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EVARISTO DE MORAES FILHO. GOETHE E A FILOSOFIA 250 Anos de Goethe aGVoOr COLEGAO AFRANIO PEIXOTO, DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS Rio de Janeiro 1999 COLEGAO AFRANIO PEIXOTO. Diretor: Antonio Olinto Academia Brasileira de Letras Diretoria de 1999 Presidente: Arnaldo Niskier Secretério-Geral: Tarcisio Padilha Primeiro-Secretirio: Marcos Vinicios Vilaca Segundo-Secretirio: Evandro Lins e Silva Tesoureiro: Antonio Olinto Setor de Publicagdes da ABL Produgio editorial ¢ Revisao Nair Dametto Assistente editorial Daniela Ferrari Editoragao Maanaim Informatica Ltda. (021) 242-4017 Catalogagao na fonte: Biblioteca da Academia Brasileira de Letras 100 Moraes Filho, Evaristo i Goe Goethe e a filosofia — 250 anos de Goethe / Evaristo CAP de Moraes Filho. ~ Rio de Janeiro : Academia Brasileira de Letras, 1999. 100 p.; 18cm. (Colegio Afrinio Peixoto, 48) ISBN 85-7440-020-3 1. Goethe, Johann Wolfgang von ~ 1749-1832. I. Série. IL. Titulo. GOETHE E A FILOSOFIA 1. Concepgao do mundo. Vocdbulo. Conceito. 2. Conceito de filosofia. 3. Goethe e 4@ filosofia. Sua idéia de concepedo do mundo. 4. Goethe fildsofo. 1. Os alemies utilizam-se da voz genérica Welt- anschauung para designar um conjunto de idéias, sentimentos, maneiras de considerar os fatos do mundo e da vida, quer por um individuo, quer por uma determinada época histérica, quer por um grupo social ou sociedade global, seja qual for a sua dimen- sao. Em verdade, todas as criagdes humanas surgem da vida psiquica e de suas relagdes com 0 mundo exterior. Nessa reflexao associam-se a experiéncia da vida e a evolugao da imagem do mundo. Originam-se dai, necessariamente, interpretagdes da realidade: as concep¢ées do mundo, que procuram explicar ou compreender 0 enigma da vida. A sua estrutura é um complexo no qual se retinem elementos de procedén- cias diversas e de naturezas também diversas. 6 Incluem-se ai a arte, a filosofia, a literatura, a reli- , a poesia. Ao pé da letra, Weltanschauung significa apreen- sdo, intuigdo do mundo ou do universo, cosmovisao, abrangendo tudo que nele se encontra, incluindo-se, como € natural, a vida humana em todas as suas manifestagdes. Muitas vezes a expressdo vem acom- panhada de Lebensanschauung, concepgao da vida. Com um vocabulério rico, especialmente pela facili- dade de formagio de novas palavras, socorrem-se ainda os alemaes de Weltansicht (visio de mundo) e Weltauffasung (concepgao do mundo). Importa fixar, no entanto, o seu conceito para os propésitos que nos colocamos neste ensaio. Schmidt a define como “o conjunto de pensamentos, representagdes, idéias de um homem sobre a totalidade do mundo e da sua posigao dentro dele”. Eisler a admite como’ “a manei- ra de se conceber e interpretar 0 conjunto das coisas € do significado da existéncia”. Prende-se, em parte, continua ele, ao cardter e A personalidade, convindo igualmente as concepgGes étnicas, culturais, sociais ou histéricas. Por isso mesmo, passou a ser citagéo obrigatéria nestes assuntos 0 conhecido trecho de Fichte, de 1797: “O tipo de filosofia que se escolhe gid GoenHE & A FILOSOFIA 7 depende da espécie de homem que se é; porque um sistema filoséfico nao é um instrumento morto, do qual nos possamos utilizar ou rejeitar 4 vontade, mas vem animado pela alma do homem que 0 adota.” Metzke apresenta cinco diferentes conceitos da expressao, embora sejam todos aparentados, desde o mais amplo, incluindo a concepgao da vida, passan- do pelo objetivo, em oposigio ao subjetivo, até ao mais restrito, confundindo-se praticamente com a filosofia, propriamente dita. Karl Jaspers a faz con- fundir-se, de certo modo, com a prépria filosofia, como totalidade do conhecimento, e esclarece: “Quando falamos de concepgées do mundo, quere- mos dizer idéias, o Ultimo e o total do homem; tanto subjetivamente, como vivéncia, forga e reflexdo, como objetivamente, enquanto mundo conformado externamente.” Delas fazem parte também as valora- ges, conformagio da vida, destino e vivéncias. Em contraposigio ao ps{quico, ao sujeito, aos tipos de espirito que conhece, valora e toma atitudes, coloca Jaspers as imagens do mundo, que representam o objeto, como condigdes e conseqiiéncias da existén- cia anfmica, na qualidade de seus contetidos. 8 EVARISTO DE MORAES FILHO Classificam-se essas imagens em trés tipos: senso- rial-espacial, anfmico-cultural ¢ metafisico.() Varia, como se vé, é a doutrina em torno do con- ceito de concepgio do mundo, constituindo assim o que se denominou de Weltanschauunglehre (teoria ou doutrina da concepgao do mundo). Para Dilthey, por exemplo, um dos seus criadores, a raiz tltima da con- cepgio do mundo é sempre a propria vida, por isso que a vida engendra em torno de cada individuo o seu mundo singular. Da reflexdo sobre a vida nasce a experiéncia da vida, cujo centro mesmo € constituido pelo enigma da vida, af incluindo-se a morte, como algo estranho ¢ terrivel. Finalmente, todas as concep- gdes do mundo contém a mesma estrutura, quando procuram dar uma solu¢éo ou explicagaio completa do enigma da vida. Consiste esta estrutura “numa cone- xio na qual se decide acerca do significado e sentido do mundo sobre a base de uma imagem dele. Deduzem-se daf o ideal, 0 bem mais alto, os princf- pios supremos da conduta”. E dbvio que a identidade de estrutura n&o importa igualdade das préprias con- cepgGes, que sio diversas entre si, conforme as con- cretas e particulares condigGes individuais ou coleti- vas da existéncia. Os tipos de concepgao do mundo, Gore & 4 FiLosoma 9 segundo Dilthey, podem ser classificados como reli- giosos, poéticos ou metafisicos (filos6ficos). Os trés possuem uma forma fundamental comum, cujas rai- zes repousam na estrutura da vida animica, manifes- tando-se conforme cada momento da existéncia em relagdo 4 vida de cada um com 0 mundo que o cerca, como um todo intuivel. Deixando de lado as manifestag6es religiosas e poéticas, convém destacar a posigiio da filosofia dian- te do todo da concepgio do mundo. Distingue-se ela das duas primeiras pela sua nota de validade univer- sal, mediante a “tendéncia anfmica que consiste em emprestar firmeza e conexio 4 prépria atividade”. Surgiu, historicamente, a filosofia do enlace com as duas outras, desenvolvendo-se progressivamente no sentido de sua maior autonomia, delas se distinguindo com toda a nitidez. Nao s6 pela validade universal se earacteriza a filosofia diante das duas, como igual- mente pela forga que apresenta — quanto a poesia — como atuagiio reformadora da vida.2) Max Scheler, outro grande doutrinador do tema, escreve, de maneira precisa e ampla: “O que costu- mamos chamar ‘concepgiio do mundo’ nio s&o aque- las precipitadas decisées e intentos reacionarios que 10 EVARISTO DE MoRAES FILHO GOETHE & A FILOSOFIA IL fazem parar o processo cientifico, infinito por essén- cia. E unicamente a maneira de vivéncia que cada individuo, cada povo, cada época possui inevitavel- mente como vivéncia de um absoluto, e que, confes- sada ou inconfessadamente, constitui o sentido todo do seu ser, de sua acwio e de suas tendéncias. ‘Con- cepgio do mundo’ é a tinica concepgao que cada homem tem sempre e