escrever, redigiu um emocionado texto para _ O Imparcial, periddico que sempre apoiava o prefeito e publicava os editais da Prefeitura. Nele fez a defesa “do divino Mozart, do sublime Rafael e do comovedor Castro Alves”. E acrescentou: “todos maconheiros na opiniao do ilustre edil”, com ironia incomum para a suave diva de Urututuba. Apolémica prosseguiu, envolvendo vérias figuras da sociedade local. E, por fim, chegou-se ao que sempre ponto de partida quando se discute Cultura: custos. O prefeito, evidentemente, foi acusado de perdulario. Gastaria "os parcos Tecursos pUblicos em atividades nao-prioritérias”. Ser que todos tinham comida? Moracia? Emprego? Quantas criancas perambulavam pelas ruas de Urututuba enquanto 08 pais estavam no campo? Se esses problemas existiam, como justificar os gastos com um centro cultural? Pelo calor da discussao, desconfiava-se de que 0 projeto era apenas um pretexto para trazer 4 tona questées mais amplas e profundas: a disputa sucesséria. Enfim, o prefeito deixou de ouvir criticas e partiu para a reforma do prédio. No projeto, o engenheiro previra um salao, algumas salas de uso multiplo e um FETE LETTE A Cann da lavencto 3 espaco para a Biblioteca Municipal. Em poucos meses a obra estava terminada, a tempo para inauguré-la antes das eleicGes. As criticas em momento algum cessaram. Aténo comico final da opasigao o Manuel Neco Lopes, candidato a prefeito, mencionou o Centro Cultural como um exemplo da falta de lisura no trato da coisa publica. Foieleito. Um dos poucos candidatos a vereador pelo partido do prefeito a obter um lugar na Camara Municipal foi justamente Dona Violeta. Ela recebeu 185 votos dos quais 112 eram de parentes, 38. de empregados rurais de seu marido, 1 de apreciador de musica lirica e 34 talvez de adeptos do Centro Cultural. Como novo prefeito, o Neco pensou em desativar o Centro Cultural e dar ao prédio um destino mais util, talvez mais um posto de salide ou sede da guarda-mirim, —aentidade que absorvia os menores carentes. E aqueles funcionarios, uns cinco, que o antecessor colacara ld seriam removidos para setores mais necessitados de pessoal. Enfim, ele queria moralizar, cumprindo as suas promessas de campanha. No entanto, o tempo foi passando e nenhuma decisao foi tomada. Os cinco funcionarios ficaram por la mesmo, cada um exercendo as suas tarefas de funcionario pubblico mal pago: a encarregada da Biblioteca no escondia o seu horror de eventuais visitantes, geralmente, alunos ern busca de alguma enciclopédia. Ela suspirava ruidasamente e olhava para o teto quando a porta se abria para dar passage aum timido e ex-futuro leitor. Como encarregada de receber 0 pilblico, a falta de publico, entregava-se a tarefa de fazer bordados e crochés, aproveitava 0 belo espaco para expor 0 SeU artesanato e de algumas amigas. Em pouco tempo, olocal ficou conhecido como “butiqueteca”’. Da tribuna da Camara, Dona Violeta, semanalmente, passou a discursar, acusando o prefeitode omisso, permitindo que uma obra tao importante como o Centro Cultural ficasse no ostracismo, fechado a maior parte do tempo e, quando aberto, pouco receptivo. Aquilo, sim, é que era um desperdicio de dinheiro pubblico. E toda semana vinha um novo ataque, uma saraivada de adjetivos, ditos com indignacao, silabas escandidas, gestos duros. Dona Violeta encamava a oposicao. Até que o prefeito acabou perdendo a paciéncia: convidou Dona Violeta para dirigir o Centro Cultural. A.voz da oposicao foi calada, mas um perigo maior delineou-se: o Centra Cultural, “sob nova direcdo”, alterou o seu perfil: uma jovern bibliotecéria substituiu a encarregada com suas varizes e seu mau-humor. Além disso, criou uma série de cursos, organizou um programa, prevendo atividades noturnas em todos os dias da semana, inclusive sabados e domingos: sessdes de video, palestras, apresentacdes musicais... Em menos de um ano, o Centro Cultural era uma referéncia, um pontode encontro. No segunda ano de funcionamento, constatou-se com toda clareza ~ pessoas sentadas no chao — que o espaco, quem diria?, era pequeno. Coma proximidade de novas eleig6es, as forgas locais, “Seringa” e “Sapatao”, organizaram-se. O primeiro era formado por rernanescentes da antiga UDN e osegundo trazia tracos das tradi¢es getulistas. O pessoal do “Sapato” assim era denominado, pois queria se identificar a todo custa com o homem simples, ohomem da roca, ainda que as mulheres tivessem alguma dificuldade em se declarar adeptas dessa corrente Jana ala do "Seringa", talvez por coincidéncia, juntaram-se alguns médicos e farmacéuticos. Os “sapatdes” sempre foram opositores do Centro Cultural, uma vez que a idéia de construi-lo foide um “seringa”, Agora estavam no poder e desconfiaram que nao era possivel