necessariamente, queira-o ou nao, saiba-o ou nao com clareza.” Em outro passo, volta Scheler a cuidar do assun- to, definindo-a como a estrutura da vivéncia cognos- citiva do mundo, sem que seja um termo antecipado do processo cientifico. Usa o vocdbulo no sentido de W. von Humboldt e W. Dilthey, como “modo de sele- ¢fo e articulagao que domina de fato um circulo cul- tural completo, ou em uma pessoa, modo pelo qual se colhem as quiddidades puras das coisas fisicas, psi- quicas ou ideais (sendo indiferente que se saiba ou nao isto de modo reflexivo)”. Foi no primeiro sentido deste tltimo paragrafo que Husserl criticou acerbamente o seu uso na lingua- gem filoséfica, rejeitando a pretensa “filosofia da concep¢giio do mundo”, como suposto prévio e inde- pendente das ciéncias positivas. Levada ao extremo conceitual, seria a filosofia da concepgio do mundo. um verdadeiro relativismo ceticista, presa a cada €poca, separando-se da filosofia cientifica, supratem- poral. Como ciéncia rigorosa, deve a filosofia afastar- se da Weltanschauung, que nao é ciéncia. Na verdade, nao chega Husserl a dar um concei- to preciso do que entende por Weltanschauung, como destaca Quentin Lauer. Parece admiti-la como uma espécie de sistema, que pretende ser completo para cada época, perdendo por isso mesmo a possi- bilidade de ser absoluta. Sua critica, contudo, di gia-se em grande parte as idéias de Dilthey, que comegavam a dominar a Alemanha no inicio do século. Ha farta correspondéncia trocada entre ambos, que, a rigor, como ainda se refere Lauer, jamais chegaram a se entender. Caberia a critica de Husserl a teoria da Weltanschauung de Karl Jaspers, verdadeiramente pré-légica e irracional, anterior a qualquer percepgao do conhecimento discursivo, tendo como base a crenga. Nao € nosso intento prosseguir neste confronto de pontos de vista entre Dilthey e Husserl; nao nos interessa igualmente admitir aqui 0 conceito de Weltanschauung em sentido histérico e coletivo, e 12 EvanisTo DE Moraes FILHO sim, unicamente, em sentido individual, como 0 con- junto de idéias, crengas, sentimentos ¢ ideais que determinada pessoa forma do mundo e da vida, isto é, de sua existéncia individual e do contorno real, cés- mico, em que se encontra. Com Augusto Messer, diremos que “entendemos por concep¢ao do mundo e da vida um conjunto de convicgdes fundamentais e de ampla compreensdo sobre a realidade, o valor e o sentido da mesma, e, especialmente, sobre a vida e as agdes humanas”.°) Embora sem chegar obrigatoriamente a ser siste- mitico, une-se a concepgaio do mundo e da vida 4 personalidade de cada individuo, & sua maneira de ser e viver, constituindo a sua forma de vida, no sentido de Spranger, como estrutura plastica fundamental da vida de cada um, na qual em cada fendmeno espiri- tual est4 imanente de algum modo a totalidade do espirito. Confrontando-se com 0 mundo e a vida sente-se o individuo desafiado a cada instante, inquie- to ¢ insatisfeito diante do seu destino. A sua atitude nao € passiva nem é tranqiiila, pelo contrario, eleva- se num anseio faustico de tudo compreender e expli- car. Quer penetrar o mundo por todos os lados, ultra- passé-lo, superd-lo, ir além das simples aparéncias. GorTHE & A FiLosoria 13, Possuir uma concepgao do mundo, escreve Spranger em outro local, significa haver penetrado mais além do mundo dado e familiar que nos rodeia. Tanto mais rica e forte é uma personalidade, quanto mais profunda, clara e nitida é a sua concep- gio do mundo e da vida, seja por qualquer dos aspec- tos em que se manifesta, cujos extremos ideais podem ser apontados na santidade, no heroismo e na sabedo- ria, Nao se trata de discutir a sua maior ou menor ori- ginalidade, problema de somenos, e sim o que apre- senta de préprio e de singular, capaz de se tornar inconfundivel com o homem ingénuo e sem histéria (que também dispde de uma cosmovisio pessoal, em geral, de natureza religiosa, tradicional ou folclérica). As suas potencialidades natas, as suas aptiddes, 0 seu aprimoramento cultural, as suas vivéncias, tudo enfim que se estruturou em torno do cerne da sua personali- dade, constituem o material com que se pode contar para estruturar a sua concepgio do mundo e da vida. Pouco importa ou nao a existéncia de sistema; 0 que importa é a unidade da concepgado em torno da perso- nalidade. A concepgdo do mundo é como uma proje- ao da totalidade anfmica da individualidade, mas representando sempre uma opg¢ao diante do enigma, 14 Evaristo DE Mora€s FILHO Gorrie & A FILOSOFA 15, do mistério e dos problemas da existéncia, propria ou do universo. E poucas personalidades tém existido, na hist6ria da cultura huruana, tao ricas, exuberantes e singulares como a de Wolfgang Goethe. Sentindo-se predestina- do desde 0 bergo, marcado pelos astros, dizendo-se demonfaco, foi a um s6 tempo dionisiaco ¢ apolineo. Viveu intensa, resoluta e belamente; meteu a mao em cheio na vida, segundo suas préprias expressdes. A maneira do seu infinito, penetrou-a por todos os lados, numa 4nsia faustica de esgotd-la. Nas palavras de Emmanuel Berl, “permaneceu sempre superior a seus escritos”. Enquanto ia construindo a “piramide da sua existéncia”, ainda nas suas proprias palavras, enfrentou e resolveu a sua maneira os problemas da natureza, das ciéncias, da arte, da sociedade e da exis- téncia. A sua forma de vida tfpica foi, contudo, a estéti- ca, ou melhor, a poética. J4 vimos linhas atras que a poesia faz parte da. Weltanschauung, como uma das suas manifestagdes mais tfpicas e penetrantes. Mostra Dilthey, em certo trecho, como a poesia lirica apre- senta, na forma mais simples, esta conexdo: uma situag’o, uma sucesso de sentimentos ¢ emergindo quase sempre deles um anelo, um afa, uma agio. De resto, convém recordar que uma das caracteristicas do movimento romantico alemio consistiu justamente na interpenetragao da filosofia e da arte, com predomi- nio desta. Nao ficaram os poetas como caudatarios e ancilares dos fildsofos & maneira dos tempos anterio- res do classicismo ou do iluminismo — cartesianos, materialistas, spinozistas, cristaos —, sem concepgao propria. Basta recordar a transformagao que sofreu o pensamento de Spinoza em Goethe e o de Kant em Schiller. Apresentavam os poetas ainda a vantagem de nao precisarem submeter as suas concepgdes a um crivo légico, rigoroso e de validade universal. Lembra Camille Schuwer 0 que se pode chamar de um verdadeiro esprit de profondeur que se apossou das obras de Hoelderlin, Novalis, Tieck, Fr. Schlegel e de Jean-Paul. Nio é este, porém, o nosso propésito. Nao basta estudar a concepgiio do mundo e da vida de Goethe, dispersa, genérica, lirica, poética, literaria. Deve ser estudada a sua filosofia, em sentido estrito e rigoroso, e, mais do que isso, a sua prépria teoria do conheci- mento. Nao que 0 seu pensamento seja reduzido a um simples compartimento fechado e sistematico da filo- 16 EVanisto DE MoRAEs FILHO sofia. Todavia, em mais de uma oportunidade deteve- se Goethe em meio as suas criagdes e as suas investi- gag6es de ciéncias naturais, procurando acertar 0 passo com a filosofia do seu tempo. Escreveu mais de um ensaio metodol6gico sobre os critérios por ele uti- lizados para as suas pesquisas. Realizou longas e extensas exposicdes cientfficos e dos resultados alcangados. Ademais, nao 86 nesses ensaios especificos de reconhecido e volun- téricas dos seus trabalhos tario contetido filoséfico, como também nas suas maximas e reflexdes, nas suas sentengas em prosa, nos seus provérbios, e — por que nao dizé-lo? — nas suas poesias, nas suas obras literdrias de ficgio, nas suas conversagdes € nas suas cartas, so abundantes as diretrizes metodoldgicas e teéricas capazes de levar 4 construgdo de uma teoria do conhecimento goetheana. Nunca fazendo do pensamento uma prisio ou um fim em si mesmo, via Goethe no conhecimento filo- s6fico um caminho para a agdo, uma preparagao para a atividade pratica. De pouco valeria conhecer a reali- dade se o ser humano nao conseguisse modificd-la a favor do seu melhoramento, da sua propria formagio. Gorm & 4 FiLosoria 7 Ao inyés de filosofia teérica e excessivamente abstra- ta, sabedoria informativa da agiio concreta e real. 2. Destaca-se a filosofia da Weltanschauung, embora dela faga parte em sentido amplo, pela sua nota de validade universal. Nao significa isso que a filosofia seja parcial ou acarrete mutilagaio ao espirito humano. Nao, pelo contrario. Representa ela sempre © todo do homem, em sua integralidade psicoffsica, abrangendo as manifestagGes irracionais, pré-légicas, voluntaristas e afetivas do seu espirito. Os impulsos, 0S anseios, as inquietagdes, claras ou veladas, tudo enfim do homem, dela participam e devem participar. Mas a sua forma de expressdo nao é mais a pura sensi- bilidade, nao é mais a simples fé, 6 a razaio. Toda a filosofia tem de ser realizada ou professada com plena honestidade intelectual, sem sacrificio dell’inteletto. Todos os elementos componentes da Weltanschauung podem ser seus objetos, participar do seu contetido, mas nao sob forma pura de vivéncia, de fé, de irracio- nal. Reclama a filosofia a sua plena autonomia diante destas outras formas de vida exatamente pela sua nota de racionalidade. 18 EVARISTO DE MORAES FILHO GOkTHE Ea FiLosoria 19 Constitui verdadeiro lugar-comum a confissaio da dificuldade para se definir realmente o que seja filo- sofia. Em geral, comegam os autores por enfileirar uma série imensa de possiveis conceituagdes e, nado raro, desanimam ou desistem de prosseguir no intento de oferecer um conceito proprio. E, por exemplo, o que faz Aloys Miiller. Escreve ele que, se interroga- mos 0s filésofos, ouvimos as mais diversas respostas. Passa a transcrever algumas delas, sem aspas, em ntimero de nove. Observa Miiller que duas coisas sur- preendem nelas: s&o contraditérias entre si, se uma delas é valida, as outras devem ser total ou parcial- mente falsas; a manifesta imprecisio da maioria das definigdes, ora dizendo de mais, ora de menos. Que devemos fazer? — indaga. Optar pela exposigio direta dos circulos de problemas que sejam, com rigor e generalidade, considerados filos6ficos.® Nio nos parece que scja este o melhor caminho. O risco ja faz parte do préprio filosofar, e ninguém que se proponha cuidar da filosofia podera deixar de delimita-la, conceitualmente, desde o inicio. Se nao, cairfamos naquele estado de desdnimo e balbirdia confessado por Ogburn e Nimkoff, quando dizem que a sociologia tem sido definida como aquilo que os socidlogos estio fazendo, e que um livro de sociologia seria o espelho de tais atividades. Do dominio da filo- sofia — tio contraditérias e impertinentes sao, por vezes, as suas conceituagdes —, que nao faltou também a correspondente frase dos socidlogos, e partindo de um pensador da envergadura de Samuel Alexander: a filosofia é o estudo daqueles temas que a ninguém, exceto aos fildsofos, teria ocorrido estudar...(°” Origina-se o pensamento filos6fico do mesmo enigma da vida com que se defronta a Weltans- chauung. Por mais que se pretenda dar um contetido verdadeiramente rigoroso e cientifico a filosofia, nem por isso se deve assumir uma atitude limitadora do seu objeto. Os mistérios rondam-lhe a porta. O desti- no humano esta no centro das suas meditagdes, pelo significado que possa ter o homem no mundo, repre- sentado pelos dois lados de qualquer atividade filosd- fica: objetivo e subjetivo. Aceitamos, assim, as pala- vras de Maritain, inspiradas em Gabriel Marcel, quando escreve que o mistério e 0 problema estao no centro de qualquer ciéncia ou filosofia.“ Um misté- rio, do lado da coisa, do objeto, da sua realidade extra-mental; um problema, do lado das nossas fér- mulas. O objeto é o proprio real, penetravel a inteli- 20 EVARISTO DE MORAES FILHO. géncia humana, que o vai devassando através da exata e perfeita formulagio dos problemas, reduzidos ou reduziveis a férmulas conceituais. A filosofia, afinal de contas, é este esforgo estré- nuo, permanente, sempre dirigido para a compreen- so das coisas e do proprio homem, mediante o estu- do critico e sistematico do conhecimento humano. Aquela nota de universalidade da filosofia, de sua validade universal, aparece praticamente em todos os pensadores modernos, como capaz de distingui-la do excessivamente geral e do excessivamente especial. Paulsen une a filosofia a vida intelectiva, cujo objeto €a tentativa de “obter um conjunto de representagées e conceitos sobre a forma e a concatenagio, o signifi- cado ¢ a importancia das coisas”. Paginas adiante faz uma citagdo de Wundt, que define a filosofia como ciéncia universal, tendo como postulado a idéia da unidade de todo o saber cientifico. Com esta opinitio estdo Fechner, Lotze e Lange.(! Nao € nosso intuito discutir as relagdes da filoso- fia com as ciéncias particulares, basta-nos destacar a sua nota de universalidade, unificadora, como vimos fazendo. Daf ter podido afirmar Emile Boutroux que a filosofia, em todos os tempos, tem-se posto sempre, GoemiE & A FiLosoria 21 como tarefa sua, a unificagao do saber. Para Simmel, © principio formal da imagem filos6fica do mundo é “o de conquistar a unidade que o espirito necessita diante da infinita multiplicidade, da confusio, do fra- cionamento e da heterogeneidade inconcilidvel do mundo”. E isso depois de haver ele passado em revis- ta, paginas atrds, a prolixidade de definigdes da filo- sofia, capaz de tornar perplexo quem nela se inicia. Com Fichte, concorda que é de certa forma inseparé- vel a filosofia da personalidade dos filésofos, mas cabe 8 filosofia encontrar um denominador comum entre eles. A filosofia passa a ser o primeiro dos seus problemas, cuja solugio somente nela prépria pode ser encontrado. E consegue-se chegar A universalida- de exatamente através desta torsiio do pensamento sobre si mesmo, neste caminho para dentro, mais além do particular e do momentaneo, na busca da totalidade do conhecimento e da prépria vida.(2) A filosofia é sempre uma meditago critica, uma sistematizagao racional dos problemas totais que apresenta a realidade, mas sempre um exame dos pro- blemas e dela prépria, filosofia, pela razio, ainda quando se trate, paradoxalmente, de uma fil irracionalista ou antiintelectualista, Whi 22 EVARISTO DE MORAES FILHO ca a nota critica da filosofia, como critica das abstra- des, um exame critico das idéias, do pensamento comum em cada época, encarando seriamente os fatos, as possibilidades e os ideais. Depois, de manei- ra mais precisa: “Ela é 0 esforgo para estruturar um sistema coerente, légico, necessdrio de idéias gerais dentro do qual cada elemento de nossa experiéncia possa ser interpretado.”"