destrut-lo ou desativa-lo, Como reagiriam as 3 550 pessoas que Mensalmente se utilizavam de seus servicas? Foi essa constatagao que motivou uma rpida mudanga de discurso. O partido dos “sapatées” passou a pregar nos palanques a necessidade de ampliar o Centro Cultural: isso refletia o sentimento generalizado. No entanto, por esses designios incompreensiveis que fazem das urnas um Mistério, o povo colocou novamente a “Seringa” no poder. E como a bandeira da Cultura estava sendo agitada pelos derrotados, os vencedores viram nela uma aliada dos inimigos. O resultado disso foi 9 inicio de uma nova batalha: os que pregavam o “motel para os pobres” agora pediam "Cultura para o povo”: e os que defenderam “a Cultura para todos” alegavamn que 0 povoestava bem servido com o Centro Cultural que eles haviam construido. A discussao, iniciada na Camara, transformou-se novamente em bate-boca, inclusive com a interven¢ao do novo vigario, um “sapatéo” disfargado, que, de repente, em seus sermdes comesoua mencionar, além de cidadania ejustica, a Cultura UTE EST A cate Inuengdo ie Ny 3 ule tenes Dona Violeta, fiel 4s artes, ficou dividida: a cabega na politica e o coragdo nas lides culturais. Tentou convencer o prefeito a construir um novo espaco, mas ele, seu velho e querido amigo, nem queria ouvir falar nisso, pois tal idéia seria reforcar concretarnente os inimigos. No entanto, era 6bvio que a cidade exigia a ampliacao do espaco. A imprensa que tanto criticara a construcéo do Centro Cultural agora defendia nao a sua ampliagéo, mas a edificacao de um outro “mais adequado as necessidades de um municipio culto e pragressista” . Dona Violeta, coerente, avisou que faria um discurso na Camara, propondo esse investimento. E fez, defendendo “o futuro da juventude urututubense”. 0 prefeito ficou furioso, acusando-a de "infidelidade partidéria®. Houve um feio bate-boca na rua, presenciado por alguns transeuntes. Dona Violeta disse que estava sendo empurrada para os bracos dos inimigos pela intolerancia cega do prefeito. © problema é seu, se vocé quiser virar 'sapatao' o problema é seu, Violeta.” Ela ficou indignada e bateu fortemente no peito: ” Meu? O problema é seu”, falou alto, vibrando 0 dedo a um palmo do chefe. “Vocéperdera a maioria. Eu nao voto com quem despreza 2 Cultura. Nao passa mais nada na Camara.” Apromessa foi cumprida, A partir daquele momento, o prefeito ficou de maos atadas. Ea cidade contra ele. Tempos depois, disfarcadamente, estimulou a instituicao da Sociedade Amigos da Cultura de Urututuba, cujo objetivo maior era a construgao donovo Centro Cultural. Na presidéncia estava um notdrio “seringa”, dbvio candidato do prefeito a sua sucesso. Na proposta orgamentaria encaminhada no final do ano, foi induida uma verba razoavel para a nova obra, “um marco na paisagem da cidade, um cartao de visita, orgulho de todos que aqui moram”. Oorgamento apresentado pelo Executivo foi aprovado sem maiores problemas pela Camara. tndusive por Dona Violeta que voltoua ser “seringa’. 2 UPL REICH RRE aatiT Vv Formas difusas e sobreviventes de cultura Nao é possivel indicar quantos centros de Cultura existem no pais. Ou, pelo menos, quantas instituig6es foram registradas com esse nome. Avida cultural brasileira sustentou-se, sem grandes inquietac6es, numa base triangular formada pelas entidades da tradicao européia trazidas pelos colonizadores, mais acentuadamente com a transferéncia da Corte portuguesa: biblioteca, teatro e museu, Eles, juntos ou isoladamente, podem ser identificados como centros de Cultura. Instituigdes com perfis semelhantes em lugares diferentes nado recebem nomes iguais. Um centro de Cultura pode ser um museu municipal e o opouaaar ep 409 ¥ N a ult anes 24 t Museu municipal em outra cidade se chama casa de Cultura e a casa de Cultura numa localidade 6 exatamente como a biblioteca publica de outra A biblioteca é a mais antiga e freqdente instituicdo identificada com a Cultura. Desde que o homem passou a registrar o conhecimento ela existiu, colecionando e ordenando tabuinhas de argila, papiros, pergaminhos e papéis impressos. Esta presente na histdria e nas tradicdes, destacando- se em Alexandria nos tempos de Cristo e proliferando nos interiores dos Mosteiros medievais como repositério do saber humano. Foi peca importante No projeto luso de colonizagéo por meio da catequese. Por fazer parte de um universo reconhecido por vastas areas da populagdo como “culto”, tornou-se necessaria — ou quase — menos para abastecer a coletividade de informagées e mais para identificd-la com padrdes superiores de comportamento. Isso é uma necessidade. Prefeitos de municipios sem bibliotecas sentem-se constrangidos com o fato, principalmente porque todas as cidades vizinhas tém. E dificil