(!3) Concluindo, por esta concepgio da totalidade do real, inclui-se tacita e expressamente no conceito da filosofia, como j4 deixamos fixado acima, a auto- reflexaio do espirito sobre si mesmo. De maneira geral, af se encontra aquilo que Héffding chama de andlise das condig6es da vida espiritual do homem. Deve-se precisar, contudo, o sentido da andlise, que deve ser racional e critica, para que nao se caia na censura, sempre valida, de Husserl: “& verdade que 0 carater dominante da filosofia moderna consiste, nado em se abandonar ingenuamente & impulsio filoséfica, mas, pelo contrario, na vontade de se constituir como ciéncia rigorosa, por intermédio da reflexdo critica, penetrando sempre mais profundamente seu préprio método.” GoeHe EA FILosoria 23 Intento do espirito humano para alcangar uma concepgao do universo mediante a auto-reflexio sobre suas funcdes valorativas, teGricas e praticas, nas palavras de Hessen, tal é a filosofia.(14) Nada mais perigoso e mortal para o pensamento filos6fico do que o dogmatismo, a auséncia de exame critico dos problemas e de suas solugdes. Em matéria filos6fica nada pode ser admitido a priori como certo e correto, sem passar pelo crivo légico da razio. Se a filosofia é a reflexdo critica do espirito sobre os dados do conhecimento e do préprio espirito que conhece, como admitirem-se verdades inconcussas e definiti- vamente estabelecidas? E indispensdvel o exato conhecimento do estado atual das ciéncias e das pes- quisas, ao lado de amplo e correto contato com o per- manente desafio que constitui o mistério da prépria existéncia humana. Nem pode ser exclufda da filoso- fia a temporalidade e a historicidade da propria vida humana social e individual. Sem invencivel curiosi- dade e livre espirito nao ha filosofia possivel. 3. Foi a auséncia desse sopro de vida e de livre exame no primeiro contato de Goethe com a filosofia que o indispés para o resto da vida com as chamadas 24 EVaRISTO DE MorAES FILHO. disciplinas filoséficas. Espirito intuitivo, aberto a todas as inquietagdes, amplo, objetivo, nao podia o jovem Goethe aceitar a palha seca que era ministrada nos cursos universitaérios do seu tempo, verdadeira mesa de anatomia fragmentarista, estudo de natureza morta, tirando do espfrito o que ele possui de funda- mental: a auddcia e o entusiasmo criador, a par de sua unidade indestrutivel. Ainda na sua cidade natal, mal entrado na adoles- céncia, preocupa-se o pai de Goethe pela sua educa- cao, pelo seu estado de animo, e the designa um pre- ceptor, que logo vai se transformar em seu amigo e confidente. Tendo feito um curso de filosofia na Universidade de Tena, sob a orientagao do célebre professor Daries, procura ele iniciar 0 seu jovem pro- tegido em tais estudos. O acordo entre eles nunca foi possivel, escreveria Goethe mais tarde, porque, na sua opiniado, a filosofia, considerada como ciéncia abstrata, nao é necessdria, pois que ela j4 existe natu- ralmente na poesia e na religido (eine abgesonderte Philosophie sei nicht nétig, indem sie schon in der Religion und Poesie véllkommen enthalten sei) Quanto mais discutiam, mais Goethe se aproveitava dos argumentos do seu interlocutor, para confundi-lo, GOETHE E A FILOSOFIA 25 e se firmava no seu ponto de vista primitivo. Colocavam-se os filésofos em mA situagio: procurar provar o impossfvel e 0 inconcebivel, quando a poe- sia e a religido j4 o haviam feito sem demora. Por outro lado, fez-lhe ver a hist6ria da filosofia que cada filésofo apéia seu sistema sobre fundamentos diver- sos daqueles sobre os quais se apoiavam os sistemas de outros filésofos, terminando o ceticismo por ver a mesma falta de fundamento em todos eles. A histéria da filosofia, estudada dogmaticamente, acabou por convencé-lo de que todas as doutrinas filosdéficas valem a mesma coisa. Contudo, preferia as escolas antigas, porque confundem a poesia, a religiio e a filosofia (dass Poesie, Religion und Philosophie ganz in eins zusammenfielen). Vinham elas também confir- mar a opiniao que lhe haviam sugerido o livro de Job, © Cntico dos Canticos e os Provérbios de Salomao, tanto quanto os cantos 6rficos e os de Hesfodo. Seu amigo e preceptor tomara Brucker para guia de suas demonstragées. De nada adiantou, pois nada ficou mais claro nem aceitével. Continuava impossivel compreender 0 objetivo a que se propuseram atingir os primeiros fildsofos gregos. Sécrates lhe pareceu sobretudo um sabio, que, tanto por sua vida quanto 26 EVARISTO DE MORAES FILHO. GOETHE E A FILOSOFIA 27 por sua morte, merecia ser comparado a Cristo; e seus discfpulos tinham uma grande semelhanga com os apéstolos. A substancialidade de Aristételes e a pleni- tude de Platio o deixaram igualmente indiferente. Quanto aos estéicos, sempre sentiu uma grande afini- dade com eles desde cedo, tendo adquirido um exem- plar de Epicteto, ao qual se dedicou com afinco. Mal- grado a extensio dos conhecimentos do preceptor de Goethe, pensava 0 jovem, nao sabia ele resolver a questo principal.(!) Valeu a pena o resumo dessa pagina inteira pelo que ela vai significar em toda a existéncia futura de Goethe. E a primeira vez que a filosofia aparece em sua vida e em suas memorias, e dali para diante sera esta, sempre esta, a atitude de Goethe perante a filo- sofia académica e sistematica, tida por ele como her- mética e dogmatica. Em 29 de setembro de 1765, com 16 anos de idade, parte Goethe para Leipzig, em cuja Universidade se matriculou em 19 de outubro. Resolve estudar Direito e seguir um curso particular de literatura de Gellert. Entre as matérias universitarias, 14 estava a filosofia, cujo estudo em nada lhe adiantava e esclarecia (die Philosophie wollte mich jedoch keineswegs aufkliiren). A légica sobretudo Ihe pareceu a mais bizarra das cién- Para que violentar e fazer aos pedagos as opera- ces do espirito, a fim de aprender a conhecer 0 seu verdadeiro uso, quando ele ja as realizava bem, sem 0 auxilio dela, desde a infancia? Parecia-lhe saber mais sobre as coisas, 0 mundo e Deus do que o professor, que os expunha mal e com obscuridade. Ainda nesta mesma ordem de idéias, paginas adiante, afirma Goethe que a parte protestante da Alemanha e da Sufca se distinguia no que se conven- cionou chamar de bom senso. Para essa gente, a filo- sofia académica, fora do seu circulo de efeigoados, deixava um sem-nimero de perguntas sem resposta, tornando-se de tal maneira obscura e fastidiosa, que afastaya dela as pessoas simples nao iniciadas. Nao Ihes bastava a grande dose de bom senso, com a qual a natureza os dotou, para obtengao de idéias precisas de tudo que tinham necessidade de conhecer e apre- ciar? Confiantes em si mesmos e em seus julgamen- tos, todos se julgavam, aquele tempo, filésofos e faziam filosofia, uma filosofia natural, uma filosofia de bom senso, a que correspondia uma religido tam- bém natural, suficiente para o conhecimento de Deus, a melhora e 0 enobrecimento dos préprios homens.‘ ci 28 EVARISTO DE MORAES FILHO. GOETHE E A FILOSOFIA 29 Ja em Estrasburgo, para onde foi depois de grave enfermidade, matricula-se Goethe na Universidade em 18 de abril de 1770. Entrega-se a vida ativa, ao debate, ao transbordamento afetivo que ele sentia dentro de si — ele e sua geragiéo - com abandono da filosofia e de suas exigéncias abstrusas. Ao ler 0 Systéme de la Nature, de Holbach, tem dele a pior impressao possivel. Sente-se em pleno atefsmo e cada vez mais afastado da filosofia e da metafisica. O livro lhe pareceu cinzento, cimério, cadavérico, dando-lhe a sensagao de alguma coisa fantasmagérica e morta. Serviu-Ihe — a ele e aos seus colegas de geragio — para langd-los com paixiio ainda maior nos caminhos da poesia, da atividade, da experiéncia e do saber vivificante."7) Como se sabe, Dichtung und Wahrheit (Poesia e Verdade) foi escrito por Goethe j4 em pleno perfodo classico, de 1809 a 1831, e nesse livro foram encon- trados alguns enganos factuais ou histéricos do seu autor, descobertos ¢ corrigidos pelos seus criticos. Indagam os seus bidgrafos se Goethe nado se deixou influenciar pelas suas idéias de maior serenidade e sabedoria, emprestando-se na mocidade pensamentos € atitudes somente mais tarde adquiridos e assumi- dos. Para 0s nossos propésitos pouco importam essas diividas, eis que ele se coloca justamente a favor da mocidade, dos seus arroubos, dos seus entusiasmos, das suas inquietagdes passionais e emotivas. Dos tre- chos citados de Goethe pode-se tirar 0 resumo do que sera a sua concepgao da filosofia para o resto da sua vida: a) contra o dogmatismo e a filosofia sistemdtica, académica, que, dentro da sua camisa-de-forga, sufoca a livre pesquisa e o pensamento livre; b) contra o tratamento excessivamente abstrato e distante da filosofia, que a separa da vida e das suas necessidades imediatas; c) contra a filosofia que, por excesso de teoria, impede a agio e a atividade; d) a favor de uma filosofia do bom senso, bastan- do ao homem 0 uso dos sentidos e da razio que Deus lhe deu; e) finalmente, fazendo da concepgio do mundo e da vida um complexo no qual se encontram permanentemente juntos a filosofia, a poesia e a religiao. 30 EVARISTO DE MORAES FILHO GOETHE E A FILOSOFIA 31 Em todos os tempos, sempre lhe pareceu estranha a guerra entre os sistemas filos6ficos. Ainda em 1795, a propésito dos distirbios ocorridos na Uni- versidade de iena com 0s cursos de filosofia idealista professados por Fichte, registra Goethe nos Anais que, enquanto os filésofos se dividiam, os naturalis- tas, entre os quais se inclufa, procuravam aumentar e aperfeicoar o seu circulo de atividade.'®) O primeiro Fausto, embora somente publicado completo em 1808, comegou a ser escrito (Urfaust) entre 1771 e 1775, em pleno Sturm und Drang goe- theano. Pois bem, sao por demais conhecidas as pri- meiras palavras de Fausto, quando, a noite, sentado diante da sua escrivaninha, exclama, agitado: “Filoso- fia, direito, medicina, pobre de mim, e também por desgraga teologia estudei, a fundo e com ardente esforgo. -me aqui agora, pobre louco, tio sébio como antes! Chamo-me mestre, chamo-me doutor, é verdade, e ha bem uns dez anos que passeio aqui e ali com os meus alunos presos pelo nariz — e vejo que nada podemos saber!” Bem adiante, entre os conselhos que Mefist6feles da ao estudante, encontra-se este: “E depois, é neces- sario antes de tudo que vos enfronhais na metafisica: deveis af escrutar profundamente 0 que nao convém ao cérebro do homem; que isto v4 ou nao va, tendes sempre a vosso servigo uma palavra pomposa. Mas desde logo, para este meio ano, ordenai vosso tempo o mais regularmente possivel. Tendes por dia cinco horas de trabalho; entrai na sala ao primeiro toque do sino! Nao chegueis jamais sem estar bem preparado, e ter bem estudado os par4grafos, a fim de que melhor vejais que nada seja dito que nao esteja no livro; e ainda assim tende 0 cuidado de escrever como se o Espirito Santo ditasse.” Eis ai, em contrapartida poética, 0 que se encon- tra na Poesia e Verdade: o retrato vivo, de corpo intei- ro, de como se ensinava filosofia nas universidades cursadas por Goethe. Eram ligdes secas, insfpidas, do tipo magister dixit, de simples memorizagao, dogma- ticas, totalmente distanciadas da vida e da problem: tica concreta daqueles dias agitados, de plena revisio poética, sentimental e literaria, de revisdo do raciona- lismo da Aufklérung (ilustragao, iluminismo). E nao deve ser esquecido que o Fausto, ideado pela primei- ra vez em 1769, como que foi escrito e reescrito durante toda a vida de Goethe, porque, se acabou por ser o drama da propria humanidade, nio deixou 32 EVARISTO DE MoRAES FILHO. nunca de ser uma confissiio completa da propria vida de Goethe. Durante toda essa vida, guardou ele sempre a mesma atitude diante do vocabulario filoséfico, que jamais deixou de Ihe merecer os mais contundentes adjetivos, como pomposo, abstruso, vazio, anfigtri- co, initil, sem bom senso, etc. Vale a pena uma para- da por aqui. No préprio Fausto sao varias as passagens de ir6- nica antipatia pelo uso da palavra desacompanhada da idéia ou do conceito, da palavra vazia e simplesmente altissonante. Pouco depois do seu mondélogo, procura Fausto encorajar Wagner, ensinando-lhe como tor- nar-se um bom orador: “A inteligéncia e ao bom senso € preciso pouca arte para se exprimir; e quando tendes alguma coisa a dizer, por que correr atras das palavras?” Duas estrofes adiante daqueles maliciosos conse- lhos de Mefist6feles, esclarece ainda que, para se ser bom estudante, deve-se sempre concordar com a palavra do mestre: “Finalmente, prendei-vos as pala- vras! e chegareis entao pelo caminho mais seguro ao templo da certeza.” O pobre estudante ousa afirmar que cada palavra deve conter um conceito. Responde- Goerue £ a FILosOFIA 33 Ihe Mefist6feles: “Pois bem, nao é preciso se inquie- tar, porque, onde faltam conceitos, logo uma palavra os substitui a tempo. Com palavras pode-se discutir muito bem; com palavras constréi-se um sistema, as palavras se fazem crer facilmente, de uma palavra no se tiraria um iota.” Na cena da Feiticeira, insiste Mefist6feles, depois de afirmar que uma contradigao perfeita € igualmente ininteligfvel tanto para os sdbios quanto para os lou- cos: “Quem vai se atormentar para compreender tais loucuras? O homem cré de ordinario, quando ouve palavras, que elas devem absolutamente conter um pensamento.” Na cena do Jardim de Marta, exclama Fausto: “O sentimento é tudo; o nome é rufdo e fumaga, obscure- cendo a claridade dos céus.” Nas Afinidades eletivas (1808), registra Otilia no seu diario: “Toda palavra dita desperta uma idéia con- traria.” E na Teoria das cores (1810-1820), mostran- do o poder das palayras e o seu valor auto-suficiente: “A palavra pronunciada penetra na esfera das demais forgas naturais necessariamente eficazes. Opera tanto mais vivamente por isso que, no estreito espago em que se move a humanidade, sempre se repetem as 34 EVARISTO DE MORAES FILHO mesmas necessidades e as mesmas exigéncias. Contudo, a transmissao de palavras € muito perigosa. Dizem que nao nos devemos ater & palavra, e sim ao espirito. Mas, em geral, 0 espfrito destréi a palavra ou a modifica de tal modo que Ihe resta pouco de seu carater e significado originais.”