que haja entre a popula¢do alguma forma de resisténcia a biblioteca enquanto colecdo de livros. H4 uma preocupacdo especial com as criangas: é consenso a idéia da necessidade de livros para as criancas. Raramente se impreca contra as bibliotecas sem que se corra 0 risco de ser lancado na esfera da ignorancia dos insensiveis. Isso ndo quer dizer que elas ocupem um lugar destacado nos programas de educacao e Cultura elaborados pelos administradores publicos. Eis ai um dos paradoxos nacionais: as bibliotecas sao colocadas 4 margem, mas nao se ousa diminui-las, pois estéo no rol das ancestralidades que nos elevam da planura de um cotidiano pobre e simplério para os espagos enciclopédicos da gramatica e da literatura povoados pelos seres cultos e admirdveis, quase sernpre olimpicas e respeitabilfssimos. £, pois, a biblioteca uma entidade tradicional e que, de forma alguma, é estranha @ vida das cidades. Apesar disso, pertence a categoria das instituicdes passiveis de descarte ao primeiro sinal de crise. Raramente constam dos orgamentos municipais. Vivem de esmolas, ndo se atualizam e dispdem de acervo quase sempre incompativel com a necessidade do publico. € provavel que os ' -paunicipios nao reagiriam de imediato se elas fechassem as portas. A bem ~ daverdade, poucos perceberiam se isso ocorresse. Talvez os alunos de primeiro gssegundo graus que, obrigatoriamente, devem fazer as Suas “pesquisas” “-escolares a mando dos mestres e para passar de ano reclamariam se encontrassem as portas da biblioteca municipal fechadas. O adulto nao encontra nessa instituigdo a praticidade a qual os alunos se agarram. . Noentanto, elas existe — e fora dos estabelecimentos de ensino. E se elas existem com tanta freqiiéncia, ainda que precariamente, é para que a sua falta nao cause 0 vexame de estigmatizar os municipios sem bibliotecas puiblicas: “pobres, sim, mas nunca ignorantes”, é a idéia que pode acorrer. O mesmo nao se dé com os teatros. Também eles foram significativos para as cidades. Inclusive as menores tinham o seu num tempo em que a encenacao de pecas e apresentagdes musicais eramn mais lazer e menos “Cultura”. Na primeira década deste século 0 grande numero de teatros nos municlpios mostra que a musica e a dramaturgia tinham outras funcdes. Era uma forma de lazer que a propria coletividade providenciava. Dai o grande numero de grupos de teatro amador, de orquestras e bandas. Gada cidade cuidava de alimentar as suas salas com produtos locais ou Provenientes de outras localidades. As companhias artisticas percorriam 0 interior brasileiro nas primeiras décadas do século pela malha ferrovidria, apresentando-se nos teatros que havia nas cidades, inclusive nas menores. » Era um equipamento imprescindivel. O cinema teve a sua expansao facilitada pela utilizagéo desses teatros. Dai surgiu a expressdo tao comum nos anos 20, 30: cine-teatro. Ambos poderiam conviver no mesmo espago. Durante décadas subsistiram essas salas hibridas em sua denominacéo ainda que, Progressivamente,* programassem unicamente filmes. Posteriormente, a Palavra teatro desassociou-se do cinema, ficando este claramente identificado como diversao. O teatro sobreviventé passou a se caracterizar como uma resisténcia artistica as formas de massificagdo, acentuadas com o advento da TV. Posteriormente, essas salas, sem teatro e sem os filmes, tiveram um destino pouco digno do brilho anterior: foram transformadas em salas 26 | comerciais, estacionamento ou templos evangélicos. Esses teatros, como primeiras casas de espetaculo da cidade pequena, eram, como as igrejas, expressdes de seu poder, estando acima do casario comum. Posteriormente, construg6es maiores foram surgindo, reduzindo essas salas a simples “entraves do progresso”. No entanto, em raras ocasiGes a cidade providenciou, para substituir 0 velho, urn novo espaco, também “digno de sua pujanga”’. J& os museus das cidades raramente sairam do movimento pendular entre a preservacao da historia local e a taxidermia. De um lado, hd, de vez em quando, um esforco coletivo que busca preservar a histéria local. Esses surtos memorialistas sao comandados por cidadaos que retém tanto na memoria quanto nos seus guardados registros que, de uma forma ou de outra, testemunham o passado. O resultado desses movimentos é quase sempre a instalagao do museu Municipal justificada pela necessidade de preservar as tradi¢6es locais. Isso faz com que todos os batis sejam revolvidos em busca do antigo, mesmo que nao tenha nenhuma significagdo. O critério € a antiglidade e se 0 objeto for associado a alguma figura de destaque, a aura sera acentuada. Um capacete usado na Revolucéo Constitucionalista de 32 sera mais importante ainda se ele pertenceu a algum ilustre filho da