\'9 Nas Zahme Xenien Ill (Xénias suaves, 1815- 1827) este pensamento cruel: “Para te livrares para sempre da verdade, asfixia-a com palavras.” E nas Conversagdes com Eckermann, em 16 de dezembro de 1828, repete as palavras de Mefistéfeles: “Meu bravo amigo, no que respeita a pensamentos e a visdes, os homens nao tém com que se preocupar. Para se comunicar entre eles, ficam contentes desde que encontrem palavras. Meu Mefist6feles nao o ignorava e 0 que diz nao é tio mal assim.” E Goethe, entao, recita 0 conhecido trecho — ja transcrito por n6s — sorrindo e de muito bom humor... Fechado 0 paréntese da ojeriza de Goethe pelas palavras pomposas e vazias, material com o qual, na sua opiniéio, comumente jogam e disputam os metafi- sicos, voltemos a filosofia propriamente dita. Foi por volta de 1770 que a palavra e a figura do génio come- gou a empolgar os meios literarios e culturais ale- GOETHE E A FILOSOFIA 35 mies. Lavater considerava Goethe um “génio origi- nal” e Jacobi chegava a escrever: “Goethe 6, segundo a expresso de Heinse, 0 génio da cabega aos pés.” Contudo, como lembra Fuchs, mesmo durante 0 cha- mado perfodo do Sturm, em meio as mais intensas influéncias do pré-romantismo, nunca se deixou Goethe iludir quanto aos poderes ilimitados do supos- to génio. Sob a influéncia de Herder, sabia ele que o génio pretende ser “mais do que a filosofia”; julga-se acima do esforgo do filésofo que analisa, disseca, classifica e ordena 0 existente. Contudo, nao conse- gue o génio, ainda que verdadeiro, livrar-se da natu- reza, isto é, da esséncia das coisas, que lhe impde os princfpios. Desde cedo, nunca deixou de fazer 0 elo- gio das normas no aprendizado e na educagiio do artista, enquanto Heinse registrava em suas notas: “A arte da educago é uma farsa. Os génios devem edu- car-se a si mesmos, ¢ nenhum tem sido mais profun- damente educado.”?!) Tratar do problema do génio para o Iluminismo e, principalmente, para o Sturm e para 0 romantismo, seria escrever todo um outro ensaio especial. Goethe, no entanto, nunca se deixou dominar pelos extremos da liberdade criadora do génio, quer perante a cién- EVARIsTo DE MORAES Fi cia, quer perante a arte. Desde cedo compreendet como vimos, os limites da genialidade, embora suas primeiras obras ~ Goetz von Berlichinge Mahomet, Prometheus, Satyros, Wieland, entre outras, ainda houvessem sido concebidas dentro d espirito titanico dominante da época. Mas, mesm aqui, nunca perde o seu sangue frio e a serenidad escarnecendo no Satyros os seus colegas do Sturi com enormes caricaturas e mostrando o que ha problematico na genialidade. Na propria natureza génio encontra as normas das quais no pode escap; Como no conhecido refrao de Bacon: s6 se conquist a liberdade criadora, obedecendo-se a naturez: Normas ¢ natureza nao se opdem, pois tudo consis em observar e apreender objetivamente o espetdcul exterior, pois num copo d’4gua encontra-se 0 proprit universo. Em Poesia e verdade deixou escrito: “ homem, dirija-se para onde quiser e empreenda o qu for, voltaré ao caminho que a Natureza lhe haja tragas do.” E no célebre poema do recuado 1779, Grenzei der Menschheit, encontram-se estes belos versos: “Denn mit Géttern / Soll sich nicht messen Irgendein Mensch. / Herbt er sich aufwarts / Un berhiirt / Mit dem Scheitel die Sterne, / Nirgends hay GOETHE E A FILOSOFIA 37 ten dann / Die unsichern Sohlen, / Und mit ihm spie- len / Wollen und Winde.” — “Pois com Deus / Nao deve medir-se / Homem nenhum! / Ergue-se ele ao alto / Até tocar / Co’a cabega os astros, / Nenhures se prendem / Os pés incertos, / E com ele brincam / Nuvens e yentos.”2) Nas Conversacdes com Eckermann sao abundan- les Os textos a respeito da sua opiniao sobre a filoso- fia e os filésofos. A 14 de novembro de 1823, dizia ele: “Nao posso impedir de acreditar que a orientagao filoséfica de Schiller prejudicou a sua poesia; por ela, acostumou-se ele a admitir a idéia em mais alta esti- ma do que a natureza, talvez mesmo até a suprimir a natureza.” Mais tarde, em 14 de abril de 1824, ainda sobre Schiller: “A especulagio filosdfica é, a rigor, um obstaculo para os alemies, porque introduz quase sempre em seu estilo qualquer coisa de abstrato, de ininteligivel, de prolixo e de empolado. Mais aderem a certas escolas filos6ficas, mais escrevem mal. Enquanto isso, aqueles alemaes que, homens de neg6- cio e homens de sociedade, recorrem unicamente a pratica, so também os que escrevem melhor. Tanto é assim que o estilo de Schiller, desde que deixa de filosofar, retoma toda a sua beleza e todo o seu 38 EVARISTO DE MORAES FILHO. vigor.” Em 28 de margo de 1827, indagava ele: “Que poderao pensar os ingleses e os franceses da lingua dos nossos filésofos, quando nés préprios, alemaes, nao compreendemos a nds mesmos?” Ainda nesta conversa, critica ele o ensaio de Hinrichs sobre a tra- gédia grega, no qual afirma que S6focles, nos seus dramas, teria partido de uma Idéia, representando dai Os caracteres com os respectivos sexos e condigdes. Para Goethe isso constitui um absurdo, porque, na verdade, S6focles foi buscar inspirago diretamente nO seu povo, em mitos havia muito formados, nos quais, af sim, j4 se encontraria uma boa idéia... Em 4 de fevereiro de 1829, concorda ele com a opinido de Schubarth, de que “existe um ponto de vista fora da filosofia, o da s& razdo humana, e que a arte e a ciéncia nunca se desenvolveram mais do que quando se mantiveram afastadas de qualquer filoso- fia, quando se abandonaram ao livre jogo das forgas naturais do homem”. “Em verdade, continua, tudo isso € um pouco mais de 4gua para 0 nosso moinho. Guardei sempre minha liberdade de agio a respeito da filosofia. O ponto de vista da sa razio humana sempre foi 0 meu, e por conseqiiéncia Schubarth con- GOETHE EA FILOSOFA 39 firma o que sempre tenho dito e feito ao longo da minha existéncia.” Dias depois, a 17, diz ele que ainda havia duas grandes coisas a fazer na filosofia alema: “Kant escreveu a Critica da razdo pura. O passo realizado é imenso, mas o circulo nao esta fechado. Agora, alguém profundo deveria escrever a Critica dos senti- dos e da inteligéncia humana, e se esta obra obtivesse éxito igual, a filosofia alema nada mais nos deixaria a desejar.” Goethe nao era contra a filosofia propriamente dita, era mais contra os fildsofos, principalmente con- tra os filésofos do seu tempo, pela linguagem que usavam, as abstragdes a que chegavam, numa cons- trugdo cerebrina e sistematica, inteiramente distantes da natureza e das coisas concretas. “Vista de perto, escreveu nas suas Mdximas, toda filosofia nada mais é, no fundo, do que o bom senso (Menschverstand) em linguagem anfigtrica.” Em conversa com 0 chan- celer Miiller, a 20 de fevereiro de 1821: “Se os homens em conjunto nao fossem tio miserdveis, os filésofos, em contraste, no teriam necessidade de ser tGo absurdos.” E ao mesmo interlocutor, a 16 de julho de 1827: “Eu nada posso dizer da filosofia de Hegel, 40 EVARISTO DE MoRAES FILHO. se bem que Hegel, pessoalmente, me agrade bastante. Eu tenho em reserva tanta filosofia quanto dela me seja preciso até ao meu fim, e em suma nao tenho nenhuma necessidade de filosofia. Cousin nao tem nada que me