cidade. Esses museus, denominados “historico e pedagdgico”, sao a expressdo do desejo coletivo de preservar o que possa ter alguma dimensdo afetiva. Ao lado de fotos antigas, juntam-se maquinas primitivas, indumentérias, moedas, mdveis, etc. Ha, ainda, 0 esforgo pedagdgico centrado na natureza. Talvez af possam ser agrupados todos os elementos que s4o expostos com frequéncia: pedras, madeiras, insetos, aves e outros animais empalhados, etc. $a0 raros os museus Municipais que escapam dessa regra. A exposicao é imutdvel e poucos séo os que promovem atividades, incluindo af outras exposic¢des. Na pratica, museu, Museu da imagem e do som, arquivo, biblioteca sao termos diferentes para produtos muito semelhantes. Livros antigos podem ir para oO Museu e manuscritos para o “mis”; gravuras podem ser encontradas na biblioteca. Essa imprecisdo surge claramente quando se elabora um organograma para a area cultural. Os conceitos para definir areas e atribuigdes s0 frageis e, com isso, duplicam acées, apresentando os mesmos produtos e'servicos em lugares diferentes e, quase sempre, de maneira precaria. _ Quando um organograrna se reflete em cargos, fun¢ées, assessoria, servicos, equipamentos e prédios e, consequentemente, no orcamento, pode ser avaliado numericamente o quanto a auséncia de conceitos claros pode custar. No Brasil, além dessa imprecisao de objetivos, podem ser somadas multiplas faces geograficas e sociais, com culturas distintas. O que poderia - serum centro cultural na Amaz6nia ou no sertao do Cariri pouca relagao ‘teria com uma dessas instituigdes no interior paulista ou mineiro. Geografia, sociedade, histdria diferentes pedem espacos culturais diferentes. Nao se ~ trata de regionalizar a Cultura e podar as formas essenciais do conhecimento, anulando expressdes diversificadas do homem, mas de dar respostas as necessidades locais. Tanto o Rio Grande do Sul como o Rio Grande do Norte tém bibliotecas, teatros e museus, mas as suas formas e fungdes . fazem-nos diferenciados. ee A formacao social é um dos fatores mais importantes para delinear ma politica de Cultura, incluindo al as formas e fungdes dos espacos a ela destinados. Cada regido apresenta o seu perfil, formado no tempo. “Em Sao Paulo, por exemplo, houve no final do século XIX a chamada marcha para o oeste, alimentada pelo fluxo imigratorio que abriu fazendas -de:café, ampliando o campo de trabalho e produzindo riquezas. O que significou isso em termos culturais? Qual é a contribuicdo do italiano na ida do paulista além do cardapio domingueiro? Quando for feito um levantamento sobre o numero de bandas e grupos de teatro italianos nos ‘Municipios paulistas, seré possivel avaliar de forma mais criteriosa as alteracdes culturais que as fazendas de café'e a mao-de-obra italiana Propiciaram. Outro caso significativo é a presenga dos alemaes no Rio = Grande do Sul e a espantosa proliferacao de corais, expressdo até hoje Presente nas cidades gatichas. Aqui sao dados dois exemplos de aproximacao. “entre culturas diferenciadas, indios, portugueses e negros de um lado e os 1 casa da nvencdo S europeus do século XIX de outro. Esses contatos e trocas, por certo, produziram formas de expressar valores e sentimentos de maneira especifica, que nao é& amesma da Amazénia ou do Ceara. As tradigdes locais moldam os centros de Cultura e, quanto mais fortes forem, mais os seus tracos serao visiveis nas suas atividades. . Ndo ha, pois, um modelo de centro cultural. HA uma base ampla que permite diferenciar um espaco cultural de um supermercado: é a reunido de produtos culturais, a possibilidade de discuti-los e a pratica de criar novos produtos. O publico é formado pelos que exercitam a criatividade e pelos criadores potenciais — ou, em outras palavras, todos. Quem entra num centro cultural deve viver experiéncias significativas e rever a si proprio e suas relacdes com os demais. Ver um filme e discuti-lo pode ser uma experiéncia que atua sobre a sensibilidade e desordena o pensamento, tornando-se decisiva. Além desse alicerce que sustenta um centro de Cultura, existem as tendéncias homogeneizadoras determinadas pelos meios de comunicacao que podem igualar espacos culturais do Para e Santa Catarina, mesmo com tantas diferencas histdricas e geograficas. Mas isso é epidérmico e pode ser alterado por uma nova novela. E possivel detectar um teatro, uma danga que emergem direto da tela da televisao protagonizados por candidatos a imergir nela. Os meios de cornunicagéo tendem a aproximar situacdes diferentes, tornando comuns elementos estranhos para ambas as partes Eles aproximam realidades diferentes, trazendo o diverso para o seu préprio universo - 0 que distancia a chamada “industria cultural” da Cultura. |2.1 Do trem a TV