desagrade, mas ele nio compreende que h4, sem diivida, fil6sofos ecléticos, mas nao filosofias ecléticas. Toda essa questao é terrivelmente dificil de resolver, senao os bravos humanos nao teriam tortura- do tanto os seus cérebros ha milhares de anos. E nao chegarao jamais a uma solugao perfeita. Deus nao o quis, sendo ele deveria ter feito os homens diferentes do que sio. Cabe a cada um encontrar os meios de superar estas dificuldades.”2) Goethe chamava a sua época de talentos forca- dos, como lembra Bréhier, por isso mesmo se coloca- va contra a filosofia dos professores.2) Nisto fica a observagiio do historiador francés. Mas, é bom regis- trar, confessava Goethe que nunca tivera 6rgiio para os estudos filoséficos: Fiir Philosophie im eigentlichen Sinne hatte ich keine Organ. E prosseguia: “Somente a reagdo perpétua que eu era obrigado a opor as solici- tagdes do mundo exterior para lhe resistir ou assimil4- lo a mim, deveu me conduzir a um método com auxi- lio do qual me esforcei para apreender as opinides dos GOETHE & A FILOSOFIA 41 filésofos como se elas fossem objetos, e de me instruir com 0 seu contato. Agradava-me, na minha mocidade, ler a Histéria da filosofia de Brucker. Acontecia-me a este respeito como aquele que, durante toda a sua vida, viu o céu estrelado girar em torno de sua cabega e sabe distinguir muitas constelages caracteristicas, mas nao entende uma palayra de astronomia, que conhece a Grande Ursa mas ignora a Estrela Polar”...“A Critica da razéo pura jé tinha aparecido havia muito tempo, mas ficava fora dos limites do meu horizonte intelectual.”?) Isto foi escrito em 1820, exatamente sob o titulo de Influéncia da filosofia moderna. Em 1792, pouco antes de encetar a sua correspondéncia com Schiller — que tudo fez para inicié-lo no kantismo —, mostrava Goethe 0 perigo das teorias e dos sistemas ortodoxos e dogmaticos, “que honram a penetragio de seus autores, mas que, tendo alcangado mais sucesso do que merecem e se mantido mais tempo do que o razodvel, tornam-se bem depressa um obstéculo ¢ um perigo para o progresso do espirito humano, os quais foram por eles favorecidos em certo sentido”. E nas Conversagdes com Eckermann, a 18 de maio de 1824, na mesma orientagio de carga contra os siste- 42 Evaristo De Moraes Fu mas rigidos e preconcebidos: “Para todos esses teéri- cos fechados em um sistema exclusivo, a visio coisas perdeu sua inocéncia, os objetos nao aparece! mais em sua pureza natural. E desde que esses sdbios procuram nos fazer compreender sua maneira de ver, qualquer que seja o amor que cada um deles professe em particular pela verdade, nao atingimos entretanto a verdade dos objetos, nés os percebemos sempre coloridos de uma forte dose de subjetividade.” Tirante isso, embora com um conceito de filoso- fia mais préxima do bom senso — veremos adiante que Goethe vai também criticar 0 bom senso, quando fora dos seus objetos préximos, e vai lhe tragar os limites exatos do seu alcance, — nao deixard ele de se socorrer da filosofia e de a ela se referir com respeito justa medida. Em carta a Schiller, datada de 9 de margo de 1802, chamava-se, juntamente com o autor de Dom Carlos, de “nés outros filésofos”. Na parte introdut6ria da sua Farbenlehre, nos parégrafos 716- 721 cuida das relagdes da sua famosa teoria com a filosofia, mostrando a necessidade de o fisico conhe- cer filosofia e de o filésofo guiar.o cientista na elabo- ragao dos seus métodos, na transformagio das intui- g6es em conceitos, destes em palavras, capazes de GOETHE EA FILOSOFIA 43 bem descrever os objetos. O cientista (0 fisico) “deve ter conhecimento dos trabalhos dos filésofos, e levar o fendmeno até a regiiio filoséfica”.?”) Em outra oportunidade, volta a registrar, nas Maximas: “Quem atualmente deseja escrever ou mesmo discutir sobre a arte, deveria ter ao menos alguma suspeita do que a filosofia produziu em nos- sos dias e continua a produzir.” Também nas Maximas escreve, com mais compreensao: “A poesia mostra os mistérios da natureza e procura soluciond- los pela imagem. A filosofia mostra os mistérios da razdo e procura soluciond-los pela palavra. A mtisica mostra os mistérios da natureza e da razio e procura solucion4-los pela palavra e pela imagem.” E nas Xénias suaves, num arroubo pouco comum em Goethe: “Pede-se uma rima pura; mas um pensamen- to puro, o mais nobre de todos os dons, vale para mim todas as rimas.” E bem verdade que 0 pensamento puro, a que se refere, constitui o fundo ou o contetido da poesia, em contraposigao 4 forma, que nao precisa ser, necessariamente, filosGfica.°®) Indole poética por exceléncia, espontanea e liri- ca, inteiramente voltado para a natureza, como cien- tista e como poeta, procurando Deus in herbis et lapi- 44 EVARISTO DE MORAES FILHO: dibus, com um imenso sentido de mistério e de demo- nfaco, procurando por toda a parte o fenémeno pri- meiro ou origindrio, o Urphdnomen, intuitivo, nio poderia conformar-se Goethe com a disciplina abstra- ta e — por que nao dizé-lo? — drida da filosofia acadé- mica. Em carta a Riemer, datada de 1806, confessa ele esses seus pensamentos, nestas palavras: “Os séculos passados tiravam suas idéias de sua forma imaginativa, 0 nosso as dispde em categorias concep- tuais. Naqueles tempos, as grandes ideologias se manifestavam em figuras, em deuses; hoje em dia, so elas dispostas em categorias conceptuais. Antes era maior a poténcia criadora, hoje o € a arte de des- truir, ou seja, a de distinguir.”2 E esta, sem diivida, a atitude definitiva e perma- nente de Goethe diante do pensamento abstrato, cate- gorial e seco da filosofia moderna. Veremos adiante que tudo que nao favorega a vida, que nio aumente as possibilidades do individuo e dos povos, que niio acar- rete um certo aperfeigoamento na personalidade, em sentido moral e de atividade, tudo que niio é fecundo, nada representa para Goethe, além de um peso morto, meramente decorativo, simples palha seca. Teve ele durante a sua vida contato com os maiores filésofos GOETHE E A FILOSOnA 45 do seu tempo — com Fichte, Schelling, Hegel, Schopenhauer; e, antes, com Lessing, Herder, Jacobi, etc. Conheceu, de leitura, praticamente todos os filé- sofos, desde Empédocles e Anaxagoras, até Kant, pas- sando por Spinoza e Leibniz, mas nao se fixou em nenhum, tirando deles todos somente 0 que era neces- s4rio para a sua propria formagio (Bildung). 4. A €poca em que viveu Goethe, principalmente de 1770 em diante, é da maior importancia para a constituigao da nagao alemi, pelo que significa no seu desabrochamento como cultura prépria e inde- pendente diante das culturas inglesa e francesa, j4 bem constitufdas havia mais de um século. O tiltimo quarto do século XVIII assiste aos ataques mais sérios & Aufkldrung (Ilustragao, Iluminismo, Filosofia das Luzes), reclamando o sentimento e as outras manifestac6es irracionais do ser humano o seu justo lugar na personalidade e nas suas criagGes filos6ficas, artisticas, cientificas, literarias, culturais, enfim. Durante os seus longos 83 anos, presenciou Goethe a varias fases do desenvolvimento cultural alemao, desde o Sturm und Drang, o pré-romantismo, © romantismo, 0 neo-humanismo e o classicismo ger- EVARisTo DE MoRAES mianicos. Ele préprio participou de todos eles, deixat do em cada um a sua marca genial. Nao é es porém, 0 nosso assunto no momento, pois nos desvis tia dos nossos propésitos e nos levaria muito lon; Ao visitar a Alemanha, na primeira década do sécuk XIX, surpreende-se Mme. de Staél com o entusia: cultural que af se passa, pelo niimero de seus grand homens e, sobretudo, pelo fato de que todos se pre cupam com 0 universo: “Na Alemanha, 0 génio fil s6fico vai mais longe do que em qualquer outr lugar” (...). “Quem nfo se ocupa com o universo, ni Alemanha, nao tem verdadeiramente nada a fazer.” Registra também que “os escritores alemies atuais s¢ mostram (0 que deve parecer singular) muito mai: opostos do que os ingleses a introdugio das reflexde: filos6ficas na poesia”. Esta foi, de fato, como j assinalamos atras, a caracteristica do romantismo. Goethe, 0 maior poeta do seu tempo, encontrava- se em seu pais cercado de filosofia por todos os lados. Nao poderia ficar imune ao cont4gio filos6fico, mas sempre sem confundir os dois dominios. J4 vimos as. suas opinides a este respeito em p4ginas anteriores. Mas, curioso, é que vamos encontrar nada menos do que em Schiller a confirmagio das palavras de Mme. GOETHE E A FILOSOFIA AT de Staél, no que se refere 4 oposigio da reflexdo filo- sofica na poesia, logo ele que se adentrou na filosofia kantiana e que atribuiu a Kant 0 mérito de lhe ter per- mitido concluir a sua propria doutrina poética. Em carta a Goethe, de 2 de janeiro de 1798, lamenta a ma apreciagao feita pela Gazeta de Nuremberg ao Hermann e Dorothéia, “que me convence mais uma vez que os alemies s6 sfio capazes de apreciar verda- deiramente o que tenha cardter de generalidade, o que diz respeito ao entendimento abstrato, o que leva a nota de moralidade”. E depois, tratando de Milton e das paixdes, nado concordando com o ponto de vista de Kant (carta de 2 de agosto de 1799): “Felicitemo- nos de nao ter de fornecer 4 humanidade, sobre estes problemas, uma solugdo que a satisfaga, e de poder hos manter tranqiiilamente no terreno do fenémeno. Nao que eu nao queira dizer que estas regides miste- riosas da natureza nao tenham nenhum interesse para 0 poeta...” Por sua vez, Goethe, que nunca estudou tanta filosofia como durante os anos de correspondéncia com Schiller (1794-1805), Ihe escrevia de Iena, em carta de 19 de fevereiro de 1802: “Passei com Schelling uma excelente noitada. Hé sempre grande 48 EVARISTO DE MORAES. prazer em encontrar a extrema clareza unida a ext ma profundidade. Eu o veria mais freqiientemente, nao tivesse ainda a esperanga de algumas ilumit gGes poéticas. Ora, a filosofia, em mim, é nefas! poesia, sem dtivida porque me langa com forga objetividade, pela razio de que sou incapaz de manter no ponto de vista puramente especulative que, para cada.teorema, nada mais posso fazer que ir procurar uma intuigao que lhe correspond: que me obriga entdo a sair imediatamente de mesmo para correr a natureza.” Ao que, no dia seguinte, Schiller lhe respond e Goethe ira recordar isso mais tarde nas suas con’ sagdes com Eckermann: “Nao ha nada que seja interessante do que observar até que ponto vosso peramento contemplativo faz bom casamento cor filosofia, e dela tire perpetuamente vida e for Quanto a saber se, inversamente, 0 temperamet especulativo do nosso amigo (Schelling) tirara mesmo grau proveito de vossa natureza intuitiva, duvido muito, embora o faga somente por moti objetivos. Porque, no que vos diz respeito, nao retit reis de suas idéias sendo 0 que se harmoniza com vossas intuigdes, visto como afinal de contas o d: 49 possui a vossos olhos uma autoridade mais alta que a especulagao, salvo 0 caso quando coincidem. Enquanto isso o fildsofo se sente fatalmente em difi- culdades com toda intuigdo diante da qual se vé impotente para utiliz4-la, porque ele exige a qualquer prego que suas idéias tenham um valor absoluto.” Perfeita esta exposigao de Schiller, e perfeita a varios respeitos. Primeiro, porque coloca, em poucas linhas, praticamente toda a teoria do conhecimento e da ciéncia de Goethe, voltada para a intuigdo, para 0 real, para o dado objetivo, sem qualquer especulag3o perturbadora. Segundo, porque compreendeu bem naquele ano o quanto possuia de arbitrario e sonhador 0 sistema da Naturphilosophie de Schelling, inteira- mente fantasista e fantasioso, sem nenhuma base na realidade, sem qualquer experimentagao verdadeira- mente cientifica. Contudo, Goethe nao se ocupava somente com poesia, dedicava-se aos seus estudos de ciéncias natu- rais. Via-se assim obrigado a meditar sobre os méto- dos a empregar e os resultados das suas préprias experiéncias. Estas cartas com Schiller sao a maior demonstragao do seu esforgo para instruir-se nos estudos filos6ficos, na sua linguagem, na sua técnica, EVARISTO DE MORAES nas suas idéias dominantes. Natureza muito mai; vibrante e poderosa do que a de Schiller, é de caus: admiragdo e pasmo a sua humildade diante das lig de filosofia que Ihe ministrava Schiller. Goethe repete como um timido menino de escola. Quet enfronhar-se em Kant, chama-se de filésofo (com« vimos), rompe com Herder em defesa do novo idolo, envia a Schiller 0 seu ensaio sobre a Experimentage considerada como mediadora entre 0 sujeito e o obje: to, e pede a sua opiniao. No entanto, vamos ao que interessa — a caracteri- zacio de Goethe como filésofo, isto é, se pode set considerado como filésofo. Em carta datada de Weimar de 10 de fevereiro de 1798, escrevia Goethe: “Se a filosofia se torna dia a dia mais cara para mim, € porque dia a dia ela me ensina melhor a me separ: de mim mesmo, e a lig&o é tanto mais oportuna quan: to minha natureza, 4 maneira das gotinhas de merct- rio isoladas uma da outra, tende por ela mesma a s juntar com uma extrema facilidade e uma extrema prontidao. Vosso exemplo me é de um auxilio precio- so, € espero que meu esboco da teoria das cores nos forneceré proximamente oportunidade de novas tro- cas de idéias.”G) 31 A verdade é que Wolfgang Goethe fez filosofia, talvez como — permita-nos 0 chavao... — M. Jourdain, de Moliére, fazia prosa sem saber. A ninguém, menos do que a Goethe, ocorreria tratar de uma teoria do conhecimento, isto é, do estudo das possibilidades do espirito humano para o conhecimento. O sujeito e 0 objeto eram duas realidades inequivocas, sem que nunca lhe houvesse passado pela cabega colocar em ddvida, no sé a sua realidade, como igualmente a seguranga do seu conhecimento. Teriamos logo a réplica de Goethe — Jhr kennt nur Kenntnis — v6s nao conheceis sendo conhecimento. Ele que escreveu, categdrico, nas suas Zahme Xenien, VII, aos 75 anos de idade: “Wie hast du’s denn so weit gebracht? / Sie sagen, du habest es gut vollbracht!” / Mein kind! ich hab’ es klug gemacht / Ich habe nie tiber das Denken gedacht.” — “Como entio alcangaste tao longe? / Eles dizem que tu bem o executaste!” / Meu filho! procedi com habilidade: / Jamais pensei sobre o pen- samento.”” J, nas mesmas Xénias, II, havia escrito: “Ja, das ist das rechte Gleis, / Dass man nicht weiss, / Was man denkt, / Wenn mann denkt; / Alles ist als wie ges- chenkt”. — “Sim, € a verdadeira via, / Que nao se

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