Estudos que relacionam o desenvolvimento da sociedade com as suas express6es simbdlicas existem em profusao, partindo do simbdlico para o econdmico, este explicando aquele. O econdmico se explica por si; e as axpressoes humanas sao explicadas por outros fatores. Como entender - Aleijadinho perdido no interior de Minas Gerais no século XVIII? O ciclo do ‘ouro. E 0 Teatro Amazonas? O ciclo da borracha. No Brasil, os surtos de tiqueza ocorrem e em seu bojo eclodem expressdes da sensibilidade e da inteligéncia. Ja um movimento inverso é dificil de observar: um esforco. pela educacao para garantir a continuidade de um momento de riqueza O Teatro Municipal de Sao Paulo foi inaugurado ern 1911 e onze anos depois o mesmo Teatro foi sede da Semana Modernista. Ha alguma telagdo entre os fatos? Em 1934 delineou-se o Departamento de Cultura na Prefeitura paulistana. Haveria o Departamento sem a Semana? O Teatro Municipal, na época de sua construgdo, era o maior ediffcio da cidade, imponente entre o casario rUstico do Vale do Anhangabat. Antes que surgissem os prédios, como o Martinelli, sitnbolo da riqueza de Sdo Paulo, @ Municipal, local da Cultura, era a referéncia da riqueza paulista A cafeicultura foi a alavanca inicial desse desenvolvimento. Quando as linhas férreas ramificaram-se pelo interior paulista, seguindo as novas areas de plantacdo, garantiam o escoamento da producao agricola. No entanto, os trens que iam para Sao Paulo - e dal para o porto de Santos — nado voltavam vazios, mas carregados de manufaturas, os bens que a capital produzia de forma incipiente ou que importava: vinhos, tecidos finos, a moda de Paris, jornais, revistas, livros, trupes teatrais, musicos, figurinos, filmes... A capilaridade dessas ferrovias permitia uma clara irrigagdo de bens simbdlicos, todos importados dos grandes centros de Produ¢ao cultural. A “maria-fumaga” foi, por certo, uma destemida predecessora da Rede Globo. Lenta, é verdade, no entanto o seu apito era tao emacionante quanto o plim-plim ou mais do que ele. Nao apenas demarcava o tempo, mas anunciava a chegada dos visitantes, das encomendas, dos jornais ou do filme do dia. Durante décadas, a malha ferrovidria em S40 Paulo desempenhou um importante papel econdmico e cultural: transportava o produto agricola po i para o leste e disseminava a oeste nas centenas de cidades que nasciam entre os cafezais, quase todas vilarejos, as novidades da capital. A velocidade do trem era um dos determinantes do ritmo econémice e do desenvolvimento social. Quando as mensagens — jornais, por exemplo — deixaram as ferrovias e se transformaram em ondas de radio, profundas alteragées foram produzidas na sociedade. Nao havia a diferenca de horas entre um fato paulistano ou carioca e o conhecimento dele num munic{pio da Alta Araraquarense. O radio tornava fato/informacao simultaneos. A cidade de Séo Paulo, como tantas capitais, concentrava o poder econémico no Estado: todos os trens dirigiam-se para ela, como taios voltados para um unico centro. A capital, produzindo bens de consumo, concentrou as possibilidades de criagao de bens culturais. Os teatros mais amplos foram construidos nela, os artistas mais destacados projetaram-se na metropole, mesmo que ndo fossem nascidos ali. Os grandes espetaculos s6 percorriam as cidades maiores, aquelas que tivessem condicdes de exibi- los adequadamente, garantindo um publico suficiente para, pelo menos, cobrir as despesas. A falta de espacos adequados e menos onerasos, artistas levavam os seus teatros nos bracos, como se fossem portateis, ¢ em terrenos baldios tevantavam os circos, circos-teatro e ai apresentavam espetaculos para a diversdo de todas as classes sociais, principalmente aquelas com menores possibilidades de freqiientar teatros — ou por morarem em cidades pequenas cu por falta de recursos. Os circos, em parte, supriram o desejo pelo espetaculo. —m termos de producdo e de disseminacao culturais sempre prevaleceu a mao unica: da capital para o interior, do maior para o menor. Esse direcionamento fez do Rio de Janeiro, notadamente no século XIX e nas primeiras décadas do século XX, a meca e exportadora quase Unica de bens culturais. $30 Paulo passou a exportar simultaneamente ao seu crescimento econdmico. O seu crescimento econémico ocorreu de maneira destacada com a industrializagao depois da década de 30. Com ela foi incrementada a producao intelectual e artistica, tornando-se um pdlo exportador em volume e qualidade. O Rio de Janeiro conservou uma certa _hegemonia, mesmo sendo uma cidade menor e menos rica: & Radio Nacional foi a grande forca de unificacao simbélica por varias décadas. E, depois dela, a TV Globo passou a desempenhar o mesmo papel. “industria cultural”, nao dependente do alfabeto, foi muito alam das reas restritas do cultivo das letras, do intelecto, das artes para espraiar-se por quasé todo o pais, juntando pobres e ricos, analfabetos e letrados em tomo da “novela das aito”. De qualquer forma, o Rio de Janeiro e $40 Paulo séo centros Irradiadores e de tal forma poderosos que é mais facil aos municipios receberem informagées deles do que trocarem experiéncias entre si. Em outras palavras, os ncleos distantes estéo mais proximos do que os préprios vizinhos ou mesmo do que a sua vida, cotidiano e historia. As producées locais sao onerosas nao so porque custam mais, mas porque d&o muito trabalho para realizd-las. £ mais facil receber uma peca de teatro de a0 Paulo do que encenar uma na prépria cidade. Alias, é mais cémodo saciar-se com o produto que a televisao apresenta. Quando os habitantes locais buscam uma producao propria esta sera, inevitavelmente, comparada aos produtos de fora. Por mais estranha que Ipanema possa parecer aos olhos de um sertanejo, lentamente, podera se transformar em algo desejavel, tornando o seu sertéo mais pobre do que é e sem perspectivas de ser melhor. De inicio, o impacto € inevitavel, o choque de valores principalmente, mas depois a avenida Paulista passa a ser um modelo ‘de-progresso. De inicio hé um estranhamento em relagao a esse mundo distante, mas depois é a propria realidade que parece estranha, é 0 proprio Raipira que nao se reconhece. A ficcdo de uma novela pode ser mais real do que a realidade da vida cotidiana. x Enquanto os trens iam levando café e voltavam trazendo manufaturados e produtos simbélicos fabricados na capital, havia, em face da lentiddo, o estimulo para que os préprios nucleos urbanos criassem OS seus bens. Os municipios, distritos, povoados, produziam parte do que Ihes ‘Acasa dt Incencte rr w |S mE Lot Milena era necessario, uma vez que a producao artesanal respondia 4 demanda. Existiam alfaiates, funileiros, sapateiros, bem como grupos de teatro, orquestras... No mesmo instante em que as roupas passaram a ser fabricadas em série e 0 sapateiro perdeu 0 motivo para existir, os discos, 0 radio e depois a televisdo supriram as necessidades locais, levando o campo da producao material e simbélico a uma inter-relacdo complexa. Avelocidade do trem permitia que vicejassem nos municipios as suas peculiaridades, o seu modo proprio de viver. 6 depois que a “maria-fumaca” chegava trazendo os figurinos é que as costureiras da cidade produziam a nova moda, e que durava até que Paris, por navio, remetesse outras criacdes. Como a importacéo do bem cultural também era reduzida e vagarosa, a producdo prépria supria em parte essa caréncia, cada cidade e vilarejo tendo um campo para recriar a sua propria expressao: Assim, por menor que fosse a localidade, havia a banda, a orquestra do cinema, os grupos de teatro, a abundancia de poetas e de jornais. Essa produc4o nao era autéctone porque, quase sempre, existiam os modelos. E 0 isolamento, apesar das distancias, era quebrado pelas ferrovias. O que o municipio distante tentava fazer em termos de teatro era o que Paris fizera cinco anos antes. Na década de 30 ocorreu a primeira grande mudanca no campo cultural. Pela primeira vez um instrumento da tecnologia superava a velocidade do trem e tornava simultanea a recepcao de mensagens: o radio. Entre os anos 30 e a década de 60, as emissoras, notadamente a Radio Nacional do Rio de Janeiro, tiveram um papel decisivo na formacao de padrées culturais. As ferrovias e, posteriormente, as rodovias continuaram transportando a producao agricola e bens industrializados, mas o elemento cultural expandiu-se muito mais pelas ondas hertzianas, financiado pelos produtores de bens materiais, do que pelas estradas que propiciavam o contato direto entre os artistas e o publico. Nao-se pode dizer que tenha diminufdo 0 fluxo vivo das artes e a sua apresentacdo nos nucleos urbanos. Apenas, deve ser ressaltado que os caminhos terrestres foram largamente superados pela ondas curtas, médias e tropicais. O radio que trazia a informacdo para dentro de casa, permanentemente, passou a fazer parte da mobilia doméstica. Com isso impés uma profunda modificagdo: incorporou o imenso contingente de analfabetos ao ptiblico receptor. A habilidade da leitura deixou de ser pressuposto do acesso as informacées produzidas nos grandes centros. O radio que, por exemplo, dava noticias, ao som de Paris Belfort, dos avancos das tropas constitucionalistas, permitia que, girando um botao, se captassem ao vivo os discursos de Getulio Vargas entre dois sucessos musicais de Carmen Miranda. Noticiarios, programas de auditério, crénicas radiofénicas, transmissGes esportivas, programas humoristicos, radionovelas e a vasta producdo musical de sambas avalsas passaram a integrar o cotidiano do brasileiro. Ja néo era mais imprescindivel sair de casa para obter diversdo. Era s6 sintonizar o radio. _ Aretreta perdeu o seu sentido aglutinador. Agora, a familia se reunia em torno do receptor e se ligava ao Rio de Janeiro. Ha uma excecao: 0 cinema. Ele chegava as menores cidades e em torno dele reunia-se a coletividade, fazendo de suas sessdes uma forma social de convivéncia. Mas era um produto que vinha de fora, pronto para ser uSado. Trazia a imagem, inclusive dos idolos do radio. Via-se 0 que se ouvia diariamente. Além disso, 0 cinema oferecia a oportunidade da convivéncia — algo imprescindivel. Ir ao cinema caracterizava-se como acontecimento social: ver e ser visto. Essa$ sessdes cinematograficas eram t&o importantes que a chegada dos rolos de filme pelo trem era anunciada pelo rojéo, comunicando aos habitantes que a diversdo estava garantida. © radio levava as familias a permanecerem unidas em casa, mas nao 0 suficiente para dispensar a projecao semanal da Atlantida ou da Metro, o desfile das mogas e 0 cortejo dos rapazes. Quando a TV chegou, a concorréncia ao cinema acirrou-se. Milhares foram fechados em todo o Brasil. Mas permaneceu como poderosa for¢a do individuo na coletividade 0 desejo do encontro, da convivéncia. Dal, talvez, a proliferacdo de casas Noturnas, bares, danceterias — que substitu(ram 0 antigo footing, inevitavel antes das sessdes do cinema. ws a Ha uma queda progressiva na produc¢ao loca) de atividades culturais durante 0 século XX. As crénicas das cidadezinhas mostram nas paginas de seus jornais (na década de 20 se faziam mais jornais nas cidades pequenas do que nos anos 80/90 nas cidades maiores) a existéncia de varios grupos de teatro, orquestras do cinema e da igreja (as primeiras para acompanhar os filmes mudos e as segundas para solenizar com os coros as missas mais importantes — mas ambas formadas pelos mesmos musicos). Paralelamente, outras formas de a¢ées coletivas ou individuais para criar mensagens e organizar o prazer persistiam de acordo com as possibilidades dos municipios. No entanto, a sobrevivéncia tornou-se dificil quando as formas fabricadas nos grandes centros passaram a fazer concorréncia com a produgao das pequenas localidades, pode-se dizer, artesanal elaborada nesses nicleos populacionais isolados. Se havia 0 radio tocando musica, por que tanto esforco para ensaiar a banda? A retreta perdeu o sentido de existir. Diminuindo a producao local de bens culturais, as "faébricas” acabaram sendo desativadas, destruidas ou transformadas para o exercicio de outras fungdes: em poucas décadas, os teatros, tao necessarios a vida coletiva, desapareceram. A década de 60 aprofundou essa tendéncia. A televisdo surgiu acentuando 0 papel que o radio j4 desempenhava. As imagens potencializaram a fungdo da radiofonia, trazendo para dentro das casas essencialmente o entretenimento. Em poucos anos, as redes de televisdo cobriram a pais, estendendo-se sobre quatrocentos anos de analfabetismo. Ao contrario da Europa que, pés Gutenberg, multiplicou aos milhdes os livros ao mesmo tempo em que incorporava progressivamente na categoria dos letrados a popula¢ao, no Brasil os livros, excluidos aqueles que’entravam sob a guarda dos jesuitas, chegavam clandestinamente. O cerceamento a imprensa, patrocinada pela Carte e pelos governantes que viam nela perigos que ameacavam a sua estabilidade, durou varios séculos”. Isso marcou profundamente a sociedade brasileira que, analfabeta, ndo dispunha de forcgas para se movimentar e se desenvolver. “ Os dois vefculos, 0 radio e a televisdo, colocavam-se acima da vida - - das cidades, uma vez que havia uma central que produzia os programas - para o consumo coletivo, difundindo as mesmas mensagens para regides diferentes. As cidades, assim, progressivamente passaram a incorporar padres geralmente estranhos (que se diferenciavam das tradic6es locais). “Tanto o radio como a TV propiciaram a incorporacao de alguns valores, “novos ou ja existentes, ainda que de formas menos claras. A moda, por exemplo. Quanto maior for a exigéncia de consumo, mais rapidamente os . Produtos devem ser substitufdos. Por isso, um traje em poucas semanas ‘passa do bonito ao execrével, momento exato do descarte e de nova aquisicao. No transcorrer do século XX, a velocidade entre o belo ea feio tornou-se progressivamente mais rapida, chegando-se a situacdéo da existéncia de varias modas ao mesmo tempo. Ou a inexisténcia dela que significa que o esforco para estar na moda é igual a estar fora. ae Essa integra¢ao coletiva de novos padrées culturais, exaustivamente tenovados, permitiu a criagéo de uma faixa que poderia ser chamada de homogeneiza¢ao Cultural. Isso, sem duvida, sacrificou tradicées e peculiaridades locais. O que era tradigdo coletiva que incorporava as populacées (dos trabafhadores mais rusticos aos letrados) transformou-se em curiosos destrogos por vezes denominados “folclore” ou padrées wergonhosos a serem superados. Essa importa¢ao eletrdnica de novos valores e modelos tornou anacrénico aquilo que estava gravade na crénica das ~ Gidades. Na tensdo entre o homogéneo e 0 tradicional diversificado, o primeiro -acabou se impondo majoritariamente, ainda que fossem providenciadas com freqliéncia tentativas de resgate cultural, uma espécie de recuperacao daquilo Ja'dissolvido na Cultura industrializada. S30 comuns surtos de saudade ou de © Sentimento de culpa pelo desprezo a um bem antigo. "Preservar o que & nosso” € 0 apelo que as vezes se transforma em campanhas de defesa contra 0 invasor que ja se instalou na alma das pessoas. : No entanto, a tradigao a ser preservada sofre assaltos constantes - dos meios de comunica¢do, motores das transformacées rdpidas que fazer 35 i dos individuos atores em mutacao constante. A producao cultural das localidades perdeu parte do seu sentido: a abdicacao da criatividade e 0 atrofiamento da capacidade de inventar passaram a ser menos excecdo do que regra. Por que fazer goiabada de tacho se ela vem pronta e enlatada? A producao de bens culturais tornou-se nado mais uma das tarefas necessdrias no cotidiano das cidades, mas uma a¢do que exigia um esforco deliberado e nem sempre bem-sucedido. A banda, que existia porque as retretas e 0 acompanhamento das procissoes eram imprescindiveis, transfigurou-se num esforco para o qual era necessdrio inventar um sentido que o tempo e as transformacées répidas da sociedade desgastara. As cidades passaram a ter maiores dificuldades para produzir os seus proprios bens culturais. Dos esforcos criativos passou-se ao consumo. O quadro hoje, no limiar do século XXI, em termos de circulacéo do bem cultural, que nao sejam aqueles veiculados pelos meios eletrdnicos, mostra, ainda, a velocidade que a bitola e os trilhos permitiam. As vias asfaltadas retalham progressivamente 0 mapa do pais e as companhias aéreas integram as cidades maiores com a velocidade do jato. Mas os bens culturais nao se expandem-e se firmam com o desenvolvimento das vias de transporte. Nao se imagina que as cidades existam dentro de muros fechados sem que estabelegam trocas com as outras. Um teatro intra- muros seria um bumba-meu-boi de lenta mutabilidade. As mudangas nao ocorrem quando sé se tem um espelho. € preciso observar outras formas e avaliar as proprias em busca de uma que seja melhor. -Para que isso ocorra € necessario olhar, conhecer. As cidades isoladas raramente ultrapassam em suas producdes os seus modelos, que nada mais acrescentam para quem vé. O que recebem de influéncia ver pelos meios de comunicagao que mais impdem formas e valores do que provocam a procura pelo novo. Para receber emocées, basta ligar a maquina. £ facil comprar pronto. Dificil é fazer em casa. Os cidadaos dispdem do produto televisivo a baixo custo, de programas variados, cobrindo todos os interesses. Se a demanda cultural € preenchida pelas emissdes do Rio e de S80 Paula, como poderso ‘as cidades, principalmente as do interior mostrar a sua propria producao? As novelas néo tomam apenas © tempo, mas preenchem determinadas ~"expectativas da populacdo. Nao é preciso mais sair de casa, vestir-se adequadamente, para ir ao theatro como faziam com uma prodigalidade maior as familias do inicio do século. No presente, o que 0 teatro pode ~ pferecer a maioria da populacao ¢ obtido no video. Além da cena, do jogo _ da imaginacdo, das emocoes criadas, 0 teatro era um lugar e quase todos ‘os municipios tinham o seu. Mesmo com a sua transforma¢ao em cine- theatro continuou um lugar, espaco de encontro. Com a TV, as representacdes draméaticas domesticaram-se no onanismo cultural do video, essa fruigdo de mao Unica. Para que, entao, um lugar publico? E entao por que proliferam as casas de Cultura? 3 r Hwiuliiniilnaiilinn el¢ A manutenco desse quadro, importacao de bens culturais por meio de canais eletronicos e baixa produtividade local, tende a levar, progres- sivamente, ao atrofiamento da capacidade de invencao e isso ja € visivel de forma mais clara nos segmentos jovens da populacao. Sao seres que se apassivam por falta de situagdes que estimulem a criatividade. A juventude, principalmente essa que ainda nao trabalha porque a familia investe em seus estudos, pouco faz no campo intelectual, além das tarefas escolares para “passar de ano” e tem poucos estimulos para ir além disso.. Alguns dirigentes municipais chegam a propor a “Cultura” como um ‘opsuanu ep e189 S

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